PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 7 de junho de 2015

EZRA POUND

“Os Cantos é uma épica moderna”
   Ezra Pound (1885-1972) foi um poeta, norte-americano, músico bissexto, e também atuou como crítico literário, e que como poeta foi um dos grandes, considerado um dos maiores do século XX. Ezra Pound encarna a figura do poeta seminal, com uma obra de amplitude, eruditíssima, abre um cabedal histórico, crítico, expressivo, inovador na linguagem, espectro de nuances e que foi bastante influente nos rumos de outros poetas, um grande patrocinador de talentos. Mergulhar nos poemas de Ezra Pound é descobrir o amplo universo histórico, econômico, mitológico, tudo num amálgama fragmentário que culmina na experiência extrema de seu livro-projeto Cantares, que ao fim ficou com o título Os Cantos, e que era uma obra em progresso, destinada a terminar inacabada.
   Ezra Pound, quando visto como influência para muitos, isto não é só uma expressão de processo histórico, mas sim, e também, uma referência prática, isto é, ele teve uma generosa atividade em favorecimento a escritores iniciantes, ainda desconhecidos de crítica e público, tais como James Joyce, T.S.Eliot, Yeats, Hemingway, Antheil e Gaudier-Brzeska. Neste ímpeto de patrocínio prospectivo, também houve, por outro lado, em sua obra, uma revivescência retrospectiva de alguns poetas obscuros do passado, que tem como exemplo principal o simbolista Laforgue.
   A obra poética de Pound pode ser referida em dois trabalhos: Personae e Os Cantos. Tal trabalho imenso é uma arquitetura de poesia, tudo isso num período que vai de 1908 a 1969. Pound usa Personae com seu significado latino: máscaras. Tal trabalho poético em Personae é um recurso inventado por Pound segundo o qual este poeta assume a personalidade de um autor para incorporar a sua linguagem, assim Personae é o percurso do poeta Pound que se coloca na expressão de outros poetas, um método de mimética que é mais que isso, é mimética para além, recurso que trabalha sob inspiração de uma expressão que não é de Pound, mas que ele faz de modo a incorporar animicamente outro poeta. Isto é, Personae é o jogo teatral da máscara, Pound aqui encarna Cino, Bertran de Born, Villon. É com este método de máscara que mais tarde o eco de Personae irá culminar no projeto épico de Os Cantos, com vozes e dicções que vêm de décadas de trabalho poético intenso.
   Dentre outras realizações de Pound, Hugh Selwyn Mauberley (1920) é um conjunto de 18 poemas que questiona a “persona” do artista e poeta moderno, que se vê diante de uma fratura entre o esteticismo “fin de siècle” e o cinema em prosa que emerge do século XX. Só que, voltando aos Cantos ou Cantares, publicados em várias séries ao longo da vida do poeta, por mais de 50 anos, de 1917 a 1969, estes ficaram inacabados, terminando com o último sopro do Canto 120. Os Cantos é uma épica moderna, interminável, sem fim, o documento principal da obra de Ezra Pound.
   Para fazer um poema-máscara, uma persona, Pound se coloca como poeta e crítico de modo simultâneo, recorrendo a uma escolha, a uma seleção, misturando passado ignoto (trabalho de resgate) e presente (reconhecimento de outros), e que são coisas e pessoas que entram em atividade através desta máscara poundiana. Por sua vez, na extensão de sua obra, Ezra Pound tem como a grande unidade desta, então, seu trabalho como crítico, como poeta e como tradutor. As primeiras assunções da máscara de Pound são com os provençais, os toscanos e o lendário poeta Villon. Tal incursão inicial de Pound tem como fulcro a tradição literária neolatina.
