PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 27 de dezembro de 2014

ALICE ACORRENTADA

                                              
   Alice, nascida em 7 de maio  de 1903, num vilarejo no fim da estrada, longe da cidade principal, tinha uma família abastada. Tinha outros três irmãos, estes mais velhos, todos homens. Seu pai, Roberto, era caçador de aves, ganhara prêmios inumeráveis, pois já tinha aprendido tiro quando serviu ao Exército dos 18 aos 21 anos. A mãe da Alice morreu no parto da mesma, seu nome era Bianca. Alice cresceu num ambiente rural, era paparicada por todos os seus irmãos e, sobretudo, pelo seu pai. Aos três anos passou a ter um amigo imaginário de nome Buddy. A família estranhava aquela nova fixação da menina Alice, mas deixavam-na com seus brinquedos e sua imaginação quase delirante.
   Aos 6 anos, Alice se revelou uma menina superdotada, principalmente em matemática e lógica, a qual aprendera sozinha na biblioteca do pai, pois era a única, além do pai, que lia livros. Seus irmãos eram todos esportistas, o mais velho, caçador de aves e animais, o segundo, atleta de corrida e salto, o terceiro, um desses novos jogadores de futebol. Alice, aos sete anos, inventou um teorema e apresentou ao seu preceptor que não entendeu nada e disse para ela se ocupar de outras coisas. Alice obedeceu e decidiu que faria dança, foi atrás de um professor, a experiência não deu muito certo, durou 6 meses, mas Alice era um desastre.
   Alice então foi enviada à cidade pelo pai para ser educada por um novo preceptor, o qual tinha cátedra em letras, e ela então descobriu a literatura, seus estudos de matemática e lógica só retornariam aos 16 anos, e o que depois viria seria decisivo. Mas, dos 8 aos 12 anos, ela foi educada exclusivamente em literatura, escreveu contos loucos, um deles, aos 9 anos, sobre ratos e ratoeiras, uma coisa que ela tinha como experiência na sua casa rural, aonde já havia aparecido ratos e que tinha ratoeiras com queijo para matá-los. Um dia apareceu aranhas caranguejeiras e ela levou um tabefe do pai depois de uma brincadeira de mau gosto com uma aranha de plástico neste dia das caranguejeiras.
   O pai ia visitá-la na cidade com frequência, e se sentia aliviado de vê-la cercada de literatura, pois tivera um mau pressentimento com a tal “história do teorema”. Nada mais certo, o pai de Alice sabia que o lúdico trazia mais segurança para a sua mente imaginativa que descobertas herméticas de fundo misterioso. Alice não tinha tempo livre, tudo era aplicado na feitura de contos fantásticos e leituras intermináveis de Dickens, Dostoiévski, Tolstói, e de tragédias gregas. Aos 12 anos, publicou um conto no jornal da cidade, seu nome estava relativamente conhecido como uma menina prodígio. Mas tal fato alegre era algo que ficaria naquela época dourada, sua adolescência seria algo perturbador, Alice retornaria à matemática e misturaria seus estudos de lógica com magia luciferiana, negra e ocultismo.
   Tudo começou aos quinze, quando abandonou a literatura. Aos 14 anos, publicou seu único livro de contos até então, o qual ficou relativamente conhecido, mas ela tinha interesses conflitantes, e não se decidia em nada. Seu pai ficou sabendo da inconstância de humor da filha pelo preceptor. Roberto enviou, então, seu filho mais velho para morar com a irmã na cidade, com todas as despesas pagas. Disse para ele não tirar o olho da irmã. Pois, da fala do preceptor, Roberto sabia que as coisas tinham ficado um pouco estranhas ultimamente. O preceptor achava uma loucura a ideia de Alice de abandonar a literatura na flor da idade e com nome de peso médio na crítica literária, e não tinha ideia do que ela faria dali para a frente.
   Alice, secretamente, ia a um grupo de ocultistas de magia negra já fazia uns meses. Logo, foi encarada como uma das mestras daquele grupo, o que incluía votos perpétuos à Satã e suas potestades, além de sacrifícios rotineiros de sangue que eram animais como bodes, bezerros, galinhas, coelhos, e ratos. Alice impressionava o grupo de ocultistas, na magia luciferiana foi logo para outra, a magia de necromancia, na qual ganhou graus em dois anos, aos 18 anos misturava um ímpeto de sacerdotisa com pura delinquência. Seu pai não tinha ideia do carma ancestral que sua filha acumulara. O preceptor, coitado, muito menos. Este enlouquecera pelas mãos da mesma, depois de um trabalho mágico, ela tinha conseguido se livrar dele.
   Aos dezoito anos, Alice, em seu grupinho de satanistazinhos doentes, intitulados erroneamente de ocultistas, eram mais delinquentes que mágicos, tudo se misturava ali, num amálgama perigoso e explosivo. Começou uma disputa de poder dentro do grupo. Abbath, homem líder do grupo, junto com Alice, a mulher, que a esta altura tinha o epíteto de Dora, passaram a não se bicar. Abbath (seu nome era Ricardo) queria eliminá-la. Começou a fazer trabalhos para matar Alice.
   Passaram uns meses, e a resistência espiritual de Alice desafiava Abbath, que então, como último gesto, decidiu preparar uma emboscada para Dora (Alice). Ele reuniu o grupo dos ocultistas, e disse que todos tinham que ir num riacho juntos para fazer um trabalho de magia negra com fetos. Todos foram, incluindo Alice (Dora). Só não se sabia que Abbath (Ricardo) tinha chamado a polícia e um médico psiquiatra, através de uma denúncia. Abbath, durante o ritual, e contando o tempo certo de deixar Alice sozinha lá no riacho, disse que todos tinham de sair dali, pois o fim da magia ficaria com a mestra Dora, com a mesma se envaidecendo de tal prestígio, e que era na verdade um embuste para capturá-la.
