PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 28 de novembro de 2015

FERREIRA GULLAR, A POESIA DA CRÍTICA

   Já de saída de alguns ecos neoparnasianos, como em Sete poemas portugueses, no seu livro Luta Corporal, Ferreira Gullar vai ao caminho novo, bem próprio e moderno, de deixar os cumes de uma suposta alta poesia e de fato partir dentro das entranhas, sua luta corporal, a presença do corpo e de seus movimentos, do esforço hercúleo de expressão que vem do instinto, como se pode ver no poema que aqui transcrevo (abaixo) que é o “Carta ao inventor da roda”, poema que me impressionou muito quando me deparei pela primeira vez com a produção poética de Gullar. Sempre que volto a lê-lo, este poema sempre aparece de súbito, como muitas vezes, ao abrir aleatoriamente a antologia de Gullar, Toda Poesia, eu abrir exatamente neste poema, não “ao acaso” ou sabe-se lá.
   Gullar, muito conhecido pelo esforço brutal que deu à luz “Poema Sujo” de 1975, numa situação de exílio em que o poeta não sabia ainda se viveria mais para contar histórias ou escrever, foi uma mistura do desespero e da obscuridade daqueles tempos, e aqui venho com este poema em prosa que, como disse, me marcou por sua sujeira tão belamente composta. Gullar já dá o arranque da questão posta diante do inventor da roda como uma interpelação crítica que se transmuta em dilema e abismo civilizatório, sua questão é a da produção do mundo que começou com esta invenção.
   “Carta ao inventor da roda”: a luta corporal neste poema é intensa. A presença fisiológica concatena com uma guerra retórica do poeta ao metaforizar com mestria todo o símbolo cadavérico da roda e seus efeitos. O poeta dá à sua revolta com este inventor um cabedal poético de motivações contrárias à invenção, pois o que se coloca em todo o poema, para além da roda, é todo o mal civilizatório de suas engrenagens, pois de todo o tempo, em toda a História e seu processo, o poeta julga, em sua coda, que, não resta nada senão a ironia “numa saudação à tua memória inexorável.”

CARTA AO INVENTOR DA RODA

O teu nome está inscrito na parte mais úmida de meus testículos suados; inventor, pretensioso jogral dum tempo de riqueza e providências ocultas, cuspo diariamente em tua enorme e curiosa mão aberta no ar de sempres ontens hojeficados pela hipocrisia das máculas vinculadas aos artelhos de alguns plantígrados sem denodo. Inventor, vê, a tua vaidade vem moendo meus ossos há oitocentos bilhões de sóis iguais-desiguais, queimando as duas unhas dos mínimos obscurecidos pela antipatia da proporção inelutável. Inventor da roda, louvado a cada instante, nos laboratórios de Harvard, nas ruas de toda cidade, no soar dos telefones, eu te amaldiçoo, e principalmente porque não creio em maldições. Vem cá, puto, comedor de aranhas e búzios homossexuais, olha como todos os tristíssimos grãos de meu cérebro estão amassados pelo teu gesto esquecido na sucessão parada, que até hoje tua mão desce sobre a madeira sem forma, no cerne da qual todas as mecânicas espreitavam a liberdade que viria de tua vaidade. Pois bem, tu inventaste o ressecamento precoce de minhas afinidades sexuais, de minhas probabilidades inorgânicas, de meus apetites pulverulentos; tu, sacana, cuja mão pariu toda a inquietação que hoje absorve o reino da impossibilidade visual, tu, vira-bosta, abana-cu, tu preparavas aquela manhã, diante de árvores e um sol sem aviso, todo este nefasto maquinismo sevicioso, que rói meu fêmur como uma broca que serra meu tórax num alarma nasal de oficinas de madeira. Eu estou soluçando neste edifício vastíssimo, estou frio e claro, estou fixo como o rosto de Praxíteles entre as emanações da ginástica corruptiva e emancipadora das obliterações documentárias. Eu estou, porque tu vieste, e talhaste duma coxa de tua mãe a roda que ainda roda e esmaga a tua própria cabeça multiplicada na inconformidade vulcânica das engomadeiras e dos divergentes políticos em noites de parricídio. Não te esquecerei jamais, perdigoto, quando me cuspiste o ânus obliterado, e aquele sabor de alho desceu vertiginosamente até as articulações motoras dos passos desfeitos definitivamente pela comiseração dos planetoides ubíquos. Agora estou aqui, eu, roda que talhaste, e que agora te talha e te retalha em todos os açougues de Gênova, e a tua grave ossada ficará à beira dum mar sujo e ignorado, lambido de dia ou de noite pelas ondulações dum mesmo tempo increscido; tua caveira acesa diante dos vendilhões será conduzida em pompa pelos morcegos de Saint-Germain-des-Prés. Os teus dentes, odioso berne deste planeta incorrigível, serão utilizados pelos hermafroditas sem amigos e pelas moças fogosíssimas que às duas da manhã, após toda a sorte de masturbação, enterram na vagina irritada e ingênua os teus queixais, caninos, incisivos, molares, todos, numa saudação à tua memória inexorável.

