PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O MUNDO SUBTERRÂNEO

Texto: A alegoria da caverna – A República (514a-517c)
Sócrates: Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de
educação que ela recebeu ou não, de acordo com o quadro que vou
fazer. Imagine, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea
em forma de caverna. A entrada se abre para a luz em toda a largura
da fachada. Os homens estão no interior desde a infância,
acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem
mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja
diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao
longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que
sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um pequeno muro,
semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre
eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e
apresentam o espetáculo.

OS ESTUDANTES

Um grupo de estudantes do Rio de Janeiro, da PUC da Gávea, resolvem fazer uma viagem para a Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo, localizada no Tocantins, era um grupo de seis estudantes universitários, todos calouros de Biologia, quatro homens e duas mulheres, destes tinha apenas um casal formado, Henrique e Helena, e que eram os líderes de tal “expedição maluca”, como eles estavam chamando a viagem. A tal “expedição maluca” não tinha tal título por acaso, pois Henrique e Helena, junto com Marília, e mais Paulo, Fabiano e Nicholas, eram como se dizia usuários de maconha, sendo que Henrique tava numas de LSD, mas só ele, já que todo mundo tinha medo, e junto com eles isopores com vodka Absolut e Grey Goose, para tomar quente mesmo, sem refrigeração, na talagada que era uma competição de jogo de cartas que quem perdia bebia um copo americano cheio com uma talagada só, e se vomitasse, tinha que pagar uma prenda inventada pelo participante que estivesse à sua direta.
Certo que a “expedição maluca” não era ainda batizada só por ter vodka e jogo de cartas com desafios ao bom senso, mas por ser uma ideia concebida por Henrique, que já tinha ido na Ilha do Bananal dois anos antes, com dois primos seus, eles quase se perderam nos interiores da Mata do Mamão, conhecida por ter um grupo de índios não-contactados, os Cara-Preta, na parte sul da Terra Indígena Inãwébohona, não viram os tais índios, mas Henrique disse que passou seis horas delirando de ácido vendo uma caverna que emitia uma luz azul cobalto enfumaçada na noite profunda em que ele acampou por lá. A Terra Indígena que era conhecida por ser também habitada pelos índios da etnia Javaé. De manhã, um vaqueiro apareceu e disse para Henrique e seus dois primos sumirem dali, pois havia índios armados com machados roubados dos brancos, um grupo de assaltantes, e uma caverna com habitantes do outro mundo. No que os três acharam que aquele vaqueiro era mais doido do que eles, mas decidiram sair da mata e voltar no dia seguinte para o Rio de Janeiro.
Os estudantes, então, desta vez, liderados pelo lunático e brilhante Henrique e a elétrica Helena, saem do Rio de Janeiro de avião até Palmas, aonde pegam um ônibus e um barco até a Ilha do Bananal, era janeiro, pleno verão, eles tinham acabado de concluir o primeiro período, e eram todos da mesma turma, Henrique, por sua vez, já tinha lançado o desafio de que eles entrariam na Mata do Mamão para achar os Cara-Preta, única tribo isolada que restava no estado do Tocantins. Todos acharam aquilo um blefe de Henrique, mas acabou que Nicholas, meio tonto de Absolut, percebeu que tudo era muito sério e calculado, isto logo quando chegou com todos na ilha e Henrique disse que tinha uma bússola, um mapa e um GPS, e então Paulo riu e disse que mesmo assim não fazia muito sentido se embrenhar na mata com índios selvagens e vaqueiros malucos falando de cavernas misteriosas, mas que acampar dentro da mata para jogar cartas e tomar vodka valia a pena, contudo.
Eles chegam até o município de Lagoa da Confusão, todos com mochilas enormes e coloridas e isopores lotados de vodka. No primeiro dia ficam numa pousada, lá fazem uma festinha na piscina com vodka, vão até a rua para ver o movimento, e fumam maconha e skank, Henrique tinha uma cartela com vinte ácidos, pretendia tomar tudo até antes de retornar ao Rio de Janeiro, e toma a famosa bicicletinha quando bate meia-noite, nada na piscina, e depois vai perambular só ele e Helena pelo município, Helena compra umas miçangas e colares, Henrique compra um bong com uma cara de diabo, enche o bong de vodka e acende um haxixe, voltam para a pousada depois de ver o sol nascer, e Henrique dorme que nem uma pedra na varanda da pousada numa rede toda branca. Nicholas acorda cedo e vai para a piscina, Paulo acorda dez da manhã, e o resto levanta ao meio-dia, a pousada não tinha TV, nem frigobar e nem café-da-manhã, era comandada por um velhinho com cara de mau e simpático ao mesmo tempo, meio descendente de índio e com uns mulets já tomados pelas cãs, óculos de grau estilo Buddy Holly, sua esposa, uma mulher de uns quarenta anos, enxuta, mas caladona, que ficava na recepção ouvindo rádio com música rural antiga. O velhinho se chamava Benedito, e sua esposa curiosamente Benedita.
Henrique e Nicholas adoram o velhinho e também ouvem dele histórias fantásticas da Mata do Mamão, a mesma história contada pelo vaqueiro contada a Henrique dois anos antes, mas com mais alguns detalhes de uns habitantes azuis da caverna, dos Cara-Preta e ainda umas coisas de saci e lobisomens, no que Henrique, que achava que era meio maluco, se sentiu um amador diante da imaginação febril do senhor Benedito. O velhinho com cara de mau, pele enrugada e dourada, também tinha um senso de humor próprio e se admirou quando Henrique e Nicholas disseram que eles iriam acampar dentro da Mata do Mamão, no que Benedito disse que eles eram malucos, e Henrique e Nicholas pensaram que a maluquice era do velhinho com narrativas para assustá-los, os dois levaram por menos tais histórias, e se de fato havia smurfs na floresta, eles tinham vodka e maconha para oferecer àqueles seres fantásticos.
Eles ainda ficam no dia seguinte no município da Lagoa da Confusão, e Helena convence o grupo a visitar no dia seguinte, já na Terra Indígena Inãwébohona, a tribo da etnia Javaé. Sabendo disso, o velhinho Benedito, que havia simpatizado muito com o grupo, disse que era neto de um membro da tribo com uma branca aventureira que depois sumiu no mundo e deixou seu pai aos cuidados de um casal de brancos em Goiás Velho, local onde Benedito nasceu, mas que depois de se aposentar de um trabalho exaustivo de bancário, comprou a pousada, disse que os levaria para a tribo, pois ali viviam uns primos seus, e ele conhecia bem uma parte da tribo, então eles passam uma tarde com a etnia Javaé, e ouvem lendas de toda sorte, e novamente, na tradução que Benedito fazia do que o pajé falava, aparece os tais seres azuis da caverna, e os Cara-Preta eram, contudo, mais temidos do que os tais seres, pois o pajé dizia que havia um mundo paralelo debaixo da terra, só acessível por portas de luz, e Henrique então tinha cada vez mais certeza de que a “expedição maluca” tinha que ser um mergulho sinistro no coração da Mata do Mamão.
Eles ficam em outra pousada nesta noite, e na manhã seguinte pegam suas mochilas, seus isopores de vodka, e vão acampar primeiro na entrada da Mata do Mamão, Henrique e Nicholas saem do acampamento ainda pela manhã e fazem uma primeira inspeção pela mata, não veem nada, e Henrique logo conclui que todos que moravam ali perto eram pirados com tais histórias que tinha ouvido, e que só restaria para eles carteado e vodka, numa competição que iria varar a noite, que naquele verão era repleto de mosquitos e barulhos de coruja. Helena se junta à Marília, e as duas vão atrás de Henrique e Nicholas, que voltam com uma Grey Goose e dizem que não havia nada demais lá para dentro da mata, que os bichinhos azuis poderiam ser apenas vaga-lumes, e que Henrique tomaria ácido para ver melhor tudo ali, pois tinha certeza de que era tudo maluquice de índio todas aquelas histórias, que o vaqueiro apareceria de novo para assustá-lo com aquele blá blá blá todo, mas que a mata era deles, e o acampamento o centro daquele mundo.
Helena fica com uma pulga atrás da orelha, e como era uma pilha, decide ir ela sozinha para dentro da mata com uma lanterna madrugada adentro, todos ficam preocupados, mas Helena, além de ser uma pilha, também era uma onça e ninguém questionou suas intenções, ela tinha uma ideia na cabeça de que veria aonde estavam os tais Cara-Preta e de que seria para os tais índios dizerem para ela quem eram os bichinhos azuis e aonde ficava a caverna maluca, se tinha porta ou se vivia trancada, sendo aberta só em noites de lua cheia. Helena fica a madrugada toda perambulando pela Mata do Mamão e acaba se perdendo dentro da floresta, amanhece e ela não retorna, Henrique e Nicholas, junto com os outros, vão atrás de Helena, pois já sabiam que ela havia se perdido na mata, ficam o dia todo procurando Helena e nada, quando começa a anoitecer, eles decidem voltar ao acampamento, esbaforidos e temendo pela vida de Helena.
Helena, no meio da madrugada seguinte, já tinha se embrenhado na mata com um vigor de uma caminhante frenética, se depara com sons da floresta, insetos e corujas, tinha levado uma bolsa, dali tira um baseado já apertado e fuma no meio da escuridão, começa a ficar desesperada, e o efeito da droga lhe aumenta a síndrome paranoide, ela sabia que já tinha se perdido no meio da mata, depois que fuma tudo, começa a correr em círculos, a mata fica cada vez mais densa, e a cada vez que ela tenta encontrar um caminho de volta ao acampamento, mais a confusão ficava maior, é quando então aparece um Cara-Preta e começa a dar flechadas na direção de Helena, aparece logo um outro tentando lhe dar machadadas, ela que era faixa marrom de judô, tenta derrubar o índio do machado, eles se engalfinham, ela consegue tomar o machado do índio e começa a berrar na direção dos dois índios e então estes somem no meio da mata, ela fica histérica, decide que aquele machado seria útil para a sua defesa, e então amanhece, e ela, depois de dormir por poucas horas dentro de uma gruta, tenta escapar daquele labirinto, em vão, o dia avança até o entardecer, e ela então se desespera e, mesmo sendo um azougue, desmorona e chora.