   Alice ficou ali no riacho, com três fetos mortos, e seus encantamentos satânicos de nervos à flor da pele. Ela incorporava demônios como numa síncope nervosa, apareciam sete nomes ao mesmo tempo. Abbath ficou de tocaia para observar a cilada de sua concorrente no grupo de jovens metidos a adoradores do Diabo. Bingo. Chegaram cinco policiais e um psiquiatra. Alice acabou sendo condenada a dois anos de cadeia, trocados por uma internação no manicômio, por diagnóstico de transtorno de personalidade, e também como paranoia e identidade bipartida, pois parecia um anjo quando chegou ao manicômio, contrastando com sua fúria radical no riacho.
   O psiquiatra de nome Ronaldo a achara uma criminosa e dissimulada, seu crime de matar fetos inominável, mas não conseguia entender seu estado de beatitude repentino depois daquele esfolamento de fetos à meia-noite. No entanto, ele não estava ali para entender, e sim para fazer os procedimentos de rotina, que incluíam eletrochoque, e imobilização por cordas durante tempo indeterminado, pois o caso parecia muito grave.
   Quanto à família, Roberto descobrira que seu filho mais velho não tomara conta de Alice, tinha se rendido à boêmia de um bom vivant em eternas férias, a cidade o seduzira por todos os poros. Roberto ficou enraivecido e tentou trazê-lo de volta para casa, tarde demais, ele se casara secretamente com uma viúva que o sustentava.
   Roberto foi à casa em que morava Alice, no seu quarto, vasculhando suas coisas, livros e mais livros de ocultismo e magia negra, e na mesa uma imensidão de papéis com cálculos matemáticos de outro mundo e o tal teorema maluco que ela guardara como uma relíquia.
   Havia uma tentativa, nos estudos de Alice, de unir a lógica ao espiritualismo, mas era uma bomba relógio de efeitos nocivos o que estava sendo edificado, Roberto chorou ao encontrar seus milhares de contos num canto esquecido de um passado que Alice desdenhara. Roberto decidiu pagar e publicar aqueles contos, pois dois terços daquela imensidão era de inéditos, e logo depois tomou coragem e foi visitá-la no manicômio.
   Alice informou que teve uma visão, e disse que Abbath fez magia negra contra ela num boneco de vodu, mais uma vez Roberto levou a sério, mas o psiquiatra disse que aquilo fazia parte do quadro de perseguição em que ela se enovelara, Alice teve que ser obrigada a acreditar naquilo.
   Roberto disse à Alice que ele publicaria seus contos inéditos, e ela, no entanto, não esboçou nenhuma reação, era indiferente quanto ao destino daqueles escritos, dizia que era parte de sua infância boba e molenga. Neste ínterim, seu estado de beatitude, logo depois que seu pai saíra do quarto em que Alice estava amarrada, virara uma miração alucinógena, um êxtase profundo e sombrio.
   De madrugada, aos olhos do enfermeiro, que foi orientado pelo psiquiatra a deixá-la “curtir seus delírios” enquanto não se recuperava, este viu Alice conversar com uma entidade invisível, o enfermeiro, que era forte, se borrou nas calças e saiu do quarto sem avisar o psiquiatra, que estava de plantão, acompanhando outros pacientes de quadros tão graves como o de Alice, e que só olharia o quarto às 4 da manhã, antes da injeção e de mais uma sessão de eletrochoques.
   No quadro de Alice, cenário tétrico que ela edificara para si, com a contribuição maligna do olho gordo de Abbath, ali naquele quarto, suas conversas com entidades se revezavam com a visão de um anão, dito exú mirim, e de um gigante, de nome desconhecido, que, pelos conhecimentos ocultos de Alice, se tratava de uma entidade de origem alienígena.
   O anão fazia parte do teatro pós-grego, um misto de ritual báquico com magia negra, as visões de fetos e bezerros flutuavam no quarto, enquanto isso o anão apresentava um show de piadas para Alice. Era sua imago histriônica, o anão, exú mirim, não tinha censura, contava trinta piadas para Alice em trinta minutos, ela ria, misturando seu êxtase com sorrisos nervosos de um surto de humor trágico. Aquele show do anão, somente de madrugada, duraria todas as noites de sua estadia.
   Às quatro da manhã, o anão já deixara o recinto, e o psiquiatra viu que Alice olhava para a sua cara e dava gargalhadas nervosas, decidiu então dar mais uma sessão de eletrochoques, ela contorceu-se e dormiu.
   De manhã, na aurora, Alice acordou, e, ao ver o raio de sol na basculante, sentiu uma beatitude espiritual inexplicável, algo como o sintoma prévio de epilepsia de Dostoiévski. Mas ela não teve ataques, não era epilética, ficou durante uma hora sorrindo numa letargia mística, como se já tivesse transcendido o mundo de sofrimento de que falou Buda.
   Às dez da manhã, mais uma sessão de eletrochoques para ver se ela saía da catatonia, que ninguém percebera que era na verdade um estado extático. Ao meio-dia, depois de muita conversa do psiquiatra, o enfermeiro tomou coragem e voltou ao quarto de Alice, e o psiquiatra disse ao enfermeiro para não tirar o olho de Alice, se saísse do quarto com medo novamente seria lotado em outra emergência, bem longe de sua residência.
   Antes da nova noite, o irmão boêmio de Alice apareceu na emergência, olhou Alice e disse para ela que ela estava muito “viajandona”, que tinha que beber ao invés de delirar com magia. Nada feito, embora ela tenha sorrido candidamente para o irmão fanfarrão.
