PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 20 de fevereiro de 2016

BERTOLT BRECHT, O POETA (PARTE III)

Brecht demonstra em seu poema “Canção do escritor de peças” como ele se revela como dramaturgo, pois sua poesia, o chão em que seu teatro invariavelmente pisa, neste poema, ao contrário, temos seu teatro sendo equacionado pela poesia, ou melhor, pelo que este poema, em particular, afirma. Portanto, o que na dramaturgia de Brecht, temos nela, o serviço prestado da poesia, aqui neste poema o serviço do teatro entra como definição dos próprios versos deste poema. “Eu sou o escritor de peças”, diz Brecht na abertura do poema, e evolui seu compasso com exemplos do que pode ser definido como o que é e o que sustenta como tese em seu teatro, tal como versos assim: “Aquilo que vi. Nos mercados dos homens/Eu vi como o homem é tratado.” Ou ainda: “Como ficam nas ruas e esperam/Como preparam armadilhas uns para os outros”.
Pois Brecht tem no Homem sua tese de teatro, as relações humanas com densidade social e política, muitas vezes até panfletária, e o homem que ama, também pode ser, dada as circunstâncias, algo hobbesiano como o homem é o lobo do homem, como se diz em um dos versos que citei deste poema, no caso das emboscadas e armadilhas que uns preparam para outros, nesta nossa vida regida por leis, mas que é selvagem mesmo assim. Brecht dá tratamento ao homem miserável, no mercado e nas ruas o homem é o exemplo, a demonstração e, por fim, a tese. E neste poema, fica o sentido do teatro de Brecht, o escritor de peças, em que toda sua sustentação vem da poesia.
Já no poema “O pão do povo” Brecht volta com sua demanda social, de sua formação socialista, mas aqui sem panfleto político explícito, mas como tese abundante de seu cabedal de proposições sociais, o que em Brecht une sua poesia e seu teatro. Versos como: “Alimentado do pão da justiça/Pode ser feito o trabalho/De que resulta a abundância.” Neste poema do pão, o trabalho deve se vincular diretamente à justiça. E de que se trata? Nada mais do que a justiça social, força propulsora de grande parte do ofício de arte de Bertolt Brecht. A arte que fala do povo, fala de seus desejos de justiça, como no verso exclamativo: “Fora com a justiça ruim!” E que culmina com sua tese aqui de socialismo implícito, nos versos: “Deve o pão da justiça/Ser preparado pelo povo.” Por fim, é o povo a justiça para o povo, quem faz toda a justiça é quem quer a justiça, e a justiça dita ruim é a que não deixa o pão ao povo, e quando o pão é do povo e não há mais fome, a justiça cai nas mãos dos que fazem todo o trabalho, a divisão social dá lugar à abundância, uma das promessas de vitória do teatro e da poesia de Brecht, com viés político umas vezes, mas sobretudo como tese social e ideia de sociedade, que tem na palavra justiça seu eixo de demanda e lutas.
CANÇÃO DO ESCRITOR DE PEÇAS
Eu sou o escritor de peças. Eu mostro
Aquilo que vi. Nos mercados dos homens
Eu vi como o homem é tratado. Isto
Eu mostro, eu, o escritor de peças.

Como entram uns nas casas dos outros, com planos
Ou com cassetetes ou com dinheiro
Como ficam nas ruas e esperam
Como preparam armadilhas uns para os outros
Cheios de esperança
Como marcam encontros
Como enforcam uns aos outros
Como se amam
Como defendem seus despojos
Como comem
Isto eu mostro.

As palavras que gritam uns aos outros, eu as registro.
O que a mãe diz ao filho
O que o empresário ordena ao empregado
O que a mulher responde ao marido
Todas as palavras corteses, as dominadoras
As suplicantes, as equívocas
As mentirosas, as inscientes
As belas, as ferinas
Todas eu registro.

Vejo tempestades de neve que se anunciam
Vejo terremotos que se aproximam
Vejo montanhas no meio do caminho
E vejo rios transbordando.
Mas as tempestades têm dinheiro na carteira
As montanhas desceram de automóveis
E os rios revoltos controlam policiais.
Isto eu revelo.