Ferreira Gullar, do livro Luta Corporal (1950-1953)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/26109/17/ferreira-gullar-a-poesia-da-critica 

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

AS FOMES RÚTILAS

Revelo os corpos com os mares
nas danças e trevas
do silêncio.

O poema se funde aos signos
dos mistérios de Elêusis.

Vai e conta ao náufrago
seus setenta e sete
versos desesperados.

Revelo, na luz abscôndita,
os ritos que surgem
das caudas de cometas
e de fúrias de estrelas.

Pois tenho, per se,
os faunos em meus risos,
e os gritos de bocas
sibilantes,
e os silêncios que murmuram
com urros
os barulhos
da fome.

26/11/2015 Gustavo Bastos

A FLECHA NO PEITO

A flecha entorpece o peito
no veneno da dor.
Os sóis, todos amarelos,
como os dias de praia,
sorvem o miasma
de uns argonautas
trôpegos e bêbados.

Lendo o farol, sob a luz da torre,
quem mais sustém o céu?
E o mar?

A flecha faz sua rotina
sobre os corações.

A flecha faz-se de sentinela
nos urros e atavios
de alegrias e tristezas.

Todos os caminhos tortos
se viciam de espanto,
este ser indócil
que contesta
até a morte.

26/11/2015 Gustavo Bastos

domingo, 22 de novembro de 2015

ANA CRISTINA CESAR E SUA POESIA ORIGINAL (PARTE II)

   Este epílogo, o poema bem conhecido de Ana C., isto é, o poema sobre as luvas de pelica, tem uma condução narrativa sui generis. Começa como uma exploração de uma valise, de onde sai o mundo inteiro em cartões, contudo, o primeiro objeto é um par de luvas. Reparem, a poeta estava de mãos vazias, bolsos vazios, chapéu também vazio. O vácuo da poeta encontra todas as coisas na mala, na valise, como queiram.
   De um passo ao outro, de mãos vazias, agora Ana C. veste as luvas, mãos esquerda e direita, ela se dá bem com as luvas de pelica, sua marca poética, uma das mais famosas de sua obra. Na mala está outras coisas: um mundo de cartões, ou melhor, cartões-postais do mundo, imagens surgem, esta incursão na mala faz todo o poema, conduz como um retirar de coisas que vão entrando como imagens no próprio poema, isto é, a mala, valise, é o próprio poema epílogo.
   Por se tratar de um poema narrativo, temos aqui uma linguagem objetiva, moderna, alternativa até, e que tem na sua cadência todo um mundo de imagens que vira um grande jogo ... Estranha valise! Ao largo aparecem palavras rabiscadas, e então o poema se fragmenta como nunca, a quebra e giros vão do espanto que surgiu de uma simples mala, de uma estranha coleção de coisas que viraram um poema, o poema das luvas de pelica, o poema da valise, dos cartões-postais, o poema epílogo.