   Na experiência da máscara, por sua vez, tal aspecto metodológico ganha caráter literal no trabalho de Pound a respeito de sua obra Hugh Selwyn Mauberley. Em tal obra a máscara é realmente a de um personagem que vive por conta própria, há uma verdadeira fissão entre Pound e a personalidade de Mauberley. O processo poético de Pound com Mauberley se dá de modo diverso, por exemplo, no que acontece com a poesia de Fernando Pessoa e seus heterônimos, pois aqui, com Mauberley, este não é a persona em atividade do tear poético, como é em Pessoa, Mauberley é antes um personagem citado por Pound, Mauberley é poeta, mas não fala na atividade de Pound, tal como Alberto Caeiro ou Álvaro de Campos no trabalho poético de Fernando Pessoa. Mauberley aparece, então, com Pound, como persona de uma estória, é o poeta que tem na fala de Pound a vida de um fracassado. A exceção da estória de fracassos de Mauberley é o último poema “Medalhão” que, por conseguinte, constitui a única “obra” do poeta-personagem, e que tem, portanto, a assinatura de Mauberley.
   Com as máscaras de Pound, agora a respeito de Os Cantos, que é um mosaico de vozes e expressões, Pound pratica um verdadeiro exercício de estilo em todas as dimensões da poesia: fanopeia, melopeia e logopeia (arcabouço teórico de Pound sobre a poesia). A fanopeia sendo o parâmetro do que veio a ser a fase do Imagismo, movimento lançado por Pound em 1912, que teve uma corruptela com Amy Lowell em versão adocicada denominada “amygismo”. Tal que é a fanopeia a expressão por Pound dos poemas chineses de Cathay e também do poema “Phanopoeia”. Com Pound, a fanopeia ganha a expressão de poemas curtos, tais como os poemas-minuto do tipo “Numa estação de metrô” ou daquele “Papyrus”, poemas que se interrompem, série que também inclui “Alabastro”, “Cantus Planus”, e nestes trabalhos Pound assimila a linguagem do hai-cai e os transmuta à logopeia sintética na forma dos epigramas greco-latinos.
   A melopeia se refere, em Pound, aos poemas de cunho toscano-provençal, algumas vezes vertente que se une em simbiose com a fanopeia, tal como se dá na Ode n°274 da antologia de Confúcio, unindo olho e ouvido numa única voz poética. A logopeia tem perfeição expressiva em “Portrait d`une Femme”, feixe que se desenlaça com epigramas humorísticos e de verve crítica em “O olho que vê”, “Nossos Contemporâneos”, “Soirée”, dentre outros, e que tem seu mote com o poema laforguiano em homenagem ao poeta Propércio. E, por sua vez, com Mauberley, o poeta Pound acentua a perspectiva visual ou imagética, identificada à sintaxe interna do ideograma chinês, agindo combinadamente, e que em Os Cantos revela que a etapa Mauberley, para a poesia de Pound, era um ensaio para o que se realiza com magistral poder em Os Cantos.
   Na obra de Pound também podemos ver um conjunto de personificações sintomáticas do mundo cultural da segunda metade do século XIX e início do século XX na Inglaterra. Há uma projeção com um ideograma da época que ganha o conteúdo poético da senda dos Pré-Rafaelitas, jogo que inclui Dante Gabriel Rossetti, Burne-Jones, etc. Personas desfilam no cabedal de Pound, até com o poeta Swinburne, e que recapitula o ataque crítico aos Pré-Rafaelitas, com acusações de indecência como na “A Escola Carnal da Poesia”. O percurso de Rossetti, por exemplo, inclui o fato importante que se empreende no primeiro quadro da era vitoriana, o renascimento de Rubayat, na recriação de Fitzgerald, a partir dos poemas de Omar Khayam, obra natimorta desenterrada por Rossetti e Swinburne.
   O passeio histórico de Pound também se refere, neste contexto entre esteticismo e nova expressão, num avanço, aqui novamente citado, para o fim do século XIX, por exemplo, na descrição poundiana, sob título de uma linha de Dante, para os “Nineties”, os estetas e decadentes do círculo de Wilde e Beardsley, os poetas do Rhymer`s Club, tais como Lionel Johnson e Ernest Downson, que morreram jovens por uma vida desregrada. Poetas estes que compartilhavam uma vida de catolicismo, alcoolismo e a veneração a Propércio.
