“Os Cantos é uma épica moderna”
Ezra Pound
(1885-1972) foi um poeta, norte-americano, músico bissexto, e também atuou como
crítico literário, e que como poeta foi um dos grandes, considerado um dos
maiores do século XX. Ezra Pound encarna a figura do poeta seminal, com uma
obra de amplitude, eruditíssima, abre um cabedal histórico, crítico,
expressivo, inovador na linguagem, espectro de nuances e que foi bastante
influente nos rumos de outros poetas, um grande patrocinador de talentos. Mergulhar
nos poemas de Ezra Pound é descobrir o amplo universo histórico, econômico,
mitológico, tudo num amálgama fragmentário que culmina na experiência extrema
de seu livro-projeto Cantares, que ao fim ficou com o título Os Cantos, e que
era uma obra em progresso, destinada a terminar inacabada.
Ezra Pound, quando
visto como influência para muitos, isto não é só uma expressão de processo
histórico, mas sim, e também, uma referência prática, isto é, ele teve uma
generosa atividade em favorecimento a escritores iniciantes, ainda
desconhecidos de crítica e público, tais como James Joyce, T.S.Eliot, Yeats,
Hemingway, Antheil e Gaudier-Brzeska. Neste ímpeto de patrocínio prospectivo,
também houve, por outro lado, em sua obra, uma revivescência retrospectiva de alguns
poetas obscuros do passado, que tem como exemplo principal o simbolista
Laforgue.
A obra poética de
Pound pode ser referida em dois trabalhos: Personae e Os Cantos. Tal trabalho
imenso é uma arquitetura de poesia, tudo isso num período que vai de 1908 a
1969. Pound usa Personae com seu significado latino: máscaras. Tal trabalho
poético em Personae é um recurso inventado por Pound segundo o qual este poeta
assume a personalidade de um autor para incorporar a sua linguagem, assim
Personae é o percurso do poeta Pound que se coloca na expressão de outros
poetas, um método de mimética que é mais que isso, é mimética para além,
recurso que trabalha sob inspiração de uma expressão que não é de Pound, mas
que ele faz de modo a incorporar animicamente outro poeta. Isto é, Personae é o
jogo teatral da máscara, Pound aqui encarna Cino, Bertran de Born, Villon. É
com este método de máscara que mais tarde o eco de Personae irá culminar no
projeto épico de Os Cantos, com vozes e dicções que vêm de décadas de trabalho
poético intenso.
Dentre outras
realizações de Pound, Hugh Selwyn Mauberley (1920) é um conjunto de 18 poemas
que questiona a “persona” do artista e poeta moderno, que se vê diante de uma
fratura entre o esteticismo “fin de siècle” e o cinema em prosa que emerge do
século XX. Só que, voltando aos Cantos ou Cantares, publicados em várias séries
ao longo da vida do poeta, por mais de 50 anos, de 1917 a 1969, estes ficaram
inacabados, terminando com o último sopro do Canto 120. Os Cantos é uma épica
moderna, interminável, sem fim, o documento principal da obra de Ezra Pound.
Para fazer um
poema-máscara, uma persona, Pound se coloca como poeta e crítico de modo
simultâneo, recorrendo a uma escolha, a uma seleção, misturando passado ignoto
(trabalho de resgate) e presente (reconhecimento de outros), e que são coisas e
pessoas que entram em atividade através desta máscara poundiana. Por sua vez,
na extensão de sua obra, Ezra Pound tem como a grande unidade desta, então, seu
trabalho como crítico, como poeta e como tradutor. As primeiras assunções da
máscara de Pound são com os provençais, os toscanos e o lendário poeta Villon. Tal
incursão inicial de Pound tem como fulcro a tradição literária neolatina.
Na experiência da
máscara, por sua vez, tal aspecto metodológico ganha caráter literal no
trabalho de Pound a respeito de sua obra Hugh Selwyn Mauberley. Em tal obra a
máscara é realmente a de um personagem que vive por conta própria, há uma
verdadeira fissão entre Pound e a personalidade de Mauberley. O processo
poético de Pound com Mauberley se dá de modo diverso, por exemplo, no que
acontece com a poesia de Fernando Pessoa e seus heterônimos, pois aqui, com
Mauberley, este não é a persona em atividade do tear poético, como é em Pessoa,
Mauberley é antes um personagem citado por Pound, Mauberley é poeta, mas não
fala na atividade de Pound, tal como Alberto Caeiro ou Álvaro de Campos no
trabalho poético de Fernando Pessoa. Mauberley aparece, então, com Pound, como
persona de uma estória, é o poeta que tem na fala de Pound a vida de um
fracassado. A exceção da estória de fracassos de Mauberley é o último poema
“Medalhão” que, por conseguinte, constitui a única “obra” do poeta-personagem, e
que tem, portanto, a assinatura de Mauberley.