EPÍLOGO

                                                     I AM GOING TO PASS around in
a minute some lovely, glossy-blue Picture postcards.
Num minuto vou passar para vocês vários cartões-postais belos
e brilhantes.
Esta é a mala de couro que contém a famosa coleção.
Reparem nas minhas mãos, vazias.
Meus bolsos também estão vazios.
Meu chapéu também está vazio. Vejam. Minhas mangas.
Viro de costas, dou uma volta inteira.
Como todos podem ver, não há nenhum truque, nenhum alçapão
escondido, nem jogos de luz enganadores.
A mala repousa nesta cadeira aqui.
Abro a mala com esta chave mestra em cerimônias do tipo, se
me permitem a brincadeira.
A primeira coisa que encontramos na mala, por cima de tudo,
É – adivinhem – um par de luvas.
Ei-las.
Pelica.
Coisa fina.
Visto as luvas – mão esquerda ... mão direita ... corte ... perfeito.
Isso me lembra ...
Um jovem artista perdido na elegante Berlim da Belle Époque,
sozinho, em vão procurando por prazer. Passa um grupo ruidoso
de patinadores, e uma mulher de branco deixa cair a sua luva,
uma luva com seis botões forrados, branca, longa, perfumada.
O jovem corre, apanha a luva, mas reluta se deve aceitar ou não
O desafio. Afinal decide ignorá-lo, guarda a luva no bolso e volta
caminhando para o seu hotel por ruas mal iluminadas.
Mas assim me desvio do meu propósito desta noite. Depois se
houver tempo concluirei esta história fantástica, onde entra até
uma carruagem de Netuno, um morcego gigantesco que sorri e
foge sempre, e um oceano de folhagens.
Quem sabe esta não é exatamente aquela luva? No entanto
temos aqui não apenas uma, mas o par; é muito delicado e
contrasta com este terno preto.
A valise de couro conterá objetos de toucador?
Não, meus amigos.
Como todos podem ver, mediante uma ligeira rotação que faço
na cadeira sobre a qual ela se encontra, a valise contém apenas
papel ... cartões ... dezenas, talvez centenas de cartões-postais.
Estranha valise!
E agora, atenção.
Com minhas mãos enluvadas – um momento enquanto abotoo
uma ... e depois outra ... cuidadosamente ... não há fraude ... ajusto
os punhos, assim ... – agora com estas mãos, ao acaso, apanho
o primeiro cartão-postal, que contemplo por um instante sob a
luz ... há um reflexo ... mas vejo aqui uma moça afogada entre os
juncos ... passo o primeiro cartão, por favor passem uns para os
outros ... segundo cartão: a Avenida Atlântica ... vão passando ...
cadilaque em Acapulco ... Carmem ... Centro Pompidou ... igreja
no Alabama ... castelo visto do levante ... dois cupidos de óculos
escuros ... o ladrão de joias e a duquesa ... e este aqui, Fred Astaire
em Lady be good, ou não faz arte, menina ... nostálgica ... e uma
Marilyn, e aqui a praia em Clacton com bingo e fish and chips ...
O Boeing da Air France ... bondes subindo a ladeira em São Francisco ...
um urso-polar no zoo de Barcelona ... Salomé ... Londres ...
outra Salomé ... vão passando, vão passando.
Meus amigos, isto é uma valise, não é uma cartola com coelhos.
Temos cartões para a noite inteira.
Alexandria ... Beirute ... Praga ...
Sejam misteriosas, um quadro de Paul ... Gauguin, seguido de
O que, estás com ciúme? uma pergunta malandra em tom
capcioso, assim tomando sol na praia.
E outros de museu aqui:
O olho, como um balão bizarro, se dirige para o infinito;
No horizonte, o anjo das certitudes, e no céu sombrio, um olhar
Interrogador;
A dama em desespero;
O sangue da Medusa;
As mães malvadas;
Tranco a porta sobre mim;
O beijo;
Outro beijo;
O ciúme novamente,
E agora o verdadeiro Morro dos ventos uivantes, seguindo de
uma curiosa competição esportiva, e de alguma pornografia, e
de um padrinho Cícero.
Meus amigos, eu não sei onde nós vamos parar.
Continuo a passar mais rapidamente estes cartões. Reparem nesses
bolinhos presos com elástico, e aliás ia me esquecendo de
dizer, podem e devem verificar se no verso há palavras rabiscadas,
este aqui por exemplo, “Para quando serão nossas próximas
horas exquisitas?”, esquisitas com xis, ou este aqui, “O Posto
6, onde passei minha infância e minha adolescência, como está
mudado!”, ou este outro, ouçam só, “Fico tentando te mandar
um pedacinho de onde estou mas fica faltando sempre”. E um
com letra bem miúda: “Acalmei bem, me distraí, não penso tanto,
penso a te”. Acho que o final está em italiano. Vão lendo, vão
lendo, a maioria está em branco mesmo, com licença.
Eu preciso sair mas volto logo.
Um cisco no olho, um pequeno cisco; na volta continuo a tirar
os cartões da mala, e quem sabe, quando o momento for propício,
conto o resto daquela história verdadeira, mas antes de sair
tiro a luva, deixo aqui no espaldar desta cadeira.

