CAPÍTULO III : Uma crítica sobre a práxis de libertação na
obra Ética da Libertação de Dussel
3.1 – sobre as possibilidades da práxis de libertação
A práxis de libertação, em Dussel, é o fim próprio de sua
ética, a ética dusseliana formula, até chegar à práxis de libertação de fato,
uma teoria crítica sobre a negatividade das vítimas no mundo atual globalizado,
toda a teoria tem como fundo a crítica do sistema capitalista mundial, sendo
fundamental para a sua crítica ética o princípio material do dever de produzir,
reproduzir e desenvolver a vida, é a tese crítica central da Ética da
Libertação de Dussel, é na corporalidade negada, que sofre, a negatividade
material da vítima, que se inicia a construção teórica e categorial que busca
para a vítima um suporte para a sua auto-libertação, é este, o princípio
material, que estabelece a primeira crítica de Dussel ao sistema vigente, a
práxis de libertação seria a ação necessária da vítima contra a sua opressão e
exclusão, tendo como primeiro efeito do domínio sistêmico um sujeito que sofre
em seu corpo as dores de uma exclusão material. Temos então o sujeito negado em
sua condição material, sofrendo concretamente no corpo a fome ou o frio, vivendo
em completa miséria, este é o primeiro apelo social de Dussel, a vítima desnuda
e vulnerável em seu corpo frágil, no limite extremo do critério vida-morte
dusseliano, mais para a morte que para a vida.
Dussel tem na corporalidade negada da vítima, no corpo que
sente fome e frio, que é explorado na reprodução do capital, a fonte principal
de sua crítica ética. O sujeito ético dusseliano assume aqui uma forma ampla,
pois, aparece primeiramente como conteúdo material, pulsional, universalidade
da corporalidade, do princípio material dusseliano. Dussel consegue
transcender, com este princípio, os conteúdos culturais e valorativos, temos
agora um sujeito ético-corpóreo universal, a primeira manifestação do sujeito
ético em Dussel, aparecendo como negatividade, como vítima do sistema vigente,
em toda vítima concreta está a vítima universal. Na práxis de libertação, a
comunidade das vítimas tem como primeiro movimento o de negar a negação
material que sofre.
Para a intersubjetividade, o princípio material deve ter, por
conseguinte, um princípio formal de validação, é aqui que a ética dusseliana se
encontra com a moralidade discursiva, temos então para o sujeito ético a luta
pelo reconhecimento simétrico discursivo, por sua participação na
discursividade moral, que, para a vítima, é negada. Temos então a negação do
discurso das vítimas no sistema vigente, o que fará nascer a comunidade
crítico-discursiva simétrica das vítimas, é a partir desta comunidade crítica
das vítimas que surgem os movimentos sociais com uma discursividade própria que
entra em conflito com o discurso do sistema vigente, a vítima terá, sobretudo
na ciência social crítica, o seu programa de ação, a práxis de libertação ganha
com isso uma justificação para suas reivindicações perante o sistema, a
libertação das vítimas ganha fundamentação científica, as vítimas têm teoria,
têm discurso, se organizam, e, mesmo na ilegalidade de suas ações, creem na
justiça de suas aspirações, são ilegais para o sistema, mas legítimas como luta
social, e que, em Dussel, passa a ter justificação ética, justiça para os
oprimidos e excluídos que se torna um dever ético de libertação.