Para poder mostrar o que vejo
Leio as representações de outros povos e outras épocas.
Algumas peças adaptei, examinando
Com precisão e respectiva técnica, absorvendo
O que me convinha.
Estudei as representações das grandes figuras feudais
Pelos ingleses, ricos indivíduos
Aos quais o mundo servia para desenvolver a grandeza.
Estudei os espanhóis moralizadores
Os indianos, mestres das sensações belas
E os chineses, que retratam as famílias
E os destinos multicores encontrados nas cidades.

E tão rapidamente mudou em meu tempo
A aparência das casas e das cidades, que partir por dois
               anos
E retornar foi como uma viagem a outra cidade
E as pessoas em grande número mudaram a aparência
Em poucos anos. Eu vi
Trabalhadores adentrarem os portões da fábrica, e os
                portões eram altos
Mas ao saírem tinham de se curvar.
Então disse a mim mesmo:
Tudo se transforma e é próprio apenas de seu tempo.

Portanto dei a cada cenário seu emblema
E em cada fábrica e cada edifício gravei em fogo o seu ano
Como os pastores gravam números no gado, para que seja
                reconhecido.
E também às frases que lá eram faladas
Dei-lhes seu emblema, para que se tornassem como as
                   sentenças
Dos homens efêmeros, que são registradas
Para não serem esquecidas.

O que a mulher em avental de trabalho disse
Nesses anos, debruçada sobre os panfletos
E como os homens de bolsa falaram com seus empregados
Ontem, chapéus atrás da cabeça
A isto marquei com o sinal de impermanência
De seu ano.

Tudo entreguei ao assombro
Mesmo o mais familiar.
Que uma mãe deu peito ao filho
Isto relatei como algo em que ninguém acreditará.
Que o porteiro bateu a porta ao homem morrendo de frio
Como algo que ninguém jamais viu.
O PÃO DO POVO
A justiça é o pão do povo.
Às vezes bastante, às vezes pouca.
Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão é pouco, há fome.
Quando o pão é ruim, há descontentamento.

Fora com a justiça ruim!
Cozida sem amor, amassada sem saber!
A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
Quando o pão é bom e bastante
O resto da refeição pode ser perdoado.
Não pode haver logo tudo em abundância.
Alimentado do pão da justiça
Pode ser feito o trabalho
De que resulta a abundância.

Como é necessário o pão diário
É necessária a justiça diária.
Sim, mesmo várias vezes ao dia.

De manhã, à noite, no trabalho, no prazer.
No trabalho que é prazer.
Nos tempos duros e nos felizes.
O povo necessita do pão diário
Da justiça, bastante e saudável.

Sendo o pão da justiça tão importante
Quem, amigos, deve prepará-lo?

Quem prepara o outro pão?

Assim como o outro pão
Deve o pão da justiça
Ser preparado pelo povo.

Bastante, saudável, diário.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/27394/17/bertolt-brecht-o-poeta-parte-iii

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

NÉVOA DE NARDO

Giz de cera, bruma azul
lampeja, qual furibundo
dia, o poema golpeia.

Ataca a composição
o traço marcado:
como numa revolta,
sim, como a rebelião!

Peça de comédia bufa
é o canhão e a pólvora,
peça de tragédia
este vil coração!

Dai ao golpe da letra
seu terrir de fardo,
dai ao poeta
seu porvir de nardo.

18/02/2016 Gustavo Bastos

ESPANTO FRIO

Gerações ao espanto frio,
eu tinha muita sorte
no grito destemido.

As lutas das literaturas rotas
são frouxos de riso,
as lutas dos artistas brutos
são de estética e vinho.

O poema, como uma dose de veneno,
eis que de karma e música
enfada o homem prático,
eis que de dança e delírio
exalta o homem dissipado.

Contas de colares do frasco madrepérola:
o poema, nota bruta, fábrica da pedra,
regenera o fraco de seus vícios,
e enobrece o forte de suas ambições.