A CAVERNA

Lísias era o rei da caverna, ali habitava uma nação que tem origens perdidas no tempo, uns diziam que o patriarca antigo veio das estrelas, de um certo país banhado de sol e com quinze luas no céu, pois esta era a narrativa tradicional deste povo que agora se autodenominava os cabeças azuis, um dos hábitos destes habitantes da caverna era pintarem o corpo todo de azul, havia uma lenda de que um de seus avós havia saído da caverna e tinha retornado louco, no que foi abatido por ordem do rei da época. Lísias, agora, tinha baixado um códice em que um dos tabus era ninguém sair da caverna, a pena era a morte para quem fizesse isso, pois Lísias, segundo alguns documentos particulares que faziam parte do tesouro daquele reino, dizia que perto da caverna havia os Cara-Preta, vindos de um mundo ilusório, o chamado desconhecido, e eles eram poucos, mas eram maus e violentos, e uma das normas daquele reino pretensamente evoluído era a cultura da paz e do prazer, pois todos eles consumiam bebidas mágicas que lhes faziam voar para o universo eterno do patriarca, com visões extáticas de puro deleite.
Dentro daquele país subterrâneo Lísias governava com mão de ferro, era um tipo de paz imposta pela força de seu exército de leões, pois assim eram chamados os soldados que tomavam conta das fronteiras das quais ninguém poderia passar, mas dentro daquele reino autoritário de uma paz armada, já havia alguns conspiradores contra os desmandos de Lísias, eram eles três conspiradores que tentavam inventar um plano de sair da caverna, pegar as armas dos Cara-Preta e voltar à caverna para matar o rei Lísias. Tudo isso para libertar a caverna e todos verem o mundo real, a floresta que vivia nos sonhos de liberdade dos conspiradores e que o rei censurava como loucura, pois havia o mito de quem saísse da caverna voltava delirando e falando fantasias do que tinha visto lá fora, mais um dos mitos inventados pelo governo da caverna para impor a paz à força. Dos três conspiradores, havia Dumas, Rafik e o líder e mentor intelectual da fuga da caverna, Pausânias.
A ordem pacífica da caverna era dividida em quatro classes, os nobres, todos parentes do rei Lísias, que viviam na opulência, em seguida havia os sacerdotes, profetas das estrelas do patriarca lendário, os soldados, chamados leões, e o populacho, os azuis, que se pintavam de azul todos os dias, ao contrário das outras classes que faziam isso nos dias dos rituais espirituais dos sacerdotes, e o populacho que ficava, portanto, entorpecido com as bebidas mágicas servidas nos banquetes diários da nação, uma espécie de Roma decadente e com uma paz produzida artificialmente por um ideal frouxo de ilha das delícias, estratégia alienante dos sacerdotes e dos nobres para manter a opulência verdadeira das duas classes maiores, também servidas das bebidas mágicas, mas com o controle hipnótico feito pelos sacerdotes sobre os leões, que eram servos cegos e hipnotizados da tal ordem pacífica imposta à força. Pausânias e os outros dois conspiradores sendo então da ralé dos azuis.
Numa noite profunda e quieta, já com o plano arquitetado, Pausânias, Dumas e Rafik conseguem apagar um dos guardiões fiéis de uma das fronteiras, eles lhe dão éter e fazem ele apagar, os três conseguem então passar por um portal de luz, pois os outros leões estavam dormindo, ficava tudo no alto da caverna, um precipício beirava aquele portal, a fronteira tinha algumas trancas, Pausânias consegue pegar o molho de chaves que estava com o leão guardião, testa as chaves, a quinta dentre sete chaves abre o portal de luz que passa a brilhar em azul cobalto, eles conseguem sair da caverna, e passam por uma espécie de transe e sensação de queda e depois por um longo túnel que o levam para o coração de uma floresta que eles não conheciam, e veem pela primeira vez o brilho da abóbada noturna, já não era a falsa noite da caverna dos pobres azuis da ralé, da paz de Lísias e de seus leões hipnotizados, eles sabiam que estavam na terra da liberdade, e logo vão à caça dos Cara-Preta, para pegarem suas armas e voltarem para a caverna para matar o rei Lísias, o hipócrita da paz.

