PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 11 de abril de 2020

MATILDE CAMPILHO, A POETA ENTRE DUAS NAÇÕES


"Jóquei pode ser chamado de o sotaque carioca de uma poeta portuguesa”

A poeta portuguesa Matilde Campilho é um caso raro de poeta com duplo registro cultural, em sua vida entre o Brasil e Portugal, e isso, além de sua dicção original em si mesma, confere a sua poesia outro fator sui generis, este registro que vem de Portugal e vai para o Brasil, biograficamente e poeticamente. Seu sotaque de Portugal somado à sua passagem riquíssima pelo Rio de Janeiro.
E seus versos, na forma, também possuem um duplo registro, seus vídeo-poemas, e seus poemas escritos. Em ambos os registros o seu estilo é contemporâneo, uma dicção malemolente e um conteúdo rico de atualidade, com eventos do noticiário e do cotidiano, e que, lidando muitas vezes com fatos efêmeros, na aparência, imprimem no leitor uma sensação que permanece, são poemas que se firmam como feitos para resistir a este efêmero que muitas vezes estes poemas evocam, a poesia de Matilde, com sua modernidade cool e despojada, tem a força que se supõe de uma futura poesia que também um dia será standard da tradição.
Matilde Campilho, antes da publicação de Jóquei, em 2014, e de ter se destacado com este lançamento e ter ido parar na Flip de 2015, tinha uma trajetória cheia de inéditos esparsos, publicando na revista virtual Modo de Usar & Co, no jornal O Globo, na Folha de São Paulo e no seu canal do youtube, aonde foram postados os seus vídeo-poemas, estes uma parte inusitada de sua obra. Matilde já escrevia há um tempo, e no Rio de Janeiro, pensou em gravar mensagens para os seus amigos na Europa.
“Os vídeos apareceram assim, quando eu estava distraída. Eu tinha pouca experiência com poesia lida, foi no Rio que recitei pela primeira vez. Vi que a poesia ganhava outra leitura, outro ritmo para mim”, conta a portuguesa, em entrevista por telefone. “Os vídeos surgiram como uma prática dessa leitura. Como o fuso horário era de horas, e eu não podia ligar para meus amigos em Portugal, gravei esse recado do que eu estava vendo na cidade. As pessoas chamaram de vídeo-poemas, se ligaram muito a eles”.
Nestes vídeo-poemas, Matilde revela o seu mundo, paisagens, captações da TV, momentos de simplicidade, e assim como em seus versos escritos, há um espírito de cartão-postal, tal como se dirige do Rio de Janeiro para os seus amigos da Europa, a dicção de Matilde que sai do Brasil com sotaque carioca, misturada à sua herança poética portuguesa, mais pura e menos cotidiana, lhe dão uma condição especial de poeta de dupla nacionalidade, a cultura híbrida, o seu hábito de flâneur, e seu temperamento que “vira” carioca, mas que é portuguesa.
Seus vídeo-poemas, e sua poesia escrita, ganham um ar imediato, pronto para ser impresso nos sentidos do leitor ou ouvinte, imagens do mundo presente, a sensação de atualidade de sua poesia, um registro que não se apega tanto às formas mais tradicionais, sua arte de poema em prosa que muito me apraz, pois ela trabalha com este fluxo e fluidez que também já pratico desde as minhas primeiras leituras de Rimbaud, depois incrementadas com as minhas experiências com os beats norte-americanos.
Matilde diz : “É engraçado, muita gente fala que minha poesia tem uma ‘imediatez’. Apesar de escrever na rua, nos ônibus, eu passo o tempo todo observando e lendo outras coisas. Parece imediato, mas é algo que tem muito trabalho por trás”, aponta. A sua poesia tem este espírito de seu tempo, justamente por ser uma espécie de instantâneo, como uma foto do momento, sua urgência é registrar o que aparece na sua frente no momento em que aparece.
Matilde continua : “A minha tradição é mais portuguesa e, lá, os poetas falam de coisas mais puras, não tratam do dia a dia. Eu ando muito na rua, eu fico muito pouco em casa”, explica. E conclui : “A nossa geração recebe muito ao mesmo tempo. Isso se junta com o que li, com coisas antigas, com o agora. Queria que as pessoas não tivessem medo da poesia, mostrar que o real é muito importante”. E ela complementa este seu ímpeto de flâneur, com a sua leitura de jornais do Brasil, de Portugal, e de outros países.
Ao começar a planejar a produção e criação de seu primeiro livro, Matilde pensou primeiro em reunir o que já tinha escrito, mas esta ideia para ela tinha perdido um tanto de sentido, e ela queria algo mais coeso, e começou a fazer poemas novos para este livro, ela precisava escrever o livro, e não mais reunir seus poemas que já tinha escrito, de fato ela foi criar o seu livro de poemas.
E Matilde nos diz : “Sinto que havia muito a ser lido, e ainda há”. E segue : “Eu comecei essa obra no Rio e só terminei já em Portugal, acho isso simbólico da minha poesia”. Ou seja, o livro que veio a ser a publicação de título Jóquei pode ser chamado de o sotaque carioca de uma poeta portuguesa, um híbrido que foi muito bem-sucedido.

