Soa e reflete o espelho o prado
que na poesia estulta vira nobre.
Flechas em corpanzil fere o sangue,
e a paixão suscita este maquinário
que do cosmo vira o poema.
Levanto todas as esferas que circulam
nos vãos astronômicos, e as sombras
que exultam de sorte, estas estavam
já mortas em cirandas na caverna.
Levo o frontispício de uns baluartes
que no sonoro campo das flores
sucumbem com seus mantos rasgados
depois do pecado original.
Soa a capa dura do diamante e o carbono
que forma toda a montanha,
e o rosa que mora dentro
das estruturas floridas do
campo, estas que são poemas rotos
que dormem na mata,
são entidades do delírio
nas violáceas canções
do canoro que voa
depois ao silêncio
das horas sutis.
22/03/2017 Gustavo Bastos
quarta-feira, 22 de março de 2017
ANJO MISTERIOSO
Vento que vem de labor,
umedece a boca do sopro
com o calor de seu movimento.
Delícias do jardim florido,
vulto samsárico queima
como deve na geena.
Doira o espírito, o livre-arbítrio
calcado em nobres ambições,
que volteia e delineia
corpos sutis de paisagem.
Ermo o poema poente, leve e valente
tal o rouxinol que canta o espanto.
Flébil e exangue, os sopros
teriam mnemosyne
com as musas desesperadas,
oh, falsete como nota dissonante,
e os bichos ferozes que acordam
no apito das trombetas,
como o anjo que no mistério
fez morada.
22/03/2017 Gustavo Bastos
umedece a boca do sopro
com o calor de seu movimento.
Delícias do jardim florido,
vulto samsárico queima
como deve na geena.
Doira o espírito, o livre-arbítrio
calcado em nobres ambições,
que volteia e delineia
corpos sutis de paisagem.
Ermo o poema poente, leve e valente
tal o rouxinol que canta o espanto.
Flébil e exangue, os sopros
teriam mnemosyne
com as musas desesperadas,
oh, falsete como nota dissonante,
e os bichos ferozes que acordam
no apito das trombetas,
como o anjo que no mistério
fez morada.
22/03/2017 Gustavo Bastos
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Poesia
CANÇÃO DO OURO
O bosque canta em tons violáceos,
teu soturno campo de arauto,
a voz modulada de um melômano.
Melodia, em sons criados de lume
ao albor da aurora súbita, e que
de remansos a flor absorve.
Sorte, como és a dança macabra
em que o meu coração colapsa
de canção vindoura.
Eis, donde o canoro sopra o leme
com léguas de bruma santa e pó santo,
que de liames entre continentes
as fadas sucumbem como sereias.
Vertendo d´água o mel melodioso,
com sacos de fardos, com flertes
de enfado, com rimas de sal.
Ó bosque de bode encantado,
inquices e voduns
soprados em mitos campônios.
Leva o elmo com ermo encanto,
e se cansa o poeta, viajor d´strelas,
com a nuvem castiça de que o choro
e a lágrima padecem em película.
Ai, que do monte azul serve o
benquisto poema luz d´aurora,
e quente como o crepúsculo
é um tremor de terra.
Oceano, que da águia e do albatroz
faz sinfonia, o cisne e o pato
e as maçãs dançantes do veneno
de eva com volúpia e sarcasmo.
Como no bosque tens poeta
e melisma e miasma
e melodia.
Como no poeta que vês está
febricitando o sublime
com volúpia d´strelas,
o viajor que canta lira
em corações d´oiro.
22/03/2017 Gustavo Bastos
teu soturno campo de arauto,
a voz modulada de um melômano.
Melodia, em sons criados de lume
ao albor da aurora súbita, e que
de remansos a flor absorve.
Sorte, como és a dança macabra
em que o meu coração colapsa
de canção vindoura.
Eis, donde o canoro sopra o leme
com léguas de bruma santa e pó santo,
que de liames entre continentes
as fadas sucumbem como sereias.
