“Texto: A alegoria da
caverna – A República (514a-517c)
Sócrates: Agora imagine
a nossa natureza, segundo o grau de
educação que ela
recebeu ou não, de acordo com o quadro que vou
fazer. Imagine, pois,
homens que vivem em uma morada subterrânea
em forma de caverna. A
entrada se abre para a luz em toda a largura
da fachada. Os homens
estão no interior desde a infância,
acorrentados pelas
pernas e pelo pescoço, de modo que não podem
mudar de lugar nem
voltar a cabeça para ver algo que não esteja
diante deles. A luz
lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao
longe, no alto. Entre
os prisioneiros e o fogo, há um caminho que
sobe. Imagine que esse
caminho é cortado por um pequeno muro,
semelhante ao tapume
que os exibidores de marionetes dispõem entre
eles e o público, acima
do qual manobram as marionetes e
apresentam o
espetáculo.”
OS ESTUDANTES
Um grupo de estudantes do Rio de Janeiro, da PUC da Gávea,
resolvem fazer uma viagem para a Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do
mundo, localizada no Tocantins, era um grupo de seis estudantes universitários,
todos calouros de Biologia, quatro homens e duas mulheres, destes tinha apenas
um casal formado, Henrique e Helena, e que eram os líderes de tal “expedição
maluca”, como eles estavam chamando a viagem. A tal “expedição maluca” não
tinha tal título por acaso, pois Henrique e Helena, junto com Marília, e mais
Paulo, Fabiano e Nicholas, eram como se dizia usuários de maconha, sendo que
Henrique tava numas de LSD, mas só ele, já que todo mundo tinha medo, e junto
com eles isopores com vodka Absolut e Grey Goose, para tomar quente mesmo, sem
refrigeração, na talagada que era uma competição de jogo de cartas que quem
perdia bebia um copo americano cheio com uma talagada só, e se vomitasse, tinha
que pagar uma prenda inventada pelo participante que estivesse à sua direta.
Certo que a “expedição maluca” não era ainda batizada só por
ter vodka e jogo de cartas com desafios ao bom senso, mas por ser uma ideia
concebida por Henrique, que já tinha ido na Ilha do Bananal dois anos antes,
com dois primos seus, eles quase se perderam nos interiores da Mata do Mamão,
conhecida por ter um grupo de índios não-contactados, os Cara-Preta, na parte
sul da Terra Indígena Inãwébohona, não viram os tais índios, mas Henrique disse
que passou seis horas delirando de ácido vendo uma caverna que emitia uma luz
azul cobalto enfumaçada na noite profunda em que ele acampou por lá. A Terra
Indígena que era conhecida por ser também habitada pelos índios da etnia Javaé.
De manhã, um vaqueiro apareceu e disse para Henrique e seus dois primos sumirem
dali, pois havia índios armados com machados roubados dos brancos, um grupo de
assaltantes, e uma caverna com habitantes do outro mundo. No que os três
acharam que aquele vaqueiro era mais doido do que eles, mas decidiram sair da
mata e voltar no dia seguinte para o Rio de Janeiro.
Os estudantes, então, desta vez, liderados pelo lunático e
brilhante Henrique e a elétrica Helena, saem do Rio de Janeiro de avião até
Palmas, aonde pegam um ônibus e um barco até a Ilha do Bananal, era janeiro,
pleno verão, eles tinham acabado de concluir o primeiro período, e eram todos
da mesma turma, Henrique, por sua vez, já tinha lançado o desafio de que eles
entrariam na Mata do Mamão para achar os Cara-Preta, única tribo isolada que
restava no estado do Tocantins. Todos acharam aquilo um blefe de Henrique, mas
acabou que Nicholas, meio tonto de Absolut, percebeu que tudo era muito sério e
calculado, isto logo quando chegou com todos na ilha e Henrique disse que tinha
uma bússola, um mapa e um GPS, e então Paulo riu e disse que mesmo assim não
fazia muito sentido se embrenhar na mata com índios selvagens e vaqueiros
malucos falando de cavernas misteriosas, mas que acampar dentro da mata para
jogar cartas e tomar vodka valia a pena, contudo.
