PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 19 de março de 2016

CONHECIMENTO

Jamais se abolirá o campo do conhecimento
a tese se sustenta sempre
o devenir irrompe qual música

o poema tonto se encontra
a vida tonta se encontra
a filosofia tonta se encontra

os encontros são o fim das lamúrias
não há tempo a deplorar
quem sou eu quem somos nós
não há tempo a comemorar
o que não foi ou não é
ou chorar em si mesmo
o que não foi ou não é

tudo o que se sabe é o vazio
da alma e suas religiões

a seita quer deglutir a verdade
o cosmos é inserido
na fome humana
de verdade

o mistério no entanto nos humilha
o mistério no entanto nos ensina

jamais se abolirá o campo do conhecimento

19/03/2016 Gustavo Bastos

ENREDO DAS FORMAS MENTAIS

Ficção-realidade ... (?!)
                             outros tempos de
                                   outrora?

real lúcido, louco poeta

                  o que está entre o lúcido e o louco?
loucura: ponto de vista em todos
                             os lugares
                            (o não-lugar)

ficção: o tempo suspenso narrativo
realidade: o tempo intenso imprevisto

lucidez: a ficção tentada a fazer
              as coisas como são,
              pretensão do autor?

loucura: a narrativa espatifada
              no mundo dos símbolos,
              intenção do autor?

eu penso e não existo,
a fantasia se instala
qual vírus (loucura)
                          o hacker emocional
                          que atua no palco
                          como uma bomba

silêncio sepulcral: a estória-história,
elenco dos astutos e da festa,
a loucura diamantada
da glória divina,
da iluminação,
do êxtase ...

a narrativa de realidade
não estoura os tímpanos,
                                   a estrela dançante
                                        da loucura
                                   rompe o paradigma
                                   (entre as verdades
                                            a mentira)

o verdadeiro e o falso?
o método e o mérito
o amor incondicional
                           das formas felizes,

ser feliz é paz interior,
                         a realidade é autoconhecimento,

o que (dentro d`alma) irrompe?

o fazer-simbólico de sincronia junguiana,
o livro do sentido absoluto
de harmonias celestes,
o big-bang da inteligência.

quem faz a ficção não tem mais loucura,
tem a folia do carnaval,
tua carne indócil
é espírito,
teu canto do sol
é noite iluminada
qual farol,

                    outrora agora?
                                      o porvir
                                   advento devenir
                                   qual é o símbolo
                                    fundamental?
                                         o olho
                                    inconsciente,
                                    a flor de lótus,
                                    mandala telepática,
                                    o visionário-futurista
                                    da tecnologia
                                                  de sons eletrônicos

                                   com o prisma d`alma
                                   qual esbórnia
                                   e grande saúde!

ficção ou realidade? (...) (continua)