Vertendo d´água o mel melodioso,
com sacos de fardos, com flertes
de enfado, com rimas de sal.
Ó bosque de bode encantado,
inquices e voduns
soprados em mitos campônios.
Leva o elmo com ermo encanto,
e se cansa o poeta, viajor d´strelas,
com a nuvem castiça de que o choro
e a lágrima padecem em película.
Ai, que do monte azul serve o
benquisto poema luz d´aurora,
e quente como o crepúsculo
é um tremor de terra.
Oceano, que da águia e do albatroz
faz sinfonia, o cisne e o pato
e as maçãs dançantes do veneno
de eva com volúpia e sarcasmo.
Como no bosque tens poeta
e melisma e miasma
e melodia.
Como no poeta que vês está
febricitando o sublime
com volúpia d´strelas,
o viajor que canta lira
em corações d´oiro.
22/03/2017 Gustavo Bastos
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Poesia
domingo, 19 de março de 2017
ANDY WARHOL E A POP ART – PARTE IV
“um tipo de artista profissional, com tino de manager”
DO CINEASTA
“UNDERGROUND” AO ARTISTA MUNDANO
Em 1963, ainda antes de as suas caixas Brillo ser criticadas,
e também antes de o seu painel mural Thirteen Most Wanted Men do New York State
Pavillon ter provocado escândalo, Andy Warhol comprou uma máquina de filmar e
um gravador e foi viver na 47ª Rua e, em Novembro de 1964, Leo Castelli,
juntamente com Robert Rauschenberg, organizava então, a primeira grande
exposição da sua obra, na qual Warhol tinha escolhido uma série de flores que
já tinha apresentado em Paris em janeiro, no que Warhol disse: “Eu pensei que
os franceses talvez gostassem de flores, por causa de Renoir e de outros.”
“Warhol tinha descoberto a imagem num catálogo de Botânica”, refere Gerard
Malanga. “Ele disse-me: Aqui tens, faz disto uma serigrafia.”
Warhol era um artista gregário, em torno dele se juntou um
grupo de pessoas que, aos poucos, foi povoando o seu apartamento, e ali ele
vivia temporariamente e se ocupava dos mais variados trabalhos, e na então
Factory, se trabalhava muito, a produtividade era intensa. A “Factory” não se
configurava como uma fábrica e nem como uma empresa industrial, mesmo com este
nome, ela poderia sim ser comparada a um atelier de artistas como Verrochio,
Leonardo da Vinci, Cranach, Ticiano, Rubens ou Rembrandt, e não saía nada dali
que não tivesse a aprovação de Warhol, e seus trabalhadores lhe serviam como
instrumentos do que ele veio a chamar de codificação de um conceito imperfeito
de “espírito do tempo”, o que incluía, por exemplo, o grupo musical Velvet
Underground, que começava a ensaiar numa parte do apartamento.
Por sua vez, os filmes de Warhol concentraram-se, de
imediato, em desenvolvimentos e dados elementares: “Sleep” (1963), o seu
primeiro filme de seis horas, apresenta um homem adormecido e a câmara passa
pelas várias partes do corpo. Na realidade, o filme tem apenas uma duração de
20 minutos, porque, tal como acontece em muitas das suas serigrafias, a
primeira sequência repete-se. “Empire”, cujo “cameraman” foi Jonas Mekas, apresenta
durante oito horas o orgulho de Manhattan, o Empire State Building, visto do
44º andar do Time-Life-Building. Por fim, o retrato filmado de Henry Geldzahler
apresenta durante 100 minutos o conhecedor de arte a fumar um charuto.
Tais filmes de Warhol colocavam ao avesso convenções do
cinema hollywoodiano, pois quebrava o paradigma narrativo de tal cinema, no que
se via, agora, sequências longas e maçantes, sem cortes, com planos e enquadramentos
que pouco variavam, rodado com a câmera Auricon, a qual proporcionava o
registro simultâneo da imagem e do som, resultando em diálogos sem nexo, frases
anódinas retratando a vida cotidiana, com um trabalho de câmera precário, com
um toque de amadorismo.