Eles chegam até o município de Lagoa da Confusão, todos com
mochilas enormes e coloridas e isopores lotados de vodka. No primeiro dia ficam
numa pousada, lá fazem uma festinha na piscina com vodka, vão até a rua para
ver o movimento, e fumam maconha e skank, Henrique tinha uma cartela com vinte
ácidos, pretendia tomar tudo até antes de retornar ao Rio de Janeiro, e toma a
famosa bicicletinha quando bate meia-noite, nada na piscina, e depois vai perambular
só ele e Helena pelo município, Helena compra umas miçangas e colares, Henrique
compra um bong com uma cara de diabo, enche o bong de vodka e acende um haxixe,
voltam para a pousada depois de ver o sol nascer, e Henrique dorme que nem uma
pedra na varanda da pousada numa rede toda branca. Nicholas acorda cedo e vai
para a piscina, Paulo acorda dez da manhã, e o resto levanta ao meio-dia, a
pousada não tinha TV, nem frigobar e nem café-da-manhã, era comandada por um
velhinho com cara de mau e simpático ao mesmo tempo, meio descendente de índio
e com uns mulets já tomados pelas cãs, óculos de grau estilo Buddy Holly, sua
esposa, uma mulher de uns quarenta anos, enxuta, mas caladona, que ficava na
recepção ouvindo rádio com música rural antiga. O velhinho se chamava Benedito,
e sua esposa curiosamente Benedita.
Henrique e Nicholas adoram o velhinho e também ouvem dele
histórias fantásticas da Mata do Mamão, a mesma história contada pelo vaqueiro
contada a Henrique dois anos antes, mas com mais alguns detalhes de uns
habitantes azuis da caverna, dos Cara-Preta e ainda umas coisas de saci e
lobisomens, no que Henrique, que achava que era meio maluco, se sentiu um
amador diante da imaginação febril do senhor Benedito. O velhinho com cara de
mau, pele enrugada e dourada, também tinha um senso de humor próprio e se
admirou quando Henrique e Nicholas disseram que eles iriam acampar dentro da
Mata do Mamão, no que Benedito disse que eles eram malucos, e Henrique e
Nicholas pensaram que a maluquice era do velhinho com narrativas para
assustá-los, os dois levaram por menos tais histórias, e se de fato havia
smurfs na floresta, eles tinham vodka e maconha para oferecer àqueles seres
fantásticos.
Eles ainda ficam no dia seguinte no município da Lagoa da
Confusão, e Helena convence o grupo a visitar no dia seguinte, já na Terra
Indígena Inãwébohona, a tribo da etnia Javaé. Sabendo disso, o velhinho
Benedito, que havia simpatizado muito com o grupo, disse que era neto de um
membro da tribo com uma branca aventureira que depois sumiu no mundo e deixou
seu pai aos cuidados de um casal de brancos em Goiás Velho, local onde Benedito
nasceu, mas que depois de se aposentar de um trabalho exaustivo de bancário,
comprou a pousada, disse que os levaria para a tribo, pois ali viviam uns
primos seus, e ele conhecia bem uma parte da tribo, então eles passam uma tarde
com a etnia Javaé, e ouvem lendas de toda sorte, e novamente, na tradução que
Benedito fazia do que o pajé falava, aparece os tais seres azuis da caverna, e os
Cara-Preta eram, contudo, mais temidos do que os tais seres, pois o pajé dizia
que havia um mundo paralelo debaixo da terra, só acessível por portas de luz, e
Henrique então tinha cada vez mais certeza de que a “expedição maluca” tinha
que ser um mergulho sinistro no coração da Mata do Mamão.