   Em um trecho Pound, com a persona efetiva de Mauberley, este poeta fracassado que viveu três anos perdido em ilusões, já vê o amor como uma possibilidade retrospectiva. Caid Ali, poeta persa, persona de Pound, ferve agora com o “diabolus in musica”, o trítono, ou intervalo de três tons, proscrito pelos musicistas medievais, como dissonante. E Pound reforça, por seu turno, a inabilidade de Mauberley em adequar-se à sua época, ele é parte deste grupo de “escravos do sublime”, a persona do poeta-esteta que reage anacronicamente ao mercantilismo e à indiferença de sua época, um poeta condenado à torre de marfim, o voo de Ícaro do poeta que se torna refém da expressão belamente executada, sem o tino do mundo que se apresenta, este torpor do sublime que se esvai na sua harmonia de anjos e que decai exangue sob o peso da realidade. Mauberley, em seu canto do cisne, lança um problema que só será resolvido, em Pound, com a obra Os Cantos.
   Os Cantos, segundo o próprio Pound, se apresenta, em sua comparação à música, com a figura musical da fuga. Tal obra é um apanhado geral do processo civilizatório, em sua estrutura atomizada, sem enredo, uma forma mutante e um palavrório fragmentado, peças de uma engrenagem que dá voz ao imagismo numa torrente que é trabalho contínuo de depuração histórica, a forma contraída ganha uma densidade de uma linguagem paradoxalmente ampla e atômica.
   A amplitude de milênios é condensada numa poesia de solidez que daria a Demócrito, o filósofo atomista, sua versão do menor sólido possível com o maior cabedal de referências possível. Por exemplo, a mitologia grega, a História romana, Ovídio, a História da China, e a economia no protesto contra a usura (obsessão poundiana), todo um amálgama que daria em milhares de notas de rodapé só para destrinchar esta grande arquitetura que Pound faz em Os Cantos.
   A estrutura contrapontística é mais uma comparação que Pound faz da música aos seus poemas. A amplitude vem daí. Pound tenta realizar um poema total, no sentido de civilização, com sua aventura poética em Os Cantos. E o método de composição ideogrâmico dá ao viés romano e grego nos cantos de Pound, por fim, sua condensação nos cantos finais em que a expressão chinesa ganha corpo literal, ideogramas como pontuações de sua estratégia totalizante nos átimos de que a linguagem oriental é pródiga. A linearidade do discurso é quebrada e subvertida pelo fragmento e pelo amálgama, e seu método é o ideograma, dentro do Ocidente e mais ainda dentro do Oriente. O que dá na famosa frase de H. Kenner sobre Os Cantos de Pound: “os Cantos são uma ‘épica sem enredo’”.
   O ideograma, numa referência ao cinema, pode ser comparado a Eisenstein, pois ele teve esta ideia ideogrâmica na sua técnica de montagem, o que o tornou um dos maiores montadores da história do cinema. A hierarquia dos ideogramas (forma poética de Pound), tem em seus conteúdos três modalidades: histórico-econômica, ético-política e ético-crítica. A condensação de informações de Pound em Os Cantos é uma resposta ao mundo veloz da modernidade, a solução do problema-Mauberley. Ecumenismo de conteúdo e forma de ideograma para o fôlego de Pound fazer todas as referências possíveis em seu processo totalizante e, contudo, extremamente fragmentado. O desespero virtuoso de Pound, a grande vitória da História total em versão moderna que só se torna possível na forma de ideograma e da poesia.
   A hesitação de Pound entre os modelos da Odisseia (Homero), da Divina Comédia (Dante Alighieri) e das Metamorfoses (Ovídio), termina como grande “solução final” (vou citar o porém, ao fim do texto, desculpem a ironia), a partir de seus Cantos Pisanos, que ele faz na prisão manicomial (terá sido a solução final nazista? Vou citar ao fim do texto). Ou seja, é nos Cantos Pisanos que aparece o jorro alucinante de eventos disparatados na aparência, pois toda forma e conteúdo de Pound em Os Cantos tem uma inextricável densidade, o fragmento e a disparidade de vozes têm um fulcro que é um corpo inteiro. Pound, em Os Cantos, coloca o mundo inteiro na roda, e mesmo que a fragmentação dê um aspecto de caos durante a leitura, se fizermos um apanhado geral de infinitas notas de rodapé, o gigante ciclópico de Os Cantos é decifrado. Há unidade metodológica, mas a expressão de ideograma reparte a poesia no sinal moderno de sua necessária condensação, uma questão que chamo em Pound de aproveitamento, eficiência, o modo único de realizar Os Cantos sem se exaurir num caminho infinito.