Mas, a aparente inépcia destes filmes era um estilo, e que
era calcado numa falta proposital de profissionalismo, numa subversão absoluta
de cânones narrativos, resultando num produto espontâneo e vivo. No entanto,
sem o cinema de Hollywood, não é possível conceber os filmes de Warhol que,
aproveitando os mitos daquele, se singularizam pela sua oposição consciente à
fatura especial hollywoodiana, e ao contrário deste cinema, cujo
profissionalismo visava produzir uma realidade ainda mais real que a própria, o
cinema underground americano queria documentar a realidade tangível com as suas
contradições e imperfeições, e à medida que Warhol aprendia a dominar o ofício,
os seus laços com o cinema de Hollywood estreitavam-se de forma paradoxal. Nos
filmes, Andy Warhol retomava os princípios estéticos das suas serigrafias, com
a repetição de imagens idênticas, cujo princípio norteador era a “imagem em
movimento”.
Mais tarde, no dia 3 de Junho de 1968, Valerie Solanis, único
membro da S.C.U.M. (Society for Cutting Up Men) perpetrava o funesto atentado à
pistola contra o artista. Depois de se ter submetido a uma grave operação, teve
que passar dois meses no hospital; as duas balas que o tinham atingido
atravessaram os pulmões, o ventre, o fígado, a vesícula e ferido na coxa.
“Sinto-me constantemente atormentado com a ideia de que, quando os loucos fazem
qualquer coisa, eles irão fazê-la novamente alguns anos mais tarde, sem se
lembrarem de já terem cometido esse ato, e julgarão, então, estar a fazer algo inteiramente
novo. Em 1968, fui atingido a tiro; é um fato de 1968. Mas aflige-se a ideia:
“Será que nos anos 70, alguém desejará repetir estes tiros? Eis uma outra
maneira de ser fã” (Warhol).
Uma visão verdadeiramente confrangedora das estruturas do
vedetismo, que revela os riscos a que está exposta uma estrela num mundo que
tem necessidade dela para assumir a sua existência. As palavras de Marlene
Dietrich ecoam ainda: “Fiquei para morrer com tantas fotografias.” Mais
frequente do que a morte física, como no caso de John Lennon, a morte psíquica
é uma consequência do vedetismo: não é a vedeta aquela aparição não material, feita
de sombras e de luz, sem direito a uma existência própria, uma estrela no
firmamento dos anseios humanos?
Enquanto Paul Morrissey se ocupava da produção
cinematográfica da “Factory”, Warhol colaborava ativamente com o grupo de rock
“Velvet Underground”, com o qual, em Abril de 1966, montou, na discoteca de
Nova Iorque “DOM”, um espetáculo multimídia de música, dança, iluminação,
projeção de dispositivos e filmes, em que participou a alemã Nico, cantora,
atriz e boneca moderna. No mesmo ano, organizou na Leo Castelli a sua última
exposição de obras “tradicionais”. Forrou as paredes a papel pintado, cujo
único motivo, ilimitadamente repetido, era uma cabeça e, como esculturas
flutuantes, apresentou almofadas de balão prateadas – as Silver Pillows. Em
1967, prestou homenagem a Marilyn Monroe com uma série de serigrafias que
reuniu em grupos de dez e, em Paris, na casa de Ileana Sonnabend, expôs a série
completa dos Thirteen Most Wanted Men. Neste mesmo ano, foi viver para Union
Square West, onde instalou também a “Factory”. Finalmente, na Expo`67 de
Montreal, apresentou seis auto-retratos: mesmo no plano óptico, a pessoa do
artista triunfava sobre a sua obra.