O JOGO DE CARTAS

A noite avança novamente, Helena começa a gritar por socorro, os outros estudantes, acampados na entrada da Mata do Mamão, sentem que saía um som angustiado da floresta, pensam que poderia ser Helena, o som vinha de longe, do fundo da mata, eles então tentam decidir quem entraria na floresta, Fabiano se candidata, Henrique, como era normalmente mais inteligente do que os outros, tanto intelectualmente, como fisicamente, era faixa preta de jiu-jitsu desde os dezessete anos, e treinava muay-thai há três anos, decide que os outros teriam que ficar no acampamento, caso eles também se perdessem, e Henrique dá um cartão com o telefone dos bombeiros para Marília em caso de sinistro. Contudo, Henrique tinha certeza de que não sairia daquela noite densa sem Helena, tudo sairia nos conformes, sem ideias malucas de vaqueiro ou tramas transcendentais.
Henrique aciona seu GPS, ele então, junto com Fabiano, avançam para dentro da mata, seguindo o som que logo percebem, ao irem mais para o fundo da mata, se tratar de um grito humano, e Henrique percebe logo ser a voz de Helena, eles seguem por uma hora até acharem uma oca, pensam ser os desconhecidos Cara-Preta, mas ao entrarem na oca, esta estava abandonada, e Henrique lembra que os tais índios eram nômades, portanto, já tinham saído dali, não havia sinal de ação recente naquela área. Fabiano acende uma lanterna fortíssima para ir noite adentro na busca de Helena junto com Henrique. Enquanto isso, Helena continua gritando, mas isso chama atenção dos índios Cara-Preta, um deles aparece novamente com um machado na direção de Helena, agora ela também tinha um machado, e consegue dar uma machadada no ombro e na cabeça do índio, que desmaia mas não morre, ela corre a esmo, mas na corrida vê uma luz, perceba ser uma luz artificial, talvez de uma lanterna, ela então grita novamente, Henrique e Fabiano ouvem e vão em direção ao grito, que se aproximava de onde eles estavam. Helena corre velozmente em direção da luz de lanterna, quando faltavam cinquenta metros na mata densa entre os rapazes e ela, Henrique e Fabiano decidem também dar um grito, Helena grita de volta, aí a charada já tinha sido matada, Helena vai cada vez mais perto da luz da lanterna que também vai na direção dela, e então os três se trombam e ficam aliviados, decidem dormir por ali e voltar ao amanhecer para o acampamento. Henrique ri muito, sabia que acharia Helena, e fala logo que quando voltassem fizessem o carteado com vodka que fizera tanto sucesso na turma de faculdade deles.
Então, no primeiro raiar do dia seguinte, eles já acordam e seguem em direção da saída da mata, a qual Fabiano, que tinha boa memória fotográfica, tinha decorado, contando os próprios passos na mata, só foi ele contar de novo o mesmo número de passos e a linha que tinha seguido com sua visão acurada, tudo dá certo, quando são dez da manhã, eles já estão de volta ao acampamento, e todos comemoram, Helena é levantada por todos como na festa de uma nova campeã, ninguém dá bronca, todos estavam mais é curiosos, depois do alívio, de saberem o que ela tinha visto na mata, e ela relata a sua luta com um Cara-Preta e que tinha dado uma machadada em um, de um machado que ela tinha pego de outro índio daqueles, e Henrique então dá por começado o jogo de cartas ali, numa competição de shot de vodka Grey Goose e Absolut, numa roda de cartas de baralho, uma roda que também passava um cone de baseado prensado, deixando o haxixe e o skank para o fim da competição, onde ninguém tinha o direito do arrego, e não ser em caso extremo de desarranjo ou pressão baixa.
As cartas são distribuídas entre os estudantes, era o tal jogo de atenção, cartas do mesmo naipe em sequência numérica de cinco cartas, o que tiver tal combinação primeiro deixa cair as cartas, os que vissem as cartas caindo teriam que deixar suas cartas caírem também, o último que ficasse com as cartas em pé nas mãos teria que tomar um corpo americano cheio de vodka, o único benefício é que começava as três primeiras doses com Absolut, e depois era Grey Goose dali para diante, e no caso o que mais comia mosca da galera geralmente era o Paulo, o que nunca perdia, só de propósito, era Fabiano, que além de sua memória fotográfica, própria para labirintos e florestas densas, tinha uma atenção plena de monge que parecia que meditava horas por dia, coisa que ele fazia diariamente, mas só vinte minutinhos pela manhã.
O jogo dura três horas, e obviamente Paulo tomou uns dez shots e ficou tonto, quando disse que iria vomitar o jogo terminou, Fabiano levou Paulo para a beirada da Mata do Mamão, e ali Paulo soltou um jato fantástico de vômito branco quase transparente e brilhoso de vodka pura, uma cachoeira de Absolut com Grey Goose saiu de sua boca como uma mangueira de bombeiro num incêndio, foi uma cena em que Marília riu tanto que teve uma crise de soluço de uma hora e também acabou vomitando de tanto soluço. Henrique então pegou um skank e ingeriu dois ácidos bicicletinha, todos esperaram o anoitecer, pois Henrique colheu uns cogumelos zebu que tinha perto da Mata do Mamão, no meio da tarde anterior, que eram umas trinta chapeletas roxas de boi zebu, pronto para a viagem psicodélica que todos fariam naquela noite, com cinco chapeletas para cada um, ingeridas sólidas, para um efeito mais autêntico, diria Henrique, o químico amador e autodidata, que fazia biologia, mas que quase fez química por também ter afinidade com a disciplina, na verdade, ele tinha obsessão por estudar medicamentos opioides, tendo tomado doses de Palfium uma vez, com receita azul falsificada, estudo que lhe tomava mais tempo até do que sua pesquisa sobre psilocibina e plantas mágicas.