POEMAS :

FUR : O poema vem com esta descrição em registros rápidos, sem muitos respiros em sua dicção, um fluxo que vem com um jorro, e que tem metáforas ricas, dinâmicas, e com aquele aroma de atualidade e instantaneidade, no que segue : “foi assim que você pensou que eu viria ao mundo/foi assim que você me viu na/floresta/foi assim que você me viu pendurado no poste elétrico/sempre pendurado num ramo qualquer/sempre usando o verão./você se lembra daquele verão no Brooklyn/em que ficamos perseguindo os bombeiros/durante todo o dia apenas para ver/o leque aquático que se abria sobre o fogo?/você citava poetas húngaros mas nesse tempo/eu só queria saber de inventar uma língua/que não existisse.”. Matilde se dirige ao seu interlocutor e lhe diz que busca inventar uma nova língua, talvez seja este o objetivo de todo poeta e da poesia como um todo, criar sua própria língua, ganhar uma dicção própria, inventar o seu próprio dialeto, e Matilde segue em sua aventura, em sua invenção, no que temos : “e não havia semana que passasse/em que nós não dormíssemos/pelo menos uma madrugada/na pensão do Brooklyn./me lembro dos dólares amassados/que eu semanalmente tirava do bolso/para pagar ao Doug”. Aqui o Brooklyn, e fontes de um registro que se prende ao cotidiano de uma poesia que fala com naturalidade, com um certo ar de fotografia do imediato, no que temos : “você falava que os dólares vinham/sempre com uma forma diferente/eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso/eu adoro como você consegue tirar uma lâmpada do bolso/eu adoro como você consegue tirar a Beretta 92fs do bolso”. A aliteração descreve este interlocutor poderoso, e a poeta evoca a sua memória, e segue : “me lembro de você na mercearia/do Brooklyn/você costumava ficar lá atrás/brincando na seção das ferramentas./se eu tivesse mais do que um coelho,/uma lâmpada ou uma pistola/eu teria te comprado um Black & Decker”. Ela queria ter os truques de seu interlocutor, e lhe dar um presente, e ela sabe que este interlocutor a queria como estava, com seus cabelos negros e as flores apensadas neles, no que segue : “foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,/usando flores em meu cabelo negro,/sempre escondidas no emaranhado dos cachos/sempre escondidas no emaranhado do caos/de minha cabeça negra./só você sabia quantas flores eu usava/porque agora eu já sei/que você dedicava as noites/à contagem. Deus não dorme/e você também não.”. E este interlocutor é esperto, não dorme no ponto, já fez a devida contagem de quantas flores Matilde usava, e ela gosta, a dedicação tem prazer em ser dedicada, e a poeta faz seu afago final.