Estética da vinha, por mim mesmo:
o tanino é denso
como madeira de lei,
não enverga
no espanto,
não deplora
a viagem da vida.

18/02/2016 Gustavo Bastos

NOTÍVAGO DA FADA VERDE

Luzidio frasco de absinto,
com karma de indolor esfera,
às notas rotas que pressinto,
qual dharma que dormita fera.

Azedume dos folguedos vãos,
quais descansos de risos frouxos,
às mais claras vinhas dos sãos,
são risos e escárnios de brutos ocos.

Ah, pois mesmerize fada azul,
ah, pois catalise a manta de verdor,
ah, que nada me espante ao debrum,
ah, e nem me encante o albor!

Luzidia razão dos nobres,
pois do mundo vão aos vinhos,
que são obras dos fortes,
e caem bem em sonos de linhos.

Absinto do frasco alucina,
já bêbado de alta miragem,
que sinto absorto na vil sina,
ao estar no encanto selvagem.

18/02/2016 Gustavo Bastos

FIM DO POEMA

Assim, de carne e veste envolvida,
a estrela de chumbo tonteia,
pois mais seca e densa neblina,
às amarras do coração bombeia.

Pois, do canto mais solar,
como o verão de cal e sonho,
a mais funda estrela polar
cai como luva no caldo risonho.

Das trevas enuncia luz,
como uma jarda longínqua,
que enternece o que supus,
por mais alta sala contígua.

Assim, de sol e lua à carne dura,
sonha vinha assim de mel,
pois à arma fruto de sal e luta,
sonha o fim do mundo e do fel.

Pois de chumbo estrela escarlate,
lá no alto com albor de carmim,
que da branca nuvem tudo arde,
do fim ao fim deste sonho de fim.

18/02/2016 Gustavo Bastos

HAXIXE MARROQUINO

Ah, quão longe flor de flora!
Que meus pés já não sentem,
que meus olhos só veem!

Atrás da big band,
atrás dos cacos
de fumo.

Um ar de fumaça toma o trompete,
psiconáutico flor morfema,
que as vinhas seviciadas
de mosto aos pés
embriaga!

Ah, quão longe o caminho
da espera matreira!

Atrás da música solista
o kaaos on the hills,
pois because of you
I have been mad.

Haxixe marroquino
nos tímpanos:
oh como é doce o pecado
das cores e dos sons
quando se está
em êxtase!

18/02/2016 Gustavo Bastos

DORES DA BORRASCA

Que borrasca que nada!
O pranto seco sequestrou
o dia,
e as flechas de bruma
só seriam ao orvalho
da flor,

Que alma danada!
Esta que se mutila
dando ares
de "sinto dor"!

As mais das vezes
flor e dor
são selvagens escravos
do amor.

Se escrevo-escravo
dos olores da flora?
Sim, mais ou menos,
pois talvez de perfumes
o canto do dia
se faça mais ouvido
pela chuva borrasca pranto
que lágrimas pretendidas
tinham novamente o apelo
do tal "sinto dor".

18/02/2016 Gustavo Bastos

ATAVISMO DA ALTA TORRE

Os olhos atávicos semeiam
o caos dos símbolos,
como nota inconsciente de dor
a onisciência da morte,
onipotente aniquilação,
onipresente violência.

Os deuses mais mórbidos
compõem os caminhos
de vitória,
os deuses mais pacíficos
sofrem na dor d`alma.

Os ouvidos atávicos
se bebem em sensações,
como numa viagem de ácido
em que o duro karma
mostra seus dentes de leão,

como na esfera última
circunvolutiva
dos febris delírios
da alta torre,

e a vida passaredo conclama:
o poema está traçado
com veias e sangue
nas náuticas canções
de brutos calores.

18/02/2016 Gustavo Bastos

UM PORRE DE VINHO

As lutas rinhas porradas ...
como na litania libertária
dos corações convulsos,

ah, que mágicos dias!
ah, que ilusionismo
de máscaras!

