PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O MUNDO SUBTERRÂNEO

Texto: A alegoria da caverna – A República (514a-517c)
Sócrates: Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de
educação que ela recebeu ou não, de acordo com o quadro que vou
fazer. Imagine, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea
em forma de caverna. A entrada se abre para a luz em toda a largura
da fachada. Os homens estão no interior desde a infância,
acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem
mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja
diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao
longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que
sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um pequeno muro,
semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre
eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e
apresentam o espetáculo.

OS ESTUDANTES

Um grupo de estudantes do Rio de Janeiro, da PUC da Gávea, resolvem fazer uma viagem para a Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo, localizada no Tocantins, era um grupo de seis estudantes universitários, todos calouros de Biologia, quatro homens e duas mulheres, destes tinha apenas um casal formado, Henrique e Helena, e que eram os líderes de tal “expedição maluca”, como eles estavam chamando a viagem. A tal “expedição maluca” não tinha tal título por acaso, pois Henrique e Helena, junto com Marília, e mais Paulo, Fabiano e Nicholas, eram como se dizia usuários de maconha, sendo que Henrique tava numas de LSD, mas só ele, já que todo mundo tinha medo, e junto com eles isopores com vodka Absolut e Grey Goose, para tomar quente mesmo, sem refrigeração, na talagada que era uma competição de jogo de cartas que quem perdia bebia um copo americano cheio com uma talagada só, e se vomitasse, tinha que pagar uma prenda inventada pelo participante que estivesse à sua direta.
Certo que a “expedição maluca” não era ainda batizada só por ter vodka e jogo de cartas com desafios ao bom senso, mas por ser uma ideia concebida por Henrique, que já tinha ido na Ilha do Bananal dois anos antes, com dois primos seus, eles quase se perderam nos interiores da Mata do Mamão, conhecida por ter um grupo de índios não-contactados, os Cara-Preta, na parte sul da Terra Indígena Inãwébohona, não viram os tais índios, mas Henrique disse que passou seis horas delirando de ácido vendo uma caverna que emitia uma luz azul cobalto enfumaçada na noite profunda em que ele acampou por lá. A Terra Indígena que era conhecida por ser também habitada pelos índios da etnia Javaé. De manhã, um vaqueiro apareceu e disse para Henrique e seus dois primos sumirem dali, pois havia índios armados com machados roubados dos brancos, um grupo de assaltantes, e uma caverna com habitantes do outro mundo. No que os três acharam que aquele vaqueiro era mais doido do que eles, mas decidiram sair da mata e voltar no dia seguinte para o Rio de Janeiro.
Os estudantes, então, desta vez, liderados pelo lunático e brilhante Henrique e a elétrica Helena, saem do Rio de Janeiro de avião até Palmas, aonde pegam um ônibus e um barco até a Ilha do Bananal, era janeiro, pleno verão, eles tinham acabado de concluir o primeiro período, e eram todos da mesma turma, Henrique, por sua vez, já tinha lançado o desafio de que eles entrariam na Mata do Mamão para achar os Cara-Preta, única tribo isolada que restava no estado do Tocantins. Todos acharam aquilo um blefe de Henrique, mas acabou que Nicholas, meio tonto de Absolut, percebeu que tudo era muito sério e calculado, isto logo quando chegou com todos na ilha e Henrique disse que tinha uma bússola, um mapa e um GPS, e então Paulo riu e disse que mesmo assim não fazia muito sentido se embrenhar na mata com índios selvagens e vaqueiros malucos falando de cavernas misteriosas, mas que acampar dentro da mata para jogar cartas e tomar vodka valia a pena, contudo.
Eles chegam até o município de Lagoa da Confusão, todos com mochilas enormes e coloridas e isopores lotados de vodka. No primeiro dia ficam numa pousada, lá fazem uma festinha na piscina com vodka, vão até a rua para ver o movimento, e fumam maconha e skank, Henrique tinha uma cartela com vinte ácidos, pretendia tomar tudo até antes de retornar ao Rio de Janeiro, e toma a famosa bicicletinha quando bate meia-noite, nada na piscina, e depois vai perambular só ele e Helena pelo município, Helena compra umas miçangas e colares, Henrique compra um bong com uma cara de diabo, enche o bong de vodka e acende um haxixe, voltam para a pousada depois de ver o sol nascer, e Henrique dorme que nem uma pedra na varanda da pousada numa rede toda branca. Nicholas acorda cedo e vai para a piscina, Paulo acorda dez da manhã, e o resto levanta ao meio-dia, a pousada não tinha TV, nem frigobar e nem café-da-manhã, era comandada por um velhinho com cara de mau e simpático ao mesmo tempo, meio descendente de índio e com uns mulets já tomados pelas cãs, óculos de grau estilo Buddy Holly, sua esposa, uma mulher de uns quarenta anos, enxuta, mas caladona, que ficava na recepção ouvindo rádio com música rural antiga. O velhinho se chamava Benedito, e sua esposa curiosamente Benedita.
