PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

EDWIN SHNEIDMAN, O PAI DA SUICIDOLOGIA

“Shneidman vai além dos famigerados marcadores biológicos, e centraliza o foco do suicídio como um fator de fracasso da sociedade”

Edwin Shneidman nasceu em York, em 1918, e morreu em Los Angeles, em 2009. Este estudioso, que é considerado por muitos como o pai ou o fundador da Suicidologia, foi um psicólogo de formação, e como um dos expoentes principais na investigação intelectual e empírica na área do suicídio e da tanatologia, trouxe muitas contribuições em caráter pioneiro que culminou nas ações preventivas contra o ato suicida.

Shneidman foi um dos pioneiros do Centro de Prevenção do Suicídio de Los Angeles e da Associação Americana de Suicidologia, foi professor na Universidade da Califórnia,  e ajudou na fundação da revista “Suicide and Life-Threatening Behavior”. As obras principais de Shneidman são : “The definition of suicide”, de 1985, “Suicide as psychache”, de 1993, e “The suicidal mind”, de 1996.

Shneidman partiu para as suas investigações sobre o fenômeno do suicídio tendo como uma das inspirações as teorias da personalidade de Henry Murray, e Shneidman então consolidou a concepção de que o suicídio seria o resultado final da confluência de um máximo de dor, um máximo de perturbação e um máximo de pressão, uma espécie de modelo cúbico que ficou conhecido como o “cubo suicida de Shneidman”.

Neste cubo as variáveis podem aumentar ou diminuir a sua força, o que leva a especificar do que se trata tais variáveis. Ou seja, quando Shneidman se refere à dor, ele fala deste tipo de dor psicológica, que se refere à frustração pela falta das necessidades básicas psicológicas, e que se constitui como o fator central do fenômeno suicida.

No que se refere à concepção sobre a perturbação, esta engloba todo tipo de distúrbio, que podem ser exemplificadas pelas distorções cognitivas e as auto-mutilações. A concepção sobre a pressão se refere ao que está fora e dentro do indivíduo, que está relacionado às vivências e aos acontecimentos da vida do indivíduo.

Shneidman coloca a intencionalidade do suicida em três aspectos que são a morte intencional, que implica num protagonismo consciente do suicida, um ato deliberado de se matar, temos a morte não intencional, em que pode ocorrer uma morte auto-infligida, mas em caráter acidental, como o disparo de uma arma de fogo de modo involuntário, temos também, por fim, a morte subintencional, com um protagonismo indireto ou inconsciente do indivíduo, como ocorre, por exemplo, num acidente automobilístico violento.

As 10 características mais comuns aos suicidas, na classificação de Shneidman, tem definições como : Propósito – procura de solução, Objetivo – parar a consciência, Estímulo – dor psicológica intolerável, Stress – frustração pela falta das necessidades psicológicas, Emoção – desespero-desesperança, Estado cognitivo – ambivalência, Estado perceptivo – constrição, Ação – fuga, Ato interpessoal – comunicação de intenção, Consistência – de acordo com estratégias de “coping” mal adaptativas do passado.

Shneidman reúne os elementos que podem contribuir para o ato suicida, e que é seu ensaio de um cenário suicida explicativo, que coloca então o sentimento de dor intolerável, que se refere a necessidades psicológicas básicas que foram frustradas e não realizadas, as atitudes de auto-depreciação, baixa auto-estima, que denotam uma auto-imagem que sucumbe ao não suportar uma dor psicológica intensa e profunda.

Ainda temos a incapacidade do indivíduo de dar conta de sua vida prática, de suas tarefas diárias, também incluindo a sensação de isolamento, e o desespero e a desesperança, em que o individuo já não vê o que fazer para sair de sua situação difícil, ainda temos a fuga, em que a cessação da existência é o que resta como solução para uma dor intolerável.

Em 1987, Shneidman escreve : “ No Ocidente, o suicídio é um ato consciente de auto-aniquilação, melhor compreendido como uma doença multidimensional num indivíduo carente que acredita ser o suicídio a melhor solução para resolver um problema”.

Em 1996, por sua vez, Shneidman vai além dos famigerados marcadores biológicos, e centraliza o foco do suicídio como um fator de fracasso da sociedade. Em 2001, ele afirma : “ O suicídio é um drama da mente … quase sempre relacionado com a dor psicológica, a dor das emoções negativas”.