Eles ficam em outra pousada nesta noite, e na manhã seguinte
pegam suas mochilas, seus isopores de vodka, e vão acampar primeiro na entrada
da Mata do Mamão, Henrique e Nicholas saem do acampamento ainda pela manhã e
fazem uma primeira inspeção pela mata, não veem nada, e Henrique logo conclui
que todos que moravam ali perto eram pirados com tais histórias que tinha
ouvido, e que só restaria para eles carteado e vodka, numa competição que iria
varar a noite, que naquele verão era repleto de mosquitos e barulhos de coruja.
Helena se junta à Marília, e as duas vão atrás de Henrique e Nicholas, que
voltam com uma Grey Goose e dizem que não havia nada demais lá para dentro da
mata, que os bichinhos azuis poderiam ser apenas vaga-lumes, e que Henrique
tomaria ácido para ver melhor tudo ali, pois tinha certeza de que era tudo
maluquice de índio todas aquelas histórias, que o vaqueiro apareceria de novo
para assustá-lo com aquele blá blá blá todo, mas que a mata era deles, e o
acampamento o centro daquele mundo.
Helena fica com uma pulga atrás da orelha, e como era uma
pilha, decide ir ela sozinha para dentro da mata com uma lanterna madrugada
adentro, todos ficam preocupados, mas Helena, além de ser uma pilha, também era
uma onça e ninguém questionou suas intenções, ela tinha uma ideia na cabeça de
que veria aonde estavam os tais Cara-Preta e de que seria para os tais índios
dizerem para ela quem eram os bichinhos azuis e aonde ficava a caverna maluca,
se tinha porta ou se vivia trancada, sendo aberta só em noites de lua cheia.
Helena fica a madrugada toda perambulando pela Mata do Mamão e acaba se
perdendo dentro da floresta, amanhece e ela não retorna, Henrique e Nicholas,
junto com os outros, vão atrás de Helena, pois já sabiam que ela havia se
perdido na mata, ficam o dia todo procurando Helena e nada, quando começa a
anoitecer, eles decidem voltar ao acampamento, esbaforidos e temendo pela vida
de Helena.
Helena, no meio da madrugada seguinte, já tinha se embrenhado
na mata com um vigor de uma caminhante frenética, se depara com sons da floresta,
insetos e corujas, tinha levado uma bolsa, dali tira um baseado já apertado e
fuma no meio da escuridão, começa a ficar desesperada, e o efeito da droga lhe
aumenta a síndrome paranoide, ela sabia que já tinha se perdido no meio da
mata, depois que fuma tudo, começa a correr em círculos, a mata fica cada vez
mais densa, e a cada vez que ela tenta encontrar um caminho de volta ao
acampamento, mais a confusão ficava maior, é quando então aparece um Cara-Preta
e começa a dar flechadas na direção de Helena, aparece logo um outro tentando
lhe dar machadadas, ela que era faixa marrom de judô, tenta derrubar o índio do
machado, eles se engalfinham, ela consegue tomar o machado do índio e começa a
berrar na direção dos dois índios e então estes somem no meio da mata, ela fica
histérica, decide que aquele machado seria útil para a sua defesa, e então
amanhece, e ela, depois de dormir por poucas horas dentro de uma gruta, tenta
escapar daquele labirinto, em vão, o dia avança até o entardecer, e ela então
se desespera e, mesmo sendo um azougue, desmorona e chora.
A CAVERNA
Lísias era o rei da caverna, ali habitava uma nação que tem
origens perdidas no tempo, uns diziam que o patriarca antigo veio das estrelas,
de um certo país banhado de sol e com quinze luas no céu, pois esta era a
narrativa tradicional deste povo que agora se autodenominava os cabeças azuis,
um dos hábitos destes habitantes da caverna era pintarem o corpo todo de azul,
havia uma lenda de que um de seus avós havia saído da caverna e tinha retornado
louco, no que foi abatido por ordem do rei da época. Lísias, agora, tinha
baixado um códice em que um dos tabus era ninguém sair da caverna, a pena era a
morte para quem fizesse isso, pois Lísias, segundo alguns documentos
particulares que faziam parte do tesouro daquele reino, dizia que perto da
caverna havia os Cara-Preta, vindos de um mundo ilusório, o chamado
desconhecido, e eles eram poucos, mas eram maus e violentos, e uma das normas
daquele reino pretensamente evoluído era a cultura da paz e do prazer, pois
todos eles consumiam bebidas mágicas que lhes faziam voar para o universo
eterno do patriarca, com visões extáticas de puro deleite.