   Chegou a noite, desta vez não houve mais eletrochoques. Alice estava acordada e aparentemente consciente, e até conversava com o enfermeiro, que começou a se afeiçoar por Alice, e disse ao psiquiatra que nunca vira um coração tão meigo, apesar de terem-na encontrado com fetos esfolados num riacho de madrugada.
   O enfermeiro já tinha sido informado por Alice que teriam novas aparições naquela noite, e de que ele não deveria ter medo, pois ele estava com ela, Alice. O nome Dora parecia ter se apagado da memória de Alice. Sua história com a magia negra, embora recente, parecia ter se escondido num lugar de amnésia da sua mente. Quando o enfermeiro lhe perguntou sobre a história dos fetos, ela disse que não se lembrava.
   No meio disso, veio uma visão para Alice e ela viu Abbath sendo devorado por demônios. Ela então descobriu que tinha sido vítima de uma cilada armada por Abbath. Neste mesmo momento da visão de Alice, Abbath, na realidade, estava sendo assassinado pelo grupo dos satanistas, pois ele se demonstrara muito autoritário para com o grupo, que então decidiu sacrificá-lo num ritual de purificação, e também por terem percebido que a presença de Dora (Alice) era importante, e por culpa de Abbath, ela estava no manicômio.  
   Desta vez, a liderança do grupo ficou com Maniac (Rafael), de modo provisório, pois o grupo ainda tinha a esperança vã do retorno de sua Dora (Alice). Então, o enfermeiro, já avisado por Alice de que ela conversaria com um anão naquela madrugada, e que se tratava de um show de variedades até antes da hora do eletrochoque, ficou tranquilizado, e não conseguia acreditar como Alice se envolvera com magia negra, era um paradoxo que ele não entendia.
   Deu duas da madrugada, Alice avisou ao enfermeiro que o anão aparecera, ele não via nada, mas acreditava em Alice, e então o anão, exú mirim, fez dez esquetes de humor negro que muito agradaram Alice. Depois, o anão sumiu, e um gigante apareceu dizendo que Alice tinha de “deixar o caminho de então pelo velho caminho”, ela não entendeu o enigma, mas aquiesceu.
   No dia seguinte, uma editora de porte publica dois livros de contos de Alice, e em uma semana, sua história se torna pública, “como uma criminosa pode ser um gênio?” perguntava um dos jornais. Roberto tentava limpar a imagem de Alice, e então, um fato poderia favorecer Alice: a prisão do grupo de satanistas de que ela participara por acusação do assassinato de Abbath, e a confissão por Maniac (Rafael) de que aquilo teria sido também por Dora. Então, o jornal perguntou quem era Dora, era Alice, e o círculo se fechou.
   Então, houve uma reviravolta, e o caso se tornou um escândalo de proporções homéricas. Começou uma romaria no manicômio, mas visitas só eram permitidas aos familiares, os livros de contos de Alice viram sucesso de crítica e de público, havia uma situação insustentável de deixarem-na apodrecendo amarrada há já um mês no manicômio. Seus braços estavam vermelhos, seu estado era estável, mas o psiquiatra dizia que precisava de mais uma semana para avaliar o quadro melhor, o enfermeiro se voltou contra o psiquiatra, tentou agredi-lo e foi transferido, deixando Alice com um novo enfermeiro, o qual convenceu então que dali a três dias o psiquiatra teria de fazer uma nova avaliação do caso, pois o noticiário perseguia o hospital.
   Na última noite amarrada, Alice se despede do anão, o enfermeiro novo já tinha sido avisado, não era nada anormal, aparentemente, e o gigante disse que o velho caminho ficaria maior que o último, Alice aquiesceu, mas ainda não tinha entendido. Então, depois do último show de variedades do anão, desta vez com uma comédia de dois atos, e o enigma do gigante, às cinco da manhã, já com os eletrochoques suspensos pelo psiquiatra, suas amarras são cortadas por uma faca do enfermeiro, seus braços têm a mesma sensação descrita por Sócrates ao ser desacorrentado antes de morrer por cicuta, suas pernas flutuavam, sua sensação de felicidade era descomunal.
   Alice vai ao pátio, já podia circular livremente dentro das dependências da emergência. Após mais dez dias, e pela pressão da imprensa, Alice é solta. Ela acaba sendo absolvida dos crimes, pois foi constatado que quem trouxe os fetos tinham sido Maniac e Abbath, ela era apenas a ritualista, o que lhe rendeu uma multa por magia negra, mas a sentença penal foi mudada por comoção e pressão da imprensa, ela então pagou uma multa, e teve que fazer trabalhos voluntários por dois anos num orfanato, o que lhe provocou novo tipo de beatitude, a compaixão, e depois de cumprir o trabalho no orfanato, já livre da obrigação, tentou conciliar seu sucesso literário (ainda com ceticismo, pois não escrevia estórias há uns anos) com as visitas ao orfanato, dando presentes para as crianças.
   Se houve pecado mortal em sua aventura de magia negra como Dora, parecia que aos céus estava tudo redimido. Alice quase não se lembrava de Dora, suas lembranças voltaram aos poucos, mas sua fase celerada era só uma aventura, ela tinha nojo do passado como nigromante. Voltou a escrever contos fantásticos, seu pai Roberto então decidiu investir em sua carreira literária. Alice se firmou como contista fantástica e de terror (a faceta de Dora apaziguada). Seus irmãos sempre a adoraram, e o mais velho caía de bêbado e de rir com toda aquela agitação entre a lenda de Dora e o vulto Alice, nada se explicava, mas ele só ria. Depois de uns anos, Alice se casou, sua filha se chamou Isadora.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor. (Contos Psicodélicos) 27/12/2014
.   
     