Com as máscaras de
Pound, agora a respeito de Os Cantos, que é um mosaico de vozes e expressões,
Pound pratica um verdadeiro exercício de estilo em todas as dimensões da
poesia: fanopeia, melopeia e logopeia (arcabouço teórico de Pound sobre a
poesia). A fanopeia sendo o parâmetro do que veio a ser a fase do Imagismo,
movimento lançado por Pound em 1912, que teve uma corruptela com Amy Lowell em
versão adocicada denominada “amygismo”. Tal que é a fanopeia a expressão por
Pound dos poemas chineses de Cathay e também do poema “Phanopoeia”. Com Pound,
a fanopeia ganha a expressão de poemas curtos, tais como os poemas-minuto do
tipo “Numa estação de metrô” ou daquele “Papyrus”, poemas que se interrompem,
série que também inclui “Alabastro”, “Cantus Planus”, e nestes trabalhos Pound
assimila a linguagem do hai-cai e os transmuta à logopeia sintética na forma
dos epigramas greco-latinos.
A melopeia se
refere, em Pound, aos poemas de cunho toscano-provençal, algumas vezes vertente
que se une em simbiose com a fanopeia, tal como se dá na Ode n°274 da antologia
de Confúcio, unindo olho e ouvido numa única voz poética. A logopeia tem
perfeição expressiva em “Portrait d`une Femme”, feixe que se desenlaça com
epigramas humorísticos e de verve crítica em “O olho que vê”, “Nossos
Contemporâneos”, “Soirée”, dentre outros, e que tem seu mote com o poema
laforguiano em homenagem ao poeta Propércio. E, por sua vez, com Mauberley, o
poeta Pound acentua a perspectiva visual ou imagética, identificada à sintaxe
interna do ideograma chinês, agindo combinadamente, e que em Os Cantos revela
que a etapa Mauberley, para a poesia de Pound, era um ensaio para o que se
realiza com magistral poder em Os Cantos.
Na obra de Pound
também podemos ver um conjunto de personificações sintomáticas do mundo
cultural da segunda metade do século XIX e início do século XX na Inglaterra. Há
uma projeção com um ideograma da época que ganha o conteúdo poético da senda
dos Pré-Rafaelitas, jogo que inclui Dante Gabriel Rossetti, Burne-Jones, etc.
Personas desfilam no cabedal de Pound, até com o poeta Swinburne, e que
recapitula o ataque crítico aos Pré-Rafaelitas, com acusações de indecência
como na “A Escola Carnal da Poesia”. O percurso de Rossetti, por exemplo,
inclui o fato importante que se empreende no primeiro quadro da era vitoriana,
o renascimento de Rubayat, na recriação de Fitzgerald, a partir dos poemas de
Omar Khayam, obra natimorta desenterrada por Rossetti e Swinburne.
O passeio histórico
de Pound também se refere, neste contexto entre esteticismo e nova expressão, num
avanço, aqui novamente citado, para o fim do século XIX, por exemplo, na
descrição poundiana, sob título de uma linha de Dante, para os “Nineties”, os
estetas e decadentes do círculo de Wilde e Beardsley, os poetas do Rhymer`s
Club, tais como Lionel Johnson e Ernest Downson, que morreram jovens por uma
vida desregrada. Poetas estes que compartilhavam uma vida de catolicismo,
alcoolismo e a veneração a Propércio.
Em um trecho Pound,
com a persona efetiva de Mauberley, este poeta fracassado que viveu três anos
perdido em ilusões, já vê o amor como uma possibilidade retrospectiva. Caid
Ali, poeta persa, persona de Pound, ferve agora com o “diabolus in musica”, o
trítono, ou intervalo de três tons, proscrito pelos musicistas medievais, como
dissonante. E Pound reforça, por seu turno, a inabilidade de Mauberley em adequar-se
à sua época, ele é parte deste grupo de “escravos do sublime”, a persona do
poeta-esteta que reage anacronicamente ao mercantilismo e à indiferença de sua
época, um poeta condenado à torre de marfim, o voo de Ícaro do poeta que se
torna refém da expressão belamente executada, sem o tino do mundo que se
apresenta, este torpor do sublime que se esvai na sua harmonia de anjos e que
decai exangue sob o peso da realidade. Mauberley, em seu canto do cisne, lança
um problema que só será resolvido, em Pound, com a obra Os Cantos.