Portanto, temos, para a práxis de libertação, o momento
negativo de negação da negatividade da vítima, negação crítica de sua negatividade
material e discursiva, é a desconstrução necessária como o movimento crítico
que antecede a edificação do novum, é a denúncia da contradição sistêmica e a
negação do bem que o sistema impõe, bem que é sofrimento para as vítimas. A
práxis de libertação usa, então, da estratégia de explorar as fissuras do
sistema, o momento negativo é o momento da crítica do bem sistêmico. O momento
positivo da práxis de libertação é quando as vítimas usam da criatividade para
construir o novo, temos um programa científico de ação, uma teoria da ação, e,
logo depois, a ação efetiva com tática e estratégia, com o realismo da
factibilidade empírica, com a orientação prática da factibilidade ética, com a
subsunção dusseliana de todos os seus princípios éticos enunciados para a sua
Ética da Libertação na razão libertadora, agora temos o passo definitivo da
práxis de libertação em Dussel, quando esta parte para a ação transformadora,
ação cotidiana que podemos ver nos movimentos sociais críticos do sistema, que
devem, antes de tudo, estarem organizados o suficiente para uma ação eficiente
e que transformem de fato alguma coisa, pois a práxis de libertação, para o
sistema, em princípio, é uma ação ilegal, e que pode vir a sofrer a repressão
violenta dos organismos policiais, pois a práxis de libertação se constitui, na
prática, num embate entre as vítimas e as leis vigentes, há um enfrentamento
que pode ser pacífico ou violento, sendo a ação violenta do sistema contra as
vítimas o gerador da crise de legitimidade do sistema, enquanto a práxis de
libertação das vítimas ganha legitimidade, denunciando o sistema e anunciando o
novo.
A práxis de libertação tem na organização a fonte de um
planejamento prático, um plano de ação tático e estratégico, pois se consolida
no uso das razões estratégica e instrumental, possibilidade empírica da ação
transformadora, a práxis concreta de libertação não pode agir sem antes ter uma
organização tática e estratégica precisa quanto ao fim auspicioso da ação
libertadora, na sua desconstrução do sistema vigente e edificação de uma nova
estrutura institucional, submetida aos princípios éticos libertadores das
vítimas, temos aqui a utopia do possível, da qual voltarei a falar adiante.
Mas, o que devemos ter como base da práxis de libertação é
sua organização estratégica, e, na Ética da Libertação dusseliana, não se trata
de um plano de ação ideológica comunista, anarquista, ou muito menos
reformista, é um plano de ação cotidiano que não se fundamenta com uma
ideologia, mas sim com princípios ético-críticos com um modelo teórico para a
ação das vítimas de se auto-libertarem, não temos aqui, portanto, um
vanguardismo no estilo da revolução soviética, o que se vê é um Dussel
ponderado quanto à ação libertadora das vítimas, ele entende a libertação ou a
práxis de libertação como uma interferência crítica cotidiana e que só assume
feições revolucionárias em casos extremos, o que temos é um Dussel que, se
quisermos dar uma ideologia que funda a sua Ética da Libertação, é o princípio
racional democrático, todo o projeto de libertação dusseliano considera, antes
de tudo, o respeito pela simetria discursiva dos sujeitos no sistema, simetria
que se pode alcançar com transformações libertadoras que, se se querem como
tais, devem fundamentar tais ações num projeto democrático-libertador. Mas, não
temos em Dussel, ainda que com o pressuposto do princípio democrático para toda
práxis de libertação, uma ação ideológica, pois a práxis de libertação em
Dussel já carrega em si (intrinsecamente) o princípio-democracia, não é práxis
de libertação se não for democrática, o que refuta a tese revolucionária
comunista de ditadura do proletariado, não há possibilidade de libertação sem
que haja, antes de mais nada, em Dussel, democracia.