MÃO NA PENA

Que o poema se escreve assim:
eu te enumero com os versos
sob escansão moderna,
tempos-alvos medidos.

Rei-de-espadas, corta o corte
ventre afora!

Lá, aos montes e corpos
seviciam nuvens
tuas diamantadas
vinhas.

Ao poema serve à poesia,
e joga luas defronte
aos duzentos anjos
que caíram,
leva a luz por onde
o caminho
está,

e ao passo das crenças
creia teu diapasão
qual relógio de sol,

não entre na onda quebrada,
sonhe no horizonte
da vida ávida de
cordilheiras,

e as dálias, nas entranhas
dos campos,
sorrirão placidamente
à tua boca e voz.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

NOITE DA METAMORFOSE

Vem da noite o claustro anfíbio
de minhas línguas,
contorna o corpo alvo
de flor e mistério.

Ao marasmo do sol prevê:
eu olho os dias calados,
os livros quietos,
as nunca sabidas
sensações da morte.

Vem da noite o "abra-te sésamo!"
que na carta de vento
abriu meu deus ex machina
com roldanas
flutuantes,

oh, e do jogral que ali dançava,
eu retenho o fim do ato
com a declamação
do todo-bobo poeta
que pula feito sapo,

coaxa meu verso sutil anfíbio,
e vira pássaro por mártir
que tu sonharas.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)


A IDEIA DO CÉU

À escada do mar a ponte
cobre o rio, o susto do poeta
rima com flor d`estro.

Quantos levitam ao sal?
As notas fluem com o astrolábio,
fere d`estrelas qual noite
o oceano em si.

As mais leves figuras se aninham entre si,
as sombras fogem por outra margem,
e do fogo mais imaterial
qual santelmo
o azul morde o ar
com fome do escuro
do mundo
em que os corpos
se movem,

e o delírio d`alma
é santo
qual a ideia
que se faz do céu.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

CIZÂNIA

A forma de meu estuário
concebe o rito em que
mora a cizânia,
restos do coração que arrisca
o temporal,

tonitruante qual vício
em duro karma,

eu tenho sete quedas
de mim,
cachoeiras ventiladas
ao útero
que sorri,

leve o mártir e o canto
que eu deixei
no canto da sala,
o estrado estava vazio
d`alma,
eu dormi estatelado
no chão.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

ALMA TODA

Lenhos sob boêmia
à furta-cor
de meus vinhedos.

Soçobra a raiva atemporal
dos canos duplos
de espingarda.

Cobre e cobalto, marmóreo
de aço e ferro-gusa,
constrói teu templo
e gládio,
edifica tua casa mor
com toda a alma
de que tens razão,

lenhos ao fogo-fátuo,
rosas deliram
em seio de mundo
corpóreo,
e alma navega
a esmo.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

ALVORECER

No mundo sublunar a dor:
eu-vento mais que sopro,
das dores o contorno
e boca,
dos prazeres o amor
fatal.

Ah rito fúnebre algures ...
que como jogral resistes
à ação do tempo,
e como cantor está
de volta ao templo,
ai, vai e sorria,
que à funda mata
teu coração aguerrido
firmará de firmamento
todo céu estrelado,

e venha, és poeta como urro
de vermelho ácido,
qual flor que pula,

e vestes sobram do trabalho
ao feitio de tua máquina,
um sonho no alvorecer
dos sentidos.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

ESPANTO VIOLÁCEO

Como sou cretino, ai que doído
o ébrio jogral de cartas.

Lá, como dança o enfermo,
sete mil vinhos
em coração de vento.

Aqui, qual soco de boca
na mão da palavra,
e mil sonhos
cretinos
para parir
como
salto nas estrelas,

ah, violáceo e melífluo,
canta os esgares
de teu espanto!

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

ENSAIOS DE VOZES

Da túnica à voz metálica
dos extemporâneos:
flor náutica serpenteia o caos.

Besta-fera, a cobra criada
dança feito fel,
ao escarcéu dos delírios!

Ah, quanta festa!
Quebro-me em pedaços
dos fragmentos
do mármore
de estátuas
que dormiam.

Desperto o olho sorri,
desdém não há,
e da pena última
o coração
está inteiro,

veste meu sabor,
retira dos frêmitos
o pavio das queimaduras,

resta ao alvo sapecar a morte,
como anaconda em voz
de trovão,

e de dentro do coração
explode roxo
violetas de vinho,

e alguém saberá o infinito
que nunca foi bem descrito.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

NOTAS BONITAS

Deste verso, na nota da fuga,
verte o abismo o sol e a lua.

Campo vasto do mundo infindo,
eu escrevo cartas de ócio
à rua escura,
fruto mordido
de escutas,
vozes trêmulas no fogo.

Quem ao verso o espanto nasce,
desta estória o cais
é pranto,
das outras imagens
o puro fantasma
que some no rio.

Ao menos isto:
toque o coração
com flor de saudade,
toque o violão
com dor sem maldade.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

ESTANDARTE

A poesia é um estandarte
de chamas.

Resto de pólvora
em psicodramas.

Chão de bater soco
com a mão em riste.

Ócio malfadado qual enfado.
Oh, que às rimas socorridas
o pântano é límpido.

E:
que ao poema se vê
morrer o tédio,
e de verso vertido
o maior sol
desponta
em fund`aurora!

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

BATISMO

O super-mártir coroa
a noite noiteira.

Mas, de seu branco musgo
a tundra neva,
nórdico quão esquálido,
fruto da máquina
de escrita.

Oh, de susto ao rancor
o pau na estrada,
de grito e torpor
o corpo no nada.

Mar:
eu nado ao nada do horizonte,
me perco em circunavegações
de volta ao vinho,
circulo ao giro da esfera,
e na onda me batizo.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

POEMA BRUMA

O poema, na flor densa
que campeia o pranto,
suicida meu templo,
mata o borrão da máquina.

Sucinto, no plano material
da estratégia,
campeia a flor
desdita
e panaceia.

Ao largo da paixão
vomita qual giro,
e mutila peraltas
e brutos sonhadores.

Ah, mas vá longe,
e venha logo mais,
que de estrela e ribalta
não se faz
o nome.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

EDUCAÇÃO DO OLHAR

À casa a dor desmata,
desmorre feito mata,
floresta que é bom à beça.