Henrique e Nicholas adoram o velhinho e também ouvem dele histórias fantásticas da Mata do Mamão, a mesma história contada pelo vaqueiro contada a Henrique dois anos antes, mas com mais alguns detalhes de uns habitantes azuis da caverna, dos Cara-Preta e ainda umas coisas de saci e lobisomens, no que Henrique, que achava que era meio maluco, se sentiu um amador diante da imaginação febril do senhor Benedito. O velhinho com cara de mau, pele enrugada e dourada, também tinha um senso de humor próprio e se admirou quando Henrique e Nicholas disseram que eles iriam acampar dentro da Mata do Mamão, no que Benedito disse que eles eram malucos, e Henrique e Nicholas pensaram que a maluquice era do velhinho com narrativas para assustá-los, os dois levaram por menos tais histórias, e se de fato havia smurfs na floresta, eles tinham vodka e maconha para oferecer àqueles seres fantásticos.
Eles ainda ficam no dia seguinte no município da Lagoa da Confusão, e Helena convence o grupo a visitar no dia seguinte, já na Terra Indígena Inãwébohona, a tribo da etnia Javaé. Sabendo disso, o velhinho Benedito, que havia simpatizado muito com o grupo, disse que era neto de um membro da tribo com uma branca aventureira que depois sumiu no mundo e deixou seu pai aos cuidados de um casal de brancos em Goiás Velho, local onde Benedito nasceu, mas que depois de se aposentar de um trabalho exaustivo de bancário, comprou a pousada, disse que os levaria para a tribo, pois ali viviam uns primos seus, e ele conhecia bem uma parte da tribo, então eles passam uma tarde com a etnia Javaé, e ouvem lendas de toda sorte, e novamente, na tradução que Benedito fazia do que o pajé falava, aparece os tais seres azuis da caverna, e os Cara-Preta eram, contudo, mais temidos do que os tais seres, pois o pajé dizia que havia um mundo paralelo debaixo da terra, só acessível por portas de luz, e Henrique então tinha cada vez mais certeza de que a “expedição maluca” tinha que ser um mergulho sinistro no coração da Mata do Mamão.
Eles ficam em outra pousada nesta noite, e na manhã seguinte pegam suas mochilas, seus isopores de vodka, e vão acampar primeiro na entrada da Mata do Mamão, Henrique e Nicholas saem do acampamento ainda pela manhã e fazem uma primeira inspeção pela mata, não veem nada, e Henrique logo conclui que todos que moravam ali perto eram pirados com tais histórias que tinha ouvido, e que só restaria para eles carteado e vodka, numa competição que iria varar a noite, que naquele verão era repleto de mosquitos e barulhos de coruja. Helena se junta à Marília, e as duas vão atrás de Henrique e Nicholas, que voltam com uma Grey Goose e dizem que não havia nada demais lá para dentro da mata, que os bichinhos azuis poderiam ser apenas vaga-lumes, e que Henrique tomaria ácido para ver melhor tudo ali, pois tinha certeza de que era tudo maluquice de índio todas aquelas histórias, que o vaqueiro apareceria de novo para assustá-lo com aquele blá blá blá todo, mas que a mata era deles, e o acampamento o centro daquele mundo.