No ano seguinte, publicou um diário com Gerard Malanga, “The
Andy Warhol-Gerard Malanga Monster Issue”, assim como o romance “A”, a reprodução
exata de uma gravação de 24 horas dos barulhos e conversas na “Factory”. Em
1970, um cenário intitulado “Clouds” e destinado ao ballet “Rainforest” do
coreógrafo Merce Cunningham veio completar o seu inacreditável espectro
artístico. John Wilcock convenceu-o a editar uma nova revista e a “Inter/View”
tornou-se o porta-voz mais popular do universo Warhol.
Mesmo após uma entrevista no fim dos anos 60 em que Warhol
dizia que tinha abandonado o desenho, na realidade, ele interrompeu a sua
atividade como pintor apenas durante algum tempo. Com retratos do comunista
chinês Mao Tsé-Tung, iniciou no começo dos anos 70 um novo capítulo da sua
criação pictórica, quer sob o ponto de vista de conteúdo, quer da forma. Warhol
intensificou o aspecto manual do seu trabalho, acentuou o traço de pincel em
detrimento da parte impressa, introduzindo parcialmente pintura a óleo nas suas
serigrafias, e fez desaparecer a impressão de produção mecânica.
Mao tornou-se um símbolo, assim como Mick Jagger, o cantor do
grupo de rock Rolling Stones, que entrou também na galeria de cabeças célebres
de Warhol, ou Willy Brandt, e também Leo Castelli e Joseph Beuys e também os
heróis “falecidos” Franz Kafka, Sigmund Freud, Golda Meir e George Gershwin
que, com outros, foram reunidos, em 1980, na série Ten Portraits of Jews of the
Twentieth Century. O mesmo acontecendo com Goethe, Alexandre, o Grande e Lenin,
e com vista a eventuais retratos serigráficos, o artista fotografava com a
Polaroid a maior parte das personalidades que encontrava.
Naturalmente, há muito tempo que também Warhol se tinha transformado
numa superestrela dos media. Tendo em consideração este aspecto, executou nada
mais nada menos que seis séries diferentes de autorretratos e, em 1981
alistou-se mesmo entre os mitos americanos como Mickey Mouse, Uncle Sam e
Superman. Em contrapartida, Warhol, num trabalho em série, transformou o
Martelo e a Foice, emblema do comunismo, numa marca de fábrica – muito antes de
ser impresso em T-shirts.
E durante os trabalhos de restauração do quadro de Leonardo
da Vinci A Última Ceia, Warhol propôs ao público reproduções de substituição,
serigrafias em tela de formato grande e em versões diferentes. Com a série
Carros, celebrou a prestigiosa marca alemã Daimler-Benz. A catedral de Colônia,
os palácios do construtor real Luís II da Baviera, os espetáculos organizados
pelo arquiteto favorito de Hitler, Albert Speer, por ocasião do congresso do
Partido Nacional-Socialista em Nuremberg, faziam com que os motivos dos seus
últimos quadros estivessem constantemente a mudar, não se manifestando aqui
critérios claros de seleção.
A “Factory”, que ainda mudou de instalações várias vezes,
produzia incessantemente; a revista “Inter/View”, cujas quotas Warhol tinha
vendido, divulgava o seu universo semana após semana. A multiplicação pela
repetição era uma parte de sua filosofia. E no começo dos anos 70, passava 24
horas por dia, como um possesso, a registrar tudo no gravador; e na maior parte
das vezes, eram só ruídos. Guardava tudo o que lhe vinha parar às mãos. Queria
esticar o tempo até ao infinito. A morte surpreendeu-o, quando era já um mito.
FINAL E PRESENTE
Andy Warhol era um artista do seu tempo; porém não era um
revolucionário, mas conseguiu realizar importantes mudanças no mundo da Arte, e
se tornou o único artista autenticamente pop, acompanhando os ventos de uma
nova Arte Contemporânea, com iniciativas nem sempre dele, pois muitas vezes era
levado de roldão por impulsos vários. Warhol era uma espécie de antena que
captava como ninguém as aspirações da sociedade em que vivia, explorando a
consciência coletiva e gravando nela suas criações, com uma arte familiar e não
como algo desconhecido. Exceto a sua celebridade, Warhol de fato não inventou
nada, recriando e traduzindo o espírito de sua época.