Shneidman estará também na elaboração do que será chamado de autópsias psicológicas, uma metodologia de investigação empírica sobre casos de suicídio. Este termo surgiu então em 1958, autópsia psicológica do suicídio se ligando ao esclarecimento de mortes após a realização da autópsia médico-legal, numa colaboração entre médicos-legistas e a Psiquiatria e a Saúde Mental.

Saindo de Los Angeles para o mundo, esta metodologia de investigação reuniu dados mundiais que nos trouxeram a realidade de, nos referindo a estudos que envolveram milhares de suicidas, a existência de patologia psiquiátrica em cerca de 90% dos casos e depressão em mais de 50% dos suicídios.

No que se refere ao cuidado da família dos suicidas, a intervenção de Shneidman foi designada pelo próprio como “pósvenção”, que é, então, a intervenção específica sobre os familiares e amigos do suicida, sobretudo no auxílio aos processos de luto, no direcionamento de sua resolução.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/o-pai-da-suicidologia

 

 

 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

MARÍLIA GARCIA NO CONTEXTO DA POESIA CONTEMPORÂNEA

“a ideia de “corrente literária” se dilui neste novo milênio como uma diversidade de tendências”

No início dos anos 2000 a poesia brasileira ampliou a sua voz numa miríade dialógica que é reflexo direto de um mundo em que há mais informação circulando e um acesso inaudito às fontes diversas da cultura.

Esta amplitude em poesia nos coloca numa perspectiva nova em que a ideia de “corrente literária” se dilui neste novo milênio como uma diversidade de tendências e a operação linguística destas influências se direcionando para uma complexidade e uma ambiguidade em sua possível definição. Isto é, cada poeta pode nos aparecer com uma personalidade própria.

Por conseguinte, neste novo milênio surgiram novas propostas poéticas que juntam referências nacionais e internacionais, em que podem aparecer novas vozes poéticas como as de Angélica de Freitas e Ricardo Domeneck.

Temos também poetas que transitam entre a academia e as publicações independentes, como Annita Costa Malufe e Marcos Siscar, que trouxeram referências diversas da atualidade, muito se devendo aos exercícios de tradução e de pesquisa teórica.

Nesta amplitude toda, não temos apenas a referência de uma pesquisa sobre atualidades, mas um cabedal de influências que remontam ao passado, reconstituindo este passado, seus cânones, por exemplo, com nomes que haviam sido ofuscados em sua própria época ganhando uma nova leitura e um novo status na poesia como um todo.

Aqui, nesta nova poesia dos anos 2000 em diante, se abrem estratégias e abordagens poéticas bem abertas em suas possibilidades. As referências aqui, portanto, são amplas no tempo e na geografia, envolvendo tempos diversos e países diversos nesta pesquisa poética contemporânea.

Marília Garcia, neste novo contexto poético, produz um material com uma voz poética híbrida, na qual se mesclam a coloquialidade e experimentos de linguagens, em camadas sobrepostas. A poesia de Marília flui neste estilo complexo de composição, com temas e termos que vão e retornam. Leit-motivs e temas-valise, obsessões de escritores, aqui em Marília como produto de sua pesquisa e de sua feitura dos poemas.

Tentar desvendar o que está oculto na banalidade do mundo objetivo pode ser este sentido procurado em Câmera Lenta, este livro que sugere a ideia de câmera, um objeto que possui uma lente que substitui a experiência direta da visão, um mundo sensorial que aqui se acopla a um artefato, e temos a experiência da realidade aqui mediada pelos artifícios.

Entender a poesia como uma espécie de resgate da percepção humana não impede de colocar esta linguagem, a poesia, em seu próprio questionamento, se confrontando com seu estatuto, e a câmera de Marília tenta captar como artefato um modelo de poesia que faz a mediação entre o sensorial e o mundo artificial.

Tendo a ideia de velocidade, obsessão de vanguardas do início do século XX, como o Futurismo, por exemplo, esta aparece em Marília Garcia se ligando com meios de transporte como  aviões, helicópteros, trens, automóveis, caminhões, marcando toda a construção da voz poética produzida em Câmera Lenta.