(Do livro Luvas de Pelica de Ana Cristina Cesar)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/25988/17/ana-cristina-cesar-e-sua-poesia-original-parte-ii     

ENRIQUE DUSSELL E A FILOSOFIA LATINO-AMERICANA (PARTE III)

CAPÍTULO III : Uma crítica sobre a práxis de libertação na obra Ética da Libertação de Dussel

3.1 – sobre as possibilidades da práxis de libertação

A práxis de libertação, em Dussel, é o fim próprio de sua ética, a ética dusseliana formula, até chegar à práxis de libertação de fato, uma teoria crítica sobre a negatividade das vítimas no mundo atual globalizado, toda a teoria tem como fundo a crítica do sistema capitalista mundial, sendo fundamental para a sua crítica ética o princípio material do dever de produzir, reproduzir e desenvolver a vida, é a tese crítica central da Ética da Libertação de Dussel, é na corporalidade negada, que sofre, a negatividade material da vítima, que se inicia a construção teórica e categorial que busca para a vítima um suporte para a sua auto-libertação, é este, o princípio material, que estabelece a primeira crítica de Dussel ao sistema vigente, a práxis de libertação seria a ação necessária da vítima contra a sua opressão e exclusão, tendo como primeiro efeito do domínio sistêmico um sujeito que sofre em seu corpo as dores de uma exclusão material. Temos então o sujeito negado em sua condição material, sofrendo concretamente no corpo a fome ou o frio, vivendo em completa miséria, este é o primeiro apelo social de Dussel, a vítima desnuda e vulnerável em seu corpo frágil, no limite extremo do critério vida-morte dusseliano, mais para a morte que para a vida.

Dussel tem na corporalidade negada da vítima, no corpo que sente fome e frio, que é explorado na reprodução do capital, a fonte principal de sua crítica ética. O sujeito ético dusseliano assume aqui uma forma ampla, pois, aparece primeiramente como conteúdo material, pulsional, universalidade da corporalidade, do princípio material dusseliano. Dussel consegue transcender, com este princípio, os conteúdos culturais e valorativos, temos agora um sujeito ético-corpóreo universal, a primeira manifestação do sujeito ético em Dussel, aparecendo como negatividade, como vítima do sistema vigente, em toda vítima concreta está a vítima universal. Na práxis de libertação, a comunidade das vítimas tem como primeiro movimento o de negar a negação material que sofre.

Para a intersubjetividade, o princípio material deve ter, por conseguinte, um princípio formal de validação, é aqui que a ética dusseliana se encontra com a moralidade discursiva, temos então para o sujeito ético a luta pelo reconhecimento simétrico discursivo, por sua participação na discursividade moral, que, para a vítima, é negada. Temos então a negação do discurso das vítimas no sistema vigente, o que fará nascer a comunidade crítico-discursiva simétrica das vítimas, é a partir desta comunidade crítica das vítimas que surgem os movimentos sociais com uma discursividade própria que entra em conflito com o discurso do sistema vigente, a vítima terá, sobretudo na ciência social crítica, o seu programa de ação, a práxis de libertação ganha com isso uma justificação para suas reivindicações perante o sistema, a libertação das vítimas ganha fundamentação científica, as vítimas têm teoria, têm discurso, se organizam, e, mesmo na ilegalidade de suas ações, creem na justiça de suas aspirações, são ilegais para o sistema, mas legítimas como luta social, e que, em Dussel, passa a ter justificação ética, justiça para os oprimidos e excluídos que se torna um dever ético de libertação.

Portanto, temos, para a práxis de libertação, o momento negativo de negação da negatividade da vítima, negação crítica de sua negatividade material e discursiva, é a desconstrução necessária como o movimento crítico que antecede a edificação do novum, é a denúncia da contradição sistêmica e a negação do bem que o sistema impõe, bem que é sofrimento para as vítimas. A práxis de libertação usa, então, da estratégia de explorar as fissuras do sistema, o momento negativo é o momento da crítica do bem sistêmico. O momento positivo da práxis de libertação é quando as vítimas usam da criatividade para construir o novo, temos um programa científico de ação, uma teoria da ação, e, logo depois, a ação efetiva com tática e estratégia, com o realismo da factibilidade empírica, com a orientação prática da factibilidade ética, com a subsunção dusseliana de todos os seus princípios éticos enunciados para a sua Ética da Libertação na razão libertadora, agora temos o passo definitivo da práxis de libertação em Dussel, quando esta parte para a ação transformadora, ação cotidiana que podemos ver nos movimentos sociais críticos do sistema, que devem, antes de tudo, estarem organizados o suficiente para uma ação eficiente e que transformem de fato alguma coisa, pois a práxis de libertação, para o sistema, em princípio, é uma ação ilegal, e que pode vir a sofrer a repressão violenta dos organismos policiais, pois a práxis de libertação se constitui, na prática, num embate entre as vítimas e as leis vigentes, há um enfrentamento que pode ser pacífico ou violento, sendo a ação violenta do sistema contra as vítimas o gerador da crise de legitimidade do sistema, enquanto a práxis de libertação das vítimas ganha legitimidade, denunciando o sistema e anunciando o novo.