Dentro daquele país subterrâneo Lísias governava com mão de
ferro, era um tipo de paz imposta pela força de seu exército de leões, pois
assim eram chamados os soldados que tomavam conta das fronteiras das quais
ninguém poderia passar, mas dentro daquele reino autoritário de uma paz armada,
já havia alguns conspiradores contra os desmandos de Lísias, eram eles três
conspiradores que tentavam inventar um plano de sair da caverna, pegar as armas
dos Cara-Preta e voltar à caverna para matar o rei Lísias. Tudo isso para
libertar a caverna e todos verem o mundo real, a floresta que vivia nos sonhos de
liberdade dos conspiradores e que o rei censurava como loucura, pois havia o
mito de quem saísse da caverna voltava delirando e falando fantasias do que
tinha visto lá fora, mais um dos mitos inventados pelo governo da caverna para
impor a paz à força. Dos três conspiradores, havia Dumas, Rafik e o líder e
mentor intelectual da fuga da caverna, Pausânias.
A ordem pacífica da caverna era dividida em quatro classes,
os nobres, todos parentes do rei Lísias, que viviam na opulência, em seguida
havia os sacerdotes, profetas das estrelas do patriarca lendário, os soldados,
chamados leões, e o populacho, os azuis, que se pintavam de azul todos os dias,
ao contrário das outras classes que faziam isso nos dias dos rituais espirituais
dos sacerdotes, e o populacho que ficava, portanto, entorpecido com as bebidas
mágicas servidas nos banquetes diários da nação, uma espécie de Roma decadente
e com uma paz produzida artificialmente por um ideal frouxo de ilha das
delícias, estratégia alienante dos sacerdotes e dos nobres para manter a
opulência verdadeira das duas classes maiores, também servidas das bebidas
mágicas, mas com o controle hipnótico feito pelos sacerdotes sobre os leões,
que eram servos cegos e hipnotizados da tal ordem pacífica imposta à força.
Pausânias e os outros dois conspiradores sendo então da ralé dos azuis.
Numa noite profunda e quieta, já com o plano arquitetado,
Pausânias, Dumas e Rafik conseguem apagar um dos guardiões fiéis de uma das
fronteiras, eles lhe dão éter e fazem ele apagar, os três conseguem então
passar por um portal de luz, pois os outros leões estavam dormindo, ficava tudo
no alto da caverna, um precipício beirava aquele portal, a fronteira tinha algumas
trancas, Pausânias consegue pegar o molho de chaves que estava com o leão
guardião, testa as chaves, a quinta dentre sete chaves abre o portal de luz que
passa a brilhar em azul cobalto, eles conseguem sair da caverna, e passam por
uma espécie de transe e sensação de queda e depois por um longo túnel que o
levam para o coração de uma floresta que eles não conheciam, e veem pela
primeira vez o brilho da abóbada noturna, já não era a falsa noite da caverna
dos pobres azuis da ralé, da paz de Lísias e de seus leões hipnotizados, eles
sabiam que estavam na terra da liberdade, e logo vão à caça dos Cara-Preta,
para pegarem suas armas e voltarem para a caverna para matar o rei Lísias, o
hipócrita da paz.