O deslocamento que evoca a ideia de velocidade e, talvez, de instantaneidade, marca toda uma literatura que veio após a Revolução Industrial, e neste livro Câmera Lenta da poeta Marília Garcia, os meios de transporte são os representantes deste novo mundo tecnológico e veloz, com todas as ameaças que isto acarreta, como ruídos ensurdecedores, acidentes e terrorismo.

Temos toda uma gama de operações de perigo iminente e uso deste conhecimento para a guerra, por exemplo. O que no Futurismo, como citei, era motivo de glória, a velocidade e a guerra, numa espécie de visão pré-fascista, a velocidade aparece aqui em Marília Garcia, com seus artefatos, como meio de percepção em Câmera Lenta, em seus poemas experimentais e coloquiais, ao mesmo tempo.

POEMAS :

DESCREVA : LONGILÍNEA : Este poema começa a sua descrição, a escrita é complexa e opera mediante colocações que não definem, abrem um campo de especulação em aberto, no que temos : “de lá, ele diz que um cataclismo é algo/que pode ser estendido/indefinidamente” (...) “escreva isso, descreva,/ele diz e eu só penso/em como dobrar a/esquina sem cair,/em como seguir pela beira/num lugar sem parede, num lugar em que/a pergunta certa deveria ser :/você tem tempo?”. A ideia da parede, o tempo, uma confrontação entre a ideia de lugar, de limitação, e a descrição como esta tentativa do poema de captar algo, e logo vem o flerte de Marília Garcia com meios de transporte, o avião, aqui, no que vem : “tomar o avião à noite/numa cidade em que noite/significa apenas/noite./e depois?/descreva escuro, ele diz.”. Novamente o confronto com o tempo e todas as suas demandas, no que temos : “dias dias dias,/um depois do outro e você tem sempre que/recomeçar. naquele dia, acordei/com o som dos helicópteros/e li uma frase :/há um ano ela olhava o mar desta janela/aqui os sons da fala/se intercalam com/os helicópteros/mas ele não diz nada,/só escreve :/descreva isso agora”. O imperativo da descrição é o desafio da coda e de todo o poema.

DESCREVA : PAREDE : O poema parte da parede, de sua composição, e segue rumo à lataria do avião, o cinzento, o mundo moderno, no que temos : “queria falar da parede/neste lugar./descreva, ele diz,/escreva sobre como foi/chegar ali –/mas antes de chegar tinha o cimento/e o cinzento da lataria do avião.”. A altura, o avião e o que ele evoca, esta sensação de estar no alto, no que temos : “o pior de estar no alto é ver os reflexos/luminosos no aço/“acabamos de atravessar/10 mil pés de altura””. A ideia de dirigir e sua descrição, no que vem : “dirigir é sempre perigoso/por causa dos bichos que atravessam correndo/que atravessam os anos que vão passando/que atravessam esse estado de sítio/descreva, ele diz,/escreva o que aconteceu/com a gente.”. O mundo moderno, aqui para a poeta como sensação futurista, no que temos : “- já reparou que as cidades são velhas/ou futuristas?/estou no 20° andar de um prédio/que dá para uma antena.” (...) “quando cheguei, pensei que fosse um ano/no futuro com tantos arranha-céus/prateados jogando luzes por todo/canto, mas a cidade é baixa por causa/dos terremotos, é cheia de ruínas/e construções de pedra vermelha,/todas as paredes de um tom/avermelhado, vermelho-escuro/e fechado.” (...) “o fechamento/- não são tijolos,/são pedras de origem vulcânica./tezontle.”. A ideia toda de modernidade e de seus materiais, tudo o que compõe matéria destes artefatos e construções, o poema que lida com esta objetividade descritiva, o trabalho aqui da voz poética de Marília Garcia em sua reflexão e miríade de sensações.

TERREMOTO : O  terremoto aqui no poema tem seu caráter tectônico, mas também perturba a sensação do tempo, no que temos : “um terremoto replicando/por vários dias,/à noite as luzes de néon paradas/e, na manhã seguinte,/a tremedeira outra vez./você pensa que o futuro/ainda não chegou, mas/de repente o terremoto/replicando faz tremer a língua/os dentes e tudo o que é/matéria.”. O terremoto como transformação radical : “era como um país virando mar/um terremoto replicando/sem parar.”. O poema entra num circuito especulativo e de imagens bizarras, no que temos : “como conciliar o/inconciliável?, pergunto/no momento de/maior/desligamento e/ele responde :/- agora o seu wasabi/tem radioatividade.” (...) “de um verde quase prata,/era como a luz batendo no mar/bem na hora em que o chão –/e tudo recomeça.”. Ao fim, este poema lida com sua inconclusão, o imponderável é seu terremoto, no que temos : “quero pedir/silêncio, mas não sei lidar/com o imponderável./um dia acordo/e não espero/mais resposta.”.