A práxis de libertação tem na organização a fonte de um planejamento prático, um plano de ação tático e estratégico, pois se consolida no uso das razões estratégica e instrumental, possibilidade empírica da ação transformadora, a práxis concreta de libertação não pode agir sem antes ter uma organização tática e estratégica precisa quanto ao fim auspicioso da ação libertadora, na sua desconstrução do sistema vigente e edificação de uma nova estrutura institucional, submetida aos princípios éticos libertadores das vítimas, temos aqui a utopia do possível, da qual voltarei a falar adiante.

Mas, o que devemos ter como base da práxis de libertação é sua organização estratégica, e, na Ética da Libertação dusseliana, não se trata de um plano de ação ideológica comunista, anarquista, ou muito menos reformista, é um plano de ação cotidiano que não se fundamenta com uma ideologia, mas sim com princípios ético-críticos com um modelo teórico para a ação das vítimas de se auto-libertarem, não temos aqui, portanto, um vanguardismo no estilo da revolução soviética, o que se vê é um Dussel ponderado quanto à ação libertadora das vítimas, ele entende a libertação ou a práxis de libertação como uma interferência crítica cotidiana e que só assume feições revolucionárias em casos extremos, o que temos é um Dussel que, se quisermos dar uma ideologia que funda a sua Ética da Libertação, é o princípio racional democrático, todo o projeto de libertação dusseliano considera, antes de tudo, o respeito pela simetria discursiva dos sujeitos no sistema, simetria que se pode alcançar com transformações libertadoras que, se se querem como tais, devem fundamentar tais ações num projeto democrático-libertador. Mas, não temos em Dussel, ainda que com o pressuposto do princípio democrático para toda práxis de libertação, uma ação ideológica, pois a práxis de libertação em Dussel já carrega em si (intrinsecamente) o princípio-democracia, não é práxis de libertação se não for democrática, o que refuta a tese revolucionária comunista de ditadura do proletariado, não há possibilidade de libertação sem que haja, antes de mais nada, em Dussel, democracia.

Para explicar melhor o que Dussel entende por democracia, temos de nos atentar à sua crítica ética. Portanto, o sentido do princípio-democracia, em Dussel, se trata de uma dinâmica de libertação pela ética, das vítimas do sistema performativo capitalista. O que se entende por princípio-democracia na obra dusseliana é, sobretudo, a inclusão material e a simetria discursiva das vítimas no sistema vigente que, para tanto, deve ser transformado cotidianamente, até que se alcance uma democracia legítima, e não uma democracia nos moldes excludentes e assimétricos do modelo neoliberal globalizado. Há, em Dussel, um sentido amplo para a palavra democracia, que deve ir além de uma democracia puramente política, e alcançar as exigências éticas de libertação das vítimas, ou seja, o princípio-democracia dusseliano é um princípio ético-social, e não somente um princípio político, tal como é concebida a democracia do liberalismo político. Por fim, o princípio-democracia é o princípio regente de sua Ética da Libertação, quer dizer, é a racionalidade ou idéia racional regulativa de fundo em relação a todos os critérios e princípios ético-libertadores apresentados por Dussel em sua obra. A racionalidade democrática, em seu sentido pleno, ou seja, como democracia ético-social, e não somente como democracia política, é o a priori de toda ação libertadora das vítimas realizada enquanto práxis de libertação.

O que Dussel critica, na verdade, é o sistema capitalista globalizado, a hegemonia ideológica do economicismo neoliberal que gera exclusão material e discursiva de uma maioria de vítimas. O elemento sócio-histórico de opressão e exclusão do modelo capitalista liberal chega ao ápice em sua fase global, e Dussel cria o seu modelo teórico categorial para uma orientação da crítica ao sistema com um fundamento ético, sendo o critério de vida-morte exatamente a chave mestra de toda a reflexão dusseliana, e o primeiro critério, digo até, o mais importante, para a teoria crítica da Ética da Libertação de Dussel, e o fundo no qual a práxis de libertação se dará, práxis de afirmação da vida negada da vítima pelo sistema, práxis que só vemos como necessária a partir do critério vida-morte que denuncia a exclusão material das vítimas, e que, na visão dusseliana, foi esquecida por muitos modelos teórico-éticos.

