PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 2 de janeiro de 2022

RASKÓLNIKOV, SEU CRIME E SEU CASTIGO E DOSTOIÉVSKI

“As motivações pretensamente filosóficas do crime de Raskólnikov são retratadas no romance Crime e Castigo de forma extravagante” 

Fiódor Dostoiévski se revela um romancista que investiga os meandros e as sombras da alma humana, os conflitos estabelecidos vêm tanto de comportamentos que estão no limite entre uma moral estabelecida como de teorias extravagantes de personagens como Raskólnikov em Crime e Castigo, e também de realidades sociais deploráveis. Temos outros personagens na obra de Dostoiévski que desafiam o pacto social, mas aqui nos concentraremos na criação dostoievskiana em Crime e Castigo

O contraste entre Tolstói e Dostoiévski, era o de que Tolstói aparece como um retratista das grandes famílias de proprietários de terras dos estratos superiores da Rússia, com grandes romances históricos e tramas de amor que estendiam, aqui falando tanto de Guerra e Paz como de Ana Kariênina. E neste último romance, Tolstói nos fornece a descrição da vida tranquila, estável e imutável destes personagens que estavam num plano social superior e bem resolvido. Por seu turno, Dostoiévski narrava as desventuras humanas de estratos sociais que viviam na penúria e em tentações do espírito que esgarçavam as fronteiras morais. 

Dostoiévski mergulha na literatura e na vida boêmia de São Petersburgo, o que levaria o romance Crime e Castigo, por exemplo, possuir uma descrição bem perfeita das ruas e climas e da gente desta cidade, e lá, em São Petersburgo, que ele esboça seu primeiro romance, Gente Pobre, publicado em 1846. Contudo, mesmo com adiantamentos financeiros e sucesso literário de seu primeiro romance, se mantinha escrevendo folhetins para jornais e revistas, gênero literário que estava em alta na Rússia. 

O segundo romance, O Duplo, não faz tanto sucesso quanto a sua estreia, e nesta época Dostoiévski se junta ao jovem de 26 anos de nome Petrachévski, que possuía ideias avançadas sobre socialismo, e Dostoiévski acaba preso acusado de conspirar contra o soberano russo, Nicolau I, e insuflar a revolução camponesa contra a escravidão, o escritor é condenado à morte, mas é salvo na última hora, já diante do pelotão de fuzilamento, quando o imperador comutou a pena de morte e condenou os revoltosos a trabalhos forçados na Sibéria, durante quatro anos. Experiência que inspirou o romance de Dostoiévski, Recordações da Casa dos Mortos. Foram quatro anos no presídio de Omsk. 

Em 1854 é mandado para Semipalatinsk e lá conhece Maria Dmítrievna Issáiev, que era casada, mas logo ficaria viúva, e o escritor se casa com ela, em 1857. Depois da abolição da servidão, Dostoiévski volta para São Petersburgo. Nesse retorno, publicou o romance-folhetim Humilhados e Ofendidos, e Recordações da Casa dos Mortos. Em 1864, Maria Dmítrievna morre, e também seu irmão e parceiro de toda a vida, Mikhail. 

É nessa segunda metade de sua vida que surgirão os seus romances mais impressionantes, clássicos da literatura mundial, pois Dostoiévski publicará a partir daí : Memórias do Subsolo (1864), Crime e Castigo (1866), Um Jogador (1866), O Idiota (1868), O Eterno Marido (1870), Os Demônios (1871), O Adolescente (1875) e Os Irmãos Karamázov (1880), além de seu Diário de um Escritor (1873-1881). 

Na etapa final de sua vida, Dostoiévski contou com o apoio de Ana Grigórievna (Snítkina) Dostoiévskaia, sua última esposa e também estenógrafa, para quem ele ditou Um Jogador durante 26 dias, tomado por dívidas financeiras. É a ela, por fim, que Dostoiévski dedica o seu romance Os Irmãos Karamázov. Dostoiévski morreu em 28 de janeiro de 1881. 

Em um primeiro momento, Dostoiévski retrata o drama interno do jovem Raskólnikov, e sua decisão calculada e progressiva de matar a velha usurária, a febre e o delírio que o dominam depois de ter cometido o duplo crime, em que assassina a velha e a irmã dela. Em um segundo momento, encontramos Raskólnikov com seu amigo Razumíkhin, ou provocando o oficial Zamiótov, ou discutindo com o juiz de instrução Porfírii Petróvitch um artigo que havia escrito, em que se tem uma concepção questionável e extravagante em que Raskólnikov dividia a humanidade entre ordinários e extraordinários, afirmando que os extraordinários teriam o direito de matar.  

O romance apresenta pelo menos quatro núcleos de personagens que gravitam em torno de Raskólnikov : seus amigos, como Razumíkhin, os investigadores, formado por Porfírii Petrovich e o escrivão Zamiótov, os familiares, como Dúnia, sua irmã, e sua mãe, além do pretendente Lújin e o ex-patrão de Dúnia, Svidrigáilov, que tem papel mais importante no final do romance, e o núcleo da família de Marmeládov, o bêbado, com os filhos, a esposa doente e Sônia, que teve de se prostituir para sustentar a família do pai. Sônia, que aparece como peça fundamental na segunda metade do romance, é uma jovem de 18 anos.  

As motivações pretensamente filosóficas do crime de Raskólnikov são retratadas no romance Crime e Castigo de forma extravagante, a tese dele ser um piolho humano como todos os outros ou de ter o direito de matar, esta ideia associada a seu artigo de jornal, e toda uma justificação pseudo-moral para o ato criminoso, toda a trama com sua família que fica sabendo de seu crime, a alienação de sua mãe, e o tema da loucura que, volta  e meia, povoa personagens do romance, numa trama psicológica que vai ao limite e retrata uma realidade absurda. 

Com Sônia é que Raskólnikov vive as cenas mais fortes do romance Crime e Castigo, em que se dá a sua confissão do crime, e também o momento em que ele pede que ela leia um trecho do Novo Testamento, em que está a passagem sobre a ressurreição de Lázaro. Ao fim do romance, com Dostoiévski já retratando no epílogo um Raskólnikov preso e fazendo trabalhos forçados, ele encontra Sônia novamente e se abre a possibilidade de sua redenção, já vislumbrando a sua vida após a prisão, em que o episódio bíblico de Lázaro reaparece, como uma promessa de ressurreição, isto é, a regeneração e renascimento de Raskólnikov para uma nova vida, junto com Sônia. 


Gustavo Bastos, filósofo e escritor. 


Link da Século Diário :  https://www.seculodiario.com.br/cultura/raskolnikov-seu-crime-e-seu-castigo-e-dostoievski