Desmitifica os quedares azuis
que o ócio delineia,
quebra cinco macacos
com chave de boca,
desnuda os charcos
do pântano,
desmonta a febre
em perfeito plano.

Da esfera ao solar desmaio,
da fera esmurro à lua.

Qual frêmito,
da luz abscôndita
o revés do coração,

sorve o infinito o poeta
que se vê imaginado,

e o verso que vês
é o que nunca
foi visto.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)


CANÇÃO DOS ABISMOS

Ah, que vento abissal
nos meus pés!

Ah, o ventre tremula
qual guerra vencida,
ventos dos campos
a dizer: quero o mar.

Ou eu ouvi as notas de olvido,
e o som teria a imagem
do delírio,
e a imagem teria o som
do sonho.

Mas que de abismos
vive o coração,
e o poeta os bota de pé,
como uma canção.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

FEBRE DOS CAMPOS

Monte às cordilheiras, tempo que
do alvo sobe às culminâncias.

Severo campo das hastes quebradas.

Silêncio mortífero que às águas do rio
o leite do meu estro derrama.

Monte-se ao cavalo,
templo dos mistérios órficos
que és gládio.

Seus rubros florilégios,
deus da carne.

Meus brutos sacrilégios,
deus do pecado.

Ah que deuses mais histéricos
estão nas minhas vestes,
aos pés do monte
vi uma luz clara
a me guiar,

de lá do cume a flor da fortuna
me trouxe os remédios
da cura da "febre dos campos".

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

BAQUE DE FUZIL

O mito que fuzila
o olho da matéria,
qual sedento pasto
oh alecrim!

O mito que encampa a batalha,
fuzila o mártir
ao campo do ócio.

Jaz rito sob lume enclausurado,
poetas jazem em desritmia,
oh fim de escrita
que calma
à voz sucinta
teus encantos
mutila.

Sois reis de babilônia,
deuses martirizados
de fome,
famélicos rubros gritos
de secreta paisagem,

oh ritos de febre,
que à marca do mito
teus bramidos
me fuzilam.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

CANTO PRIMEVO

Gentes por toda parte,
eu vivo a cantar.

População em volta
dos continentes,
eu vivo a bailar.

Sede serás sedenta,
fome faminta,
mundo mundano.

Força terás ao infinito,
forte serás infindo.

Qual poema à bruta carne
eu conquisto?
Tomar as sesmarias,
oh, pressinto!

Ao sol o meu canto solar,
à lua meu tempo polar,
a bailar suado
o canto das danças
primevas.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

AO DELTA DO FIM

Latitude zero:
cai a linha ao fim do horizonte,
veste âmbar o sábio
na nuvem,
escorre o mar adentro
tal barco em espuma,
vai-te indolor ardor
ao poeta no fim
de nada.

Canta o ébrio, mar ao sal
a esquadra e o vazio
do oceano,
vai guerra serpentear
de fogo
seus canhões,

ah, delta!
sorve em teu rio
os karmas dançantes
de que és nascente!

Ah, meu vinho vício!
que sabor à sensaboria
o cais apaga,
e meu soluço afoga
de tanto mar!

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

VIDA DURA

De boa jaez, o poema clarifica
o cume, de bom-tom
o verso sentencia
seu plural.

Contorno esbelto qual flâmula,
do verso à poesia
o poema declama,
universo silencia
em flor e ambrosia,

claustro dos deuses,
fogo em fogo queimado,
estância de escansão,
antevisão do futuro.

De firme jaez,
canto obscuro
salpica a vida
do chão duro
e à cratera que
se vai ...
do vulcão o mar fica bravo,
vida dura de chão
aos pés do mundo.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

O GRITO

O grito, por natural e tenso,
ao tenso da boca
se desfigura.

Clara figura o berro é sentido,
fato o grito ecoa,
como um chafariz
de som,
oco com o silêncio
que dele
o grito sai,

o grito, flor da idade,
passeia no manancial
das dores,
e que dor e amor
o grito
se flama,
chama,
fogueira de sentir-se
ao abismo,

o grito é um silêncio
doído que estourou.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

AO CAMINHO POR ONDE VAI

Lá longe, ao fim de alvíssaras
o canto mormente fecunda risos,
frêmito edulcorado de meu livro,
às quedas maiores
do futuro giz.

Bento, que à carne estoura,
abençoado lento firme
vara a noite poemando,
queimando os girassóis.

As cartas, um valete,
à dama seca ao rei.
Tulipas bebidas,
giros pelo mundo,
um mapa astral.
(chinês).

Lá perto, aqui tudo longe,
ao longo do estuário
a bússola
marca
norte e sul,

aonde ir, pergunta o bêbado,
eu não sei ao certo
o regresso,
responderá o poeta
inquieto.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

O CANTO VELOZ

Veloz, com o marcador alucinado,
vou-me indo à toda,
como um cometa.

As notas do coração:
ai, que dói moer assim
um selfie mordido,
terás quão lua defronte
à sala, mordiscada
tua mão sob esfinge,
qual secretíssimo ritual
de bocas,

e ao mesmerizarmo-nos,
toda à toda veloz,
capotemos.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

FEROZMENTE CÂNDIDO

E que, num mesmo dia de verão,
num qualquer, num ano desconhecido,
eu possa ver ...

Ver quão tranquilo eu passo,
aos anos o mormaço,
ao tempo os ossos
do que fui,
como uma janela eu vi
meus olhos vendo,
não estavam lá.

E qual dor doída,
com a boca sedenta,
pequei por ser discreto,
lume alvorecer querendo,
flecha amaciada,
voando ...

E que, num mesmo dia de inverno,
teu peito firme o meu,
e o coração junto,
perto demais,
conceda ao menos
o encanto
de não estar
em lugar algum.