Warhol não era um visionário ou um gênio ou uma pessoa
sofrida com a vida, mas sim um tipo de artista profissional, com tino de
manager, se utilizando da mídia, e que não recuava diante de nenhuma
adversidade, com aspectos pop e midiáticos que não deixava para trás o caráter
de subversão de sua arte, e graças a sua contribuição no mundo da Arte, Warhol
renovou o cenário, evitando os impasses e dilemas das vanguardas, e que
terminou com o tempo da Arte burguesa, fazendo implodir este conceito dominante
da Arte.
(Baseado no livro Andy Warhol de Klaus Honnef, editora
Taschen)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/33251/17/andy-warhol-e-pop-art-parte-4
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O LIVRO DE CESÁRIO VERDE – PARTE III
“E a preocupação social é a nota dominante da poesia de
Cesário Verde.”
CESÁRIO VERDE – O HOMEM
E A OBRA
A OBRA DE CESÁRIO VERDE
– CONTINUAÇÃO
A poesia do real de Cesário Verde tem também aspectos de
preocupações sociais, e neste ponto há um parentesco com a exaltação dos poetas
revolucionários, mas há uma diferença entre Cesário e estes poetas que é o fato
de os revolucionários terem um compromisso social em base livresca, colhida da
cultura geral de que se nutriam, enquanto a fonte de Cesário Verde era a
realidade vivida em seu cotidiano, com imagens reais das quais ele dá o seu
testemunho em seus poemas, frutos de uma observação direta. E a preocupação
social é a nota dominante da poesia de Cesário Verde.
A poesia de Cesário se configurava como algo inteiramente
novo no cenário da literatura portuguesa de sua época, e que tinha na mestria
do uso dos adjetivos uma de suas marcas, e isto no sentido de suas variadas
combinações, e nisto ele também não era superado por nenhum de seus
contemporâneos, com a nobre exceção de Eça de Queirós, mas este na prosa. O
caráter dos adjetivos na poesia de Cesário Verde é que os poemas ganhavam em
corpo e exuberância, na descrição exaustiva que o poeta fazia das situações que
tentava esboçar em seus poemas, estas que tinham, por sua vez, uma rara
qualidade estética, numa nova poesia do real, com acentos inéditos na
apresentação das características de tal real, resultando numa expressão
renovada para a poesia até então praticada, com uma novidade de imagens que
também eram de notável beleza, e outro trunfo, que era a sua exatidão e a
sobriedade de seus versos. No dizer de Antonio José Saraiva, Cesário Verde era
“tão exato como Gomes Leal era difuso, tão conciso quanto aquele era caudaloso”,
que segue dizendo: “de todos os poetas da chamada escola nova, Cesário foi o
único que conseguiu cortar com a retórica romântica, criando uma expressão
inteiramente nova, ajustada à expressão direta de um novo conteúdo”.
Na tentativa de entender a indiferença e a hostilidade com
que esbarrou a obra de Cesário em vida, podemos elencar fatores decisivos, como
o fato de o poeta não ter publicado nada em livro quando ainda vivo, e que veio
ainda com o fato de que sua carreira literária foi breve, pois a morte lhe
colheu quando o poeta contava apenas 31 anos. Outro fato é que o poeta esteve à
margem dos grupos literários então em voga, e que era fator decisivo para obter
menção e ser visto. Folheiem-se as obras de história da literatura, e podemos
constatar, e isso em todas as épocas, que os nomes que elencam como dignos de
menção, mesmo tendo atenção ao que se vai produzindo, sempre guarda lacunas,
muitas vezes fundamentais, podendo ocorrer que sejam ignorados e postergados
nomes de mérito e valor muito maiores do que muitos dos que ali figuram, seja
por falta de obras publicadas, como também pela ausência de filiação literária.