19/03/2016 Gustavo Bastos    





segunda-feira, 14 de março de 2016

DUBLINENSES DE JAMES JOYCE

“Dublinenses é uma introdução à história da capital irlandesa”
Dublinenses é um livro que reúne quinze contos de James Joyce, escritos a partir de 1904 e publicados em 1914. Tais contos, escritos concomitantemente à produção do romance de Joyce, Retrato do Artista Quando Jovem, são uma revelação de Dublin, de seu cotidiano, da vida irlandesa nos seus aspectos mais concretos, é a vida vivida de que fala os contos de Joyce, mais do que um exercício artístico per se. Junta-se, neste escopo, a infância, relacionamentos conjugais, e uma ponte para algo mais metafísico, somente no caso das epifanias, que são, neste caso, a descoberta de essências de situações inicialmente ocultadas, o que não leva a uma dedução errônea de que haja algo místico nisso, sendo puramente decorrência de uma trama calcada na realidade cotidiana dos habitantes de Dublin, da vida irlandesa e seu sentido real.
O conto mais conhecido de Dublinenses é The Dead (Os mortos), que é o último da sequência de 15 contos, e os outros são, na ordem: As Irmãs (The Sisters), Um Encontro (An Encounter), Arábia (Araby), Eveline, Após a corrida (After the Race), Dois galantes (Two Gallants), A pensão (The Boarding House), Uma pequena nuvem (A Little Cloud), Contrapartida (Counterparts), Argila (Clay), Um caso doloroso (A Painful Case), Dia de hera na lapela (Ivy Day in the Committee Room), Mãe (A Mother), Graça (Grace).
Joyce, nas suas palavras, quanto a Dublinenses, dizia que seus escritos tinham a intenção de ser: “um capítulo da história moral de meu país”. O que leva, na leitura de tais contos, a entender que Joyce pretendia produzir, para o habitante da Irlanda e de Dublin, uma visão de si mesmo, numa espécie de espelho bem polido do cotidiano e das normas e dilemas morais destes habitantes reais que moravam nestes contos. Portanto, o que se pode dizer, sem dúvida, é que tais contos fazem parte de uma abordagem realista, pois não há fantasia nestes contos, nem mesmo quando se trata das citadas epifanias que são o desvelo da trama e não pensamento mágico.
O estilo de narrativa nos contos contidos em Dublinenses é o de apresentar um narrador neutro, de realismo também neutro, não colocando o narrador em contato com interpelações ao leitor ou tentando suscitar-lhe opiniões ou o que deve pensar na trama, pois, dito isto, os contos se apresentam, por fim, como estórias que não caem no apelo emocional. Ao mesmo tempo que este realismo dos contos de Joyce primam pela verossimilhança, também vemos, neles, contudo, alguns aspectos simbólicos, o que não se trata de uma alegoria da fantasia, mas que tem no conteúdo destes contos um serviço de prolongamento de seu sentido, o que se vê em Eveline e As irmãs, que são tramas que têm chaves simbólicas sem se perder, no entanto, num puro simbolismo, com estas chaves servindo à trama mais do que sendo alegorias de profundidades abissais, o que deporia contra uma abordagem de realismo e verossimilhança que são as características principais destes 15 contos de Dublinenses.
E o recurso principal que Joyce utiliza em Dublinenses é o do discurso indireto livre, tendo como um dos efeitos curiosos o fato de, por vezes, a fala do narrador se confundir com os pensamentos dos personagens, o que leva estes contos ao ápice do que se chama de intenção interpretativa, mantendo o realismo e a verossimilhança, independente de uma possível onisciência ou onipotência do narrador, pois o comando da narrativa, como dito, não faz propostas ao leitor, sendo isto o que coloca a narrativa a serviço de si mesma, mais do que de uma trama possivelmente onisciente do ente que narra. Ou seja, o narrador “lê” os pensamentos dos personagens, mas não os “manda” fazer nada, sendo até um narrador onisciente, mas mantendo sua onipotência nos limites que a abordagem realista impõe.
Portanto, na devida preservação de verossimilhança, na riqueza de detalhes que são a narrativa destes contos, podemos nos deparar, sim, com o aspecto simbólico, pois em Eveline, por exemplo, a exploração simbólica de imagens e palavras está presente, tal como quando a jovem Eveline conhece o seu amante de pé, diante da porta de seu alojamento, o que é uma intenção de fazer parecer tal imagem como uma espécie de portal para outro lugar, uma nova vida, estando aí o fato de isso não ter ocorrido em qualquer outro lugar de Dublin, mas sim numa entrada, sendo tal entrada uma via para algo novo para Eveline. Outro simbolismo também está presente no conto As Irmãs, que tem na data de morte do padre Flynn, por exemplo, o dia primeiro de julho de 1895, e que não tem em mera coincidência ser este dia o da festa do preciosíssimo sangue de nosso Senhor e também 1895 o centenário do mais destacado seminário Católico da Irlanda.
Nos Dublinenses, também, quando se fala da epifania, que é a súbita percepção ou revelação acerca da essência de algo, Joyce, seguindo seu realismo e pautado nas regras de verossimilhança, tem como tema, diante da epifania, seu contrapeso, que é a paralisia, pois dada a revelação, isto pode libertar ou paralisar, e o que Joyce nos apresenta é quando, na trama, o ímpeto de liberdade de um dado personagem se vê diante de uma situação paralisante, em que tal ímpeto de liberdade se depara com a impossibilidade de sua consecução ou realização, e isto se dando sempre numa hora crucial da trama, em que a importância da liberdade se choca com o limite da própria realidade, o que coloca, novamente, o conteúdo pretendido de realidade à baila na obediência às regras de verossimilhança.