O JOGO DE CARTAS
A noite avança novamente, Helena começa a gritar por socorro,
os outros estudantes, acampados na entrada da Mata do Mamão, sentem que saía um
som angustiado da floresta, pensam que poderia ser Helena, o som vinha de
longe, do fundo da mata, eles então tentam decidir quem entraria na floresta,
Fabiano se candidata, Henrique, como era normalmente mais inteligente do que os
outros, tanto intelectualmente, como fisicamente, era faixa preta de jiu-jitsu
desde os dezessete anos, e treinava muay-thai há três anos, decide que os outros
teriam que ficar no acampamento, caso eles também se perdessem, e Henrique dá
um cartão com o telefone dos bombeiros para Marília em caso de sinistro. Contudo,
Henrique tinha certeza de que não sairia daquela noite densa sem Helena, tudo
sairia nos conformes, sem ideias malucas de vaqueiro ou tramas transcendentais.
Henrique aciona seu GPS, ele então, junto com Fabiano,
avançam para dentro da mata, seguindo o som que logo percebem, ao irem mais
para o fundo da mata, se tratar de um grito humano, e Henrique percebe logo ser
a voz de Helena, eles seguem por uma hora até acharem uma oca, pensam ser os
desconhecidos Cara-Preta, mas ao entrarem na oca, esta estava abandonada, e
Henrique lembra que os tais índios eram nômades, portanto, já tinham saído
dali, não havia sinal de ação recente naquela área. Fabiano acende uma lanterna
fortíssima para ir noite adentro na busca de Helena junto com Henrique.
Enquanto isso, Helena continua gritando, mas isso chama atenção dos índios
Cara-Preta, um deles aparece novamente com um machado na direção de Helena,
agora ela também tinha um machado, e consegue dar uma machadada no ombro e na
cabeça do índio, que desmaia mas não morre, ela corre a esmo, mas na corrida vê
uma luz, perceba ser uma luz artificial, talvez de uma lanterna, ela então
grita novamente, Henrique e Fabiano ouvem e vão em direção ao grito, que se
aproximava de onde eles estavam. Helena corre velozmente em direção da luz de
lanterna, quando faltavam cinquenta metros na mata densa entre os rapazes e ela,
Henrique e Fabiano decidem também dar um grito, Helena grita de volta, aí a
charada já tinha sido matada, Helena vai cada vez mais perto da luz da lanterna
que também vai na direção dela, e então os três se trombam e ficam aliviados,
decidem dormir por ali e voltar ao amanhecer para o acampamento. Henrique ri
muito, sabia que acharia Helena, e fala logo que quando voltassem fizessem o
carteado com vodka que fizera tanto sucesso na turma de faculdade deles.
Então, no primeiro raiar do dia seguinte, eles já acordam e
seguem em direção da saída da mata, a qual Fabiano, que tinha boa memória
fotográfica, tinha decorado, contando os próprios passos na mata, só foi ele
contar de novo o mesmo número de passos e a linha que tinha seguido com sua
visão acurada, tudo dá certo, quando são dez da manhã, eles já estão de volta
ao acampamento, e todos comemoram, Helena é levantada por todos como na festa
de uma nova campeã, ninguém dá bronca, todos estavam mais é curiosos, depois do
alívio, de saberem o que ela tinha visto na mata, e ela relata a sua luta com
um Cara-Preta e que tinha dado uma machadada em um, de um machado que ela tinha
pego de outro índio daqueles, e Henrique então dá por começado o jogo de cartas
ali, numa competição de shot de vodka Grey Goose e Absolut, numa roda de cartas
de baralho, uma roda que também passava um cone de baseado prensado, deixando o
haxixe e o skank para o fim da competição, onde ninguém tinha o direito do
arrego, e não ser em caso extremo de desarranjo ou pressão baixa.
As cartas são distribuídas entre os estudantes, era o tal
jogo de atenção, cartas do mesmo naipe em sequência numérica de cinco cartas, o
que tiver tal combinação primeiro deixa cair as cartas, os que vissem as cartas
caindo teriam que deixar suas cartas caírem também, o último que ficasse com as
cartas em pé nas mãos teria que tomar um corpo americano cheio de vodka, o
único benefício é que começava as três primeiras doses com Absolut, e depois
era Grey Goose dali para diante, e no caso o que mais comia mosca da galera geralmente
era o Paulo, o que nunca perdia, só de propósito, era Fabiano, que além de sua
memória fotográfica, própria para labirintos e florestas densas, tinha uma
atenção plena de monge que parecia que meditava horas por dia, coisa que ele
fazia diariamente, mas só vinte minutinhos pela manhã.