E Cesário é um destes casos, sem a proteção de nenhuma tertúlia, de nenhum
círculo, e que teve como resultado este ter vivido e morrido ignorado, se
tratando de um dos grandes poetas de toda a literatura. No que a posteridade,
nos versos ilustres de um Fernando Pessoa, na pele de Álvaro de Campos,
invoca-o como mestre: “Ó Cesário Verde, ó Mestre, / Ó do “Sentimento de um
ocidental”, sendo unânime hoje o reconhecimento amplo do talento de Cesário
Verde. No que não podemos dizer, contudo, que tal poesia não tenha defeitos,
aliás, como tudo na vida, e que nos coloca não numa posição de poeta imaculado,
mas como uma poesia que não teve seu desenvolvimento pleno, marcado pela
imaturidade de um poeta que morreu ainda jovem, repleta do excesso de
prosaísmo, qualidade e defeito ao mesmo tempo, com toda a ambivalência de tais
valorações. Mas seu valor hoje na História da poesia é inegável.
POEMAS:
O SENTIMENTO DUM
OCIDENTAL
AVE-MARIAS: O poema clássico de Cesário Verde se
divide magistralmente em quatro partes, e esta primeira tem o clima da rua e da
maresia, no que vem: “Nas nossas ruas, ao anoitecer,/Há tal soturnidade, há tal
melancolia,/Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/Despertam-me um desejo
absurdo de sofrer.”. O poeta em meio ao clima soturno, em que a noite cai,
sente dor, ou pior, o sofrimento, e a descrição urbana, dá os sinais de que o
poema se alimenta: “E os edifícios, com as chaminés e a turba,/Toldam-se duma
cor monótona e londrina./Batem os carros de aluguer, ao fundo,/Levando à via
férrea os que se vão. Felizes!/Ocorrem-me em revista exposições, países:/Madrid,
Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!”. O poeta tenta viajar pelo mundo num
esgar que é o poema, com o fog londrino, e mais os outros, que passam felizes,
enquanto o poeta agoniza com suas imagens, que vêm aos borbotões: “Embrenho-me,
a cismar, por boqueirões, por becos,/Ou erro pelos cais a que se atracam botes./E
evoco, então, as crônicas navais:/Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!/Luta
Camões no Sul, salvando um livro a nado!/Singram soberbas naus que eu não verei
jamais!”. O poema tem a luta de Camões, nas crônicas navais em que ele evoca os
heróis ao paroxismo de ressuscitá-los, eis a primeira parte em que se tenta
salvar um livro náufrago.
NOITE FECHADA: O poema então segue, nesta segunda
parte, e o som ecoa com febre de loucuras mansas: “Toca-se as grades, nas
cadeias. Som/Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!/O aljube, em que hoje
estão velhinhas e crianças,/Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!”. O
coração do poeta então aparece como um grande abismo: “À vista das prisões, da
velha Sé, das cruzes,/Chora-me o coração que se enche e que se abisma.”. E o
poeta então vê a História, com as igrejas e o clero, e com a imagem de um
inquisidor: “Duas igrejas, num saudoso largo,/Lançam a nódoa negra e fúnebre do
clero:/Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,/Assim que pela História eu me
aventuro e alargo.”. O épico toma a frente, com descrição vulgar de um poeta
que está inspirado: “Mas, num recinto público e vulgar,/Com bancos de namoro e
exíguas pimenteiras,/Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,/Um épico
doutrora ascende, num pilar!”. E a partida é dada, o poema continua seu trajeto
histórico, desta vez acordando a Idade Média: “Partem patrulhas de cavalaria/Dos
arcos dos quartéis que foram já conventos;/Idade Média! A pé, outras, a passos
lentos,/Derramam-se por toda a capital, que esfria./Triste cidade! Eu temo que
me avives/Uma paixão defunta!”. E a cidade lhe dá a ameaça da eclosão de uma
paixão defunta, e a poesia se esfacela em revolta: “E eu, de luneta de uma
lente só,/Eu acho sempre assunto a quadros revoltados;”.