O avanço que se tem com a ética dusseliana de libertação, sobretudo, é a consideração do mundo concreto, material, corpóreo, e que é o primeiro princípio universal que transcende o relativismo ético do valorativo e do cultural, temos no sujeito pulsional, por fim, a primeira manifestação do sujeito sócio-histórico emergente (comunidade crítica das vítimas), pulsão alterativa que se dá num horizonte material que é universal, a práxis de libertação se funda, então, em princípios universais, embora seja um movimento crítico da alteridade do Outro que o sistema, o excluído, pois a práxis só tem função se libertar a vítima universal que está em toda vítima concreta, é a afirmação da alteridade negada da vítima com uma teoria ética universal, ética universal que perpassa a particularidade cultural e valorativa transversalmente.

As possibilidades empíricas da práxis de libertação, por sua vez, devem estar subsumidas pelo horizonte de factibilidade ético-crítico, como já dito anteriormente. A uma práxis de libertação, para ter êxito, é necessário, não só a organização, mas a prática de um verdadeiro movimento popular, a práxis de libertação se concretiza com os movimentos sociais libertadores agindo concretamente nos limites impostos pelo sistema, tornando-se uma práxis eficiente de acordo com o aprendizado prático alcançado com ações cotidianas de transformação do sistema vigente, temos aqui uma ação cotidiana de transformação que, embora cotidiana, e que, por isso, possa, muitas vezes, parecer uma ação banal e não transformadora, fará parte de um conjunto de ações de movimentos sociais libertadores que têm em vista um resultado que só será notado a longo prazo, a possibilidade de realização da libertação para a práxis de libertação será resultado, no fim, de ações cotidianas ético-libertadoras com um projeto concreto de libertação, projeto de transformação radical do sistema vigente, mas que se conquista com pequenas transformações cotidianas.

A práxis de libertação tem como objetivo ético e político, em Dussel, por sua vez, a realização de um projeto democrático, um modelo crítico-discursivo simétrico de libertação das vítimas e um modelo material de afirmação corpórea das vítimas, e a subsunção, por fim, de tais modelos, no horizonte crítico-prático dos limites empíricos da práxis junto com os limites éticos de factibilidade, tendo-se na razão libertadora a ação efetiva da práxis de libertação, é nela que temos a reunião dos princípios ético-universais material, discursivo e de factibilidade, pode-se dizer que a práxis de libertação só se torna uma ação eficiente com uma razão libertadora que deve obrigatoriamente obedecer, no caso dusseliano, aos princípios enunciados por Dussel ao longo de sua Ética da Libertação, a práxis de libertação obedece, por fim, ao modelo teórico e categorial edificado por Dussel, seria a práxis de libertação a justificação prática da teoria ética dusseliana de libertação, pois tal ética só se fundamenta enquanto um projeto de ação empírica, um projeto de libertação que se realiza numa práxis de libertação que concretiza, portanto, um modelo pressuposto de uma ética crítica em favor das vítimas do sistema vigente, qual seja, a Ética da Libertação de Dussel.

Poderia se dizer aqui que a Ética da Libertação de Dussel se trata de um modelo ético que se pretende como universal, Dussel se propõe a edificar uma ética universal (corporalidade e discursividade universais), mas que tem como fundamento crítico a alteridade do Outro que o sistema, a vítima deste sistema, de nosso capitalismo “transnacional” (globalizado), o sujeito universal da corporalidade e da discursividade negadas aparece como alteridade do Outro que o sistema, a vítima, temos aí a exterioridade como a crítica ao sistema vigente. No entanto, universalidade e alteridade em Dussel se harmonizam transversalmente, pois o que diz respeito à vítima em particular em Dussel, se refere, ao mesmo tempo, ao sujeito universal corpóreo e discursivo, não havendo, portanto, e como já dito anteriormente, espaço na ética dusseliana para qualquer relativismo cultural ou valorativo, é antes de mais nada o sujeito pulsional alterativo que é, não obstante, o sujeito ético universal, sendo a cultura e os valores, componentes importantes para toda ética, mas não os fundamentos de uma ética que se quer como universal, como pretende Dussel com sua Ética da Libertação. É a partir desta fundamentação universal dos princípios éticos que se dará, por conseguinte, a práxis de libertação em Dussel.