OS DOIS MUNDOS

Pausânias, Dumas e Rafik tinham deixado a caverna, eles saem no meio da mata naquela noite estrelada de céu totalmente limpo, era a primeira vez que eles tinham aquela visão maravilhosa, muito melhor que a ração de bebidas mágicas que era fervida dentro da caverna, numa rotina tão repetitiva que já era uma coisa enjoada para aqueles conspiradores platônicos e libertários, e nesta noite eles sairiam à caça dos Cara-Preta, numa busca frenética por machados, armadilhas e o que mais aqueles índios tivessem de armas para eles retornarem e libertarem a ralé dos azuis que era explorada pelo rei Lísias, os nobres e sobretudo os sacerdotes.E Pausânias também tinha a ideia de libertar os leões do transe hipnótico feito pela bruxaria e magia negra dos sacerdotes, que pregavam a paz, mas eram todos magos negros, e muitos da ralé sabiam disso, mas não faziam nada pois tinham medo de também serem enfeitiçados e virarem zumbis como os leões, que pareciam máquinas vindas de Esparta, e que só faziam ginástica e empunhavam escudos e lanças o tempo todo, guardando as fronteiras no topo da caverna.
Na noite, começa a cerimônia dos estudantes, Henrique tem a ideia de que eles comessem os cogumelos zebu e fossem todos caçar os Cara-Preta na Mata do Mamão, que Fabiano seria o guia noturno deles, e que a lanterna abriria o caminho pela mata sem ninguém se perder ou se dispersar uns dos outros. Na mata eles encontraram mais uma oca vazia, entraram na oca, mas de um súbito, ouve-se um barulho curto de vento, Fabiano logo percebe, eram flechadas, todos se jogam no chão, aparecem então três índios Cara-Preta com machados, Paulo neste momento pensa, viajando de cogumelo, estar vendo pequenos diabos vermelhos, e sai correndo pela mata, se dispersando do grupo e se perdendo na mata densa, a luta dos Cara-Preta então se dá com Henrique e Helena, os únicos ali que faziam artes marciais a sério, pois eram graduados, e acabam por conseguir espantar os três índios, que somem novamente pela Mata do Mamão. Eles agora teriam que encontrar Paulo. Este está agora, já na madrugada, na verdade, numa bad trip, vendo diabos vermelhos por toda a parte. Ele tromba com um Cara-Preta de verdade e pensa estar vendo o próprio Satanás, no que o Cara-Preta lhe dá uma flechada que atinge a sua perna, Paulo sai correndo novamente, e dá a sorte de encontrar a saída da mata e voltar ao acampamento, no que ele entra na sua barraca iglu e se recolhe como um bicho assustado e afunda dentro das cobertas, louco para que seu delírio passasse logo, e consegue enfim dormir.
Os outros agora, não sabendo que Paulo havia voltado para o acampamento, o procuravam cada vez mais para o fundo da Mata do Mamão, lá acabam encontrando um nicho com três ocas, dali saem dez Cara-Preta, e os índios começam a distribuir flechadas na direção do grupo de estudantes, Henrique então lança a luz da lanterna na direção dos índios, estes ficam confusos e pensam que aquilo era um bicho luminoso, se assustam e saem mais para dentro da mata. Henrique e Fabiano decidem ver o que tinha dentro das ocas, Helena dizia que já era hora de voltar para o acampamento, pois eles já tinham conseguido ver os índios Cara-Preta, mas Henrique e Fabiano estavam cada vez mais empolgados, então os dois ficam ali nas ocas, enquanto Helena e os outros decidem voltar ao acampamento, ficando a cargo de Henrique e Fabiano encontrarem Paulo, ou voltarem se tudo fosse em vão.
Helena, Marília e Nicholas voltam ao acampamento ainda de madrugada e encontram Paulo debaixo das cobertas na barraca iglu, ficam aliviados, e Nicholas decide voltar à Mata do Mamão para avisar a Fabiano e Henrique que Paulo estava bem tranquilo dormindo como um anjo no acampamento. Neste momento, em que Nicholas caminha de volta à mata, Henrique e Fabiano estão se divertindo brincando de luta com machados entre as três ocas, acendem uma fogueira, pegam penas e botam na cabeça e ficam imitando índios de uma maneira estilizada e pejorativa, ainda estavam na viagem psicodélica de psilocibina, estavam, como se diz na gíria, “gastando a onda”, e fazem um rito que eles chamam de dança da chuva, e a viagem era tanta, que de fato começa a chover forte, uma tempestade que chega a apagar a fogueira, e então Henrique e Fabiano ficam eufóricos, achando que eles é que tinham invocado a chuva com a dança do cogumelo, com machados e penas coloridas.
No meio disso, ali perto estavam Pausânias, Dumas e Rafik, os três com o corpo inteiro e a cabeça pintados de azul, com uma tinta que não saía na água da chuva, só com banheira quente por imersão, e eles ficam admirando a tempestade, coisa rara de acontecer na caverna dos azuis, que normalmente era bem quente, sendo que as bebidas mágicas ali também serviam para anestesiar a população que ali morava do forno que era morar na caverna. Pausânias vê as três ocas, e vê dois malucos dançando na chuva com penas na cabeça, ele pensa que eram dois dos Cara-Preta, os três azuis, Pausânias, Dumas e Rafik avançam na direção das ocas, Henrique e Fabiano ainda estavam numa viagem intensa de psilocibina, e veem os três azuis indo na direção deles, e os dois acham que aquilo era mais uma das visões psicodélicas do cogumelo zebu, mas Henrique se lembra da  história do vaqueiro e da palavra do pajé da etnia Javaé, e logo percebe que aquilo não era uma visão, que era real, pois os azuis atacam Henrique e Fabiano, e perguntam aonde ficava as armas, os dois se assustam e dizem que não eram índios, que os Cara-Preta tinham ido embora dali com medo da luz da lanterna, que eles eram brancos do Rio de Janeiro, estudantes de Biologia, mas a língua dos azuis era desconhecida, enquanto Henrique e Fabiano falam português, os azuis falam um dialeto bárbaro chamado pelos habitantes da caverna de Uti, eles então perdem a paciência e atacam de vez Henrique e Fabiano, que acham então que os azuis eram duendes do mal e se mandam mata afora com medo daqueles três malucos todos pintados de azul. Ali eles deixam os machados e várias armas brancas, que então Pausânias, Rafik e Dumas recolhem e pegam para voltar à caverna e libertar a ralé dos azuis e os soldados hipnotizados por feitiço, apesar dos Cara-Preta ser um conjunto em torno de vinte a trinta índios isolados, a quantidade de armas brancas ali naquelas três ocas era fantástica, o jeito, para reforçar a revolução de Pausânias dentro da caverna era dar a boa nova logo no retorno para incitar uma revolta da ralé, roubar as poções dos sacerdotes e pegar os antídotos contra tais poções para quebrar o encanto e transe em que dormiam os espartanos leões das fronteiras da caverna, e ter força suficiente para abrir o portal e libertar a ralé e os soldados, mas o plano era otimista demais, mas Pausânias estava obcecado pela vitória contra Lísias.
Enquanto isso, Henrique e Fabiano correm no meio de uma madrugada tempestuosa, pois a chuva caía ainda radicalmente sobre a Mata do Mamão, e já era três da manhã de uma noite clara de lua cheia, e eles vão a uma velocidade insana até trombarem com Nicholas, este que avisa que estava tudo bem com Paulo, mas que logo se espanta com a história sobre os azuis que Henrique e Fabiano, esbaforidos, contavam com riqueza de detalhes, Nicholas fica duvidando e pensa que Henrique e Fabiano tinham ido longe demais com a brincadeira da psilocibina, mas acaba convencido da veracidade do relato, pois só um mitômano insano poderia inventar uma coisa daquela com um encadeamento tão real e nítido, então Nicholas passa a acreditar na existência dos azuis, e os três conseguem chegar com o raiar da aurora no acampamento, aonde os outros estavam já dormindo.
Ao meio-dia, com todos já acordados, a história sobre os azuis é relatada ao grupo por Henrique e Fabiano, e que já era hora então deles voltarem ao Rio de Janeiro, que a festa tinha sido boa, mas que as lendas estavam virando realidade e então todos decidem que era hora de voltar ao mundo real, e vão para Palmas, pegam um avião na manhã seguinte, e se dão por satisfeitos, agora eram testemunhas dos Cara-Preta e dos azuis, a Ilha do Bananal os tinha convencido de que a floresta é a mãe de todos os  mistérios, e esta foi a sensação da aventura de conhecer a natureza na sua essência, olhando de frente para todas as suas lendas e descobrindo o mundo paralelo que de fato existia.
Pausânias, Rafik e Dumas voltam à caverna, passam novamente pelo portal que brilhava de azul cobalto, entram de volta e convocam a ralé para uma revolução, dão as armas brancas para trinta dos azuis da ralé, eles tentam lutar contra os sacerdotes, mas os antídotos não são achados, pois o mago negro líder da classe dos sacerdotes, percebendo que seu templo seria invadido por um bando da ralé, logo atina que teria que quebrar e derramar todos os potes de antídotos, no que os azuis da ralé, revoltados, confundem os potes, dão para os leões, mas o encanto continua, eles obedecem fielmente o rei Lísias, e os sacerdotes seus comandantes hipnóticos. Pausânias é condenado à morte por liderar uma insurreição, Rafik e Dumas por conspiração, e os trinta da ralé que tinham pego em armas são perdoados, pois tinham sido manipulados pelos três bandidos que diziam das loucuras do mundo fora da caverna, quando todos os habitantes da caverna são convencidos novamente de que tudo era fantasia, e que o mundo real era a caverna e tudo que ali vivia.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Contos Psicodélicos – volume I (escrito em 18 e 19/10/2017).

O VERÃO DO AMOR E O MOVIMENTO HIPPIE

“O que representava o movimento hippie como tal era a utopia”

VERÃO DO AMOR

O chamado “Verão do Amor” aconteceu em 1967, num contexto de revolução cultural e de costumes que veio a ser intitulado contracultura, mudança radical de comportamento de origem na juventude que surgia naquela época, e que terá logo os seus reflexos na arte, sobretudo na música, mais especificamente no rock. Este Verão do Amor tem a sua origem numa passeata pela paz no dia 18 de abril de 1967, em Nova York, num movimento que envolvia o protesto contra a Guerra do Vietnã, formando um grupo composto de intelectuais, músicos, uma parte da classe média, e os hippies.
No meio disso, o movimento de contracultura que surgia migrava para a Califórnia, mais especificamente no distrito de Haight-Ashbury, em San Francisco, que será o epicentro do movimento hippie e do rock psicodélico, distrito no qual nasce uma nova cultura de muita música, consumo de drogas para a expansão da mente, esoterismo oriental, filosofia comunitária, ideal de liberação e liberdade, e a prática do amor livre. Eram pessoas que “fariam amor, não guerra”. E a parte crítica do movimento ia em direção de afirmações contra o racismo, contra a destruição do meio ambiente, contra a guerra e a violência, num mantra de paz e amor, e contra a cultura consumista capitalista.
Todo este movimento tinha os seus gurus, que podiam ser, por exemplo, o professor universitário e pesquisador de drogas sintéticas, como o LSD, Thimothy Leary, e o poeta beat e ativista Allen Ginsberg, prenunciando uma nova era de uma cultura de amor e de paz, utópica, feliz e hedonista.
Um dos começos do movimento de liberação dos costumes foi em janeiro de 1967, quando se deu a reunião ‘World’s First Human Be-In’ no Golden Gate Park, em San Francisco, que tinha milhares de jovens que cantavam e dançavam, cobertos de flores, colares e pulseiras de contas. E então San Francisco recebe logo 100 mil hippies no verão de 1967, que foi logo chamado de “Summer of Love” (Verão do Amor), e que virou na verdade uma reunião de 200 mil pessoas, todos no distrito de Haight-Ashbury.
Na música, que era uma das atividades principais que nutria este movimento, temos a composição “San Francisco”, que tinha um verso que dizia “Be Sure to Wear Flowers in Your Hair”, e que foi lançada em junho de 1967 como uma forma de promoção do Festival Pop de Monterey, música que virou um hino deste verão, composta pelo membro da banda ‘Mamas and The Papas’, John Philips, e que foi cantada por Scott Mackenzie. 
O Festival Pop de Monterey foi então realizado na Califórnia em julho de 1967, e no qual figuravam músicos ou bandas como Jimi Hendrix, Ravi Shankar, Janis Joplin - ainda com os Big Brother and the Holding Company -, Otis Redding, os Mamas and Papas, The Who, dentre outros. E um dos acontecimentos marcantes do festival, que tem um registro em vídeo bem conhecido, foi quando Jimi Hendrix incendiou a sua guitarra.