PRÍNCIPE NO ROSEIRAL : O poema chama para a atenção do leitor, aqui este poema já avisa o que é, mas, sobretudo, o que não é, é um tipo de poema que vem para situar o leitor no que está sendo dito, no que vem : “Escute lá/isto é um poema/não fala de amor/não fala de cachecóis/azuis sobre os ombros/do cantor que suspende/os calcanhares/na beira do rochedo”. O poema não fala das coisas, mas as enuncia e diz, opera com o paradoxo, algo já visto também em Ana Martins Marques, na minha análise anterior, e que aqui ganha então um registro estilístico e de técnica poética nova, não nos dizer dizendo, a operação por paradoxo e contradição como um destes espíritos do tempo desta poesia contemporânea, aqui no contexto brasileiro, no que segue : “Não fala do lago drenado/na floresta americana/Não diz nada sobre/a confeitaria fedorenta/que recebe os notívagos/para o café da manhã”. O poema avisa que é um poema, portanto, não fala do que fala, é uma língua estranha, em duplicidade, ambiguidade, opacidade, uma dicção oblíqua e provocativa, no que segue : “Isto é um poema/não fala de comoções/na missa das sete/nem fala da porcentagem/de mulheres que se espantam/com a imagem do marido/aparando a barba no ocaso” (...) “não fala da ideia de norte/na cidade dos revolucionários/Não fala de choro/não fala de virgens confusas/não fala de publicitários”. E a explicação do poema é sobre o que ele não fala, portanto, a última coisa que um poema irá fazer, tal como a filosofia e os estudos humanos fazem, é fundamentar conceitos, enunciar ideias, ou traçar esclarecimentos sobre questões, e o poema segue : “isto é um poema/não vai alinhar conceitos/do tipo liberdade igualdade e fé”. Por fim, o poema não vai resolver nada, e segue : “Não vai melhorar/Não vai melhorar/isto é um poema/escute só/não fala de amor/não fala de santos/não fala de Deus/e nem falava do lavrador/que dedicou 38 anos/a descobrir uma visão/quase mística/do homem que canta/e atravessa/a estrada nacional 117/para chegar em casa/ou em algum lugar/próximo de casa.”. O poema se distancia da mística, e nem mesmo é capaz de falar de Deus ou de amor, o poema se esgota em sua insuficiência, é um fluxo que diz cada coisa e muitas coisas, mas não é nada, isto é um poema.

RIO DE JANEIRO – LISBOA : O poema tem um luzir brilhante, e aqui o sorriso de Matilde ganha um poder de expansão quântica, vai da fazenda em que ela convida o seu interlocutor, e vai parar no Leblon do vendedor de suco, e a nota carioca, por excelência, desta portuguesa que se deu muito bem em terras cariocas, o vendedor se chama João, e grita açaí, o poema tem um ar cool, despojado, e segue, em sua dinâmica de carioquice aprendida, e poesia que se sustenta com propriedade, rica e forte em metáforas, no que segue : “um dia você/adora meus óculos/adoro os teus óculos/no dia seguinte/não quero que venhas à fazenda/três dias antes/você ia adorar este lugar/você quer vir até a fazenda?/um dia eu rasgo/o tecido celular do rosto/realizo um sorriso constante/que atravessa o morro/o ponto mágico do morro/rasgão alegre que fulmina/o veio mínimo da folha/de amendoeira/e pelo feixe de luz tropiquente/vai parar na cara de João/vendedor de suco no leblon/em ricochete João grita açaí!”. E o poema trabalha com a imagem da roleta e seu enigma de sorte e azar, este dois nomes-fetiche que os humanos dão, geralmente, aos fatos da vida, indiferentes na selva do acaso, mas que o poema torna aqui um grande jogo, como num cassino, e portanto, arriscado, no que segue : “no outro dia/a cidade se aborrece/desdignificada pela/gigante roleta/que se chama medo/o urubu fica empoleirado/na trave enferrujada/daquilo que já foi suporte/ao cartaz que anunciava/o novo mundo das piscinas/fosforescentes/o pássaro suspenso/olhando via rápida/e catando caca/debaixo da unha/temendo o gira girar/da pequena roda/que circula sorte e azar”. Matilde se dirige a seu interlocutor, e ela pensa que um dia ele enviará uma carta a ela, descrevendo o que acontece, neste ínterim, a roleta vira uma espécie de eterno retorno, que volta ao urubu, que era o pássaro que catava caca do verso anterior, e o João que tinha gritado açaí, no início do poema, no que segue : “um dia você me envia uma carta/depois a outra/o rasgão explode/recordando ainda outra carta/de alguns meses antes/o postal eterno que dizia/still crazy (after all/these years)” (...) “eu penso que você/sua mãe e seu pai/conversam muito/sobre peixes/e que isso mantém quieta/a roleta negra/e que isso mantém aparada/a unha do urubu/e que isso faz homenagem/a João e à fruta espessa/que brilha vermelha/em cada copo de minha cidade/um dia você diz que me a ***/eu a ****-te/no dia seguinte/a amendoeira se expande/e floresce cinco folhas mais/nesse dia reparo/que estamos contribuindo/você e eu/para o florestamento/da cidade”. O amor censurado no poema, e a esperança de Matilde, no entanto, que pensa que haverá, da força desta união de forças com o seu interlocutor, um florestamento da cidade, na imagem da amendoeira que se expande, e que apesar do medonho cassino e de sua roleta implacável, com este amor de Matilde e seu interlocutor, o mundo se tornará uma grande floresta, o amor útil que transforma o mundo, e que o poema canta com esperança : “mas na sacralização horária/da respiração eu penso/que apesar da sala de cassino/abrigo da gigante roleta do medo” (...) “estamos dando utilidade ao amor/alargando os braços das amendoeiras/alargando os braços dos jacarandás/partindo as inúteis linhas de fronteira/e fazendo do mundo/a gigante floresta.”.