26/12/2014 Ácido
(Gustavo Bastos)

domingo, 21 de dezembro de 2014

BORRASCA

   Penso em ases sob nuvens tóxicas. Repenso nas falésias, outro mundo se vê, como na estrada que se urra bêbado, eu e meu cadáver em lençóis, o mar atávico, o buda em formol, as índias holandesas com laranjas no sol, eu e meu ventre em dança de mel, como a nave que desperta em notas de coração. Eu elevo o mártir, o fantasma na noite. Cada poema é um vidro de absinto, um forro no peito que ataca o fogo, um peito de fúria que do fogo vê o mistério na capa do disco em que mora um deus hindu.
   Luto, o sonho do idiota. Nem penso em matá-lo, jaz o vagabundo, nem sabe sê-lo de modo elegante. Ao átrio das óperas, o lenho requer um esforço matinal, um áureo canto na asa morta do arrebol. Lanterna na masmorra, o poeta não quer nada, o poeta tem tudo. Já vi na sina dos disparos a terra gritando lua nova. Já vi terríveis sonhos da bacanal, e nem ri ao terror de que as mesquitas pegavam a sanha do corão como fome em alá. Buracos no peito não são a salvação, foge à crua mansarda, foge ao terreno baldio com ondas no corpo que quer a morte. Jaz no limo seu suicídio, e mais vive pois já está ressurrecto.
   A parcimônia destes enredos não temem o carro capotado, não temem o navio à pique, não amam a luz dos cantos já estudados, cantam a mísera senda dos notáveis. As minhas sutis fantasias foram esquecidas, as modas foram ao olvido. Defronte à torre as línguas descem na caminhada dos universais, cada signo oferece seu enigma, o profundo da alma se enobrece com tal intento, o poema desanuvia os esquemas lógicos, desentope os fundos da razão. O lodaçal dos palácios não tem a fortuna que há na meditação. Serás o príncipe? Ou serás o animal racional do inconsciente coletivo? Se o tempo é senhor de tudo, faço de eterno o ventre rítmico que há na funda têmpora do caos. A rima socorre o doente, o verso é seu dente, seu dedo em riste. Segredos do oriente viram brumas do silêncio, cada gesto do corpo se dá no ritual das mortificações, Deus está no olho ao tempo da visão, o empenho da riqueza está sempre com o olhar de uma clínica de tempestades. Venho de longe vinha, de longa viagem, atrás de mim um séquito mortal que afana o sino das horas, se perde o ímpeto se ficarmos ao ermo encanto das obrigações morais. O tento de fauna é sorrir ao temor, o tempo que se asila em luz azul tempera o rio das astúcias em que escorre a urgência, a meditação profunda e do abismo tem razões bem mais sérias que o vício acadêmico das repetições, do ritual do intelecto eu guardo a chave, e o resto do tempo não retenho a forma num passo já dado, pois o que está adiante é meu ouro, e o que detrás se assusta, não é meu engenho.
   Sorte, o caminho do eterno retorno traz musas no sol, a lua saberás quando vê-la, e não se dará milagre, somente o ritual simples da verdade. Na água do tempo, o poeta se vê desde sempre ébrio de infinito, perdido em êxtase, pois do eterno, sua morada, não temos o fim e o início, a busca da origem se consome em si mesma, ouroboros é a obviedade suprema, a letícia é desvelar o próprio fogo, a delícia dos jardins são febres de Epicuro, e a chave mortal do entendimento da matéria funde Demócrito com Heisenberg. O paradoxo é um koan divino no vão improvável que subverte os vícios cartesianos, o supremo entendimento virá de um logos autogerado sob meditação, a sapiência nascerá da longa viagem, ao seio e à entrada que sai de todos os lugares, como uma fotografia de auras que são o vapor da sensação.
   Nos mistérios das mesas girantes os gênios serão desvendados, a utopia de ácido decifrará do silêncio o grito totêmico que mora na floresta, desde o canto mais idiota do período quaternário. Na luz do espírito a ciência brilhará, a profecia se dará ao largo dos três próximos séculos, os atavios do estudo da matéria fusionarão em átomo a saída para o outro mundo, e a vinha regurgitará as asas que nasceram em mim. Sob o jugo mortificante o rego da poesia será só a escritura em que tais loucuras estarão já registradas de antemão, e na língua os poetas formarão, entre si, em perspectiva histórica, a costura dos universais em forma de metáfora, língua comerá língua, e a sincronia junguiana formará um grande e denso babel com sentido unívoco.
   Burroughs será ouvido: a palavra é um vírus, pois, dela se dá a vidência, numa prosa espontânea que o gerador destes símbolos já conhece, pois o que descansa dos sete dias já viu o que veremos, tudo se dá ao giro do mundo, e ocidente encontra oriente, esta sendo a chave do antigo com o milênio de aquário, e o sinal se conhece em profundo e sábio respeito, a moral dará lugar à natureza cosmológica dos gestos, os signos serão disciplinados com uma trans-história do atávico com o devir, o tempo não terá mais linearidade, a língua do cosmos será simples e plácida como os poemas que os doidos de pena urraram em hospícios num canto esquecido da galáxia. Miserável será o Anjo destas letras contorcidas de veneno, o eterno vos fala com os dentes da razão. Nunca se dará o fim, nunca se dará pois tudo jaz no eterno, assim como a dança e toda arte que delira como um diamante, as pedras já falam do silêncio, e ao olhar fica o dom vinhateiro de uma firme embriaguez de sonho desperto, a hipnose me fala dessas coisas, e o poema só as traduz.
   Vomite agora teu delírio, e o surdo calará ao ritmo da pena, cada senhor de si morrerá sem ver a chama que nasce da noite fundida ao terror, os corpos gloriosos serão a paixão enlouquecida do fim da língua, o signo de mortalha vencerá a morte com desdém de quem vai morrer, a longa viagem não acaba e nunca começou, o sempiterno é o ágape dos filósofos da compaixão, guerrear na luz é para quem sentiu a glória no peito como o sopro sutil do paraíso perdido, ouroboros conta a história da maçã, o dente do tempo desde a queda, o fim nu da História jamais será visto por carne mortal, vamos ao Espírito por óbvio que seja, as metafísicas tentaram antevê-la, mas com um reflexo pétreo de um prisioneiro do tempo. A torre de mármore encontra a luz quando da queda sente o voo, e voar é para os astutos.
   A torre é infinita, o tempo é recorrente, a luta pelo imortal é o campo de batalha que soma fogo com fogo, a poesia resgata o símbolo das intempéries da razão, o dito da língua sai da dormência que vai e volta com um apego ao intenso, pois do coração se sabe coisas infindas num átimo, e não vemos deste qualquer olho desperto, em volta se vê lama, o átimo é indolor, se meditas o caminho, então já fizeste, se meditas o fim, então já estiveste lá. Tudo que retorna já foi, e sempre seremos, de tudo que será isto é o que já fomos, da alma ao encanto, o fogo encontra a água com sabor de terra, o ar da terra é fogo com sede de água, o coração só soluça ao ver esta anarquia dos elementos, como em Empédocles, ele viu Heráclito nadar no rio, Caronte navegava com espanto ao puxar a corda do afogado, o enforcado se foi, a terra é eterna como o céu, tudo é um. Nirvana silencia, satori é uma estrada do átimo que renasce no mar, o oceano que vai e vai e nunca chega, extemporâneo é o vinho que lá multiplicado viveu em cruz e espada, cada adaga que mata é uma barafunda da peleja, cada poema que corta, faz da cicatriz marca e signo em que a iluminação já foi sentida, e o milagre rasgou o coração do carrasco com um olho vítreo de espanto, a poesia se espanta, a filosofia se espanta, a religião tenta o socorro do espanto, a ciência decodifica uma série nascida de espantos, e a arte espanta por si mesma. Como há tanto sentido, e como há tanta sensação, e como há tanta razão, e como há tanto delírio! Tuas armas de espanto já viram diabinhos e anjinhos circulando com graça enquanto corrias, nada é mistério em tudo, tudo é mistério por nada.