Helena fica com uma pulga atrás da orelha, e como era uma pilha, decide ir ela sozinha para dentro da mata com uma lanterna madrugada adentro, todos ficam preocupados, mas Helena, além de ser uma pilha, também era uma onça e ninguém questionou suas intenções, ela tinha uma ideia na cabeça de que veria aonde estavam os tais Cara-Preta e de que seria para os tais índios dizerem para ela quem eram os bichinhos azuis e aonde ficava a caverna maluca, se tinha porta ou se vivia trancada, sendo aberta só em noites de lua cheia. Helena fica a madrugada toda perambulando pela Mata do Mamão e acaba se perdendo dentro da floresta, amanhece e ela não retorna, Henrique e Nicholas, junto com os outros, vão atrás de Helena, pois já sabiam que ela havia se perdido na mata, ficam o dia todo procurando Helena e nada, quando começa a anoitecer, eles decidem voltar ao acampamento, esbaforidos e temendo pela vida de Helena.
Helena, no meio da madrugada seguinte, já tinha se embrenhado na mata com um vigor de uma caminhante frenética, se depara com sons da floresta, insetos e corujas, tinha levado uma bolsa, dali tira um baseado já apertado e fuma no meio da escuridão, começa a ficar desesperada, e o efeito da droga lhe aumenta a síndrome paranoide, ela sabia que já tinha se perdido no meio da mata, depois que fuma tudo, começa a correr em círculos, a mata fica cada vez mais densa, e a cada vez que ela tenta encontrar um caminho de volta ao acampamento, mais a confusão ficava maior, é quando então aparece um Cara-Preta e começa a dar flechadas na direção de Helena, aparece logo um outro tentando lhe dar machadadas, ela que era faixa marrom de judô, tenta derrubar o índio do machado, eles se engalfinham, ela consegue tomar o machado do índio e começa a berrar na direção dos dois índios e então estes somem no meio da mata, ela fica histérica, decide que aquele machado seria útil para a sua defesa, e então amanhece, e ela, depois de dormir por poucas horas dentro de uma gruta, tenta escapar daquele labirinto, em vão, o dia avança até o entardecer, e ela então se desespera e, mesmo sendo um azougue, desmorona e chora.

A CAVERNA

Lísias era o rei da caverna, ali habitava uma nação que tem origens perdidas no tempo, uns diziam que o patriarca antigo veio das estrelas, de um certo país banhado de sol e com quinze luas no céu, pois esta era a narrativa tradicional deste povo que agora se autodenominava os cabeças azuis, um dos hábitos destes habitantes da caverna era pintarem o corpo todo de azul, havia uma lenda de que um de seus avós havia saído da caverna e tinha retornado louco, no que foi abatido por ordem do rei da época. Lísias, agora, tinha baixado um códice em que um dos tabus era ninguém sair da caverna, a pena era a morte para quem fizesse isso, pois Lísias, segundo alguns documentos particulares que faziam parte do tesouro daquele reino, dizia que perto da caverna havia os Cara-Preta, vindos de um mundo ilusório, o chamado desconhecido, e eles eram poucos, mas eram maus e violentos, e uma das normas daquele reino pretensamente evoluído era a cultura da paz e do prazer, pois todos eles consumiam bebidas mágicas que lhes faziam voar para o universo eterno do patriarca, com visões extáticas de puro deleite.
Dentro daquele país subterrâneo Lísias governava com mão de ferro, era um tipo de paz imposta pela força de seu exército de leões, pois assim eram chamados os soldados que tomavam conta das fronteiras das quais ninguém poderia passar, mas dentro daquele reino autoritário de uma paz armada, já havia alguns conspiradores contra os desmandos de Lísias, eram eles três conspiradores que tentavam inventar um plano de sair da caverna, pegar as armas dos Cara-Preta e voltar à caverna para matar o rei Lísias. Tudo isso para libertar a caverna e todos verem o mundo real, a floresta que vivia nos sonhos de liberdade dos conspiradores e que o rei censurava como loucura, pois havia o mito de quem saísse da caverna voltava delirando e falando fantasias do que tinha visto lá fora, mais um dos mitos inventados pelo governo da caverna para impor a paz à força. Dos três conspiradores, havia Dumas, Rafik e o líder e mentor intelectual da fuga da caverna, Pausânias.
A ordem pacífica da caverna era dividida em quatro classes, os nobres, todos parentes do rei Lísias, que viviam na opulência, em seguida havia os sacerdotes, profetas das estrelas do patriarca lendário, os soldados, chamados leões, e o populacho, os azuis, que se pintavam de azul todos os dias, ao contrário das outras classes que faziam isso nos dias dos rituais espirituais dos sacerdotes, e o populacho que ficava, portanto, entorpecido com as bebidas mágicas servidas nos banquetes diários da nação, uma espécie de Roma decadente e com uma paz produzida artificialmente por um ideal frouxo de ilha das delícias, estratégia alienante dos sacerdotes e dos nobres para manter a opulência verdadeira das duas classes maiores, também servidas das bebidas mágicas, mas com o controle hipnótico feito pelos sacerdotes sobre os leões, que eram servos cegos e hipnotizados da tal ordem pacífica imposta à força. Pausânias e os outros dois conspiradores sendo então da ralé dos azuis.