OS HIPPIES

Os Hippies formavam a contracultura, isto junto com o Movimento dos Direitos Civis e a Nova Esquerda, sendo o termo “Hippies” publicado pela primeira vez no artigo “A New Haven For Beatniks”, de 5 de setembro de 1965, no qual o jornalista Michael Fallon em San Francisco se refere com a palavra aos beatniks da nova geração que tinham se mudado de North Beach para o distrito de Haight-Ashbury, sendo o termo massificado apenas em 1967, quando se dá o seu maior fenômeno, que é o Verão do Amor.
Um movimento de afirmação de novos valores revolucionários, sobretudo nos costumes e comportamentos, numa educação liberal ou liberada, crítica do status quo, este que tinha como principal bastião o consumo e seu estilo de vida pré-determinado, movimento hippie que se afirma como um novo tipo de utopia, de filhos egressos da classe média americana tradicional, com uma mistura de maconha, LSD, esoterismo oriental, liberação sexual, expansão da mente, vida comunitária, e claro, paz e amor. Tendo na música um movimento de rock psicodélico, que também tinha a fusão de elementos do folk e do blues.
Aparece então a figura vestida com calças boca de sino, com cabelos e barbas compridos, a imagem da contracultura, com o predomínio do rock, numa luta civil contra todo tipo de opressão, contra a guerra, uma cultura pacifista e muito utópica, em San Francisco, se expandindo para outras cidades dos Estados Unidos, indo parar na Europa, influenciando também a Primavera de Praga, movimento nascente que foi do distrito de Haight-Ashbury, um lugar que passou a viver as cores psicodélicas, o desbunde de incenso, orientalismos e a droga símbolo do movimento hippie e da contracultura, que foi o LSD (dietilamida do ácido lisérgico). E o modo de vida que era a vida em comunidade, um estilo alternativo de um mundo novo. Tudo isso dando origem à psicodelia, fundamento psíquico que nutria a liberação hippie.
O que representava o movimento hippie como tal era a utopia, e esta não se associava, na sua fundação essencialmente comunitária, com a antiga cidade-estado grega ou aquela descrita por Platão na República, e nem se filiava à imaginária concepção da Utopia de Thomas More, tem mais um pé na Arcádia, de uma vida pastoril, romantizada, numa comunhão com a natureza, e que poderia virar um pequenino país paralelo aonde todos os desejos eram realizados, nada mais utópico e revolucionário.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36205/14/o-verao-do-amor-e-o-movimento-hippie




terça-feira, 17 de outubro de 2017

O MARTÍN FIERRO DE JORGE LUIS BORGES

“o que Borges faz, sobretudo, é uma mudança da perspectiva histórica do então herói argentino”

A ORIGEM DE MARTÍN FIERRO

Martín Fierro, obra canônica e marco cultural da literatura e vida simbólica e histórica da Argentina, é um poema narrativo, operado no tradicional e mais rústico metro octossílabo e composto em estrofes de sextilhas, um poema escrito por José Hernández em duas partes: a primeira, conhecida como “Ida” ou “El gaucho Martín Fierro”, impressa em 1872, e a segunda parte que se chamou “La vuelta de Martín Fierro”, que saiu em 1879.
Em sua intenção original o poema era uma crítica ao modo arbitrário de recrutamento dos soldados para o exército, no que temos, no entanto, a formulação de uma obra representativa da Argentina como nação, sendo, com tanto mais razão, a obra literária mais importante da Argentina, e que se tornou uma das obsessões temáticas da obra de outro autor argentino, Jorge Luis Borges. Este que, por sua vez, traça um esboço biográfico de José Hernández, e parte deste ponto para avançar na discussão da que veio a ser chamada poesia gauchesca, cujo inventor é colocado historicamente como Bartolomé Hidalgo, de Montevidéu, em 1812, numa diferenciação que se fará desta poesia da que era denominada poesia dos gaúchos, a que era praticada pelos chamados payadores.
A poesia gauchesca está relacionada a homens urbanos, escritores tradicionais, de gabinete, que passam a subsumir os costumes e o linguajar dos pampas, ao passo que a poesia dos gaúchos era o canto dos payadores, sem a afetação carregada de artificialismos que vai caracterizar a poesia gauchesca. E em Martín Fierro, Borges aponta que o poema tem dois movimentos, um dos pampas, da vivência gaúcha, e outro dos artifícios de veia mais estilizada e existencial, até genérica, e o poema que tem, também segundo Borges, tanto a reprodução da tradição dos gaúchos, como opera uma renovação desta tradição.

A CRÍTICA DE MARTÍN FIERRO

E temos que as leituras de Martín Fierro foram intensas e variadas, com mudanças bruscas de direção, sendo o movimento mais importante, visto na perspectiva atual, a leitura borgiana que se tornou um novo tipo de standard quando nos referimos a uma das últimas e inovadoras leituras do Martín Fierro. Mas em José Hernández, seu feitor original, temos uma verdadeira peripécia, que tornou esta obra canônica e a memória viva da nação argentina, configurando um dos cernes da história da literatura argentina. As suas duas partes, El gaucho Martín Fierro, de 1872, e La vuelta de Martín Fierro, de 1879, começaram a ser publicadas como simples livretos, no que durou trinta anos, mas que foram um verdadeiro sucesso comercial, sendo então reunidas e publicadas em livro em 1910, que é quando se abre o caminho para tornar a obra a principal referência literária da cultura argentina.
E é na década da publicação do Martín Fierro  em livro que começa também a fortuna crítica da obra, abrindo este caminho as interpretações de Ricardo Rojas e Leopoldo Lugones, que colocam a obra como uma epopeia do povo argentino, a maior obra literária da Argentina, retrato original da vivência dos pampas. E que tem ruído e divergência numa outra leitura que será feita, por exemplo, por Calixto Oyuela, e que se ampliará na leitura monumental que fará Ezequiel Martínez Estrada, no que temos o questionamento das virtudes supostamente heroicas do personagem Martín Fierro, ainda mais quando este era tomado como um paradigma do gaúcho, divergência que abrirá uma nova leitura crítica do caráter do personagem, mas que mantém intacto, contudo, o valor literário da obra.

A LEITURA BORGIANA DO MARTÍN FIERRO

É nas décadas de 1940 e 1950, por conseguinte, que Jorge Luis Borges fará a sua leitura nova em todos os sentidos da obra do Martín Fierro, numa manobra de reinterpretação complexa e polêmica, no que temos uma mudança tão radical, que a visão da obra muda completamente e de forma definitiva, trabalho crítico borgiano que vai do ensaio e se consuma sob a forma do conto, neste caso com as narrativas que comporão seus contos hernandianos, que são então “Biografía de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)” e “El fin”, e seus contos gauchescos, que são, por sua vez, “La otra muerte”, “El Sur”, dentre outros.
Borges modifica por completo o Martín Fierro, uma reescritura que coloca a questão do heroísmo do personagem, entre um julgamento moral que oscila entre o herói virtuoso ou apenas um desertor briguento e hipócrita, e se coloca, portanto, a mudança do paradigma Martín Fierro, este que era então também o paradigma gauchesco, do homem dos pampas, e que como personagem paradigmático passa por uma revisão poderosa pela leitura, crivo e também, por fim, invenção e reinvenção borgiana.