A práxis de libertação, por sua vez, segue um modelo ético universal que visa, não obstante, afirmar a exterioridade da vítima excluída do discurso, a alteridade do Outro negado do sistema, a corporalidade que sofre numa vulnerabilidade universal. A práxis de libertação, por fim, se fundamenta em princípios éticos que são universais, mas tem como o seu sujeito da ação a vítima que aparece como alteridade, exterioridade, Outro, mas que, ao se propor uma reflexão ética sobre isto, esta vítima nos aparece em sua universalidade, a práxis de libertação afirma a alteridade da vítima que, por sua vez, revela a emergência de um sujeito ético universal, o sujeito concreto do corpo, e não um sujeito metafísico ou puramente cognoscente, é o sujeito que antecede até mesmo a ontologia, seria em Dussel o sujeito da vida cotidiana, este é o fio da ação cotidiana de libertação, é uma práxis de libertação com fundamentos éticos universais para um sujeito ético universal, sujeito este pré-cognitivo e trans-ontológico, sujeito corpóreo, pulsional, vivente, concreto e vulnerável, é o sujeito ético que está o tempo inteiro dominado pela dialética vida-morte que aparece como o primeiro critério para uma ética crítica da libertação em Dussel.

Sabemos, contudo, que quando se fala de uma universalidade ética, esta não se situa fora da história, pois o sujeito ético é aqui, sobretudo, um sujeito histórico, sujeito finito e mutável, qualquer práxis de libertação será, portanto, histórica, ou seja, toda práxis de libertação corresponderá a uma época histórica, como a dos burgueses que queriam se livrar da nobreza e do clero decadentes, ou da classe operária que queria o fim da dominação sistêmica burguesa, para tanto, precisamos estabelecer qual será a práxis de libertação mais adequada à nossa época de início do século XXI. Dussel trata de um projeto libertador que está de acordo com o desenrolar da História, logo, toda ação da práxis de libertação se constituirá como intervenção histórica, todo movimento popular será um movimento histórico de emancipação, a libertação aqui tratada em Dussel, portanto, não é nada mais que uma libertação histórica, logo, transitória, embora não seja uma libertação inútil, pelo contrário, a libertação dusseliana é uma libertação constante, sempre que houverem vítimas haverá práxis de libertação, o histórico se refere aqui à finitude do efeito de toda ação libertadora, pois não haverá libertação absoluta, posto que, como já dito, um sistema empiricamente perfeito é impossível.

A práxis de libertação tem, então, um significado histórico e um significado universal, é efetuada, a um só tempo, por um sujeito histórico, que é, não obstante, o sujeito ético universal tematizado por Dussel em sua Ética da Libertação, a vida humana concreta do sujeito ético é o ponto de referência universal de sua práxis de libertação, historicidade e universalidade serão então as características do sujeito ético dusseliano, e a práxis de libertação será uma práxis histórica que segue princípios éticos universais.

Dussel delimita historicamente o surgimento e consolidação do sistema-mundo para, exatamente, dar a orientação histórica necessária a toda práxis de libertação, o sentido de transformação histórica pode não ser o sentido radical de uma revolução histórica, mas será, para o nosso terceiro milênio, o caminho mais eficiente traçado por Dussel para uma práxis de libertação, partiremos então para ações cotidianas e simples que servirão de estímulo a uma transformação radical in the long run. O sistema-mundo que tem como centro o Atlântico Norte (EUA e Europa ocidental) deverá ser transformado para a sobrevivência da periferia mundial (África, Ásia, América Latina), este será o sentido prático de uma práxis de libertação no século XXI, a nova orientação histórica é a transformação ou o fim do sistema-mundo vigente para uma ordem justa que inclua as vítimas materialmente e discursivamente, criando-se novos critérios e princípios que darão corpo, para Dussel, a sua utopia do possível. A transformação histórica obedece aqui aos limites de ordem lógica e empírica, toda ação deverá ter estratégias e táticas eficientes quanto aos fins práticos de libertação propostos, a práxis de libertação consegue seu êxito, portanto, se tiver a exata medida de suas possibilidades dentro da coação legal sistêmica, por isso a importância dada ao critério crítico-factível por Dussel na sua concepção de práxis de libertação. A práxis de libertação dusseliana está no horizonte que ele denomina como a utopia do possível.