O jogo dura três horas, e obviamente Paulo tomou uns dez
shots e ficou tonto, quando disse que iria vomitar o jogo terminou, Fabiano
levou Paulo para a beirada da Mata do Mamão, e ali Paulo soltou um jato
fantástico de vômito branco quase transparente e brilhoso de vodka pura, uma
cachoeira de Absolut com Grey Goose saiu de sua boca como uma mangueira de
bombeiro num incêndio, foi uma cena em que Marília riu tanto que teve uma crise
de soluço de uma hora e também acabou vomitando de tanto soluço. Henrique então
pegou um skank e ingeriu dois ácidos bicicletinha, todos esperaram o anoitecer,
pois Henrique colheu uns cogumelos zebu que tinha perto da Mata do Mamão, no
meio da tarde anterior, que eram umas trinta chapeletas roxas de boi zebu,
pronto para a viagem psicodélica que todos fariam naquela noite, com cinco chapeletas
para cada um, ingeridas sólidas, para um efeito mais autêntico, diria Henrique,
o químico amador e autodidata, que fazia biologia, mas que quase fez química
por também ter afinidade com a disciplina, na verdade, ele tinha obsessão por
estudar medicamentos opioides, tendo tomado doses de Palfium uma vez, com
receita azul falsificada, estudo que lhe tomava mais tempo até do que sua
pesquisa sobre psilocibina e plantas mágicas.
OS DOIS MUNDOS
Pausânias, Dumas e Rafik tinham deixado a caverna, eles saem
no meio da mata naquela noite estrelada de céu totalmente limpo, era a primeira
vez que eles tinham aquela visão maravilhosa, muito melhor que a ração de
bebidas mágicas que era fervida dentro da caverna, numa rotina tão repetitiva
que já era uma coisa enjoada para aqueles conspiradores platônicos e
libertários, e nesta noite eles sairiam à caça dos Cara-Preta, numa busca
frenética por machados, armadilhas e o que mais aqueles índios tivessem de
armas para eles retornarem e libertarem a ralé dos azuis que era explorada pelo
rei Lísias, os nobres e sobretudo os sacerdotes.E Pausânias também tinha a
ideia de libertar os leões do transe hipnótico feito pela bruxaria e magia
negra dos sacerdotes, que pregavam a paz, mas eram todos magos negros, e muitos
da ralé sabiam disso, mas não faziam nada pois tinham medo de também serem
enfeitiçados e virarem zumbis como os leões, que pareciam máquinas vindas de
Esparta, e que só faziam ginástica e empunhavam escudos e lanças o tempo todo,
guardando as fronteiras no topo da caverna.
Na noite, começa a cerimônia dos estudantes, Henrique tem a
ideia de que eles comessem os cogumelos zebu e fossem todos caçar os Cara-Preta
na Mata do Mamão, que Fabiano seria o guia noturno deles, e que a lanterna
abriria o caminho pela mata sem ninguém se perder ou se dispersar uns dos
outros. Na mata eles encontraram mais uma oca vazia, entraram na oca, mas de um
súbito, ouve-se um barulho curto de vento, Fabiano logo percebe, eram
flechadas, todos se jogam no chão, aparecem então três índios Cara-Preta com
machados, Paulo neste momento pensa, viajando de cogumelo, estar vendo pequenos
diabos vermelhos, e sai correndo pela mata, se dispersando do grupo e se
perdendo na mata densa, a luta dos Cara-Preta então se dá com Henrique e
Helena, os únicos ali que faziam artes marciais a sério, pois eram graduados, e
acabam por conseguir espantar os três índios, que somem novamente pela Mata do
Mamão. Eles agora teriam que encontrar Paulo. Este está agora, já na madrugada,
na verdade, numa bad trip, vendo diabos vermelhos por toda a parte. Ele tromba
com um Cara-Preta de verdade e pensa estar vendo o próprio Satanás, no que o
Cara-Preta lhe dá uma flechada que atinge a sua perna, Paulo sai correndo
novamente, e dá a sorte de encontrar a saída da mata e voltar ao acampamento,
no que ele entra na sua barraca iglu e se recolhe como um bicho assustado e
afunda dentro das cobertas, louco para que seu delírio passasse logo, e
consegue enfim dormir.