CANONIZAÇÃO E PARADIGMA

Leopoldo Lugones, por sua vez, colocava a perspectiva de que houve com Martín Fierro uma mudança radical de status moral do gaúcho, que passou de um ser imerso na barbárie para um modelo nacional, o homem dos pampas como o representante da nação argentina, o paradigma literário como sendo Martín Fierro, este sendo então, por sua vez, modelo do paradigma cultural argentino, o gaúcho. E aqui temos a canonização de Martín Fierro, na literatura e na cultura argentinas, com Lugones colocando enfim Martín Fierro como a epopeia do gaúcho e do povo argentino. Era o ano de 1913.
Contudo, temos na leitura borgiana uma mudança nesta visão canônica e paradigmática do personagem, numa rejeição da categoria epopeia para a obra Martín Fierro, termo consagrado na leitura de Lugones, com Borges explorando as falhas de caráter de Martín Fierro, como um método de desnudamento do então herói argentino, numa nova abordagem mais complexa, que vai denunciar o artificialismo da literatura gauchesca, como um gênero construído e não como fenômeno cultural espontâneo e vivencial, mas sim como uma forma literária elaborada como toda literatura de gabinete foi criada, não sendo, portanto, nesta leitura borgiana, o Martín Fierro uma voz popular da cultura argentina.
Isso fica mais claro quando Borges recapitula toda a história que veio antes de Hernández, que tem figuras como Ascasubi e Hidalgo, eclipsados que foram pelo fenômeno Martín Fierro. Com Borges, por fim, denunciando o personagem Martín Fierro, mas mantendo intacto o valor da obra em si, pois o que Borges faz, sobretudo, é uma mudança da perspectiva histórica do então herói argentino, passando da visão de epopeia para a de romance em verso, sendo então uma mudança no status do personagem e, por fim, do modelo literário que está em questão.

CONCLUSÃO

O poema Martín Fierro nos aparece como uma forma original que vem para denunciar as desventuras do gaúcho, vira forma canônica, paradigma, é exaltado como epopeia, voz do povo argentino, passa por uma revisão brutal no ensaio borgiano, e que se consuma na sua reinvenção no conto borgiano, Martín Fierro em Borges tem o tempo todo o seu caráter heroico posto em questão, mas o que fascina e se valoriza na abordagem borgiana da obra é o código de honra que governa o personagem e a vivência dos pampas, Borges permanece em sua obsessão literária pois ao fim valoriza a obra literariamente, e no aspecto de um heroísmo falho e violento, enxerga ali um código forte, que não por acaso erigiu a memória argentina na sua obra mais importante e representativa, o Martín Fierro.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36159/17/o-martin-fierro-de-jorge-luis-borges



LIRA DOS VINTE ANOS, ÁLVARES DE AZEVEDO – PARTE V

O ROMANTISMO E SEUS GÊNEROS

“há uma confrontação e questionamento das formas bem acabadas da escrita clássica”

Na divisão ou binomia da obra azevediana, não se desconsidera aqui a sua coerência interna, os polos opostos então correspondem bem a uma cosmovisão definida, a um plano bem urdido, fato que fica bem evidente na própria face dupla da sua obra poética condensada na Lira dos Vinte Anos, e tudo isso com princípios formais que dão o caráter inteiro da produção poética em questão, a qual está aderente aos conceitos definidores do Romantismo, desde sua matriz alemã em Iena. O que se refere, por conseguinte, na análise decorrente da obra azevediana, a uma abordagem que está, à primeira vista, entre uma expressividade romântica ou a sua outra face mais reflexiva.
Numa busca da face do Romantismo, em sua origem no grupo de Iena, temos que neste grupo se encontra as bases em que se fará a crítica literária romantizada propriamente dita, o que vai ao encontro de nossa análise da predominância do Eu na poética azevediana. E no que se refere ao grupo romântico de Iena, como matriz de toda a produção que foi denominada de romântica, temos que nesta, em seu aspecto de crítica literária, há uma confrontação e questionamento das formas bem acabadas da escrita clássica, num movimento que vai em direção a uma autorreflexão subjetiva que já apontava para os rumos do que viria a se constituir como uma poética moderna, mais para a frente.
Num primeiro momento, o passo adiante da escrita de matriz romântica vai operar pelo fragmento, sendo este fragmento romantizado para dar vazão à reflexão de natureza romântica, um gênero muitas vezes ambíguo, incompleto, com lacunas intencionais, o que dá a própria forma de acionamento do fragmento em literatura, tendo então este fragmento um caráter essencialmente aberto, de livre interpretação, funcionando dinamicamente tanto como uma série definida ou apenas um trecho isolado, lançando-se à carga da autorreflexão com modos de ação regidos pela espirituosidade, pelo chiste, portanto, um modo aberto e flexível de escrita que não se fecha em um dogma. O lugar do fragmento é aquele, portanto, em que se dá a livre circulação de ideias.
Já no que se refere ao romance, temos a forma variada que acolhe gêneros diversos como a canção, os diálogos dramáticos, inflexões filosóficas, e uma subjetividade de livre pensamento, romance que neste contexto, portanto, não se fecha com uma norma ou roteiro pré-concebido, não é um gênero estanque, ou como nos dizia Friedrich Schlegel, sobre a forma romanesca : “Os romances são os diálogos socráticos de nosso tempo”.
No drama romântico, por sua vez, tem uma dimensão fundante que se dá no conflito ou embate entre a visão romântica e o mundo clássico, principal tensão que vai governar todo o Romantismo, seja este alemão ou outros, como o brasileiro que terá em Álvares de Azevedo seu nome mais emblemático. Embate este que é o que dá o próprio caráter e sentido histórico do Romantismo de Iena e suas derivações, como uma escola literária revolucionária e de ruptura, de criatividade renovada que abre uma crítica também renovada.
O drama romântico, como gênero, por conseguinte, coloca a reflexão de que se nutre dentro do próprio processo de criação literária, com uma mescla de tragédia e comédia, no início, quando este drama romântico, então, dá uma forma nova em que tais gêneros se diluem neste novo gênero no qual há uma iconoclastia renovadora, em que o próprio texto teatral é implodido dando como resultado um gênero não-teatral, nos chamados dramas românticos em que a performance da cena dá lugar a uma manifestação de ironia e de uma autonomia autorreflexiva.
No Romantismo, temos um Álvares de Azevedo que vai experimentar no texto a comédia e o drama, passando ao largo da forma acabada e clássica da tragédia, face teatral do autor que o próprio vai caracterizar com um nome novo que ele vai chamar de dialogismo, novo nome semelhante à binomia que ele dividiu sua Lira dos Vinte Anos. E aqui se levanta o questionamento de Antonio Cândido que nos fornece a sua visão da mescla e junção entre Macário e Noite na Taverna, o que vem para confirmar a experimentação azevediana na forma literária, poética e, por fim, teatral.
Cândido identifica uma continuidade temática entre Macário e Noite na Taverna, revelando um verdadeiro e bem pensado projeto formal do autor Álvares de Azevedo, com o drama e o texto narrativo aqui apontando para um mesmo lugar de expressão e reflexão, isso se fundando, ao fim, numa unidade temática que irá compor as duas obras, no que se refere à presença satânica e sua intencionalidade em ambas as obras.