AO GÁS: Na terceira parte, o poeta permanece
em seu périplo: “E saio. A noite pesa, esmaga.”. Mais uma vez a imagem da
noite, que aqui pesa sobre o poema, mas que lhe inspira, no entanto. E o poema
segue, agora descritivo, mais uma vez: “As burguesinhas do catolicismo/Resvalam
pelo chão minado pelos canos;/E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,/As
freiras que os jejuns matavam de histerismo.”. Uma imagem nada amistosa da vida
monástica, a histeria como efeito do jejum, na visão do poeta, que segue: “E eu
que medito um livro que exacerbe,/Quisera que o real e a análise mo dessem;/
Casas de confecções e modas
resplandecem;/Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe./Longas descidas! Não
poder pintar/Com versos magistrais, salubres e sinceros,/A esguia difusão dos
vossos revérberos/E a vossa palidez romântica e lunar!”. O poeta bem queria
pintar todas as imagens, e o livro que exacerba, na sua biografia, que em vida
nunca veio a lume, mas o poeta insiste: “Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes/Os
candelabros, como estrelas, pouco a pouco;”. Mas a sua vontade férrea vai se
minando, a exaustão dá as caras, e o poeta entra em autocomiseração: ““Dó da
miséria! ... Compaixão de mim! ...”/E, nas esquinas, calvo, eterno, sem
repouso,/Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,/Meu velho professor nas
aulas de Latim!”.
HORAS MORTAS: O poema, nesta parte derradeira, tem
o poeta enlevado por uma quimera: “O teto fundo de oxigênio, de ar,/Estende-se
ao comprido, ao meio das trapeiras;/Vêm lágrimas de luz dos astros com
olheiras,/Enleva-me a quimera azul de transmigrar.”. O poeta prossegue com
visões de angústia: “Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,/E os olhos dum
caleche espantam-me, sangrentos.”. E o poema segue com uma esperança vã, com a
luta poética entre a morte e a eternidade: “Se eu não morresse, nunca! E
eternamente/Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!”. A busca da
perfeição, típica de quem não entendeu o fato fissurado e estilhaçado da vida,
tem nesta rachadura o tormento que vem a seguir: “Mas se vivemos, os
emparedados,/Sem árvores, no vale escuro das muralhas! .../Julgo avistar, na
treva, as folhas das navalhas/E os gritos de socorro ouvir estrangulados.”. A
imagem do estrangulamento é a falta de ar, e o poema ainda se fia em uma triste
canção alcoólica, que segue: “Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as
pernas,/Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.”. E o fel e a dor, o
imoral, a tosse e o fumo, em conjunto formando a massa irregular do poema, em
que a dor humana luta contra uma barreira sinistra nesta busca de libertação,
que é a imagem do horizonte que tenta o amplo a todo tempo: “Por cima, os
imorais, nos seus roupões ligeiros,/Tossem, fumando, sobre a pedra das sacadas./E,
enorme, nesta massa irregular/De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,/A
Dor humana busca os amplos horizontes,/E tem marés de fel como um sinistro mar!”.
POEMAS:
O SENTIMENTO DUM
OCIDENTAL
A Guerra Junqueiro
I
AVE-MARIAS
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba:
E os edifícios, com as chaminés e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
II
NOITE FECHADA
Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos;
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções retas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas,
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados;
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
III
AO GÁS
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguesinhas do catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
Num cuteleiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos revérberos
E a vossa palidez romântica e lunar!
Que grande cobra, a lúbrica pessoa
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
E aquela velha de bandós! Por vezes,
A sua traine imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus meclemburgueses.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós de arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
“Dó da miséria! ... Compaixão de mim! ...”
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!
IV
HORAS MORTAS
O teto fundo de oxigênio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas! ...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir estrangulados.
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, os imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando, sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés de fel como um sinistro mar!
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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