Numa noite profunda e quieta, já com o plano arquitetado, Pausânias, Dumas e Rafik conseguem apagar um dos guardiões fiéis de uma das fronteiras, eles lhe dão éter e fazem ele apagar, os três conseguem então passar por um portal de luz, pois os outros leões estavam dormindo, ficava tudo no alto da caverna, um precipício beirava aquele portal, a fronteira tinha algumas trancas, Pausânias consegue pegar o molho de chaves que estava com o leão guardião, testa as chaves, a quinta dentre sete chaves abre o portal de luz que passa a brilhar em azul cobalto, eles conseguem sair da caverna, e passam por uma espécie de transe e sensação de queda e depois por um longo túnel que o levam para o coração de uma floresta que eles não conheciam, e veem pela primeira vez o brilho da abóbada noturna, já não era a falsa noite da caverna dos pobres azuis da ralé, da paz de Lísias e de seus leões hipnotizados, eles sabiam que estavam na terra da liberdade, e logo vão à caça dos Cara-Preta, para pegarem suas armas e voltarem para a caverna para matar o rei Lísias, o hipócrita da paz.

O JOGO DE CARTAS

A noite avança novamente, Helena começa a gritar por socorro, os outros estudantes, acampados na entrada da Mata do Mamão, sentem que saía um som angustiado da floresta, pensam que poderia ser Helena, o som vinha de longe, do fundo da mata, eles então tentam decidir quem entraria na floresta, Fabiano se candidata, Henrique, como era normalmente mais inteligente do que os outros, tanto intelectualmente, como fisicamente, era faixa preta de jiu-jitsu desde os dezessete anos, e treinava muay-thai há três anos, decide que os outros teriam que ficar no acampamento, caso eles também se perdessem, e Henrique dá um cartão com o telefone dos bombeiros para Marília em caso de sinistro. Contudo, Henrique tinha certeza de que não sairia daquela noite densa sem Helena, tudo sairia nos conformes, sem ideias malucas de vaqueiro ou tramas transcendentais.
Henrique aciona seu GPS, ele então, junto com Fabiano, avançam para dentro da mata, seguindo o som que logo percebem, ao irem mais para o fundo da mata, se tratar de um grito humano, e Henrique percebe logo ser a voz de Helena, eles seguem por uma hora até acharem uma oca, pensam ser os desconhecidos Cara-Preta, mas ao entrarem na oca, esta estava abandonada, e Henrique lembra que os tais índios eram nômades, portanto, já tinham saído dali, não havia sinal de ação recente naquela área. Fabiano acende uma lanterna fortíssima para ir noite adentro na busca de Helena junto com Henrique. Enquanto isso, Helena continua gritando, mas isso chama atenção dos índios Cara-Preta, um deles aparece novamente com um machado na direção de Helena, agora ela também tinha um machado, e consegue dar uma machadada no ombro e na cabeça do índio, que desmaia mas não morre, ela corre a esmo, mas na corrida vê uma luz, perceba ser uma luz artificial, talvez de uma lanterna, ela então grita novamente, Henrique e Fabiano ouvem e vão em direção ao grito, que se aproximava de onde eles estavam. Helena corre velozmente em direção da luz de lanterna, quando faltavam cinquenta metros na mata densa entre os rapazes e ela, Henrique e Fabiano decidem também dar um grito, Helena grita de volta, aí a charada já tinha sido matada, Helena vai cada vez mais perto da luz da lanterna que também vai na direção dela, e então os três se trombam e ficam aliviados, decidem dormir por ali e voltar ao amanhecer para o acampamento. Henrique ri muito, sabia que acharia Helena, e fala logo que quando voltassem fizessem o carteado com vodka que fizera tanto sucesso na turma de faculdade deles.
