Terminaram as eleições mais importantes da História recente do Brasil. Estava em jogo o futuro da Nova República, do compromisso firmado pela Constituição Federal de 1988, dos movimentos democráticos que tanto lutaram pela liberdade civil, pelos direitos amplos de cidadania. Pairou desde as eleições de 2018 uma sombra, esta que se revestiu de lemas do velho fascismo brasileiro integralista, por sua vez, inspirado nos camisas pretas do fascismo italiano de Benito Mussolini.
O fato é que dos escombros de uma má gestão da democracia, o ovo da serpente pode ser gorado e eclodir. O pós-guerra de um Tratado de Versalhes de 1919 dacroniano deu azo a um surgimento de radicalismos que levou a um dos episódios mais sangrentos do século XX, a Segunda Guerra Mundial, este que foi o século chamado por Eric Hobsbawm de "A Era dos Extremos".
Por sua vez, no Brasil, este renascimento de tendências soturnas, que se inspiram no obscurantismo para tentar usar a democracia para caminhar até uma autocracia, buscava o pretexto para se expandir. A falta de um discurso popular que desse conta da queda recente do poder petista, que tomasse as rédeas de uma alternativa às ruínas da Lava Jato, do impeachment de Dilma Rousseff, deixaram um rasgo, um clarão, e este espaço vazio foi ocupado rapidamente por um deputado midiático do baixo clero, conhecido por declarações absurdas, e a direita liberal ficou para trás, surgindo uma extrema-direita que, aparentemente, poderia atender aos clamores contra a corrupção, de um antipetismo que atingia o seu clímax histórico.
Desta feita, a Nova República viu ser eleito presidente Jair Bolsonaro. E este foi um governo de baixa densidade intelectual, dominado por um provincianismo que ascendeu ao poder e começou a se instalar em cargos de ministérios, no Congresso Nacional, e nunca se viu tantos discursos anacrônicos sobre costumes, modos de vida, sinais trocados sobre liberdade, inversões comuns em que se chocavam cosmovisões opostas e conflitantes. O atrito ficou insuportável, dois mundos colidiram e somente um poderia vencer, se o outro perdesse.
A mediocridade, a falta de decoro, o fim da picada, foi esta visão dantesca que tomou conta de uma Nova República que ficou em suspenso, com a respiração presa. Até estas eleições de 2022 estávamos em meio a um circo trágico de 700 mil mortos, de sacos pretos encomendados para Manaus, em uma eugenia de testes off label canalha e sinistra.
O que havia de cômico para a diplomacia internacional, um país que tinha virado pária e republiqueta bananeira com um presidente exótico, parecendo algum sketche involuntário da América Central, havia de trágico para quem viveu a pandemia em meio ao atraso das vacinas e de uma seita de Jim Jones que pregava uma ficção chamada cloroquina. O padrão delirante deste governo era o do negacionismo anticientificista, pré-iluminista, e que ganhou contornos assassinos com o descaso e as declarações sem empatia de um presidente que não esteve à altura do desafio de enfrentar uma tragédia nacional sem precedentes, com números de corpos (pessoas, biografias) que pareciam o de uma guerra.
O final patético deste governo é a sua nêmesis. A eleição de Lula (PT), uma ressurreição política de um roteiro feito pelo imponderável, é uma das viradas mais fortes de uma liderança popular que teve a sua concorrência mais difícil, em um momento crucial, andando no fio da navalha, em que o contrato social democrático estava em jogo, e pela primeira vez contra outra liderança popular, de vulto, e não a oposição do PSDB, no nível da civilização, da normalidade.
Era uma luta civilizatória e pela sobrevivência da Nova República, pois um segundo mandato de Jair Bolsonaro seria fatal para o que foi erguido na Constituição Cidadã de 1988. A conquista da maioria plenária no STF (Supremo Tribunal Federal) abriria caminho para uma autocracia e o país sofreria um estresse tão absurdo e bizarro como foi o da tragédia da pandemia. Contudo, a generosidade do destino, com suas leis insondáveis, consumou o resultado matemático, o que determina o futuro do Brasil.
Foi realizada uma concertação, em que diversos quadros se uniram neste segundo turno, revelando que o liberalismo e o lulismo, nos momentos em que estão em jogo a democracia e suas instituições, dialogam e se entendem, pois o republicanismo é um instinto de sobrevivência e a qualquer sinal de alerta, forças discordantes se aliam no que concordam, sobre o pacto social firmado a partir da retomada da democracia, do fim da ditadura, um contrato social erguido em valores da liberdade civil e da afirmação da civilização contra a barbárie.
Por pouco, muito pouco, tudo vai por água abaixo, a ruína e a esperança lutaram e os valores democráticos estão salvaguardados de uma tragédia política e cultural, de um retrocesso que foi barrado na hora certa, desta gangue de bandoleiros, de um Roberto Jefferson (PTB) que teve o seu tiro saindo pela culatra, e ao invés de mártir, é novamente presidiário, e de uma Carla Zambelli (PL-SP) que deveria ter sido presa em flagrante e ter seu mandato cassado.
Precisamos reerguer o Ministério do Meio Ambiente, recriar o Ministério da Cultura, criar o Ministério dos Povos Originários, proporcionar um tratamento fino ao Ministério da Educação, retomar o que ficou suspenso nestes quatro anos de um clima de seita lunática e de um pacto pela ignorância. A nêmesis da derrota, da não reeleição, vem como ferida narcísica, de um presidente que foi incompetente, tanto como governante, como para realizar o seu projeto de segundo mandato, perdeu.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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