Os Cantos, segundo o
próprio Pound, se apresenta, em sua comparação à música, com a figura musical
da fuga. Tal obra é um apanhado geral do processo civilizatório, em sua
estrutura atomizada, sem enredo, uma forma mutante e um palavrório fragmentado,
peças de uma engrenagem que dá voz ao imagismo numa torrente que é trabalho
contínuo de depuração histórica, a forma contraída ganha uma densidade de uma
linguagem paradoxalmente ampla e atômica.
A amplitude de
milênios é condensada numa poesia de solidez que daria a Demócrito, o filósofo
atomista, sua versão do menor sólido possível com o maior cabedal de
referências possível. Por exemplo, a mitologia grega, a História romana,
Ovídio, a História da China, e a economia no protesto contra a usura (obsessão
poundiana), todo um amálgama que daria em milhares de notas de rodapé só para
destrinchar esta grande arquitetura que Pound faz em Os Cantos.
A estrutura
contrapontística é mais uma comparação que Pound faz da música aos seus poemas.
A amplitude vem daí. Pound tenta realizar um poema total, no sentido de
civilização, com sua aventura poética em Os Cantos. E o método de composição
ideogrâmico dá ao viés romano e grego nos cantos de Pound, por fim, sua
condensação nos cantos finais em que a expressão chinesa ganha corpo literal,
ideogramas como pontuações de sua estratégia totalizante nos átimos de que a
linguagem oriental é pródiga. A linearidade do discurso é quebrada e subvertida
pelo fragmento e pelo amálgama, e seu método é o ideograma, dentro do Ocidente
e mais ainda dentro do Oriente. O que dá na famosa frase de H. Kenner sobre Os
Cantos de Pound: “os Cantos são uma ‘épica sem enredo’”.
O ideograma, numa
referência ao cinema, pode ser comparado a Eisenstein, pois ele teve esta ideia
ideogrâmica na sua técnica de montagem, o que o tornou um dos maiores
montadores da história do cinema. A hierarquia dos ideogramas (forma poética de
Pound), tem em seus conteúdos três modalidades: histórico-econômica,
ético-política e ético-crítica. A condensação de informações de Pound em Os
Cantos é uma resposta ao mundo veloz da modernidade, a solução do
problema-Mauberley. Ecumenismo de conteúdo e forma de ideograma para o fôlego
de Pound fazer todas as referências possíveis em seu processo totalizante e,
contudo, extremamente fragmentado. O desespero virtuoso de Pound, a grande
vitória da História total em versão moderna que só se torna possível na forma de
ideograma e da poesia.
A hesitação de Pound
entre os modelos da Odisseia (Homero), da Divina Comédia (Dante Alighieri) e
das Metamorfoses (Ovídio), termina como grande “solução final” (vou citar o
porém, ao fim do texto, desculpem a ironia), a partir de seus Cantos Pisanos,
que ele faz na prisão manicomial (terá sido a solução final nazista? Vou citar
ao fim do texto). Ou seja, é nos Cantos Pisanos que aparece o jorro alucinante
de eventos disparatados na aparência, pois toda forma e conteúdo de Pound em Os
Cantos tem uma inextricável densidade, o fragmento e a disparidade de vozes têm
um fulcro que é um corpo inteiro. Pound, em Os Cantos, coloca o mundo inteiro
na roda, e mesmo que a fragmentação dê um aspecto de caos durante a leitura, se
fizermos um apanhado geral de infinitas notas de rodapé, o gigante ciclópico de
Os Cantos é decifrado. Há unidade metodológica, mas a expressão de ideograma
reparte a poesia no sinal moderno de sua necessária condensação, uma questão
que chamo em Pound de aproveitamento, eficiência, o modo único de realizar Os
Cantos sem se exaurir num caminho infinito.
A Gestalt de Os
Cantos pode ser traduzida como um dos maiores monumentos fragmentários do
século XX, um cabedal de inventos, e no artesanato do verso, sob o paradigma
que Pound quer impor do ideograma, um jornal-digesto de vários tempos, um
epistolário de que a pena de Pound sempre foi abundante, podendo ser comparada,
no mesmo páreo de complexidade de realização, ao Finnegans Wake de James Joyce.