BRINCANDO COM OS DENTES DO TUBARÃO : O poema mistura inglês e português, e segue em elogio e afago ao seu interlocutor, no que vem : “You are the Sunshine/of my life/e conversar contigo de manhã/é tão bom”. O prazer de Matilde em estar com este interlocutor é reforçado, o poema o reafirma, e segue : “Acompanhar teu percurso/natural/é muito bom/falar contigo”. O poema então vai à descrição deste interlocutor tão especial e prazeroso, a Matilde usas metáforas poderosas, no que segue : “Neste começo d`hoje/tuas costas negavam/qualquer espécie de outono/Afinal/a ideia de estação/é só um tema ilusional/engendrado por humanos/que nunca puderam desenhar/tua coluna vertebral/a dedo nu/My dear bicho gente/veja lá se sua próxima visita/vem antes da edição fria/do Financial Times”. A coluna vertebral deste bicho gente que as estações não podem dar conta, e o pedido de Matilde para que ele chegue antes das próximas notícias, ou melhor, da nova edição fria do Financial Times.

NOTÍCIAS ESCREVINHADAS NA BEIRA DA ESTRADA : Aqui o poema em prosa, com a fluidez e profusão que todo poema em prosa deve ter, vem com a imagem do DNA, e a emoção de Matilde diante da ciência e sua descoberta, a admiração sobre Francis Crick, e a descrição desta descoberta, misturando a ciência com a poesia, no que temos : “Não sou de choro fácil a não ser quando descubro qualquer coisa muito interessante sobre ácido desoxirribonucleico.” (...) “Francis Crick achou o desenho do DNA e escreveu a seu filho só para dizer que “nossa estrutura é muito bonita”. Estrutura, foi o que ele falou. Antes de despedir-se ainda disse : “Quando você chegar em casa vou te mostrar o modelo.” Isso.” (...) “Não sou de choro fácil mas um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos me comove. Cromossomas me animam, ribossomas me espantam. A divisão celular não me deixa dormir, e olha que eu moro bem no meio da montanha.” A emoção de Matilde se dá mesmo que ela se encontre no meio da montanha, aparentemente bem distante dos dilemas e descobertas dos cientistas, no que segue : “Vai passarinho. Soube de uma canção cujo refrão dizia I Would Die For You, fiquei pensando que mais da metade das canções do mundo dizem isso mas eu nunca entendi isso. Negócio de amor e morte, credo. Lá na escola eles ensinavam que amor são sete vidas multiplicadas, então acho que amor é o contrário do fim. Sei lá, o mundo está mudando tanto. Não sou de choro fácil a não ser quando penso em determinação milagres que ainda não aconteceram.”. O amor aparece aqui no meio deste poema em prosa, como na tentativa de operar um milagre, a vida multiplicada, e a lembrança dos clichês das canções, como a colocar o amor também no lugar comum da linguagem, embora seja o contrário do fim, e não a evocação da morte, como ela lembra desta ideia ser recorrente em algumas canções, no que segue : “Acho que está chegando a hora do sossego, e que muita alegria vai pintar por aí. Acho que uma palmeira é muito mais bonita do que uma carabina, mas não sei se vem ao caso. Nenhuma palavra quer ferir outras palavras : nem desoxirribonucleico, nem montanha, nem canção. Todos esses conceitos têm seus sinônimos simplificados, veja só, ácido desoxirribonucleico e DNA são exatamente a mesma coisa, e o resto das palavras você acha.”. O DNA aqui pode ser uma espécie de alquimia do verbo também, as palavras, como tudo, se origina do DNA, a síntese dos seres e suas características, e que vão desembocar, ao fim, na linguagem, e aqui no poema, nas palavras, e Matilde vem com humor, despentear este ácido (DNA) com a sua poesia, e neste DNA ela descobre que pode ver, em sua coda, o brilho da humanidade : “Que coisa mais linda esse ácido despenteado, caramba. Olhei com mais atenção o desenho da estrutura e descobri : a raça humana é toda brilho.”.