POEMAS :

É ELA! É ELA! É ELA! É ELA! É ELA! : O poema romântico por excelência canta a sua musa, e é de uma inocência comovente, no que temos : “É ela! É ela! – murmurei tremendo,/E o eco ao longe murmurou – é ela!” (...) “Eu a vejo estendendo no telhado/Os vestidos de chita, as saias brancas;/Eu a vejo e suspiro enamorado!/Esta noite eu ousei mais atrevido/Nas telhas que estalavam nos meus passos/Ir espiar seu venturoso sono,/Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!/Como dormia! que profundo sono! ...”. Aqui a imagem recorrente do romantismo azevediano, a sua musa dormindo, no que se segue, a trama do desejo nunca saciado, ideal, no detalhe dos versos, que são citados aqui também sobre os versos desta que dorme : “Fui beijá-la ... roubei do seio dela/Um bilhete que estava ali metido ...” (...) “São versos dela ... que amanhã decerto/Ela me enviará cheios de flores ...” (...) “É ela! é ela! – repeti tremendo;” (...) “É ela! é ela! meu amor, minh`alma,” (...) “É ela! é ela! – murmurei tremendo,/E o eco ao longe suspirou – é ela!”. A afirmação recorrente, o estribilho do poema, é sua obsessão predileta, um poeta obcecado é um poeta apaixonado, e o estro é aqui grandiloquente e exclamativo, um poema de paixão.

NAMORO A CAVALO : O poema cotidiano, já antecipando o que viria a ser o poema moderno, se nutre aqui da rua e do bairro do poeta, e um passeio à cavalo, que coloca o poema romântico numa perspectiva toda nova, sem afetações do que se esperaria de um temperamento profundo regido por paixões, no que temos, no entanto, com fúria moderna, o que segue : “Eu moro em Catumbi, mas a desgraça,/Que rege minha vida malfadada,/Pôs lá no fim da rua do Catete/A minha Dulcineia namorada./Alugo (três mil réis) por uma tarde/Um cavalo de trote (que esparrela!)/Só para erguer meus olhos suspirando/À minha namorada na janela .../Todo o meu ordenado vai-se em flores/E em lindas folhas de papel bordado/Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,/Algum verso bonito ... mas furtado.”. Certo humor emana deste estro inaudito, no que segue : “Ontem tinha chovido ... que desgraça!/Eu ia a trote inglês ardendo em chama,” (...) “Eu não desanimei. Se Dom Quixote/No Rocinante erguendo a larga espada/Nunca voltou de medo, eu, mais valente,/Fui mesmo sujo ver a namorada ...” (...) “Bateu-me sobre as ventas a janela .../O cavalo ignorante de namoros/Entre dentes tomou a bofetada,” (...) “Circunstância agravante. A calça inglesa/Rasgou-se no cair de meio a meio,/O sangue pelas ventas me corria/Em paga do amoroso devaneio! ...”. Temos aqui um dos momentos mais originais e inovadores da poética azevediana, sem dúvida. 

LÁGRIMAS DA VIDA : O poema tem um estro doído, o romantismo aqui cede aos apelos melancólicos, um certo spleen que amolece e dói como uma lira que enverga, no que temos : “Se tu souberas que lembrança amarga,/Que pensamento desflorou meus dias,/Oh! tu não creras meu sorrir leviano/Nem minhas insensatas alegrias!/Quando junto de ti eu sinto às vezes/Em doce enleio desvairar-me o siso,/Nos meus olhos incertos sinto lágrimas .../Mas da lágrima em troco eu temo um riso!/O meu peito era um templo – ergui nas aras/Tua imagem que a sombra perfumava .../Mas ah! emurcheceste as minhas flores,/Apagaste a ilusão que aviventava!/E por te amar, por teu desdém – perdi-me .../Tresnoitei-me nas orgias macilento,/Brindei blasfemo ao vício e da minh`alma/Tentei me suicidar no esquecimento!”. O lamento aqui se inunda de tristeza e cita o suicídio e o esquecimento, no que o poema segue : “Como o perfume de uma flor aberta/Da manhã entre as nuvens se mistura,/A minh`alma podia em teus amores/Como um anjo de Deus sonhar ventura!/Não peço o teu amor ... eu quero apenas/A flor que beijas para a ter no seio,/E teus cabelos respirar medroso/E a teus joelhos suspirar d`enleio!/E quando eu durmo, e o coração ainda/Procura na ilusão a tua lembrança,/Anjo da vida passa nos meus sonhos/E meus lábios orvalha de esperança!”. A memória e a esperança, contudo, fundam o fim do poema, que começa em spleen, mas que vislumbra um facho de luz na coda.

MEU SONHO : O poema do cavaleiro marca bem o poema azevediano, aqui o poeta está especialmente inspirado, no que o poema segue : “Cavaleiro das armas escuras,/Onde vais pelas trevas impuras/Com a espada sanguenta na mão?” (...) “Cavaleiro, quem és? o remorso?/Do corcel te debruças no dorso .../E galopas do vale através .../Oh! da estrada acordando as poeiras/Não escutas gritar as caveiras/E morder-te o fantasma nos pés?”. Belíssima estrofe, o poema é um emblema de toda a poética de que se nutria Álvares de Azevedo, o cavaleiro que aqui imortaliza a sua obra, a sua poesia, no que segue : “Tu escutas ... Na longa montanha/Um tropel teu galope acompanha?/E um clamor de vingança retumba?/Cavaleiro, quem és? – que mistério,/Quem te força da morte no império/Pela noite assombrada a vagar?” (...) “O FANTASMA : Sou o sonho de tua esperança,/Tua febre que nunca descansa,/O delírio que te há de matar! ...”. Este poema é uma das formas condensadas do estro azevediano, leia e releia sempre.

MINHA AMANTE : O poema é uma mescla de lamento e de súplica, o poeta se vê aqui enlanguescido, exangue, tem um coração doído, no que temos : “Ah! volta inda uma vez! foi só contigo/Que à noite, de ventura eu desmaiava,/E só nos lábios teus eu me embebia/De volúpias divinas!” (...) “Oh! volta inda uma vez! ergue-se a lua/Formosa como dantes, é bem noite,/Na minha solidão brilha de novo,/Estrela de minh`alma!/Desmaio-me de amor, descoro e tremo,/Morno suor me banha o peito langue,/Meu olhar se escurece e eu te procuro/Com os lábios sedentos!”. O desmaio na súplica nos dá a imagem de um poeta completamente entregue, no que o poema segue, em profundo spleen poético, no que temos : “És a coroa de meus breves anos,/És a corda de amor de íntima lira,/O canto ignoto, que me enleva em sonhos/De saudosas ternuras!” (...) “Oh! minha lira, ó viração noturna,/Flores, sombras do vale, à minha amante/Dizei-lhe que esta noite de desejo/E de ternuras morro!”. Amor que aqui se encontra com a face da morte, um estro romântico em todo seu esplendor, rasgos de emoção e dor o compõem.

MINHA MUSA : O poema vai cantando a sua musa, no que temos : “Minha musa é a lembrança/Dos sonhos em que eu vivi,/É de uns lábios a esperança/E a saudade que eu nutri!” (...) “Os meus cantos de saudade/São amores que chorei :/São lírios da mocidade/Que murcham porque te amei!”. A descrição da musa e o lamento aqui se fundem num poeta emocional, exaurido e inspirado, no entanto, no que o poema segue : “A languidez de teus olhos/Inspiram minha canção./Sou poeta porque és bela,/Tenho em teus olhos, donzela,/A Musa do coração!” (...) “Descansa-me no teu seio./Ouvirás no devaneio/A minha lira cantar!”. O poeta aqui tem a sua identidade de versos com a graça de sua musa, o seu coração faz poesia somente por esta existir, nada mais romântico, em sentido estrito.