O teatro dos vampiros
é pura decadência alcoólica,
os lobos das estepes
são fúrias ignotas.

Como um coração puro
desdenha o rito
dos náufragos?

Com o vinho estás em verdade,
e vos digo que a indolência
cria seus musgos de idolatria,

Como um coração sujo
reifica seu ego flutuante?

O teatro dos vampiros
morde a ambição
de ser grande,
a luta rinha porrada
dos poderes faustosos,

In vino véritas
e os lobos das estepes
com suas fugas
de cárcere,

o vinho flutua a flor,
a flor desvela
o segredo,

a convulsão dramática
ao ato final
cai como última nota
de cizânia:
a rinha dos degredados
com seus ditos senhores
da astúcia,

como és vinho a paz vindoura,
como és estrada da vida ...
assim, imprevista!

18/02/2016 Gustavo Bastos

SONARES ESTÉTICOS

Pela ventana com olhos marejados
o sal arde qual fuga,
os déspotas do terror
afagam seus egos,
os miasmas de guerra
afundam a ciclópica
arma de vigilância,

pelos dias de astúcia,
pelos dramas de angústia,

uns, atrás das poucas esperanças,
outros, que jogam a vida
pela janela,

veja:
o poema é uma estrutura densa
de estética,
os pormenores de versos
enunciam a linguagem atávica
das fadas,
como numa psicologia de símbolos
extasiados,
como numa fábrica
de sonares
sonhadores.

18/02/2016 Gustavo Bastos

INSTRUMENTAL (ATO SENSORIAL)

Ouvindo no átrio a dor seminal, eis que:
os catálogos de bares sumiram,
uma dose oca de ilusão
reverbera pelos poros
da vida,
oh que chuva e lágrimas
que secam no horizonte,
como a curva mortal
da tempestade.

As mãos sóbrias e pálidas
carregam o candeeiro
pela noite profunda,

aos que vivem e morrem,
socorram-nos de poesia,
de fina música
para a filosofia
de nossas angústias.

Com o ouvido atento, tal
o instrumentista:
ouça-veja harmonia no sol,
a lua, também,
reverbera o ataque
das letras em uníssono.

18/02/2016 Gustavo Bastos

domingo, 14 de fevereiro de 2016

O LIVRO TIBETANO DA GRANDE LIBERAÇÃO

"A Doutrina do Vazio do Mahayana pode ser considerada o caminho para o Nirvana “

A REALIDADE
A realidade, para o Budismo Mahayana, é algo completamente diferente da noção ocidental, acostumados que estamos com a mente científica, isto é, objetiva e experimental, e esta diferença de visão (e de temperamento, se lermos os textos junguianos sobre o tema), como vem sendo colocada aqui nesta análise da Série Tibetana do trabalho realizado por W.Y.Evans-Wentz, e que finaliza agora com esta resenha (vide O Livro Tibetano dos Mortos e A Ioga Tibetana e as Doutrinas Secretas, que foram temas no caderno de cultura da Século Diário nos dois textos anteriores), tem feito desta reflexão um ponto dos encontros e desencontros entre o Ocidente e o  Oriente sobre a psicologia da mente, que envolve, por conseguinte, o Ocidente científico de um lado, e o Oriente místico, de outro lado.
Portanto, a realidade para o budista mahayana é algo ligado à Mente Única Supramundana, que transcende as aparências contidas no dualismo fenomênico que constrói a percepção comum que, no contexto Mahayana, e junto com todas as Escolas das Ciências Ocultas Orientais, não passa de algo da mente sangsárica (ou mundana), e que constitui o que eles chamam de o Brahman dos Rishis, o Sonhador de Maya, o Tecelão da Teia das Aparências, pura ilusão do ciclo de nascimentos e mortes.