POEMAS :

FUR

                                   Com cara de Whitman

foi assim que você pensou que eu viria ao mundo
foi assim que você me viu na floresta
foi assim que você me viu pendurado no poste elétrico
sempre pendurado num ramo qualquer
sempre usando o verão.
você se lembra daquele verão no Brooklyn
em que ficamos perseguindo os bombeiros
durante todo o dia apenas para ver
o leque aquático que se abria sobre o fogo?
você citava poetas húngaros mas nesse tempo
eu só queria saber de inventar uma língua
que não existisse.
você se lembra do concierge que nos recebia
na pensão do Brooklyn como se nunca
nos houvesse visto antes?
e não havia semana que passasse
em que nós não dormíssemos
pelo menos uma madrugada
na pensão do Brooklyn.
me lembro dos dólares amassados
que eu semanalmente tirava do bolso
para pagar ao Doug
eu sabia o nome do Doug
o Doug nos tratava disfarçadamente
por menina e menino.
você falava que os dólares vinham
sempre com uma forma diferente
eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso
eu adoro como você consegue tirar uma lâmpada do bolso
eu adoro como você consegue tirar a Beretta 92fs do bolso

foi assim que você pensou que eu ficaria
no mundo
com corpo de besta vestida
usando um lápis pousado na orelha

foi assim que você me viu
pedindo três ovos para Miss Elsie
a senhora da mercearia na Court Street
ela me deu oito ovos
porque ela sempre dava alguma coisa
ela me achava uma graça e ela não acreditava
em números ímpares. eu também não.
me lembro de você na mercearia
do Brooklyn
você costumava ficar lá atrás
brincando na seção das ferramentas.
se eu tivesse mais do que um coelho,
uma lâmpada ou uma pistola
eu teria te comprado um Black & Decker
eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha
com um Black & Decker enfiado no cinto.

foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,
usando flores em meu cabelo negro,
sempre escondidas no emaranhado dos cachos
sempre escondidas no emaranhado do caos
de minha cabeça negra.

só você sabia quantas flores eu usava
porque agora eu já sei
que você dedicava as noites
à contagem. Deus não dorme
e você também não.

PRÍNCIPE NO ROSEIRAL

Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na beira do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da porcentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
Nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registradora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem falava do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar em casa
ou em algum lugar
próximo de casa.

RIO DE JANEIRO – LISBOA

um dia você
adora meus óculos
adoro os teus óculos
no dia seguinte
não quero que venhas à fazenda
três dias antes
você ia adorar este lugar
você quer vir até a fazenda?
um dia eu rasgo
o tecido celular do rosto
realizo um sorriso constante
que atravessa o morro
o ponto mágico do morro
rasgão alegre que fulmina
o veio mínimo da folha
de amendoeira
e pelo feixe de luz tropiquente
vai parar na cara de João
vendedor de suco no leblon
em ricochete João grita açaí!
qualquer dia eu vou e chego

no outro dia
a cidade se aborrece
desdignificada pela
gigante roleta
que se chama medo
o urubu fica empoleirado
na trave enferrujada
daquilo que já foi suporte
ao cartaz que anunciava
o novo mundo das piscinas
fosforescentes
o pássaro suspenso
olhando via rápida
e catando caca
debaixo da unha
temendo o gira girar
da pequena roda
que circula sorte e azar

um dia você
escreve para seus pais
falando sobre o amor
quarenta dias depois
teus pais te escrevem
falando sobre redes de pesca
e o perigo das redes de pesca
um dia você me envia uma carta
depois a outra
o rasgão explode
recordando ainda outra carta
de alguns meses antes
o postal eterno que dizia
still crazy (after all
these years)
faço voto de silêncio
mas na sacralização
horária das avenidas
eu penso que você
sua mãe e seu pai
conversam muito
sobre peixes
e que isso mantém quieta
a roleta negra
e que isso mantém aparada
a unha do urubu
e que isso faz homenagem
a João e à fruta espessa
que brilha vermelha
em cada copo de minha cidade

um dia você diz que me a ***
eu a ****-te
no dia seguinte
a amendoeira se expande
e floresce cinco folhas mais
nesse dia reparo
que estamos contribuindo
você e eu
para o florestamento
da cidade
de duas cidades
faço voto de silêncio
mas na sacralização horária
da respiração eu penso
que apesar da sala de cassino
abrigo da gigante roleta do medo
apesar dos golpes de gmt -3
apesar da fita de seda que fica
ondulando sua medida de 7.800 km
estamos dando utilidade ao amor
alargando os braços das amendoeiras
alargando os braços dos jacarandás
partindo as inúteis linhas de fronteira
e fazendo do mundo
a gigante floresta.