   A Gestalt de Os Cantos pode ser traduzida como um dos maiores monumentos fragmentários do século XX, um cabedal de inventos, e no artesanato do verso, sob o paradigma que Pound quer impor do ideograma, um jornal-digesto de vários tempos, um epistolário de que a pena de Pound sempre foi abundante, podendo ser comparada, no mesmo páreo de complexidade de realização, ao Finnegans Wake de James Joyce.
   E Pound deixa sua herança ideogrâmica a escritores como Mallarmé, Apollinaire e Joyce que, simultaneamente, fizeram do fragmento moderno a subversão narrativa de que a Modernidade ainda se encanta, coisa que se radicalizou com Godot de Beckett, no teatro. A narrativa convencional é dilapidada por tais artistas, e a literatura e o teatro modernos são o enredo desta veia experimental que coloca tudo pelos ares com edifícios da Gestalt em seu estado de amálgama, de expressão complexa que não devota muita estima pela cronologia.
   Talvez o estado de tensão que foi todo o século XX, vide a Guerra Fria e o nazismo, coloquem as belas letras do sublime e narrativo à parte, com a urgência apocalíptica de tudo abarcar na dimensão condensada de um tear mecânico e maníaco que agora vem ao século XXI como uma ressaca deste assassinato do tempo que vivemos. Seria esta narrativa linear morta? Pound, Joyce, Beckett, Apollinaire e quejandos deram ao futuro a linha de um espectro fractal ao qual só há que continuar? A questão se coloca, Pound fez o século XX com todo este grupo, e eles são importantes, e o que se quer agora é traduzir esta experiência ou na via de sua radicalização ou no resgate proporcional de uma cronologia que agoniza na época do fragmento chamado internet. A plasticidade de Pound e Joyce, então, anteciparam a subversão narrativa de que nós somos filhos. Só que há uma consequência certeira, Mauberley, esteta, escravo do sublime, teria sua penitência maior neste nosso século, Pound tentou salvá-lo já como Pound em Os Cantos.
   Pound, que apesar do trabalho brutal que fez com Os Cantos, não era um artista ensimesmado, pois foi responsável por colocar muitos escritores de valor na esfera do público e da crítica. Vultos como Hemingway e T.S.Eliot devem muito de sua fortuna literária devido a intervenção de Pound para seus caminhos. Daí se incluem também Yeats, Joyce, Wyndham Lewis, William Carlos Williams, Cummings, Marianne Moore, etc.
   Das mãos de Pound um poema caótico como Waste Land, de Eliot, foi reduzido a quase metade de seu tamanho original, forma em que foi publicado e celebrizado. O zelo poundiano correspondia, neste passo, com o de Maiakóvski que, a propósito de Khliébnikov, escrevia: “Depois da morte de Khliébnikov apareceram muitas notas e artigos em diferentes revistas, tratando-o com alguns elogios. Li-os com repugnância. Quando vão terminar, afinal, com essa comédia de cuidar das pessoas depois de mortas? Onde estavam os que agora escrevem sobre ele quando Khliébnikov, desprezado pela crítica, perambulava pelos caminhos da Rússia? ... respeitem mais os vivos, ao invés de render-lhes homenagem com edições póstumas. É preciso escrever artigos sobre os escritores enquanto estão vivos! Dar-lhes pão em vida! Dar-lhes papel em vida!”.
   E, para resumir a história de Pound, ele foi (só) o responsável pela publicação de dois livros de Joyce: Retrato do Artista Quando Jovem e Ulysses. Como declarou Wyndham Lewis, “sem Pound o autor de Retrato do Artista Quando Jovem jamais teria emergido do seu exílio na Europa Central, nem Ulysses e Finnegans Wake teriam sido escritos.” Talvez o lema confuciano citado pelo próprio Pound “MAKE IT NEW” (renovar) faz tanto sentido pela sua obra como por quem ele promoveu.