Nos Dublinenses, portanto, o cotidiano dos irlandeses é tratado por um narrador invisível, ainda que onisciente, pois é produto, ainda, do discurso indireto livre, e que faz com que tal invisibilidade tenha como efeito a própria epifania, meio que numa maiêutica narrativa, na qual tal cotidiano adquire um sentido de experimentar a realidade na sua essência, tal como ela é e se dá em cada momento, ficando aqui o serviço de verossimilhança mais do que preservado, pois quando isto se dá, o fenômeno da paralisia nos dá, com efeito, o conhecimento inescusável de todos os estágios da vida e de suas demandas específicas.
 “Eis aqui a vida verdadeiramente desfilando sob nossos próprios olhos.” - The Guardian. É o que nos revela Dublinenses. Estes contos são a vida de Dublin na virada do Século XX, do mundo que se depararia, logo adiante, com a eclosão da primeira guerra mundial, uma realidade econômica e moral em conflito, em que as gradações destes contos vão da infância, adolescência e vida adulta, sendo, então, tal cronologia uma dose do realismo em seu sentido de estágios da vida, e isto nas figuras dos habitantes de Dublin, da Irlanda, sendo Dublinenses uma ótima iniciação do que viria a ser a obra de James Joyce para a literatura mundial, e que resultaria em outros feitos como Retrato do Artista Quando Jovem, e os monumentos Ulisses e Finnegans Wake.
E aqui é bom citar o fato de os contos de Joyce em Dublinenses terem a exata medida da narrativa, pois nada falta ou sobra em suas descrições, em seus detalhes, sendo Joyce aqui um realista por excelência, com pleno domínio do que quer tratar, com a medida de régua em dia aos conselhos e demandas da verossimilhança. Joyce, em Dublinenses, consegue realizar a aventura de seus contos tanto na cronologia de idade de seus personagens como na exata noção do domínio narrativo, pois ele é crível neste dois aspectos, e que resulta no cotidiano dublinense com seu retrato real em mãos. O narrador vai pelo discurso indireto livre sim, mas tem em sua exatidão o que o realismo, nas faculdades descritivas, tem de melhor. O detalhamento, neste caso, não é precioso, é preciso.
A Irlanda vive nas almas dos personagens que percorrem as ruas de Dublin. Vidas comuns que personificam o declínio econômico, e sobretudo moral, com o qual o país se debate naquele momento da História, pois se trata de quinze contos, nos quais James Joyce aborda com realismo a dureza da vida dos habitantes de Dublin na sua ordem cronológica, sendo a abordagem fiel dos estágios da vida: a perda da inocência na infância, a angústia e as situações-limite da adolescência e a desilusão final dos adultos no fenômeno da epifania, único momento metafísico em que a verdadeira natureza de algo se dá a conhecer, mas que é de uma metafísica apenas na forma, pois o que se dá, sempre, nos contos de Joyce, é a realidade como ela é, sem mais. Escrito quando o autor tinha 25 anos, publicado pela primeira vez em 1914, Dublinenses é uma introdução à história da capital irlandesa, e uma abertura fundamental à própria obra de Joyce.
As narrativas curtas destes contos seguem uma escola que vem do século XIX, que tinham em Tchekhov e Flaubert grandes expoentes, mas que em Joyce, em seu trabalho contínuo, que ganharia sentido vasto no work in progress de Finnegans Wake, tema uma abertura em que a forma dos contos servem a um novo realismo, muito mais extremo, que é o do século XX, e a cronologia, que vai da infância até a epifania da vida adulta, é um elenco de ilusões, dilemas, e isto com a narrativa dominada de uma medida concentrada.
O tiro curto dos contos depõe, portanto, a importância da exatidão, uma nova demanda que Joyce consegue realizar, pois na verossimilhança, nos quinze contos, o autor mantém o distanciamento de um narrador não influente na vida dos personagens, mas autoconsciente de seus recursos como narrador, pois ele não dá os solavancos do pensamento mágico, ele mede cada situação e a coloca de acordo com a ideia condutora de Dublinenses, que são os estágios da vida na sua nudez, sem a ambição desmedida de uma narrativa que tenta comandar tudo, o que em narrativas fantasiosas é bem possível, mas que no compromisso de Joyce pela Dublin real, tem na contenção, embora com domínio dos recursos, a forma realista e o conteúdo cotidiano a serviço da forma narrativa escolhida pelo autor.
O fato dos contos se darem como narrativas curtas é passar ao largo do excesso, pois o pleno domínio dos recursos realistas, sobretudo na faculdade descritiva, não se excede, vencendo a tentação da ambientação extrema, no que muitos realistas podem pecar, e a contenção do narrador, que não interpela e nem coloca o personagem como massa de manobra da narrativa, tem pelo domínio de recursos e intenções, um conjunto de contos em que o realismo e a verossimilhança são sim, certamente, como leis da natureza em que tais contos podem e devem ser narrados, sem excessos.
A curta duração é a prova da economia necessária de um novo realismo, com toques de naturalismo, mas que é um trabalho em progresso do narrador, o que resultará, futuramente, na obra de James Joyce, na sua experiência com a linguagem e o léxico de sua cultura dublinense e irlandesa.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/27694/17/para-joyce-dublinenses-era-uma-especie-de-historia-moral-da-irlanda