BRINCANDO COM OS DENTES DO TUBARÃO

You are the Sunshine
of my life
e conversar contigo de manhã
é tão bom
tens o poder do müsli e da
laranja
ou de qualquer fruta de época
for all that matters

Acompanhar teu percurso
natural
é muito bom
falar contigo
sobre tipos de alimentos
também

Neste começo d`hoje
tuas costas negavam
qualquer espécie de outono
Afinal
a ideia de estação
é só um tema ilusional
engendrado por humanos
que nunca puderam desenhar
tua coluna vertebral
a dedo nu

My dear bicho gente
veja lá se sua próxima visita
vem antes da edição fria
do Financial Times

NOTÍCIAS ESCREVINHADAS NA BEIRA DA ESTRADA

Não sou de choro fácil a não ser quando descubro qualquer coisa muito interessante sobre ácido desoxirribonucleico. Ou quando acho uma carta que fale sobre a descoberta de um novo modelo para a estrutura do ácido desoxirribonucleico, uma carta que termine com “Muito amor, Papai”. Francis Crick achou o desenho do DNA e escreveu a seu filho só para dizer que “nossa estrutura é muito bonita”. Estrutura, foi o que ele falou. Antes de despedir-se ainda disse : “Quando você chegar em casa vou te mostrar o modelo.” Isso. Não esqueça os dois pacotes de leite, já agora passe a comprar pão, guarde o resto do dinheiro para seus caramelos, e quando você chegar eu te mostro o mecanismo copiador básico a partir do qual a vida vem da vida. Não sou de choro fácil mas um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos me comove. Cromossomas me animam, ribossomas me espantam. A divisão celular não me deixa dormir, e olha que eu moro bem no meio da montanha. De vez em quando vejo passar os aviões, mas isso nunca acontece de madrugada – a noite se guarda toda para o infinito silêncio. Algumas vezes, durante o apuramento das estrelas, penso nos santos que protegem os pilotos. Amelia Earhart disse que não  casaria a não ser que fosse assinada uma tabela de condições e essas condições implicavam a possível fuga a qualquer momento : “I cannot guarantee to endure at all times the confinements of even na attractive cage.” Vai passarinho. Soube de uma canção cujo refrão dizia I Would Die For You, fiquei pensando que mais da metade das canções do mundo dizem isso mas eu nunca entendi isso. Negócio de amor e morte, credo. Lá na escola eles ensinavam que amor são sete vidas multiplicadas, então acho que amor é o contrário do fim. Sei lá, o mundo está mudando tanto. Não sou de choro fácil a não ser quando penso em determinação milagres que ainda não aconteceram. Meu time ganhou por três a dois. O maior banco norte-americano errou, e errou muitos milhões. Ninguém chegou a falar do aniversário do Superman, e isso também conta como erro. Faltam seis dias para a primavera, está tendo uma contagem comunitária na aldeia mais próxima daqui. Acho que está chegando a hora do sossego, e que muita alegria vai pintar por aí. Acho que uma palmeira é muito mais bonita do que uma carabina, mas não sei se vem ao caso. Nenhuma palavra quer ferir outras palavras : nem desoxirribonucleico, nem montanha, nem canção. Todos esses conceitos têm seus sinônimos simplificados, veja só, ácido desoxirribonucleico e DNA são exatamente a mesma coisa, e o resto das palavras você acha. É tudo uma questão de amor e prisma, por favor não abra os canhões. Quando Amelia morreu, continuava casada com Putnam – suspeito que ela deve ter visto rostos incríveis nas estrelas. Que coisa mais linda esse ácido despenteado, caramba. Olhei com mais atenção o desenho da estrutura e descobri : a raça humana é toda brilho.