Para explicar melhor o que Dussel entende por democracia,
temos de nos atentar à sua crítica ética. Portanto, o sentido do
princípio-democracia, em Dussel, se trata de uma dinâmica de libertação pela
ética, das vítimas do sistema performativo capitalista. O que se entende por
princípio-democracia na obra dusseliana é, sobretudo, a inclusão material e a
simetria discursiva das vítimas no sistema vigente que, para tanto, deve ser
transformado cotidianamente, até que se alcance uma democracia legítima, e não
uma democracia nos moldes excludentes e assimétricos do modelo neoliberal
globalizado. Há, em Dussel, um sentido amplo para a palavra democracia, que
deve ir além de uma democracia puramente política, e alcançar as exigências
éticas de libertação das vítimas, ou seja, o princípio-democracia dusseliano é
um princípio ético-social, e não somente um princípio político, tal como é
concebida a democracia do liberalismo político. Por fim, o princípio-democracia
é o princípio regente de sua Ética da Libertação, quer dizer, é a racionalidade
ou idéia racional regulativa de fundo em relação a todos os critérios e
princípios ético-libertadores apresentados por Dussel em sua obra. A
racionalidade democrática, em seu sentido pleno, ou seja, como democracia
ético-social, e não somente como democracia política, é o a priori de toda ação
libertadora das vítimas realizada enquanto práxis de libertação.
O que Dussel critica, na verdade, é o sistema capitalista
globalizado, a hegemonia ideológica do economicismo neoliberal que gera
exclusão material e discursiva de uma maioria de vítimas. O elemento
sócio-histórico de opressão e exclusão do modelo capitalista liberal chega ao
ápice em sua fase global, e Dussel cria o seu modelo teórico categorial para
uma orientação da crítica ao sistema com um fundamento ético, sendo o critério
de vida-morte exatamente a chave mestra de toda a reflexão dusseliana, e o
primeiro critério, digo até, o mais importante, para a teoria crítica da Ética
da Libertação de Dussel, e o fundo no qual a práxis de libertação se dará,
práxis de afirmação da vida negada da vítima pelo sistema, práxis que só vemos
como necessária a partir do critério vida-morte que denuncia a exclusão
material das vítimas, e que, na visão dusseliana, foi esquecida por muitos
modelos teórico-éticos.
O avanço que se tem com a ética dusseliana de libertação,
sobretudo, é a consideração do mundo concreto, material, corpóreo, e que é o
primeiro princípio universal que transcende o relativismo ético do valorativo e
do cultural, temos no sujeito pulsional, por fim, a primeira manifestação do
sujeito sócio-histórico emergente (comunidade crítica das vítimas), pulsão
alterativa que se dá num horizonte material que é universal, a práxis de
libertação se funda, então, em princípios universais, embora seja um movimento
crítico da alteridade do Outro que o sistema, o excluído, pois a práxis só tem
função se libertar a vítima universal que está em toda vítima concreta, é a
afirmação da alteridade negada da vítima com uma teoria ética universal, ética
universal que perpassa a particularidade cultural e valorativa
transversalmente.
As possibilidades empíricas da práxis de libertação, por sua
vez, devem estar subsumidas pelo horizonte de factibilidade ético-crítico, como
já dito anteriormente. A uma práxis de libertação, para ter êxito, é necessário,
não só a organização, mas a prática de um verdadeiro movimento popular, a
práxis de libertação se concretiza com os movimentos sociais libertadores
agindo concretamente nos limites impostos pelo sistema, tornando-se uma práxis
eficiente de acordo com o aprendizado prático alcançado com ações cotidianas de
transformação do sistema vigente, temos aqui uma ação cotidiana de
transformação que, embora cotidiana, e que, por isso, possa, muitas vezes,
parecer uma ação banal e não transformadora, fará parte de um conjunto de ações
de movimentos sociais libertadores que têm em vista um resultado que só será
notado a longo prazo, a possibilidade de realização da libertação para a práxis
de libertação será resultado, no fim, de ações cotidianas ético-libertadoras
com um projeto concreto de libertação, projeto de transformação radical do
sistema vigente, mas que se conquista com pequenas transformações cotidianas.