LÉLIA : O poema aqui descreve uma imagem feminina impiedosa, irônica, com coração gélido, no que temos : “Passou talvez ao alvejar da lua,/Como incerta visão na praia fria;/Mas o vento do mar não escutou-lhe/Uma voz a seu Deus! ... ela não cria!” (...) “Parecia de amor tremer-lhe a vida/Revelando nos lábios um mistério!/Porém, quando expirou a voz nos lábios/Ergueu sem pranto a fronte descorada,” (...) “Passou talvez do cemitério à sombra,/Mas nunca numa cruz deixou seu ramo;/Ninguém se lembra de lhe ter ouvido/Numa febre de amor dizer : “eu amo!”/Não chora por ninguém ... e quando à noite/Lhe beija o sono as pálpebras sombrias,/Não procura seu anjo à cabeceira/E não tem orações, mas ironias!”. Aqui temos uma estranha espécie de musa impassível, na qual o poeta canta em vão, como um ser de paixonite sofredora por vocação, como é o poeta romântico genérico, este que se dá sem ter nunca nada, ou ter tido por memória mesclas de amor e de maldade infernal, no que temos : “As notas puras da paixão ignora,/Não teve nunca n`alma adormecida/O fogo que inebria e que devora!” (...) “É formosa contudo.” (...) “Há nesse ardente olhar que gela e vibra,/Na voz que faz tremer e que apaixona/O gênio de Satã que transverbera,/E o langor pensativo da Madona!/É formosa, meu Deus! Desde que a vi/Na minha alma suspira a sombra dela,/E sinto que podia nessa vida/Num seu lânguido olhar morrer por ela.”. Mais uma vez amor e morte aqui se encontram, estro do spleen e da paixão dorida, estro romântico consumado, Álvares de Azevedo e seu canto breve dos vinte anos, sua lira fundamental.

POEMAS :

É ELA! É ELA! É ELA! É ELA! É ELA!

É ela! É ela! – murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou – é ela!
Eu a vi – minha fada aérea e pura –
A minha lavadeira na janela!

Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono! ...
Tinha na mão o ferro do engomado ...
Como roncava maviosa e pura! ...
Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido ...
Fui beijá-la ... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido ...

Oh! decerto ... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela ... que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores ...

Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio ...

É ela! é ela! – repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja ...
Abri cioso a página secreta ...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela, - eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh`alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela ...
É ela! é ela! – murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou – é ela! –

NAMORO A CAVALO

Eu moro em Catumbi, mas a desgraça,
Que rege minha vida malfadada,
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcineia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela ...

Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito ... mas furtado.

Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento ...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia – em casamento.

Ontem tinha chovido ... que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama ...

Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada ...

Mas eis que no passar pelo sobrado,
Onde habita nas lojas minha bela,
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela ...

O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada ...

Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio! ...

LÁGRIMAS DA VIDA

Se tu souberas que lembrança amarga,
Que pensamento desflorou meus dias,
Oh! tu não creras meu sorrir leviano
Nem minhas insensatas alegrias!

Quando junto de ti eu sinto às vezes
Em doce enleio desvairar-me o siso,
Nos meus olhos incertos sinto lágrimas ...
Mas da lágrima em troco eu temo um riso!

O meu peito era um templo – ergui nas aras
Tua imagem que a sombra perfumava ...
Mas ah! emurcheceste as minhas flores,
Apagaste a ilusão que aviventava!

E por te amar, por teu desdém – perdi-me ...
Tresnoitei-me nas orgias macilento,
Brindei blasfemo ao vício e da minh`alma
Tentei me suicidar no esquecimento!

Como um corcel abate-se na sombra,
A minha crença agoniza e desespera ...
O peito e lira se estalaram juntos,
E morro sem ter tido primavera!

Como o perfume de uma flor aberta
Da manhã entre as nuvens se mistura,
A minh`alma podia em teus amores
Como um anjo de Deus sonhar ventura!

Não peço o teu amor ... eu quero apenas
A flor que beijas para a ter no seio,
E teus cabelos respirar medroso
E a teus joelhos suspirar d`enleio!

E quando eu durmo, e o coração ainda
Procura na ilusão a tua lembrança,
Anjo da vida passa nos meus sonhos
E meus lábios orvalha de esperança!

MEU SONHO

Eu

Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso ...
E galopas do vale através ...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba? ...
Tu escutas ... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? – que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?

O FANTASMA

Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar! ...

MINHA AMANTE

Ah! volta inda uma vez! foi só contigo
Que à noite, de ventura eu desmaiava,
E só nos lábios teus eu me embebia
De volúpias divinas!

Volta, minha ventura! eu tenho sede
Desses beijos ardentes que os suspiros
Ofegando interrompem! Quantas noites
Fui ditoso contigo!

E quantas vezes te embalei tremendo
Sobre os joelhos meus! Quanto amorosa
Unindo à minha tua face pálida
De amor e febre ardias!

Oh! volta inda uma vez! ergue-se a lua
Formosa como dantes, é bem noite,
Na minha solidão brilha de novo,
Estrela de minh`alma!

Desmaio-me de amor, descoro e tremo,
Morno suor me banha o peito langue,
Meu olhar se escurece e eu te procuro
Com os lábios sedentos!

Oh! quem pudera sempre em teus amores
Sobre teu seio perfumar seus dias,
Beijar a tua fronte, e em teus cabelos
Respirar ebrioso!

És a coroa de meus breves anos,
És a corda de amor de íntima lira,
O canto ignoto, que me enleva em sonhos
De saudosas ternuras!

E tu és como a lua : inda és mais bela
Quando a sombra nos vales se derrama,
Astro misterioso à meia-noite
Te revela a minh`alma.

Oh! minha lira, ó viração noturna,
Flores, sombras do vale, à minha amante
Dizei-lhe que esta noite de desejo
E de ternuras morro!

MINHA MUSA

Minha musa é a lembrança
Dos sonhos em que eu vivi,
É de uns lábios a esperança
E a saudade que eu nutri!
É a crença que alentei,
As luas belas que amei,
E os olhos por quem morri!

Os meus cantos de saudade
São amores que chorei :
São lírios da mocidade
Que murcham porque te amei!
As minhas notas ardentes
São as lágrimas dementes
Que em teu seio derramei!

Do meu outono os desfolhos,
Os astros do teu verão,
A languidez de teus olhos
Inspiram minha canção.
Sou poeta porque és bela,
Tenho em teus olhos, donzela,
A Musa do coração!

Se na lira voluptuosa
Entre as fibras que estalei
Um dia atei uma rosa
Cujo aroma respirei,
Foi nas noites de ventura
Quando em tua formosura
Meus lábios embriaguei!

E se tu queres, donzela,
Sentir minh`alma vibrar,
Solta essa trança tão bela,
Quero nela suspirar!
Descansa-me no teu seio.
Ouvirás no devaneio
A minha lira cantar!

LÉLIA

Passou talvez ao alvejar da lua,
Como incerta visão na praia fria;
Mas o vento do mar não escutou-lhe
Uma voz a seu Deus! ... ela não cria!

Uma noite aos murmúrios do piano
Pálida misturou um canto aéreo ...
Parecia de amor tremer-lhe a vida
Revelando nos lábios um mistério!

Porém, quando expirou a voz nos lábios
Ergueu sem pranto a fronte descorada,
Pousou a fria mão no seio imóvel,
Sentou-se no divã ... sempre gelada!

Passou talvez do cemitério à sombra,
Mas nunca numa cruz deixou seu ramo;
Ninguém se lembra de lhe ter ouvido
Numa febre de amor dizer : “eu amo!”

Não chora por ninguém ... e quando à noite
Lhe beija o sono as pálpebras sombrias,
Não procura seu anjo à cabeceira
E não tem orações, mas ironias!

Nunca na terra uma alma de poeta
Chorosa, palpitante a gemebunda
Achou nessa mulher um hino d ´alma
E uma flor para a fronte moribunda.

Lira sem cordas não vibrou d `enlevo :
As notas puras da paixão ignora,
Não teve nunca n`alma adormecida
O fogo que inebria e que devora!

Descrê. Derrama fel em cada riso –
Alma estéril não sonha uma utopia ...
Anjo maldito salpicou veneno
Nos lábios que tressuam de ironia.

É formosa contudo. Há nessa imagem
No silêncio da estátua alabastrina
Como um anjo perdido que ressumbra
Nos olhos negros da mulher divina.

Há nesse ardente olhar que gela e vibra,
Na voz que faz tremer e que apaixona
O gênio de Satã que transverbera,
E o langor pensativo da Madona!

É formosa, meu Deus! Desde que a vi
Na minha alma suspira a sombra dela,
E sinto que podia nessa vida
Num seu lânguido olhar morrer por ela.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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