Link recomendado : Metrópolis: Matilde Campilho : https://www.youtube.com/watch?v=kbrQ_jLsazI

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


quarta-feira, 8 de abril de 2020

BOLSONARO APOSTA ALTO, ENVOLVIDO NUMA POLÍTICA DESTRUTIVA


“Bolsonaro virou um kamikaze, numa tática política que envolve uma aposta política que é nitroglicerina pura”

Jair Bolsonaro tem atuado politicamente com a pretensão ou lenda de ser a nova política. A sua eleição foi feita baseada nesta história atávica de bastião da ética, de uma renovação política e de que seria a tal “nova política”, sem toma lá, dá cá, sem conchavos, com a promessa de pegar os bandidos da rua, os bandidos da política, de deixar para trás uma época de roubalheira, e de ser o mito.
Ele, Bolsonaro, era aquele que tinha o novo caminho, e que um terço dos eleitores do Brasil foi, nesta febre perigosa, atrás do mito, uma parte, decepcionada ou com raiva do PT, e uma outra parte seduzida pelo discurso mão dura, sobretudo na área de segurança pública, um estilo aparentemente despojado, destoando da política tradicional e dos tiques de políticos corretos, e que se portam com decoro ou etiqueta.
Bolsonaro era a nova política, era o que ele dizia, e foi assim, com este mote, que foi eleito. Com um estilo arrojado e com uma atitude meio imitativa de seu ídolo Trump, Bolsonaro, que começou como terrorista de bomba no Exército, um péssimo militar, capitão que acabou absolvido pelo STM, mas que logo em seguida embarcou para a política. Desembarcou no baixo clero, onde ficou por longos anos com uma atuação mais midiática do que efetiva, pois não ficou conhecido por empreender projetos, mas sim por se tornar uma figura exótica e com declarações polêmicas e que lhe angariou espaço na mídia, sempre com uma atitude mão dura, contra o politicamente correto.
Jair Bolsonaro, por fim, foi eleito com pompa e circunstância, entrou o ano de 2019 com um capital político grande, apoiado na sua equipe ultraliberal, capitaneada por Paulo Guedes, que ele passou a chamar de “Posto Ipiranga”, como aquele que cuidaria dos assuntos da economia, uma vez que Bolsonaro confessava nada saber sobre o tema. E ainda tinha a figura de Sérgio Moro, o super-homem da lava-jato, agora como seu apoio na área do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Sérgio Moro que, numa jogada polêmica, foi para o governo Bolsonaro, colocando em suspeita todo o edifício de combate à corrupção que fizera como juiz federal em Curitiba, sendo agora claro que era um inimigo do Lula, mesmo que muitos outros processos tenham se dado, incluindo outros partidos e não somente Lula e o PT. Agora, Moro era uma figura que logo apareceria como paradoxal e às vezes deslocada entre as inconstâncias e variações de humor de Bolsonaro, que hora elogiava Moro, e outras horas criava ruído com ele.
Portanto, no início de 2019, Bolsonaro tinha um capital político imenso, ocupando o cargo público mais importante do país, sua equipe econômica garantindo, supostamente, uma promessa de lucidez na condução das coisas, e a presença de Moro como um bastião ético para a sua área preferida, a segurança pública. O ano prometia bons ventos para Jair Bolsonaro, um governo do baixo clero, com um partido, o PSL, também como uma hoste do baixo clero, desta vez nos holofotes, para ajudar o governo Bolsonaro no Congresso Nacional.
Só que, como sabemos hoje, o que era um capital político poderosíssimo, foi se fragmentando, em disputas e dissidências sem precedentes, rachando a própria direita hidrófoba que gritou impeachment da Dilma nas ruas, como um desfile da torcida da seleção brasileira, e que votou em massa no capitão e mito, e que agora passava a vociferar contra o escorpião que lhes havia picado.
Primeiro, o MBL, algumas figuras notórias, e deputados saíram do barco, logo em maio de 2019 houve a primeira divisão no bloco bolsonarista, e começou uma discussão contra Jair Bolsonaro, que se estendeu contra o suposto filósofo, que posa de guru da direita, Olavo de Carvalho, e um mundaréu de discípulos, que agora são os chamados olavistas, um grupo de lacaios de um cara que gosta de dar pancada, longe do Brasil, no conforto de seu lar, na Virgínia, Estados Unidos, sem botar a mão na cumbuca de fato.
Mas, o fato inaudito, sem precedentes, se deu no partido que elegeu Bolsonaro, o PSL, pois, numa disputa de cúpula pelo butim do partido, houve o racha dentro do partido, Bolsonaro, de um lado, e Luciano Bivar, de outro lado, com vitória de Bivar e a dissidência bolsonarista abrindo uma cratera dentro do PSL. Foi quando Bolsonaro, em pouco tempo, saiu do partido, e virou um presidente da república sem partido.
Bolsonaro começou, em seguida a esta divisão, derrotado por Bivar, a encampar a sua fundação do Aliança Pelo Brasil, partido este que é um projeto pessoal e personalista de Jair Bolsonaro, e que só será viável, muito provavelmente, somente para as eleições de 2022. Portanto, o PSL rachou ao meio, e muitos dos que se diziam bolsonaristas foram para o grupo bivarista, ficando na esfera bolsonarista somente figuras, ou ligadas à família Bolsonaro, incluindo aí Flávio, Carlos e Eduardo, os três filhos políticos de Jair Bolsonaro, e os mais fiéis e intransigentes bolsonaristas, com o resto, bivaristas, indo para o campo do PSL e de sua estrutura burocrática e política.
Jair Bolsonaro foi se isolando politicamente, numa espécie amalucada de anti-política e anti-presidência, e que tem uma tática de Alt-right, da escola de Steve Bannon, de colocar uma polêmica no ar, provocar uma celeuma, e depois desdizer, colocando a mídia em curto-circuito, num movimento contra-intuitivo de confusão e caos. Bolsonaro, de uns meses para cá, começou a se tornar uma figura outsider dentro do próprio poder, desautorizando ministros, fritando ministros e depois os colocando para fora do governo, contradizendo posições oficiais o tempo todo, ele que é o poder executivo, devemos lembrar, numa espécie de paradoxo do caos.
Agora, no caso do corona vírus, Bolsonaro virou um kamikaze, numa tática política que envolve uma aposta política que é nitroglicerina pura, num movimento que está em choque com pretensos presidenciáveis, governadores do sudeste, como Wilson Witzel, no Rio de Janeiro, e João Dória Jr., em São Paulo, e no Nordeste, numa oposição natural do pecedebista Flávio Dino, que cresce como nova liderança na perdida e enfraquecida esquerda política brasileira, com um PT cada vez mais vinculado e subsumido na figura de líder carismático de Lula.
A aposta de Bolsonaro é a de que ele quer ser o que defendeu a economia contra a sua paralisação, e que as mortes que terão, mesmo com o isolamento, já será a sua justificativa, lá na frente, para combater seus concorrentes do sudeste e os jogar na fogueira, agora com João Doria Jr., que se encontrava obnubilado, voltando novamente à ribalta.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.