domingo, 13 de março de 2016

MAIAKÓVSKI, OS POEMAS DE SOM E FÚRIA – PARTE III

“sua veia de militante servia à poesia mais do que o inverso”

Na poesia russa moderna, que tem no mestre Khlébnikov um dos desbravadores de novos caminhos, e nisto Maiakóvski se fiou, neste caminho aberto, temos também outras contribuições importantes, mais para a tradição, como o representante do imagismo russo, Iessiênin, expressando ainda a velha Rússia patriarcal e camponesa, no choque inevitável desta com a nova civilização industrial que florescia na nova Rússia socialista, e que, de outro lado, vemos Boris Pasternak se utilizando da nova linguagem de vanguarda, incorporando novas expressões ao verso tradicional russo, com momentos autênticos, também, de alguns poetas como: Eduard Bagrítzki, Óssip Mandelstam, Nicolai Zabolótzki, Iliá Selvínski, Ana Akhmátova e Marina Tzvietáieva.
Mas, foi com Maiakóvski, sobretudo, em que uma marca pessoal eclode com firmeza e direção precisa, com um vigor de expressão que nunca primou pela suavidade, os versos de Maiakóvski são algo totalmente novo no cenário russo de poesia do século XX, e isto sendo um tipo de expressão que conduz o leitor a um todo coerente e organizado, isto é, Maiakóvski sabia o que queria e sabia exatamente o que estava fazendo, com uma poesia descomunal e hiperbólica. Como diz Boris Schnaiderman: “áspero e revoltado, exigente consigo e com os demais, é bem o representante típico daqueles que ‘pisavam a garganta do seu canto’, conforme se expressou em ‘A Plenos Pulmões’”.
E ainda continua o tradutor Schnaiderman: “revolucionário nas concepções sociais e na forma que utilizou, desabusado, amigo do palavrão e do coloquial, poeta das ruas, dos comícios, das salas de conferências, Maiakóvski aparece-nos como um dos artistas mais coerentes que jamais existiram.” Ou seja, seu ímpeto expressivo em forma de estrépito conduz a um caminho que, junto com o barulho hiperbólico, temos um artesananto minucioso e completamente autoconsciente, o que se confirma nos apontamentos que deixou sobre a sua própria poesia, artigos de jornal, por exemplo, que eram, às vezes, escritos de poética, se destacando, então, o conhecido “Como Fazer Versos?”, e seu caminho não foi apenas da poesia, pois Maiakóvski fez ainda peças de teatro, roteiros de cinema, cartazes, sendo facetas de um mesmo ímpeto criador.
Nos poemas que elenquei aqui, fechando a série Maiakóvski, temos dois poemas mais longos, os “Incompreensível Para as Massas” e o emblemático “A Plenos Pulmões” (o seu canto do cisne, certamente), e que vêm com o vigor conhecido de Maiakóvski, pois ele foi fiel a uma forma e a uma coerência de intenções até o fim, isto é, a plenos pulmões é também a plenitude de um poeta com o domínio do que faz, ou seja, autoconsciente, nada mecânico, um poeta para poetas e para o povo, na sua coloquialidade de rua e que nunca se traiu quanto ao que almejava, sua liberdade de expressão que ia além da conferência, apesar de seu panfleto ou cartaz, pois Maiakóvski era poeta, e sua veia de militante servia à poesia mais do que o inverso, seus versos tinham comprometimento político, isto é inegável, mas sua forma manteve o material próprio da poesia, fazer arte.