3.2 – a utopia do possível

A utopia do possível, para Dussel, está submetida ao limite empírico de realização do projeto libertador. O contexto cultural, político, econômico, social, ecológico etc., serão determinantes para a configuração de um projeto de libertação que seja empiricamente eficiente e que liberte efetivamente a vítima da dominação sistêmica, a utopia do possível é a realização de um projeto de libertação que, além de possuir factibilidade lógico-empírica, também está submetida à factibilidade ética, o critério do crítico-factível é o que determina toda práxis de libertação que queira ser bem sucedida, que seja realmente importante para a realização de um projeto de libertação efetivo empiricamente, o fundamento ético somente não basta, a práxis de libertação é uma práxis ética, mas também limitada pelo horizonte lógico e empírico, portanto, a utopia do possível é o fim da práxis de libertação em Dussel, um fim ético limitado empiricamente, o elemento utópico em Dussel não se refere comumente ao metafísico, a utopia é real e histórica, não é a fantasia do mundo perfeito, mas também não é a barbárie da contradição sistêmica capitalista global, é o mundo em que a vítima não será mais a vítima, o mundo em que todos estão materialmente e discursivamente incluídos, tudo dentro de um mundo que é empírico, finito e histórico.

A vida concreta da vítima é a vida a ser transformada, a utopia do possível é a utopia que é empiricamente viável no mundo concreto e histórico, não é, portanto, um devaneio ideológico, mesmo que tal utopia esteja eticamente fundamentada no princípio-democracia, que não é, como dito anteriormente, somente uma democracia política (horizonte ideológico), mas uma democracia ético-social. Toda ação de uma práxis de libertação deve ter em conta as possibilidades de êxito e fracasso, a práxis de libertação é a ação do eticamente possível limitado pelo empiricamente possível, temos primeiramente uma limitação ética para a práxis de libertação, e por fim um horizonte empírico que delimita a práxis no mundo real, concreto e histórico.

O critério crítico-factível é o mais importante na realização da utopia do possível pela práxis de libertação, a ação transformadora deve então, aliar um programa teórico-científico, com um programa estratégico-tático de ação, a teoria é a “idéia” que orienta a razão libertadora, e a ação será a práxis de libertação em função desta “idéia”, qual seja, a da libertação das vítimas do sistema capitalista globalizado, esta é, por fim, a idéia que podemos dizer ser o fim anunciado por toda a Ética da Libertação de Dussel, o mundo concreto é o mundo da exclusão, a vida humana deve ser o horizonte ético do século XXI, a vida humana concreta que sofre no corpo as contradições do sistema performativo capitalista global. A transformação dusseliana seria então a tarefa de aproximar o mundo concreto e histórico da idéia regulativa de um mundo sem vítimas, discursivamente simétrico, eticamente perfeito, mas que é confrontado o tempo todo com o horizonte empírico, portanto, se preserva o conteúdo histórico de toda práxis de libertação, é uma ação constante de transformação cotidiana, a utopia do possível se adequa aqui ao horizonte cotidiano de toda Ética da Libertação dusseliana, sem cair em ilusões metafísicas, utopia que se dá no mundo concreto, finito e imperfeito, o mundo do sujeito sócio-histórico da transformação, mundo em que as vítimas lutam para não morrer, em que a vida humana quer se desenvolver na sua plenitude, mundo em que a vítima sofre os efeitos (não-intencionais) da contradição performática do sistema vigente e luta para se libertar, para ter a sua vida reconhecida.

3.3 – práxis de libertação como obrigação histórica

O princípio-libertação é o princípio deontológico da práxis de libertação. Temos, então, um dever ético de responsabilidade pelo outro, o que constitui, por conseguinte, o dever ético e histórico de libertar as vítimas de um sistema performativo. A obrigação ética do princípio-libertação, qual seja, a de libertar as vítimas do sistema vigente, ganha um sentido histórico de transformação sistêmica radical in the long run, o dever ético é agora uma obrigação histórica da práxis de libertação de edificar o novum em que as vítimas do sistema atual possam viver plenamente. Temos novamente aqui a historicidade como determinante para a consolidação do dever ético de libertação de toda vítima de um sistema performativo, sendo a práxis de libertação, tanto um conjunto de ações eticamente como historicamente justificadas. O sentido da História em Dussel, ao contrário de Hegel em que é o Ser Absoluto, é a transformação, esta é a palavra-conceito específica da Ética da Libertação de Dussel, o mundo concreto e histórico é o mundo a ser transformado, pois. A práxis de libertação é, por fim, o modo em que a transformação pode se dar enquanto realização cotidiana de um projeto de libertação.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


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