AQUI COMEÇA O LOOP : O poema flerta aqui com a imagem bizarra que abre sua ideia, no que vem : “para ver no escuro,/uma mulher injetou nos olhos/um colírio feito da mesma substância/que existe nos olhos dos peixes/que moram no fundo do mar.”. A imagem de ver na escuridão e tudo o que isto implica, no que temos : “no dia 1,/ela disse :/“aqui começa o loop”/e aquele era o começo.”. O loop, que intitula o poema, e esta ideia de começo e recomeço, no que vem : “no dia 2,/veio à casa uma jovem./olhou as geringonças no escuro/e disse :/noite americana./eu perguntei : o quê?/“eu tinha quatro anos/e a guerra tinha acabado de começar””. Se sucedem os dias em estrofes, e a ideia de começo que reverbera, em seu loop, recomeço, no que vem : “no dia 3,/estou sentada num trem/e penso : como se começa uma conversa/com alguém?” (...) “no dia 4,/leio :/“o estômago dos polvos/é assombroso”/esse era um dos começos/e eu me lembro do fundo do mar.”. A sucessão, a repetição, e o que vem depois, no que temos : “ele me diz :/“coisas acontecem depois”/e era uma espécie de deixa./você pensa que é como/o fim da linha, como chegar atrasado/sem saber o que fazer para consertar/o engano./alguma coisa acontecerá depois,/mas por enquanto/sabe que acabou./precisa fazer as malas, cruzar/o mapa para voltar./precisa se lembrar das regras :/não pular as etapas e seguir os fatos/numa sequência ordenada.”. A sabedoria da sucessão no tempo e suas etapas, sua sequência natural, sem pular ou fazer movimentos desordenados, a ordem do tempo em sua impassível sucessão que todos obedecem sem saber, uma espécie de entidade onisciente, o tempo que tudo sabe e que dá a sequência de seu movimento impassível, e nós lhe somos os devedores de suas lições, e o poema se encerra : “você morde a cabeça do violão com força :/os dentes na madeira/ressoam e o corpo/é continuação do som,/a caixa craniana vibra/com o movimento/e chega-se ao fim/pelo contato.”.

POEMAS :

 

DESCREVA : LONGILÍNEA

 

de lá, ele diz que um cataclismo é algo

que pode ser estendido

indefinidamente. e de repente

estou num lugar

que se escreve

com s.

 

escreva isso, descreva,

ele diz e eu só penso

em como dobrar a

esquina sem cair,

                           em como seguir pela beira

num lugar sem parede, num lugar em que

a pergunta certa deveria ser :

você tem tempo?

 

tomar o avião à noite

numa cidade em que noite

significa apenas

noite.

e depois?

descreva          escuro, ele diz.

nessa língua tudo poderia

ser escuro ou vacilar.

dias dias dias,

 

um depois do outro e você tem sempre que

recomeçar. naquele dia, acordei

com o som dos helicópteros

e li uma frase :

há um ano ela olhava o mar desta janela

aqui os sons da fala

se intercalam com

os helicópteros

(mas ele não diz nada,

só escreve :

descreva isso agora).

 

DESCREVA : PAREDE

 

queria falar da parede

neste lugar.

descreva, ele diz,

escreva sobre como foi

chegar ali –

                       mas antes de chegar tinha o cimento

e o cinzento da lataria do avião.

não posso entrar nesta máquina que

parece trem de carga e que lembra

a guerra.

 

o pior de estar no alto é ver os reflexos

luminosos no aço

“acabamos de atravessar

10 mil pés de altura”,

ouve o piloto dizer e não sabe

quais são os sinais.

chegamos à metade do caminho

e talvez já possa parar de

respirar, pensa.

eles jogam sal na rua

ouve a senhora ao lado dizer

para andar sobre a neve

 

dirigir é sempre perigoso

por causa dos bichos que atravessam correndo

que atravessam os anos que vão passando

que atravessam esse estado de sítio

 

                                               descreva, ele diz,

escreva o que aconteceu

com a gente.