INCOMPREENSÍVEL PARA AS MASSAS

Entre escritor
                   e leitor
                           posta-se o intermediário,
e o gosto
            do intermediário
                                    é bastante intermédio.
Medíocre
            mesnada
                         de medianeiros médios
pulula
        na crítica
                      e nos hebdomadários.
Aonde  
         galopando
                        chega teu pensamento,
um deles
             considera tudo
                                   sonolento:
__ Sou homem
                      de outra têmpera! Perdão,
lembra-me agora
                           um verso
                                       de Nadson ...
O operário
               não tolera
                               linhas breves.
(E como tal
                 mediador
                                ainda se entende Assiéiev!)
Sinais de pontuação?
                                São marcas de nascença!
O senhor
             corta os versos
                                     toma muitas licenças.
Továrich Maiakóvski,
                               por que não escreve iambos?
Vinte copeques
                        por linha
                                      eu lhe garanto, a mais.
E narra
          não sei quantas
                                   lendas medievais,
e fala quatro horas
                            longas como anos.
O mestre lamentável
                                repete
                                           um só refrão:
__ Camponês
                 e operário
                                 não o compreenderão.
O peso da consciência
                                   pulveriza
                                                o autor.
Mas voltemos agora
                               ao conspícuo censor:
Camponeses só viu 
                               há tempo
                                               antes da guerra,
na datcha,
                ao comprar
                                 mocotós de vitela.
Operários?
                Viu menos.
Deu com dois
                     uma vez
                                  por ocasião da cheia,
dois pontos
                 numa ponte
                                   contemplando o terreno,
vendo a água subir
                              e a fusão das geleiras.
Em muitos milhões
                             para servir de lastro
colheu dois exemplares
                               o nosso criticastro,
Isto não lhe faz mossa __
                                         É tudo a mesma massa ...
Gente – de carne e osso!
E à hora do chá
                       expende
                                    sua sentença:
__ A classe
                 operária?
                                  Conheço-a como a palma!         
Por trás
           do seu silêncio,
                                  posso ler-lhe na alma __
Nem dor
            nem decadência.
Que autores
                   então
                          há de ler essa classe?
Só Gógol,
             só os clássicos.
Camponeses?
                    Também.
                                 O quadro não se altera.
Lembra-me agora __
                                 a datcha, a primavera ...
Este palrar
             de literatos
                                muitas vezes passa
entre nós
              por convívio com a massa.
E impinge
              modelos
                           pré-revolucionários
da arte do pincel,
                          do cinzel,
                                        do vocábulo.
E para a massa
                       flutuam
                                   dádivas de letrados __
lírios,
        delírios,
                   trinos dulcificados.
Aos pávidos
                  poetas
                            aqui vai meu aparte:
Chega
        de chuchotar
                            versos para os pobres.
A classe condutora,
                              também ela pode
compreender a arte.
Logo:
       que se eleve
                         a cultura do povo!
Uma só,
            para todos.
O livro bom
                 é claro
                           e necessário
a mim,
        a vocês,
                  ao camponês
                                      e ao operário.

1927
(Tradução de Haroldo de Campos)

1 – Nadson: O poeta sentimental S.I. Nádson (1862–1887). A mudança do acento é do próprio Maiakóvski.
2 – Assiéiev – O poeta russo N.N.Assiéiev (1889-1963), amigo de Maiakóvski.
3 – Továrich – Camarada.
4 – Datcha – Casa de veraneio.