   A amarga autocrítica de Pound ao fim de sua vida, por sua vez, se deve à sua adesão ao fascismo. Segundo o próprio: “Minhas intenções eram boas, mas enganei-me na maneira de alcançá-las. Fui um estúpido. O conhecimento me chegou tarde de mais ... Muito tarde me chegou a certeza de nada saber ...”. Estas certezas políticas e econômicas proclamadas por Pound o levaram a um caminho de infortúnio. Foi acusado de traição pelo governo americano, por ter feito, em 1941-42, uma série de transmissões radiofônicas, em Roma, consideradas “contrárias ao seu dever de lealdade para com os Estados Unidos”. Pound entregou-se às tropas norte-americanas que invadiram a Itália em 1945, foi preso e metido numa jaula durante três semanas, num campo de concentração para prisioneiros de guerra, em Pisa. Tinha 60 anos. Trazido para a América, não chegou a ser julgado, por ter sido considerado “mentalmente incapaz”. Foi então encerrado num manicômio judiciário, onde viveu, durante 12 anos, poeticamente lúcido e produtivo, até à sua final libertação, ocorrida em 1958.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/23206/14/ezra-pound-1  
     
  
        

     

TUBARÃO

“a ideia de um tubarão como protagonista de uma estória nunca poderia ter dado tão certo.”
   Peter Benchley se tornou mundialmente famoso ao lançar seu livro Tubarão em 1974, tal obra, romance, vendeu 20 milhões de exemplares e virou filme pelas mãos de Steven Spielberg, filme que logo se tornou um blockbuster em 1975, batendo recordes de bilheteria, e que também teve a participação do escritor Benchley no roteiro.
   Benchley, desde criança, teve um fascínio por tubarões, passou seus verões em Nantucket, uma ilha no Oceano Atlântico, pois nos anos 1940 e 1950, as águas desta região eram ricas de tubarões de várias espécies: tubarões-areia, tubarões-azuis, tubarões-makos e, finalmente, os conhecidos e temíveis tubarões-brancos.
   O romance Tubarão, e depois o filme, representam este fascínio de Benchley por tubarões. Admiração e temor que também passam por toda a Humanidade. Um animal que vem desde a pré-história, que passou pela evolução das espécies e que ainda habita o inconsciente do medo ao mergulho no mar. Benchley, por volta de seus 20 anos, leu uma matéria num jornal sobre um pescador que havia arpoado um grande tubarão-branco de mais de duas toneladas na região de Long Island. Tal fato fez Benchley imaginar se fosse possível um monstro desses chegar num balneário e numa região de veraneio, e isto se tornou o embrião do que viria a ser o livro Tubarão.
   Benchley coloca esta estória neste contexto, a vida de verão de um balneário, região de veraneio, chamada Amity, em Long Island, e o conflito se estabelece logo que há o primeiro ataque de tubarão na região. Há dois personagens principais que entram num embate ético, o chefe de polícia Brody, e o prefeito Vaughan. Brody queria interditar as praias da região logo ao primeiro ataque, e Vaughan queria manter as aparências, pois sabia que uma notícia como aquela correndo por aí, teria, como consequência, prejuízo financeiro para a região de Amity. O conflito ético então se dá entre o dever do alerta no balneário para que não surjam mais vítimas e o imperativo de manter as coisas funcionando em Amity, sobretudo por se tratar da temporada de verão na região.
   Até este livro de Benchley, não se tinha muito conhecimento de um romance sobre tubarões, e tal ideia deste escritor, por insólita, poderia parecer um projeto que não daria certo, algo que passaria ao largo da literatura reconhecida pelo público, mas deu certo, e mais, ao fim virou filme blockbuster pelas mãos do diretor Steven Spielberg. Então, a ideia de um tubarão como protagonista de uma estória nunca poderia ter dado tão certo.
   Tubarão, livro e filme, evocam o medo e o respeito por um animal mítico e real ao mesmo tempo. O mito da morte, os dentes triangulares, o comprimento do animal, o monstro sanguinário, e que tem na imagem da espécie tubarão-branco sua expressão perfeita e mais poderosa. O mundo selvagem dos mares, tão perigoso como uma selva africana, mar que também possui seus predadores, e que no maior deles coloca no topo da cadeia alimentar um bicho que não come carne humana, mas que se ataca por engano um de nós, teríamos que ter muita sorte para voltar e contar a história.