A MENTE ÚNICA E O DESVELAMENTO DA REALIDADE
E a Mente Única Supramundana é o que se define (ou indefine, digamos) por ser o Vazio (Shunyata, em sânscrito), também conhecido como o Impróprio, o Não-nascido, o Incriado, O Informe, a Essência Primordial, o Inqualificado, que desintegra o Espaço e o Tempo, a Fonte Cósmica abstrata de onde vêm todas as coisas concretas e fenomênicas e na qual estas mesmas coisas desaparecem.
Padma-Sambhava, o Grande Guru, autor do tratado “Ioga do Conhecimento da Mente em sua Nudez”, desvela o ponto de vista do Budismo Mahayana: “Todo o Sangsara (o Universo fenomenal das aparências) e o Nirvana (o estado Não-manifestado, ou numenal), como uma unidade inseparável, é a nossa mente (no seu estado natural, ou não-modificado do Vazio)”. E, do mesmo modo, segundo o próprio Buda, o Nirvana é a transcendência sobre a transformação constante do que nasce e é formado, então o Nirvana representa também a aniquilação das aparências, a extinção da chama da sensualidade corporal, o despertar do Sonho de Maya, que é, por fim, o desvelamento da Realidade.

A DOUTRINA DO VAZIO
Buda, e ainda depois dele, Nagarjuna, este o compilador do Prajna-Paramita, o principal tratado Mahayana da Sabedoria Transcendental, buscavam, no entanto, evitar extremos de superstição para um lado, ou de niilismo para outro lado, pois um dos principais ensinamentos de Buda e Nagarjuna, por sua vez, é o conhecido Caminho do Meio, que com Nagarjuna ficou conhecido como Madhyamika.
É bom ter claro que na doutrina do Madhyamika, não temos a ideia de renúncia praticada pelos Theravada, por exemplo, que prega a renúncia total do mundo por causa da dor e da aflição, pois em Nagarjuna e no Mahayana a ideia de renúncia é mais simples e menos dramática do que para os Theravada, pois se trata apenas e somente de entender que o mundo fenomênico é tão irreal quanto os sonhos. Sendo, portanto, a doutrina fundamental do Budismo Mahayana a do Vazio. Representando a Doutrina do Vazio para o Budismo do Norte (Mahayana) o que é a Doutrina do Anatma (ou Não-Alma) para o Budismo do Sul.
E a essência universal que fundamenta a Doutrina do Vazio dos mahayanas e exposta no Avatamsaka Sutra, livro atribuído a Nagarjuna, também pode se manifestar em três aspectos que são símbolos dos Três Corpos Divinos (em sânscrito: Tri-Kaya). O primeiro aspecto é o Dharma-Kaya, Corpo Essencial (ou Verdadeiro), que é a Essência Primordial, Imutável, Amorfa, Eternamente Auto-existente do Bodhi, ou Existência Divina. O segundo aspecto é o Sambhoga-Kaya, ou o Bodhi Refletido, onde, nos mundos celestes, habitam os Budas da Meditação (em sânscrito: Dhyani Buddhas) e os demais Iluminados, neste caso quando estão encarnados em formas sobre-humanas. E o terceiro aspecto é o Nirmana-Kaya, Corpo da Encarnação, o Bodhi Prático, estado dos Budas quando estão na Terra.
A Doutrina do Vazio do Mahayana pode ser considerada o caminho para o Nirvana, que é, por sua vez, o Estado Transcendente à Dor, e por conseguinte ao Sangsara. O Vazio do Mahayana é o próprio Nirvana, que nos ensinamentos de Buda é aquilo que não é e nem deixa de ser, não é existência nem inexistência, não é ser nem não-ser, pois todas estas diferenciações não passam, como demonstra Nagarjuna, de dualidades ilusórias. O Nirvana, portanto, está além do discernimento intelectual, está além do intelecto, e por não ser relativo a nada, transcende a relatividade, passa para além de toda concepção e predicação, pertencendo ao Vazio. O intelecto, por sua vez, como o ente que produz as dualidades, é um reflexo, no mundo fenomênico das aparências, da Ipseidade, do Estado Verdadeiro, do Nirvana.