Os outros agora, não sabendo que Paulo havia voltado para o
acampamento, o procuravam cada vez mais para o fundo da Mata do Mamão, lá
acabam encontrando um nicho com três ocas, dali saem dez Cara-Preta, e os
índios começam a distribuir flechadas na direção do grupo de estudantes,
Henrique então lança a luz da lanterna na direção dos índios, estes ficam
confusos e pensam que aquilo era um bicho luminoso, se assustam e saem mais para
dentro da mata. Henrique e Fabiano decidem ver o que tinha dentro das ocas,
Helena dizia que já era hora de voltar para o acampamento, pois eles já tinham conseguido
ver os índios Cara-Preta, mas Henrique e Fabiano estavam cada vez mais empolgados,
então os dois ficam ali nas ocas, enquanto Helena e os outros decidem voltar ao
acampamento, ficando a cargo de Henrique e Fabiano encontrarem Paulo, ou
voltarem se tudo fosse em vão.
Helena, Marília e Nicholas voltam ao acampamento ainda de
madrugada e encontram Paulo debaixo das cobertas na barraca iglu, ficam
aliviados, e Nicholas decide voltar à Mata do Mamão para avisar a Fabiano e
Henrique que Paulo estava bem tranquilo dormindo como um anjo no acampamento.
Neste momento, em que Nicholas caminha de volta à mata, Henrique e Fabiano
estão se divertindo brincando de luta com machados entre as três ocas, acendem
uma fogueira, pegam penas e botam na cabeça e ficam imitando índios de uma
maneira estilizada e pejorativa, ainda estavam na viagem psicodélica de
psilocibina, estavam, como se diz na gíria, “gastando a onda”, e fazem um rito
que eles chamam de dança da chuva, e a viagem era tanta, que de fato começa a
chover forte, uma tempestade que chega a apagar a fogueira, e então Henrique e
Fabiano ficam eufóricos, achando que eles é que tinham invocado a chuva com a
dança do cogumelo, com machados e penas coloridas.
No meio disso, ali perto estavam Pausânias, Dumas e Rafik, os
três com o corpo inteiro e a cabeça pintados de azul, com uma tinta que não
saía na água da chuva, só com banheira quente por imersão, e eles ficam
admirando a tempestade, coisa rara de acontecer na caverna dos azuis, que
normalmente era bem quente, sendo que as bebidas mágicas ali também serviam para
anestesiar a população que ali morava do forno que era morar na caverna.