A práxis de libertação tem como objetivo ético e político, em
Dussel, por sua vez, a realização de um projeto democrático, um modelo
crítico-discursivo simétrico de libertação das vítimas e um modelo material de
afirmação corpórea das vítimas, e a subsunção, por fim, de tais modelos, no
horizonte crítico-prático dos limites empíricos da práxis junto com os limites
éticos de factibilidade, tendo-se na razão libertadora a ação efetiva da práxis
de libertação, é nela que temos a reunião dos princípios ético-universais
material, discursivo e de factibilidade, pode-se dizer que a práxis de
libertação só se torna uma ação eficiente com uma razão libertadora que deve
obrigatoriamente obedecer, no caso dusseliano, aos princípios enunciados por
Dussel ao longo de sua Ética da Libertação, a práxis de libertação obedece, por
fim, ao modelo teórico e categorial edificado por Dussel, seria a práxis de
libertação a justificação prática da teoria ética dusseliana de libertação,
pois tal ética só se fundamenta enquanto um projeto de ação empírica, um
projeto de libertação que se realiza numa práxis de libertação que concretiza,
portanto, um modelo pressuposto de uma ética crítica em favor das vítimas do
sistema vigente, qual seja, a Ética da Libertação de Dussel.
Poderia se dizer aqui que a Ética da Libertação de Dussel se
trata de um modelo ético que se pretende como universal, Dussel se propõe a
edificar uma ética universal (corporalidade e discursividade universais), mas
que tem como fundamento crítico a alteridade do Outro que o sistema, a vítima
deste sistema, de nosso capitalismo “transnacional” (globalizado), o sujeito
universal da corporalidade e da discursividade negadas aparece como alteridade
do Outro que o sistema, a vítima, temos aí a exterioridade como a crítica ao
sistema vigente. No entanto, universalidade e alteridade em Dussel se
harmonizam transversalmente, pois o que diz respeito à vítima em particular em
Dussel, se refere, ao mesmo tempo, ao sujeito universal corpóreo e discursivo,
não havendo, portanto, e como já dito anteriormente, espaço na ética dusseliana
para qualquer relativismo cultural ou valorativo, é antes de mais nada o
sujeito pulsional alterativo que é, não obstante, o sujeito ético universal,
sendo a cultura e os valores, componentes importantes para toda ética, mas não
os fundamentos de uma ética que se quer como universal, como pretende Dussel
com sua Ética da Libertação. É a partir desta fundamentação universal dos
princípios éticos que se dará, por conseguinte, a práxis de libertação em
Dussel.
A práxis de libertação, por sua vez, segue um modelo ético
universal que visa, não obstante, afirmar a exterioridade da vítima excluída do
discurso, a alteridade do Outro negado do sistema, a corporalidade que sofre
numa vulnerabilidade universal. A práxis de libertação, por fim, se fundamenta
em princípios éticos que são universais, mas tem como o seu sujeito da ação a
vítima que aparece como alteridade, exterioridade, Outro, mas que, ao se propor
uma reflexão ética sobre isto, esta vítima nos aparece em sua universalidade, a
práxis de libertação afirma a alteridade da vítima que, por sua vez, revela a
emergência de um sujeito ético universal, o sujeito concreto do corpo, e não um
sujeito metafísico ou puramente cognoscente, é o sujeito que antecede até mesmo
a ontologia, seria em Dussel o sujeito da vida cotidiana, este é o fio da ação
cotidiana de libertação, é uma práxis de libertação com fundamentos éticos
universais para um sujeito ético universal, sujeito este pré-cognitivo e
trans-ontológico, sujeito corpóreo, pulsional, vivente, concreto e vulnerável,
é o sujeito ético que está o tempo inteiro dominado pela dialética vida-morte
que aparece como o primeiro critério para uma ética crítica da libertação em
Dussel.
Sabemos, contudo, que quando se fala de uma universalidade
ética, esta não se situa fora da história, pois o sujeito ético é aqui,
sobretudo, um sujeito histórico, sujeito finito e mutável, qualquer práxis de
libertação será, portanto, histórica, ou seja, toda práxis de libertação
corresponderá a uma época histórica, como a dos burgueses que queriam se livrar
da nobreza e do clero decadentes, ou da classe operária que queria o fim da
dominação sistêmica burguesa, para tanto, precisamos estabelecer qual será a
práxis de libertação mais adequada à nossa época de início do século XXI.