O ESTADO DE BUDA
O processo de desdobramento espiritual, do qual a humanidade, consciente ou inconscientemente, faz parte, é um processo de dissipação de Maya. Maya, por sua vez, significa literalmente ilusão, e para um Buda, Maya é a manifestação, tal como o Sangsara, da energia criativa que emana do Cosmos, falado nos tantras que é a Mãe Universal ou Shakti, pelo ventre de quem os corpos encarnados chegam à existência, e quando esta energia é latente, não temos Criação e, portanto, não há Maya.
A transcendência de Maya, ou a saída do reino da ilusão, é nada mais que a transcendência da dualidade e da transitoriedade do mundo fenomênico, que é, por outro lado, um retorno à primordial reconciliação, percepção da Mente Única (ou Consciência Cósmica), a reunião da parte com o Todo, emancipação do tempo, do espaço e da causa, atingimento pela existência condicionada do Ser incondicionado, do Estado de Buda.
No entanto, o esclarecimento necessário feito pelo caminho da Yogachara, por exemplo, é o de que o mundo fenomênico não é algo do qual se deve escapar, mas está ligado à própria essência, de forma simbólica, dessa onipotente e inefável essência da Mente Única em evolução eterna, sendo a vida na Terra, por sua vez, a Oportunidade Suprema, para a maior bem-aventurança que poderia acontecer aos seres sencientes.
Para o ioguim, no entanto, o processo normal para o fim da toda a evolução, é muito cansativo, longo e doloroso, e muitos destes escolhem um caminho mais curto, que é também um dos significados da Ioga. Pois assim fez o grande ioguim Milarepa do Tibete, por exemplo, que lutou para atingir o Objetivo Supremo numa única vida, para se tornar o mais cedo possível num guia para o melhoramento do mundo, pois ele jurou, com o voto de Bodhisattva, atingir o Nirvana não só para si mesmo, mas para, sobretudo, retornar ao mundo fenomênico de Maya, o reino da ilusão, e levar seus habitantes para a Suprema Altura do Nirvana também.