segunda-feira, 6 de abril de 2020

METAL FERVIDO

Peço ao metal fervido
que me deixe o peito
ao coração,

a este metal duro
a dureza do dia
não enrijeça
o coração,

deste modo,
o sujeito vivo
em compaixão,
se compadece

o seu espanto
é o mesmo
que teve ao
ver do sol
que lhe ilumina
a face,
uma das faces
de Deus.

06/04/2020 Gustavo Bastos

O POETA DA BACANAL

Pelas beladonas e mandrágoras
que entraram no meu sangue
agora e agora e agora,
meu sangue azul cobalto
que murmura debrum
em rúbido canto
de amarelo ocre
com tons de fissura
de crack,

oh, a contenda que aflige
o meu peito poeta,
a putanear deveras
os incautos na noite
das garrafas espatifadas
e um grito de bronze
ecoando na vasta
escuridão da madrugada
e sua lua tétrica,

vai-te ao ópio o vate,
a bater tambor
na anunciação
de uma nova
guerra.

06/04/2020 Gustavo Bastos

JARDIM DE PAPEL

Desmembrado em seu alicate,
o corpo moço e ferido
em seu coração fibroso,

ali, o jovem rapaz,
a murmurar
seus ais,

ai, que choro de lágrima
de santo, asno beberrão
que prorrompe suicídio,

ah, deste bom moço,
jovem radical,
que bebe e fuma!

vai, poeta da antiguidade,
soçobrar como um
castelo poroso,
feito de cartas falsificadas,
versejar seu verdor
de jardim de papel.

06/04/2020 Gustavo Bastos

HÖLDERLIN

Poeta pré-romântico de uma
Alemanha do Sturm Und Drang,
que se delicia no Ciclo de Diotima,
e fere sua loucura clássica
com o idílio da era de
ouro da Grécia Antiga,

do canto do alemão,
ao ser do mito órfico
a sua própria revolução,
de Hiperíon o sustento
de sua política poética,
e a marca da poesia
elegíaca em seu mito
de morte e ressurreição,

pão e vinho, de Baco
o vulto original,
e das horas passadas
dos hinos, a sua
loucura a inspirar
modernos, no fim
a suas breves estrofes,
de seu tempo de colapso.

06/04/2020 Gustavo Bastos