A PLENOS PULMÕES

Primeira Introdução ao Poema

Caros
        camaradas
                        futuros!
Revolvendo
                 a merda fóssil
                                        de agora,
perscrutando
                 estes dias escuros,
talvez
        perguntareis
                           por mim. Ora,
começará
               vosso homem de ciência,
afogando os porquês
                               num banho de sabença,
conta-se
             que outrora
                              um férvido cantor
a água sem fervura
                              combateu com fervor.
Professor,
              jogue fora
                              as lentes-bicicleta! 
A mim cabe falar
                         De mim
                                   de minha era.
Eu – incinerador,
                      eu – sanitarista,
a revolução
                me convoca e me alista.
Troco pelo front
                        a horticultura airosa
da poesia –
                   fêmea caprichosa.
Ela ajardina o jardim
virgem
          vargem
                    sombra
                               alfombra.
“É assim o jardim de jasmim,
O jardim de jasmim do alfenim.”
Este verte versos feito regador,
aquele os baba,
                       boca em babador, __
bonifrates encapelados,
                                    descabelados vates __
entendê-los,
                  ao diabo!,
                                 quem há-de ...
Quarentena é inútil contra eles __
mandolinam por detrás das paredes:
“Ta-ran-tin, ta-ran-tin,
Ta-ran-tem-n-n ...”
Triste honra,
                  se de tais rosas
minha estátua se erigisse:
na praça
            escarra a tuberculose;
putas e rufiões
                       numa ronda de sífilis.
Também a mim
                       a propaganda
                                           cansa,
é tão fácil
              alinhavar
                            romanças, __
Mas eu
           me dominava
                               entretanto
e pisava
            a garganta do meu canto.
Escutai,
           camaradas futuros,
o agitador,
                o cáustico caudilho,
o extintor
              dos melífluos enxurros:
por cima
            dos opúsculos líricos,
eu vos falo
                como um vivo aos vivos.
Chego a vós,
                   à Comuna distante,
não como Iessiênin,
                              guitarriarcaico.
Mas através
                  dos séculos em arco
sobre os poetas
                    e sobre os governantes.
Meu verso chegará,
                              não como a seta
lírico-amável,
                    que persegue a caça.
Nem como
               ao numismata
                                     a moeda gasta,
nem como a luz
                        das estrelas decrépitas.
Meu verso
                 com labor
                                rompe a mole dos anos,
e assoma
              a olho nu,
                            palpável,
                                         bruto,
como a nossos dias
                              chega o aqueduto
levantado
              por escravos romanos.
No túmulo dos livros,
                                 versos como ossos,
se estas estrofes de aço
                                     acaso descobrirdes,
vós a respeitareis,
                            como quem vê destroços
de um arsenal antigo,
                                 mas terrível.
Ao ouvido
              não diz
                         blandícias
                                         minha voz:
lóbulos de donzelas
                               de cachos e bandós
não faço enrubescer
                               com lascivos rondós.
Desdobro minhas páginas
                                       __ tropas em parada,
e passo em revista
                            o front das palavras.
Estrofes estacam
                            chumbo-severas,
prontas para o triunfo
                                 ou para a morte.
Poemas-canhões, rígida coorte,
apontando
                 as maiúsculas
                                       abertas.
Ei-la,
       a cavalaria do sarcasmo,
minha arma favorita,
                               alerta para a luta.
Rimas em riste,
                      sofreando o entusiasmo,
eriça
       suas lanças agudas.
E todo
        este exército aguerrido,
vinte anos de combates,
                                       não batido,
eu vos doo,
               proletários do planeta,
cada folha
               até a última letra.
O inimigo
              da colossal
                              classe obreira,
é também
           meu inimigo
                             fidagal.
Anos
       de servidão e de miséria
comandavam
                  nossa bandeira vermelha.
Nós abríamos Marx
                              volume após volume,
janelas             
           de nossa casa
                               abertas amplamente,
mas ainda sem ler
                            saberíamos o rumo!
onde combater,
                          de que lado,
                                            em que frente.
Dialética,
              Não aprendemos com Hegel.
Invadiu-nos os versos
                                  ao fragor das batalhas,
quando,
           sob nosso projétil,
debandava o burguês
                                  que antes nos debandara.
Que essa viúva desolada,
                                         - glória –
se arraste
             após os gênios,
                                    merencória.
Morre,
         meu verso,
                         como um soldado
anônimo
            na lufada do assalto.
Cuspo
        sobre o bronze pesadíssimo,
cuspo
        sobre o mármore viscoso.
Partilhemos a glória, -
                                 entre nós todos, -
o comum monumento:
                                  o socialismo,
forjado
           na refrega
                           e no fogo.
Vindouros,
                varejai vossos léxicos:
do Letes
             brotam letras como lixo –
“tuberculose”,
                       “bloqueio”,
                                          “meretrício”.
Por vós,
            geração de saudáveis, -
um poeta,
                com a língua dos cartazes,
lambeu
           os escarros da tísis.
A cauda dos anos
                           faz-me agora
um monstro,
                   fossilcoleante.
Camarada vida,
                       vamos,
                                 para diante,
galopemos
                 pelo quinquênio afora.
Os versos
              para mim
                           não deram rublos,
nem mobílias
                   de madeiras caras.
Uma camisa
                   lavada e clara,
e basta, -
              para mim é tudo.
Ao Comitê Central
                           do futuro
                                    ofuscante,
sobre a malta
                    dos vates
                                  velhacos e falsários,
apresento
               em lugar
                            do registro partidário
todos
       os cem tomos
                            dos meus livros militantes.

Dezembro, 1929/janeiro,1930
(Tradução de Haroldo de Campos)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/27691/17/maiakovski-os-poemas-de-som-e-furia-parte-iii