Então, no primeiro raiar do dia seguinte, eles já acordam e seguem em direção da saída da mata, a qual Fabiano, que tinha boa memória fotográfica, tinha decorado, contando os próprios passos na mata, só foi ele contar de novo o mesmo número de passos e a linha que tinha seguido com sua visão acurada, tudo dá certo, quando são dez da manhã, eles já estão de volta ao acampamento, e todos comemoram, Helena é levantada por todos como na festa de uma nova campeã, ninguém dá bronca, todos estavam mais é curiosos, depois do alívio, de saberem o que ela tinha visto na mata, e ela relata a sua luta com um Cara-Preta e que tinha dado uma machadada em um, de um machado que ela tinha pego de outro índio daqueles, e Henrique então dá por começado o jogo de cartas ali, numa competição de shot de vodka Grey Goose e Absolut, numa roda de cartas de baralho, uma roda que também passava um cone de baseado prensado, deixando o haxixe e o skank para o fim da competição, onde ninguém tinha o direito do arrego, e não ser em caso extremo de desarranjo ou pressão baixa.
As cartas são distribuídas entre os estudantes, era o tal jogo de atenção, cartas do mesmo naipe em sequência numérica de cinco cartas, o que tiver tal combinação primeiro deixa cair as cartas, os que vissem as cartas caindo teriam que deixar suas cartas caírem também, o último que ficasse com as cartas em pé nas mãos teria que tomar um corpo americano cheio de vodka, o único benefício é que começava as três primeiras doses com Absolut, e depois era Grey Goose dali para diante, e no caso o que mais comia mosca da galera geralmente era o Paulo, o que nunca perdia, só de propósito, era Fabiano, que além de sua memória fotográfica, própria para labirintos e florestas densas, tinha uma atenção plena de monge que parecia que meditava horas por dia, coisa que ele fazia diariamente, mas só vinte minutinhos pela manhã.
O jogo dura três horas, e obviamente Paulo tomou uns dez shots e ficou tonto, quando disse que iria vomitar o jogo terminou, Fabiano levou Paulo para a beirada da Mata do Mamão, e ali Paulo soltou um jato fantástico de vômito branco quase transparente e brilhoso de vodka pura, uma cachoeira de Absolut com Grey Goose saiu de sua boca como uma mangueira de bombeiro num incêndio, foi uma cena em que Marília riu tanto que teve uma crise de soluço de uma hora e também acabou vomitando de tanto soluço. Henrique então pegou um skank e ingeriu dois ácidos bicicletinha, todos esperaram o anoitecer, pois Henrique colheu uns cogumelos zebu que tinha perto da Mata do Mamão, no meio da tarde anterior, que eram umas trinta chapeletas roxas de boi zebu, pronto para a viagem psicodélica que todos fariam naquela noite, com cinco chapeletas para cada um, ingeridas sólidas, para um efeito mais autêntico, diria Henrique, o químico amador e autodidata, que fazia biologia, mas que quase fez química por também ter afinidade com a disciplina, na verdade, ele tinha obsessão por estudar medicamentos opioides, tendo tomado doses de Palfium uma vez, com receita azul falsificada, estudo que lhe tomava mais tempo até do que sua pesquisa sobre psilocibina e plantas mágicas.

OS DOIS MUNDOS

Pausânias, Dumas e Rafik tinham deixado a caverna, eles saem no meio da mata naquela noite estrelada de céu totalmente limpo, era a primeira vez que eles tinham aquela visão maravilhosa, muito melhor que a ração de bebidas mágicas que era fervida dentro da caverna, numa rotina tão repetitiva que já era uma coisa enjoada para aqueles conspiradores platônicos e libertários, e nesta noite eles sairiam à caça dos Cara-Preta, numa busca frenética por machados, armadilhas e o que mais aqueles índios tivessem de armas para eles retornarem e libertarem a ralé dos azuis que era explorada pelo rei Lísias, os nobres e sobretudo os sacerdotes.E Pausânias também tinha a ideia de libertar os leões do transe hipnótico feito pela bruxaria e magia negra dos sacerdotes, que pregavam a paz, mas eram todos magos negros, e muitos da ralé sabiam disso, mas não faziam nada pois tinham medo de também serem enfeitiçados e virarem zumbis como os leões, que pareciam máquinas vindas de Esparta, e que só faziam ginástica e empunhavam escudos e lanças o tempo todo, guardando as fronteiras no topo da caverna.