O QUE É A MENTE?
Já relativamente aceito pela nova visão quântica da ciência ocidental experimental contemporânea, devemos então considerar como um tipo de postulado científico uma verdade que já era desperta na antiguidade da sabedoria oriental, ou seja, o axioma de que a mente e a matéria, como sugere a “Ioga do Conhecimento da Mente”, por exemplo, são o que podemos chamar de aspecto ilusório da mente, concretamente manifestado.
E a mente em si mesma, da qual o Ocidente não vislumbra nada além do que a ciência conhecida afirma, posta a dominância da visão da neurociência materialista que a reduz ao epifenômeno cerebral, em detrimento até da própria psicologia ocidental, temos algo do texto da Ioga: “Em seu estado verdadeiro (de primordialidade imutável e amorfa), a mente é nua, imaculada, feita de nada, ser do Vazio, clara, vácua, sem dualidade, transparente, intemporal, não-composta, desimpedida, incolor (ou destituída de característica), não perceptível como uma coisa separada, mas como a unidade de todas as coisas, embora não composta por elas, de um só critério (isto é, do Vazio, da Ipseidade, da Realidade última), e transcendente à diferença.”
Do ponto de vista da ciência ocidental, especificamente da dinâmica e da física, a Mente Única é a única origem da energia, o dínamo único do poder universal, o iniciador das vibrações, a fonte desconhecida, de onde procedem os raios cósmicos e a matéria em todos os seus aspectos eletrônicos, como a luz, o calor, o magnetismo, a eletricidade, a radioatividade, ou tal como as substâncias orgânicas e inorgânicas em todas as suas múltiplas aparências, visíveis e invisíveis, incluindo aí todos os reinos da Natureza, de onde se cria, por sua vez, da Mente Única, toda a lei natural.
E quando, como ensina o texto da ioga, a mente atinge o seu Estado Verdadeiro, despida da ilusão de Maya, e fica nua, é como Brahman, o Quiescente, num sono sem sonho, em Samadhi, e o mundo, então, é dissolvido por um estado de Máxima Vigília. E, em relação à noção de sangsara, por exemplo, se a Mente Única fizesse parte da essência do tempo, estaria sujeita à transitoriedade e a dissolução, se fizesse parte da essência do pensamento, não seria, por sua vez, a Quiescência, e se fosse uma coisa, se partilhasse literalmente da existência, estaria, por fim, sujeita ao nascimento e a morte. Por conseguinte, a Mente Única é intelectualmente incognoscível.
Assim sendo, o Guru Príncipe Shri Singha, da antiga Pegu, em Burma, disse a seu discípulo Padma-Sambhava: “Ninguém ainda descobriu a Causa Primária nem a Causa Secundária. Eu mesmo não fui ainda capaz de tal, e vós, da mesma forma, vós, Nascido-do-Lótus, também falhareis nisso.” Então, como poderá o homem solucionar o enigma da existência? Os Budas ensinam simplesmente que apenas ao transcender a existência humana, deixando de existir sangsaricamente, é que se recobra a consciência do estado precedente de liberdade, isto é, o homem não pode solucionar o problema de estar agrilhoado à existência sem alcançar esta liberdade de reconciliação na Mente Única, o Vazio, o Nirvana, ou Transcendente Atman dos Brahmins, o Moksha Brâhmico (ou Mukhti), o Completo Despertar do Estado de Buda.
Nagarjuna e Ashvaghosha, os Patriarcas da Escola Mahyamika, chamaram esta Realidade além-da-Natureza de Vazio (em sânscrito: Shunyata), Asanga, o fundador da Escola Yogachara, chamou-a de o Conhecimento Básico ou Original (em sânscrito: Alaya-Vijnana), a consciência transcendente da Mente Única, pois percebê-la é alcançar o Nirvana, desperto do Sonho ou ilusão de Maya do mundo fenomênico e transitório de nascimentos e mortes. Como ensina este tratado de ioga, o Conhecimento da Mente Única parte do conhecimento de si mesmo, como já ensinava, na Grécia Antiga, o Oráculo de Delfos, pois é quando o homem funde ioguicamente a sua consciência microcósmica e mundana à Consciência macrocósmica supramundana, ele deixa de ser homem e se torna Buda, e o ser individual alcança a Consciência Cósmica no seu estado primordial, no cerne da Realidade.

A SABEDORIA ESTÁ NO DHARMA
A Sabedoria Divina, ou Absoluta (em tibetano: Shes-rab), por sua vez, de acordo com o Mahayana, manifesta-se ou é apreendida de três maneiras: ouvindo o Dharma, refletindo sobre o Dharma, e meditando sobre o Dharma. Pois é o Dharma, ou Verdade, que é transcendente à aprendizagem, que ensina a Sabedoria e dá condições ao discípulo de discernir o verdadeiro do falso, o transitório do eterno, a mente humana finita, também identificada com o intelecto, da Mente Única Cósmica e Supramundana, podendo alcançar o Nirvana, que é a Quiescência do Estado de Buda que reside no Vazio (Shunyata). Pois, por fim, são aqueles que trilham o caminho da Sabedoria contida no Dharma que podem, propriamente, transcender todas as ilusões do mundo fenomênico, ficando indiferentes ao prazer e a dor, como nada mais do que dois extremos de um dualismo já superado pela Doutrina do Vazio.

