Andei no Tibetan Freedom, e com um olho atrevido pensei em
burlar a máquina de caça-níqueis que o crupiê tinha programado para roubar a
cada vinte minutos um incauto que se empolgava ganhando cem dólares antes da
queda. Joguete do destino, este patife que opera via seus acasos mortais, os
poemas aqui não cabiam no gelo do Himalaia, maiores topázios ou ópios que
sussurravam o êxtase de seus mistérios.
Na nota de um fracasso de poeta suicida, o elenco de uma
filmografia morria de tifo ou gota, os senhores que produziam faziam as cenas
em um plano-sequência de vertigem, nada a dever aos fantasmas mais miseráveis
de um expressionista maquiado de olheiras fundas a fazer do pré-guerra suas
intuições sinistras.
Em Lhasa eu conheci um monge esteta, pintava suas astúcias e
as destruía em seguida. A hipnose de que fui vítima tinha um ar viciado que
simulava um satori cheio de diabinhos pintados na tela de minha mente extática.
Rumorejava o vento em cantos sutis que abria a vertigem para uma nova paisagem
onírica, os sete candelabros que urdiam um poema sacro com brios profanos e um
chá alucinógeno que fazia ouvir música celeste com os ouvidos sinestésicos que
pintavam o sol do meio-dia com asas de anjo e ardis bem diabólicos, como uma
face dupla que ardia meus infernos com sentimentos de céu em meio ao caos da
morte que me cercava.
Quando eu lia Ginsberg depois de uma passagem por Katmandu,
eu nasci de novo antes de certos passos irrisórios e febris. Já antes ainda de
eu nascer de novo, na sombra de dias mortiços, o cheiro de enxofre possuía meus
rituais, ouvia os delírios de minha pena com certa delícia, mas a minha alma
ainda estava morta, viciada nas flores oníricas e nos germes que eclodiam as
farsas e as canções ditirâmbicas de antepassados que se perderam no tempo da
História.
Lhasa ainda não tinha sido invadida por chineses e nem os
lamas tinham ainda fugido para a Índia. Rinpoche Tarthang dizia certos enigmas
mais possessos que todos os koans elencados pelo zen, sua fusão fazia Jazz e
batia tambor com sede e fome como grandes deuses irados e famélicos, Shambala
me dizia em quinze centúrias todas as regras do jogo e de como quebrá-las sem
violência, apenas com o uso da mente clara e decidida, o poder da decisão como
o cerne da escolha, e a consequência inaudita e planejada no mesmo diapasão,
como um compasso de música que metrifica um destino inteligente.
O sol ardia na manhã calma da montanha, o Himalaia amanhecia
com o canto dos lamas a fazer balões coloridos voarem naquele frio marmóreo que
convidava à meditação. O sol que nascia vermelho e ficava amarelo, e Tarthang
que pintava logo adiante um Shambala verde e azul, simulando demônios depois da
alucinação do chá de flores oníricas que tomava o espaço e que um dos lamas
delirava para testar se ficaria louco depois do êxtase e da sinestesia, pois
tocava tambor alucinadamente enquanto cantava coisas incompreensíveis, num
frenesi próprio e enigmático.
O jogral apareceu ao fim daquela manhã, o tal lama que tinha
alucinado desde que o sol nasceu acordava de seu transe e caiu num sono de
Morfeu. Tarthang fazia a sua palestra debaixo de uma araucária e depois dizia
sobre os diversos venenos a evitar, sua doutrina sobre a atrabílis e como a
saúde era mais forte com os dons bem cuidados e não apenas dependentes da
inspiração. O poema metrificado em tibetano fazia novamente um tipo de jogo
mais paradoxal, uma espécie de delírio armava o raciocínio como um joguete,
samsara operava ali.
Em Lhasa aparecia Shambala como a deidade irada a provar o
fracasso filosófico dos projetos doutrinários que buscavam a verdade, a
sapiência era fraca e exangue, a meditação apenas evidenciava a morte da alma
cognoscente, Tarthang então cantava para o sol inutilmente, a sua sabedoria
também não era nada, virava pó de estrela em um gesto de morte, indo para o
bardo para se livrar de sua verdade e de suas mentiras.
O jogral, a esta altura, não fazia mais ninguém rir, todos
meditavam, e a imagem de Shambala no fólio desafiava a imaginação, um sinal de
que a quietude era um exercício contra a perturbação da loucura alucinatória
dos transes oníricos, o embusteiro que se jogava hipnotizado do penhasco,
achando que iria voar, e sua morte suicida como um ser de asas que nunca existiu
e que se espatifou no chão duro de sua finitude. Este era o jogral, ele se
matou depois de falhar em sua peça de comédia, o bobo que se cortou depois de
uma queda, o fraco da desdita que se jogou, que teve a queda definitiva depois
de cair, o suicida que nem poeta era, o que conheceu a sua morte e nunca mais
poderá rir.
Tarthang já sabia o que poderia acontecer ao que espera
agradar com salamaleques, vira um joguete de seu próprio fracasso, e o sol só
brilha a quem quer a si mesmo, a quem se edifica para si, a construção de uma
alma forte que desafia os olhares, pois nunca será o jogral agradável que ri
para fazer cena e chora por ocultar seu vazio. Os lamas então saíram de tarde
com mais balões coloridos, os poemas de fogo foram embutidos em tais balões, em
Lhasa tinha uma paz imortal que nada pedia ao sol, apenas agradecia. Tarthang
meditava por mais uma hora, e a certo momento de um sol vermelho, levitou e
entrou em um transe em que viu Shambala novamente, a lhe ensinar sem falar
novas intuições que ele nem suspeitava, um êxtase e mais um dia vívido como
fogo.
Depois de uma semana, voltei para Katmandu, tive a inspiração
de fazer um poema esteta e bem afetado, um rito parnaso que empolava em língua
morta, a fazer uma versão aguada adrede de uma experiência mística, tentava
falar do jogral e de seu fracasso triste, e de como o sucesso só se fortalece ao
não atender a qualquer expectativa, mas à verdade de valores inesperados, como
um soco na barriga que dobra as línguas de almas mortas e sebosas.
Katmandu teve uma festa na noite em que estive lá, ao pé do
Himalaia eu vi mulheres e crianças felizes em meio de uma pobreza, nada faltava,
pois as ambições ali tinham virado uma quietude que me lembrava do sol de
Lhasa, e o degelo da agonia que tinha passado depois de ver Shambala dançando
na nuvem, com Tarthang flutuando a dizer que nada se salvava, as poeiras
sumiriam no éter, o bardo provaria que não teria mais nada pela frente, o vento
nos levaria para além, e nunca se soube do infinito o que ele nos diz, o céu
sempre silencia, e assim se entende tudo no silêncio.
Gustavo Bastos – POEMA EM PROSA – 14/03/2020