E Pound deixa sua
herança ideogrâmica a escritores como Mallarmé, Apollinaire e Joyce que,
simultaneamente, fizeram do fragmento moderno a subversão narrativa de que a
Modernidade ainda se encanta, coisa que se radicalizou com Godot de Beckett, no
teatro. A narrativa convencional é dilapidada por tais artistas, e a literatura
e o teatro modernos são o enredo desta veia experimental que coloca tudo pelos
ares com edifícios da Gestalt em seu estado de amálgama, de expressão complexa
que não devota muita estima pela cronologia.
Talvez o estado de
tensão que foi todo o século XX, vide a Guerra Fria e o nazismo, coloquem as
belas letras do sublime e narrativo à parte, com a urgência apocalíptica de
tudo abarcar na dimensão condensada de um tear mecânico e maníaco que agora vem
ao século XXI como uma ressaca deste assassinato do tempo que vivemos. Seria
esta narrativa linear morta? Pound, Joyce, Beckett, Apollinaire e quejandos
deram ao futuro a linha de um espectro fractal ao qual só há que continuar? A
questão se coloca, Pound fez o século XX com todo este grupo, e eles são
importantes, e o que se quer agora é traduzir esta experiência ou na via de sua
radicalização ou no resgate proporcional de uma cronologia que agoniza na época
do fragmento chamado internet. A plasticidade de Pound e Joyce, então,
anteciparam a subversão narrativa de que nós somos filhos. Só que há uma
consequência certeira, Mauberley, esteta, escravo do sublime, teria sua
penitência maior neste nosso século, Pound tentou salvá-lo já como Pound em Os
Cantos.
Pound, que apesar do
trabalho brutal que fez com Os Cantos, não era um artista ensimesmado, pois foi
responsável por colocar muitos escritores de valor na esfera do público e da
crítica. Vultos como Hemingway e T.S.Eliot devem muito de sua fortuna literária
devido a intervenção de Pound para seus caminhos. Daí se incluem também Yeats,
Joyce, Wyndham Lewis, William Carlos Williams, Cummings, Marianne Moore, etc.
Das mãos de Pound um
poema caótico como Waste Land, de Eliot, foi reduzido a quase metade de seu
tamanho original, forma em que foi publicado e celebrizado. O zelo poundiano
correspondia, neste passo, com o de Maiakóvski que, a propósito de Khliébnikov,
escrevia: “Depois da morte de Khliébnikov apareceram muitas notas e artigos em
diferentes revistas, tratando-o com alguns elogios. Li-os com repugnância.
Quando vão terminar, afinal, com essa comédia de cuidar das pessoas depois de
mortas? Onde estavam os que agora escrevem sobre ele quando Khliébnikov,
desprezado pela crítica, perambulava pelos caminhos da Rússia? ... respeitem
mais os vivos, ao invés de render-lhes homenagem com edições póstumas. É
preciso escrever artigos sobre os escritores enquanto estão vivos! Dar-lhes pão
em vida! Dar-lhes papel em vida!”.
E, para resumir a
história de Pound, ele foi (só) o responsável pela publicação de dois livros de
Joyce: Retrato do Artista Quando Jovem e Ulysses. Como declarou Wyndham Lewis,
“sem Pound o autor de Retrato do Artista Quando Jovem jamais teria emergido do
seu exílio na Europa Central, nem Ulysses e Finnegans Wake teriam sido
escritos.” Talvez o lema confuciano citado pelo próprio Pound “MAKE IT NEW”
(renovar) faz tanto sentido pela sua obra como por quem ele promoveu.
A amarga autocrítica
de Pound ao fim de sua vida, por sua vez, se deve à sua adesão ao fascismo.
Segundo o próprio: “Minhas intenções eram boas, mas enganei-me na maneira de
alcançá-las. Fui um estúpido. O conhecimento me chegou tarde de mais ... Muito
tarde me chegou a certeza de nada saber ...”. Estas certezas políticas e
econômicas proclamadas por Pound o levaram a um caminho de infortúnio. Foi
acusado de traição pelo governo americano, por ter feito, em 1941-42, uma série
de transmissões radiofônicas, em Roma, consideradas “contrárias ao seu dever de
lealdade para com os Estados Unidos”. Pound entregou-se às tropas
norte-americanas que invadiram a Itália em 1945, foi preso e metido numa jaula
durante três semanas, num campo de concentração para prisioneiros de guerra, em
Pisa. Tinha 60 anos. Trazido para a América, não chegou a ser julgado, por ter
sido considerado “mentalmente incapaz”. Foi então encerrado num manicômio
judiciário, onde viveu, durante 12 anos, poeticamente lúcido e produtivo, até à
sua final libertação, ocorrida em 1958.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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