BUDISMO TÂNTRICO
Padma-Sambhava surgiu como uma emanação tântrica ou reencarnação do Buda Gautama, tendo sua influência sobre o Budismo em todo o Tibete, Mongólia, China, Nepal, Cachemira, Butão e Sikkim, sendo fundamental na formação do Budismo Mahayana, e teve reflexo na sua própria esfera do Tantrismo, assim como Nagarjuna foi fundamental na forma dada à Doutrina do Vazio, tal como foi demonstrada no cânon Prajna-Paramita.
O Tantrismo, por sua vez, é muito pouco conhecido de onde surgiu, tanto no seu aspecto hindu como budista, sendo objeto de pura especulação as questões de sua origem. A Escola Yogachara pode ser considerada, a fortiori, como um estímulo importante ao Budismo Mahayana como um todo, pois se originou com Asanga, um monge budista de Gandara (agora Peshawar), no noroeste da Índia, e de outro modo, o conhecido método de atingir a união do êxtase com a Mente Única conhecido como ioga, que teve seu primeiro sistema com o Yoga Sutras de Patanjali, sistema que se tornou o fundamento do Yogachara, pode ser considerado uma das origens conhecidas do Tantrismo. E o Tantrismo, por sua vez, é definido como uma escola esotérica de ioga aplicada de modo prático, e que tem sua divisão evidente entre o Brahmanismo esotérico e o Budismo Mahayana esotérico.
Uma das características distintivas do Tantrismo é a personificação dos aspectos duais das forças procriadoras da Natureza, Shakta, que representa o aspecto masculino (ou positivo) e Shakti, que representa o aspecto feminino (ou negativo). Como resultado desta influência tântrica, temos que, dentro do Mahayana, surgiram duas escolas, a Vajrayana e a Mantrayana, que são uma mistura da antiga Escola Yogachara.
E o responsável pela introdução do Budismo Tântrico no Tibete foi Padma-Sambhava, durante a segunda metade do século VIIII. E foi na segunda metade do século X que a forma Kalachakra do Tantrismo foi mais ou menos introduzida e desenvolvida no norte da Índia, na Chachemira e no Nepal, uns dizendo que a doutrina Kalachakra surgiu na misteriosa terra secreta de Shambhala. E, com o tempo, o Kalachakra se tornou um sistema próprio do Budismo, colocando o culto do Adi Buda (ou Buda Primordial) em seu cerne, o que na Índia ganhou variedades de culto com Shiva ou Ganesha na posição do Adi Buda.
Uma fonte relativamente especulativa pode nos colocar diante de uma outra origem para o sistema Kalachakra, a qual pode estar, ainda, na religião antiga do Tibete, pré-budista, do Bön. Podendo nos levar à conclusão de que havia algo originário do Kalachakra no próprio Tibete e que ganhou ares, digamos, mais oficiais, com a introdução na forma do Tantrismo de Padma-Sambhava.
E fontes documentais tibetanas podem provar tal associação do Kalachakra, por sua vez, com a religião primitiva do Bön, como, por exemplo, na exposição contida no Bardo Thodol e no texto do rito Chöd, tal rito que é apresentado no Livro V de A Ioga Tibetana e as Doutrinas Secretas de que, bem antes do surgimento do Budismo Tântrico Tibetano, na antiga fé Bön, do Tibete, já havia um culto elevado aos demônios, dos quais o To-wo e o Drag-po (que correspondem ao Bhairava e ao Heruka do Tantrismo Hindu) são grandes representantes. E, dentro da demonologia, por sua vez, elaborada com detalhes na fé Bön, podemos ainda identificar os protótipos não só das Deidades Iradas como também das Deidades Pacíficas do Tantrismo Tibetano.
Por fim, a forma do Tantrismo hoje mais evidente no Tibete é o Vajrayana, ou “Caminho do Raio Indomável dos Deuses.” E se falarmos do Tantrismo, no que ele representa para a evolução do Budismo Mahayana, podemos dizer que, independente de onde se originou o Tantrismo, sua influência sobre o Budismo Mahayana foi de primeira ordem sobre todas as suas fundações.
O Tantrismo, para completar, ensina a compreensão e a sublimação da força ativa reprodutiva, se opondo à sua supressão forçada, pois considera esta uma força importante da Natureza, e que nela tem-se, para o Tantrismo, o nascimento equilibrado com a morte, mantendo em circulação a corrente do Prânico Rio da Vida, até à Emancipação Final do Estado de Buda. E é por esta razão que, também, o Tantrismo propõe uma ciência do sexo, tal como o falecido Sir John Woodroffe (cujo pseudônimo era Arthur Avalon) sugeriu em suas obras “O tantra da grande liberação”, “O poder da serpente” e “Shakti e Shakta”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


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