Dussel trata de um projeto libertador que está de acordo com o desenrolar da
História, logo, toda ação da práxis de libertação se constituirá como
intervenção histórica, todo movimento popular será um movimento histórico de
emancipação, a libertação aqui tratada em Dussel, portanto, não é nada mais que
uma libertação histórica, logo, transitória, embora não seja uma libertação
inútil, pelo contrário, a libertação dusseliana é uma libertação constante,
sempre que houverem vítimas haverá práxis de libertação, o histórico se refere
aqui à finitude do efeito de toda ação libertadora, pois não haverá libertação
absoluta, posto que, como já dito, um sistema empiricamente perfeito é
impossível.
A práxis de libertação tem, então, um significado histórico e
um significado universal, é efetuada, a um só tempo, por um sujeito histórico,
que é, não obstante, o sujeito ético universal tematizado por Dussel em sua
Ética da Libertação, a vida humana concreta do sujeito ético é o ponto de
referência universal de sua práxis de libertação, historicidade e
universalidade serão então as características do sujeito ético dusseliano, e a
práxis de libertação será uma práxis histórica que segue princípios éticos
universais.
Dussel delimita historicamente o surgimento e consolidação do
sistema-mundo para, exatamente, dar a orientação histórica necessária a toda
práxis de libertação, o sentido de transformação histórica pode não ser o
sentido radical de uma revolução histórica, mas será, para o nosso terceiro
milênio, o caminho mais eficiente traçado por Dussel para uma práxis de libertação,
partiremos então para ações cotidianas e simples que servirão de estímulo a uma
transformação radical in the long run. O sistema-mundo que tem como centro o
Atlântico Norte (EUA e Europa ocidental) deverá ser transformado para a
sobrevivência da periferia mundial (África, Ásia, América Latina), este será o
sentido prático de uma práxis de libertação no século XXI, a nova orientação
histórica é a transformação ou o fim do sistema-mundo vigente para uma ordem
justa que inclua as vítimas materialmente e discursivamente, criando-se novos
critérios e princípios que darão corpo, para Dussel, a sua utopia do possível.
A transformação histórica obedece aqui aos limites de ordem lógica e empírica,
toda ação deverá ter estratégias e táticas eficientes quanto aos fins práticos
de libertação propostos, a práxis de libertação consegue seu êxito, portanto,
se tiver a exata medida de suas possibilidades dentro da coação legal
sistêmica, por isso a importância dada ao critério crítico-factível por Dussel
na sua concepção de práxis de libertação. A práxis de libertação dusseliana
está no horizonte que ele denomina como a utopia do possível.
3.2 – a utopia do possível
A utopia do possível, para Dussel, está submetida ao limite
empírico de realização do projeto libertador. O contexto cultural, político,
econômico, social, ecológico etc., serão determinantes para a configuração de
um projeto de libertação que seja empiricamente eficiente e que liberte
efetivamente a vítima da dominação sistêmica, a utopia do possível é a realização
de um projeto de libertação que, além de possuir factibilidade lógico-empírica,
também está submetida à factibilidade ética, o critério do crítico-factível é o
que determina toda práxis de libertação que queira ser bem sucedida, que seja
realmente importante para a realização de um projeto de libertação efetivo
empiricamente, o fundamento ético somente não basta, a práxis de libertação é
uma práxis ética, mas também limitada pelo horizonte lógico e empírico,
portanto, a utopia do possível é o fim da práxis de libertação em Dussel, um
fim ético limitado empiricamente, o elemento utópico em Dussel não se refere
comumente ao metafísico, a utopia é real e histórica, não é a fantasia do mundo
perfeito, mas também não é a barbárie da contradição sistêmica capitalista
global, é o mundo em que a vítima não será mais a vítima, o mundo em que todos
estão materialmente e discursivamente incluídos, tudo dentro de um mundo que é
empírico, finito e histórico.