Na noite, começa a cerimônia dos estudantes, Henrique tem a ideia de que eles comessem os cogumelos zebu e fossem todos caçar os Cara-Preta na Mata do Mamão, que Fabiano seria o guia noturno deles, e que a lanterna abriria o caminho pela mata sem ninguém se perder ou se dispersar uns dos outros. Na mata eles encontraram mais uma oca vazia, entraram na oca, mas de um súbito, ouve-se um barulho curto de vento, Fabiano logo percebe, eram flechadas, todos se jogam no chão, aparecem então três índios Cara-Preta com machados, Paulo neste momento pensa, viajando de cogumelo, estar vendo pequenos diabos vermelhos, e sai correndo pela mata, se dispersando do grupo e se perdendo na mata densa, a luta dos Cara-Preta então se dá com Henrique e Helena, os únicos ali que faziam artes marciais a sério, pois eram graduados, e acabam por conseguir espantar os três índios, que somem novamente pela Mata do Mamão. Eles agora teriam que encontrar Paulo. Este está agora, já na madrugada, na verdade, numa bad trip, vendo diabos vermelhos por toda a parte. Ele tromba com um Cara-Preta de verdade e pensa estar vendo o próprio Satanás, no que o Cara-Preta lhe dá uma flechada que atinge a sua perna, Paulo sai correndo novamente, e dá a sorte de encontrar a saída da mata e voltar ao acampamento, no que ele entra na sua barraca iglu e se recolhe como um bicho assustado e afunda dentro das cobertas, louco para que seu delírio passasse logo, e consegue enfim dormir.
Os outros agora, não sabendo que Paulo havia voltado para o acampamento, o procuravam cada vez mais para o fundo da Mata do Mamão, lá acabam encontrando um nicho com três ocas, dali saem dez Cara-Preta, e os índios começam a distribuir flechadas na direção do grupo de estudantes, Henrique então lança a luz da lanterna na direção dos índios, estes ficam confusos e pensam que aquilo era um bicho luminoso, se assustam e saem mais para dentro da mata. Henrique e Fabiano decidem ver o que tinha dentro das ocas, Helena dizia que já era hora de voltar para o acampamento, pois eles já tinham conseguido ver os índios Cara-Preta, mas Henrique e Fabiano estavam cada vez mais empolgados, então os dois ficam ali nas ocas, enquanto Helena e os outros decidem voltar ao acampamento, ficando a cargo de Henrique e Fabiano encontrarem Paulo, ou voltarem se tudo fosse em vão.
Helena, Marília e Nicholas voltam ao acampamento ainda de madrugada e encontram Paulo debaixo das cobertas na barraca iglu, ficam aliviados, e Nicholas decide voltar à Mata do Mamão para avisar a Fabiano e Henrique que Paulo estava bem tranquilo dormindo como um anjo no acampamento. Neste momento, em que Nicholas caminha de volta à mata, Henrique e Fabiano estão se divertindo brincando de luta com machados entre as três ocas, acendem uma fogueira, pegam penas e botam na cabeça e ficam imitando índios de uma maneira estilizada e pejorativa, ainda estavam na viagem psicodélica de psilocibina, estavam, como se diz na gíria, “gastando a onda”, e fazem um rito que eles chamam de dança da chuva, e a viagem era tanta, que de fato começa a chover forte, uma tempestade que chega a apagar a fogueira, e então Henrique e Fabiano ficam eufóricos, achando que eles é que tinham invocado a chuva com a dança do cogumelo, com machados e penas coloridas.