 

- já reparou que as cidades são velhas

ou futuristas?

estou no 20° andar de um prédio

que dá para uma antena.

quando cheguei, pensei que fosse um ano

no futuro com tantos arranha-céus

prateados jogando luzes por todo

canto, mas a cidade é baixa por causa

dos terremotos, é cheia de ruínas

e construções de pedra vermelha,

todas as paredes de um tom

avermelhado, vermelho-escuro

e fechado.

- você quis dizer “tijolos”?

ele pergunta quando

tento explicar o que são

paredes vermelhas determinando

o fechamento

                            - não são tijolos,

são pedras de origem vulcânica.

tezontle.

 

TERREMOTO

 

um terremoto replicando

por vários dias,

à noite as luzes de néon paradas

e, na manhã seguinte,

a tremedeira outra vez.

você pensa que o futuro

ainda não chegou, mas

de repente o terremoto

replicando faz tremer a língua

os dentes e tudo o que é

matéria.

 

por mais que use palmas

para cobrir os ouvidos,

a ternura – o que você quer dizer? –

aliás, a tremura chega

arrastando tudo.

era como um país virando mar

um terremoto replicando

sem parar. se as réplicas consistem

em tremedeiras, e se uma língua é desenhada

fora das linhas,

como conciliar o

inconciliável?, pergunto

no momento de maior

 

desligamento e

ele responde :

- agora o seu wasabi

tem radioatividade.

essa cor brilhante,

de um verde quase prata,

era como a luz batendo no mar

bem na hora em que o chão –

e tudo recomeça.

 

quero pedir

silêncio, mas não sei lidar

com o imponderável.

um dia acordo

e não espero

mais resposta.

 

AQUI COMEÇA O LOOP

 

para ver no escuro,

uma mulher injetou nos olhos

um colírio feito da mesma substância

que existe nos olhos dos peixes

que moram no fundo do mar.

 

no dia 1,

ela disse :

“aqui começa o loop”

e aquele era o começo.

ficava no escuro            sublinhando as palavras

em vermelho

e recortando os começos.

o primeiro era este :

“aqui começa o loop”

 

no dia 2,

veio à casa uma jovem.

olhou as geringonças no escuro

e disse :                                   noite americana.

eu perguntei : o quê?

“eu tinha quatro anos

e a guerra tinha acabado de começar”

 

no dia 3,

estou sentada num trem

e penso : como se começa uma conversa

com alguém?

estava nisso quando ele disse

de qual terminal sai o seu voo?

e eu perguntei : o quê? 

 

no dia 4,

leio :

“o estômago dos polvos                  é assombroso”

esse era um dos começos

e eu me lembro do fundo do mar.

você sabia que as baleias

se comunicam por

ultrassons?

- mas e os olhos? você lembra

dos olhos das baleias?

voltemos, por favor,                     agora

voltemos lentamente

para o começo :

 

para ver no escuro

uma mulher injetou nos olhos

um colírio feito da mesma substância

que existe nos olhos dos peixes que moram

no fundo do mar.

 

aqui já passamos da metade

e estamos

 

quase no fim.

os dedos seguem as teclas no mesmo ritmo

mecânico, seguem o fio

sem voltar atrás :

 

um dia,

ele me diz :

“coisas acontecem depois”

e era uma espécie de deixa.

você pensa que é como

o fim da linha, como chegar atrasado

sem saber o que fazer para consertar

o engano.

                       alguma coisa acontecerá depois,

mas por enquanto

sabe que acabou.

precisa fazer as malas, cruzar

o mapa para voltar.

precisa se lembrar das regras :

não pular as etapas e seguir os fatos

numa sequência ordenada.

 

no último dia,

lê as instruções em voz

alta :

                              “o som só pode existir se ele ressoa

com um certo corpo”.

você morde a cabeça do violão com força :

os dentes na madeira

ressoam e o corpo

 

é continuação do som,

a caixa craniana vibra

com o movimento

e chega-se ao fim

pelo contato.

 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  https://www.seculodiario.com.br/cultura/marilia-garcia-no-contexto-da-poesia-contemporanea