   Romance de ictiologia, uma versão literária do fascínio dos tubarões, uma reunião ficcional de algo que ocorre de fato nos mares. Tubarão consegue juntar algo que vem da mítica oceânica, algo que poderia ter tudo para ser apenas uma boa estória de ficção, mas que tem pé na realidade. Mesmo assim, por se tratar de uma obra literária, as tintas são carregadas, o mesmo ocorre no filme. Tubarão é uma lente de aumento de um perigo real, e a aparição do tubarão-branco, animal real, não um objeto de mito ou uma quimera, assusta por ser real, por viver nos mares. O mar e seus segredos, e a caixa de pandora aberta nesta estória chamada Tubarão, o grande monstro que nos situa num romance de balneário, e que é, por sinal, uma obra de terror.
   O conhecimento sobre como se comportam os tubarões, os movimentos dos corpos humanos no balneário de Amity, os casos que se sucedem, tudo isso dentro de um conflito ético entre o lucro obtido no verão, tal é a ideia do prefeito Vaughan, e o medo de mais vítimas pelo chefe de polícia Brody. Não há, para além disso, uma garantia de quem está com o domínio da situação, na verdade, o fato que controla todo o enredo é o próprio tubarão, este animal que aparece misteriosamente tanto no livro de Benchley como no filme de Spielberg.
   Benchley disse que não se interessava apenas por contar uma história de terror de uma nota só, isto é, um tubarão que come gente. Benchley decidiu se concentrar na questão do que realmente aconteceria se um predador gigantesco fechasse o cerco sobre um balneário. Benchley se orgulhava de saber mais sobre tubarões do que a maioria das pessoas, pois isto representava uma lenda, mas que, contudo, tinha base na vida real, a grande cadeia de espécies que vivia nos mares, e que possuía na imagem aterrorizante do tubarão sua perfeita tradução. O mar, já perigoso por suas próprias águas agitadas, também tinha um habitante poderoso, o tubarão, e sua versão mais perigosa, o tubarão-branco, herança dos gigantes pré-históricos que um dia viveram na Terra, ou melhor, neste caso, nos mares.
   Cada episódio ocorrido no livro realmente aconteceu, pois os resultados demonstrados no livro de ataques de tubarão havia, por conseguinte, um conteúdo real por trás. E este é o grande lance do livro e do filme, Tubarão se coloca, a princípio, como uma mera estória de terror, só que, diferente dos monstros imaginários da maioria das estórias desta temática, nos apresenta um animal real, ou seja, Tubarão mexe com medos reais, com algo que mistura a lenda do mar com a verdadeira sensação de um ataque real de tubarão. Este animal existe, e os casos de corpos humanos estraçalhados por este bicho também. Portanto, não se trata de um terror imaginário, de uma fantasia, é a pura realidade, com o aumento dramático pela pena do escritor e pela direção de um filme.
   E neste conflito entre Brody e o prefeito Vaughan, o único que não tinha dilemas éticos além da caça era o tubarão-branco. Portanto, em Tubarão, enquanto os homens se digladiavam pela administração de Amity, um animal, na amoralidade de seus propósitos, apenas vivia sua vida biológica, certamente inconsciente do que provocava, pois para o tubarão-branco, a vida consistia em detectar corpos agitados na água e dar mordidas para ver se a carne era boa. No caso dos humanos, o tubarão-branco mal sabia que tinha tanto impacto na vida em sociedade de um balneário de verão.
   Benchley não previu o sucesso de seu romance Tubarão, mas sua ideia foi acertada, desde O Velho e o Mar, até Tubarão, desde Mil Léguas Submarinas, até, novamente, Tubarão, agora a história dos mares e de seus predadores ganhava contornos de um sucesso enorme. Spielberg explorou tal mote e se deu bem, Benchley também. Tubarão foi um marco do cinema hollywoodiano, tudo isto nascido de um interesse diletante de um escritor que, ao invés de contar qualquer estória, se embrenhou nesta vida selvagem, o tubarão-branco nunca deu tanto o que falar. Benchley e Spielberg acertaram em cheio, e o mito do tubarão-branco, baseado em fatos reais, virou peça de arte, isto é, filme e livro, sucesso na década de 1970.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário:http://seculodiario.com.br/22977/14/tubarao-1