No meio disso, ali perto estavam Pausânias, Dumas e Rafik, os três com o corpo inteiro e a cabeça pintados de azul, com uma tinta que não saía na água da chuva, só com banheira quente por imersão, e eles ficam admirando a tempestade, coisa rara de acontecer na caverna dos azuis, que normalmente era bem quente, sendo que as bebidas mágicas ali também serviam para anestesiar a população que ali morava do forno que era morar na caverna. Pausânias vê as três ocas, e vê dois malucos dançando na chuva com penas na cabeça, ele pensa que eram dois dos Cara-Preta, os três azuis, Pausânias, Dumas e Rafik avançam na direção das ocas, Henrique e Fabiano ainda estavam numa viagem intensa de psilocibina, e veem os três azuis indo na direção deles, e os dois acham que aquilo era mais uma das visões psicodélicas do cogumelo zebu, mas Henrique se lembra da  história do vaqueiro e da palavra do pajé da etnia Javaé, e logo percebe que aquilo não era uma visão, que era real, pois os azuis atacam Henrique e Fabiano, e perguntam aonde ficava as armas, os dois se assustam e dizem que não eram índios, que os Cara-Preta tinham ido embora dali com medo da luz da lanterna, que eles eram brancos do Rio de Janeiro, estudantes de Biologia, mas a língua dos azuis era desconhecida, enquanto Henrique e Fabiano falam português, os azuis falam um dialeto bárbaro chamado pelos habitantes da caverna de Uti, eles então perdem a paciência e atacam de vez Henrique e Fabiano, que acham então que os azuis eram duendes do mal e se mandam mata afora com medo daqueles três malucos todos pintados de azul. Ali eles deixam os machados e várias armas brancas, que então Pausânias, Rafik e Dumas recolhem e pegam para voltar à caverna e libertar a ralé dos azuis e os soldados hipnotizados por feitiço, apesar dos Cara-Preta ser um conjunto em torno de vinte a trinta índios isolados, a quantidade de armas brancas ali naquelas três ocas era fantástica, o jeito, para reforçar a revolução de Pausânias dentro da caverna era dar a boa nova logo no retorno para incitar uma revolta da ralé, roubar as poções dos sacerdotes e pegar os antídotos contra tais poções para quebrar o encanto e transe em que dormiam os espartanos leões das fronteiras da caverna, e ter força suficiente para abrir o portal e libertar a ralé e os soldados, mas o plano era otimista demais, mas Pausânias estava obcecado pela vitória contra Lísias.
Enquanto isso, Henrique e Fabiano correm no meio de uma madrugada tempestuosa, pois a chuva caía ainda radicalmente sobre a Mata do Mamão, e já era três da manhã de uma noite clara de lua cheia, e eles vão a uma velocidade insana até trombarem com Nicholas, este que avisa que estava tudo bem com Paulo, mas que logo se espanta com a história sobre os azuis que Henrique e Fabiano, esbaforidos, contavam com riqueza de detalhes, Nicholas fica duvidando e pensa que Henrique e Fabiano tinham ido longe demais com a brincadeira da psilocibina, mas acaba convencido da veracidade do relato, pois só um mitômano insano poderia inventar uma coisa daquela com um encadeamento tão real e nítido, então Nicholas passa a acreditar na existência dos azuis, e os três conseguem chegar com o raiar da aurora no acampamento, aonde os outros estavam já dormindo.
Ao meio-dia, com todos já acordados, a história sobre os azuis é relatada ao grupo por Henrique e Fabiano, e que já era hora então deles voltarem ao Rio de Janeiro, que a festa tinha sido boa, mas que as lendas estavam virando realidade e então todos decidem que era hora de voltar ao mundo real, e vão para Palmas, pegam um avião na manhã seguinte, e se dão por satisfeitos, agora eram testemunhas dos Cara-Preta e dos azuis, a Ilha do Bananal os tinha convencido de que a floresta é a mãe de todos os  mistérios, e esta foi a sensação da aventura de conhecer a natureza na sua essência, olhando de frente para todas as suas lendas e descobrindo o mundo paralelo que de fato existia.
Pausânias, Rafik e Dumas voltam à caverna, passam novamente pelo portal que brilhava de azul cobalto, entram de volta e convocam a ralé para uma revolução, dão as armas brancas para trinta dos azuis da ralé, eles tentam lutar contra os sacerdotes, mas os antídotos não são achados, pois o mago negro líder da classe dos sacerdotes, percebendo que seu templo seria invadido por um bando da ralé, logo atina que teria que quebrar e derramar todos os potes de antídotos, no que os azuis da ralé, revoltados, confundem os potes, dão para os leões, mas o encanto continua, eles obedecem fielmente o rei Lísias, e os sacerdotes seus comandantes hipnóticos. Pausânias é condenado à morte por liderar uma insurreição, Rafik e Dumas por conspiração, e os trinta da ralé que tinham pego em armas são perdoados, pois tinham sido manipulados pelos três bandidos que diziam das loucuras do mundo fora da caverna, quando todos os habitantes da caverna são convencidos novamente de que tudo era fantasia, e que o mundo real era a caverna e tudo que ali vivia.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Contos Psicodélicos – volume I (escrito em 18 e 19/10/2017).

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