Gustavo Bastos. Poema em prosa. 21/12/2014  

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

“o Brasil é o único país do Cone Sul que mantém uma Lei da Anistia criada com o fito de proteger torturadores e assassinos”
   Criada por lei aprovada no Congresso em 2011 e instalada no ano seguinte, a Comissão Nacional da Verdade assumiu a atribuição legal de investigar os crimes de violação aos direitos humanos praticados no Brasil entre 1946 e 1988, mas seu foco, evidentemente, ficou nos anos de chumbo, isto é, a ditadura que durou 21 anos, de 1964 a 1985. Temos agora o fim dos trabalhos da comissão, o que resultou nas 4,4 mil páginas do relatório.
   Certo que houve problemas no caminho, sobretudo o embate entre dois grupos dentro da comissão, implicando num desempenho muitas vezes errante. Os primeiros meses de trabalho da comissão foram marcados por divergências internas que separaram um grupo liderado pelo diplomata Paulo Sérgio Pinheiro e pelo advogado José Carlos Dias, este ex-ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso, grupo que defendia uma atuação mais discreta, isto é, sem os holofotes da imprensa, e que só divulgaria o relatório final, e outro grupo, este que tinha o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles e a advogada Rosa Cardoso, que pressionavam pela ampliação do debate público e a divulgação de relatos parciais para tentar envolver a sociedade no processo. Tal disputa entre estes dois grupos culminou no abandono da comissão em 2013 por Fonteles.
   Dentre os resultados apresentados pelo relatório, estão dados importantes: a estimativa da CNV é a de que houve cerca de 20 mil torturados, mas há dificuldade de se chegar a um número conclusivo. Dos aspectos listados da atuação da repressão, pode-se enumerar 30 tipos de tortura, dentre elas, incluem-se: os choques elétricos, palmatórias, cadeira do dragão (assento que dava choque), pau de arara, afogamento, geladeira (caixa de isolamento acústico onde as vítimas eram submetidas a calor e frio intensos) e, por bizarro que pareça, se não fosse uma tragédia, o uso de animais nas celas para aterrorizar os presos, dentre eles, cobras, ratos e até jacarés.
   Dos 191 mortos listados pela comissão, a maioria abrange a ditadura 1964-1985. Dos 243 desaparecidos, 35 tiveram o seu paradeiro identificado, 3 durante os trabalhos da comissão. Foram listados ainda 377 responsáveis pelos crimes da ditadura, entre eles, os cinco generais-presidentes, Humberto Castello Branco (1964-1967), Arthur da Costa e Silva (1967-1969), Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985).
   A CNV dividiu os responsáveis pelos crimes da ditadura em três grupos. O primeiro, responsabilidade político-institucional, incluindo os presidentes militares e os ministros das três pastas militares. O segundo, responsabilidade pelo controle de gestão e estruturas, que incluem os comandantes das unidades das Forças Armadas e dos Destacamentos de Operações de Informações/Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). E o terceiro, os de responsabilidade pela autoria direta, ou seja, os que faziam o serviço sujo nos porões da ditadura, que inclui 258 nomes, entre civis, e uma maioria de militares. Dentre as informações relevantes do relatório final da CNV, está que esta traça a linha de comando durante a ditadura que levou à prática sistemática de tortura.  
    Dentre as 29 recomendações da CNV está a revogação parcial da Lei da Anistia, de 1979, para punir torturadores e outros agentes públicos e privados que cometeram crimes que violam os direitos humanos. Quanto a esta recomendação envolvendo a anistia não houve consenso, um dos integrantes da comissão, José Paulo Cavalcanti, discordou dos cinco colegas, lembrando que em 2010 o Supremo Tribunal Federal manteve a validação da Lei de Anistia. Dentre outras recomendações estão a de que as Forças Armadas reconheçam sua responsabilidade sobre as violações de direitos humanos durante a ditadura, refutando a tese de que houve somente alguns poucos casos isolados.
   As outras recomendações incidem sobre o sistema penitenciário, as Forças Armadas e as forças de segurança pública, como a desmilitarização da PM e a unificação das forças policiais existentes. A CNV também pede a revogação da Lei de Segurança Nacional de 1983. Outra recomendação está na proibição de festejos oficiais que celebrem o golpe de 1964. Outro resultado do relatório está na listagem de 27 unidades militares que funcionaram como centros de repressão, tortura e morte na ditadura, além de onze centros clandestinos onde se deram essas violações. São os casos da Casa da Morte, em Petrópolis, e da Casa Azul, em Marabá, no Pará.
   Para defender a recomendação de revogação da Lei da Anistia, a CNV cita o Direito Internacional, além de uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, em 2010, entendeu que a norma é incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o que vai de encontro com a anterior validação da lei pelo Supremo, algo que pode criar a necessidade de uma nova jurisprudência pelo mesmo tribunal.
   “A CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o Direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a Humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia.” Diz o relatório.