A vida concreta da vítima é a vida a ser transformada, a
utopia do possível é a utopia que é empiricamente viável no mundo concreto e
histórico, não é, portanto, um devaneio ideológico, mesmo que tal utopia esteja
eticamente fundamentada no princípio-democracia, que não é, como dito
anteriormente, somente uma democracia política (horizonte ideológico), mas uma
democracia ético-social. Toda ação de uma práxis de libertação deve ter em
conta as possibilidades de êxito e fracasso, a práxis de libertação é a ação do
eticamente possível limitado pelo empiricamente possível, temos primeiramente
uma limitação ética para a práxis de libertação, e por fim um horizonte
empírico que delimita a práxis no mundo real, concreto e histórico.
O critério crítico-factível é o mais importante na realização
da utopia do possível pela práxis de libertação, a ação transformadora deve
então, aliar um programa teórico-científico, com um programa estratégico-tático
de ação, a teoria é a “idéia” que orienta a razão libertadora, e a ação será a
práxis de libertação em função desta “idéia”, qual seja, a da libertação das
vítimas do sistema capitalista globalizado, esta é, por fim, a idéia que
podemos dizer ser o fim anunciado por toda a Ética da Libertação de Dussel, o
mundo concreto é o mundo da exclusão, a vida humana deve ser o horizonte ético
do século XXI, a vida humana concreta que sofre no corpo as contradições do
sistema performativo capitalista global. A transformação dusseliana seria então
a tarefa de aproximar o mundo concreto e histórico da idéia regulativa de um
mundo sem vítimas, discursivamente simétrico, eticamente perfeito, mas que é
confrontado o tempo todo com o horizonte empírico, portanto, se preserva o
conteúdo histórico de toda práxis de libertação, é uma ação constante de
transformação cotidiana, a utopia do possível se adequa aqui ao horizonte
cotidiano de toda Ética da Libertação dusseliana, sem cair em ilusões
metafísicas, utopia que se dá no mundo concreto, finito e imperfeito, o mundo
do sujeito sócio-histórico da transformação, mundo em que as vítimas lutam para
não morrer, em que a vida humana quer se desenvolver na sua plenitude, mundo em
que a vítima sofre os efeitos (não-intencionais) da contradição performática do
sistema vigente e luta para se libertar, para ter a sua vida reconhecida.
3.3 – práxis de libertação como obrigação histórica
O princípio-libertação é o princípio deontológico da práxis
de libertação. Temos, então, um dever ético de responsabilidade pelo outro, o
que constitui, por conseguinte, o dever ético e histórico de libertar as
vítimas de um sistema performativo. A obrigação ética do princípio-libertação,
qual seja, a de libertar as vítimas do sistema vigente, ganha um sentido
histórico de transformação sistêmica radical in the long run, o dever ético é
agora uma obrigação histórica da práxis de libertação de edificar o novum em
que as vítimas do sistema atual possam viver plenamente. Temos novamente aqui a
historicidade como determinante para a consolidação do dever ético de
libertação de toda vítima de um sistema performativo, sendo a práxis de
libertação, tanto um conjunto de ações eticamente como historicamente
justificadas. O sentido da História em Dussel, ao contrário de Hegel em que é o
Ser Absoluto, é a transformação, esta é a palavra-conceito específica da Ética
da Libertação de Dussel, o mundo concreto e histórico é o mundo a ser
transformado, pois. A práxis de libertação é, por fim, o modo em que a
transformação pode se dar enquanto realização cotidiana de um projeto de
libertação.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário:http://seculodiario.com.br/25990/17/enrique-dussel-e-a-filosofia-latino-americana-parte-iii