Pausânias vê as três ocas, e vê dois malucos dançando na chuva com penas na
cabeça, ele pensa que eram dois dos Cara-Preta, os três azuis, Pausânias, Dumas
e Rafik avançam na direção das ocas, Henrique e Fabiano ainda estavam numa
viagem intensa de psilocibina, e veem os três azuis indo na direção deles, e os
dois acham que aquilo era mais uma das visões psicodélicas do cogumelo zebu,
mas Henrique se lembra da história do vaqueiro
e da palavra do pajé da etnia Javaé, e logo percebe que aquilo não era uma
visão, que era real, pois os azuis atacam Henrique e Fabiano, e perguntam aonde
ficava as armas, os dois se assustam e dizem que não eram índios, que os
Cara-Preta tinham ido embora dali com medo da luz da lanterna, que eles eram
brancos do Rio de Janeiro, estudantes de Biologia, mas a língua dos azuis era
desconhecida, enquanto Henrique e Fabiano falam português, os azuis falam um
dialeto bárbaro chamado pelos habitantes da caverna de Uti, eles então perdem a
paciência e atacam de vez Henrique e Fabiano, que acham então que os azuis eram
duendes do mal e se mandam mata afora com medo daqueles três malucos todos
pintados de azul. Ali eles deixam os machados e várias armas brancas, que então
Pausânias, Rafik e Dumas recolhem e pegam para voltar à caverna e libertar a
ralé dos azuis e os soldados hipnotizados por feitiço, apesar dos Cara-Preta
ser um conjunto em torno de vinte a trinta índios isolados, a quantidade de
armas brancas ali naquelas três ocas era fantástica, o jeito, para reforçar a
revolução de Pausânias dentro da caverna era dar a boa nova logo no retorno para
incitar uma revolta da ralé, roubar as poções dos sacerdotes e pegar os
antídotos contra tais poções para quebrar o encanto e transe em que dormiam os
espartanos leões das fronteiras da caverna, e ter força suficiente para abrir o
portal e libertar a ralé e os soldados, mas o plano era otimista demais, mas
Pausânias estava obcecado pela vitória contra Lísias.
Enquanto isso, Henrique e Fabiano correm no meio de uma
madrugada tempestuosa, pois a chuva caía ainda radicalmente sobre a Mata do
Mamão, e já era três da manhã de uma noite clara de lua cheia, e eles vão a uma
velocidade insana até trombarem com Nicholas, este que avisa que estava tudo
bem com Paulo, mas que logo se espanta com a história sobre os azuis que
Henrique e Fabiano, esbaforidos, contavam com riqueza de detalhes, Nicholas
fica duvidando e pensa que Henrique e Fabiano tinham ido longe demais com a brincadeira
da psilocibina, mas acaba convencido da veracidade do relato, pois só um
mitômano insano poderia inventar uma coisa daquela com um encadeamento tão real
e nítido, então Nicholas passa a acreditar na existência dos azuis, e os três
conseguem chegar com o raiar da aurora no acampamento, aonde os outros estavam
já dormindo.
Ao meio-dia, com todos já acordados, a história sobre os
azuis é relatada ao grupo por Henrique e Fabiano, e que já era hora então deles
voltarem ao Rio de Janeiro, que a festa tinha sido boa, mas que as lendas
estavam virando realidade e então todos decidem que era hora de voltar ao mundo
real, e vão para Palmas, pegam um avião na manhã seguinte, e se dão por
satisfeitos, agora eram testemunhas dos Cara-Preta e dos azuis, a Ilha do
Bananal os tinha convencido de que a floresta é a mãe de todos os mistérios, e esta foi a sensação da aventura
de conhecer a natureza na sua essência, olhando de frente para todas as suas
lendas e descobrindo o mundo paralelo que de fato existia.
Pausânias, Rafik e Dumas voltam à caverna, passam novamente
pelo portal que brilhava de azul cobalto, entram de volta e convocam a ralé
para uma revolução, dão as armas brancas para trinta dos azuis da ralé, eles
tentam lutar contra os sacerdotes, mas os antídotos não são achados, pois o
mago negro líder da classe dos sacerdotes, percebendo que seu templo seria
invadido por um bando da ralé, logo atina que teria que quebrar e derramar
todos os potes de antídotos, no que os azuis da ralé, revoltados, confundem os
potes, dão para os leões, mas o encanto continua, eles obedecem fielmente o rei
Lísias, e os sacerdotes seus comandantes hipnóticos. Pausânias é condenado à morte
por liderar uma insurreição, Rafik e Dumas por conspiração, e os trinta da ralé
que tinham pego em armas são perdoados, pois tinham sido manipulados pelos três
bandidos que diziam das loucuras do mundo fora da caverna, quando todos os
habitantes da caverna são convencidos novamente de que tudo era fantasia, e que
o mundo real era a caverna e tudo que ali vivia.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Contos Psicodélicos – volume I (escrito em 18 e 19/10/2017).
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