   Qual seria o sentido, então, desses dois anos e sete meses de investigações, senão como peça histórica? Uma vez que o Brasil é o único país do Cone Sul que mantém uma Lei da Anistia criada com o fito de proteger torturadores e assassinos, o que se choca frontalmente com a interpretação mundialmente aceita de que crimes contra a Humanidade são imprescritíveis.
   Por sua vez, esta comissão não conseguiu avançar muito na localização de restos mortais, uma vez que houve falta de colaboração por parte dos militares. As Forças Armadas boicotaram sistematicamente os trabalhos da comissão. Poucos agentes da repressão, a exemplo do delegado Cláudio Guerra, da Polícia Civil do Espírito Santo (ver livro Memórias de uma Guerra Suja, em que o mesmo dá um depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros), e do coronel reformado Paulo Malhães, encontrado morto em sua residência em abril deste ano, falaram com todas as letras o que de fato houve nos meandros da política de tortura e desaparecimentos da ditadura militar. A grande maioria optou pelo silêncio, negou as denúncias e até mesmo nem atenderam à convocação da comissão.
   Por conseguinte, houve a permissão de acesso dos ex-torturados às instalações onde se efetuaram os atos de tortura, embora com uma sistemática negativa à cessão de documentos da época. O único passo importante dado pela comissão para os familiares das vítimas foi o reconhecimento de que as graves violações aos direitos humanos foram uma política de Estado, e não atos isolados. Às vítimas, Wadih Damous, presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, prometeu levar adiante os trabalhos de investigação, e que do relatório nacional, este será ampliado nas investigações aprofundadas do Ministério Público e pelas comissões locais.
   Pelo que se pode ver das enumerações acima, quanto ao trabalho e resultado das investigações da CNV, podemos depreender que há dois caminhos: encará-la como peça histórica e assunto encerrado, ou como o primeiro passo para a discussão pública a respeito da Lei da Anistia, o que inclui se haverá a necessidade de o Supremo Tribunal Federal (STF) criar uma jurisprudência que ainda não existe, uma vez que pela decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, tal lei vai contra os princípios desses direitos.
   Já que a Lei da Anistia do Brasil representa uma reconciliação que se deu em circunstâncias históricas específicas, em que tal acordo era quase incontornável, e que agora quer se fazer valer como norma atualizada, e que, na verdade, não está de todo em acordo com o direito internacional, a discussão da Lei da Anistia passará pela jurisprudência do Supremo, sopesando a validação da lei com normas reconhecidas internacionalmente.
   O embate constitucional se dará no enfrentamento com tratados assinados por esta mesma nação. Ou seja, o constitucionalismo e sua interpretação terá de ser feito tanto com o resultado do relatório da CNV e suas recomendações, como por algo que ultrapassa, ao fim, a mera jurisprudência de um tribunal, as violações de direitos humanos.
   Quanto ao posicionamento da imprensa sobre os resultados e intenções da CNV, houve uma divisão entre os que aprovam a revisão da Lei da Anistia e os que consideram que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, validando a lei mais uma vez, é uma confirmação do entendimento de que a anistia foi um acordo justo historicamente, e que não há motivo de revisão.
   Se diz que a decisão da CNV, considerando que alguns crimes ainda podem ser passíveis de punição, é um retrocesso para os fins de apaziguamento, depois de um período de exceção, e o que se sabe da posição que quer punir os torturadores é que não há relação de igualdade entre crimes de tortura e as reações da esquerda armada no período da ditadura, uma vez que a relação de forças era desproporcional, e tendo-se que a política de tortura e desaparecimentos, na visão da CNV, foi uma política de Estado.
   Alguns articulistas de posição a favor da Lei da Anistia pensam o contrário, que as ações da esquerda em luta armada são tão graves quanto às praticadas pelo Estado ditatorial, e que, portanto, as sanções deveriam estar de ambos os lados no caso de uma suposta queda da validade da Lei da Anistia.
   No entanto, o que se deve ter em mente agora são as recomendações da CNV, o que leva ao entendimento, mais uma vez, da questão nevrálgica da jurisprudência, e do sentido de revisão da Lei da Anistia, sem qualquer viés de revanchismo. Pois, os atos de torturas e mortes como política de Estado assumiram proporções bem maiores que a reação armada dos guerrilheiros da esquerda de fim dos anos 60, isso sem falar dos desaparecidos e presos políticos que nem participaram da luta armada.
   A grande questão levantada pela CNV, como era de se prever, é a da Lei da Anistia e sua validade ou não. Trata-se, então, de uma questão legal e histórica, aonde os pesos da História, da Constituição Federal, das interpretações da lei pelo nosso Supremo Tribunal Federal (STF), do peso do Direito Internacional, da validade de sanções e punições quanto ao fato de violações de direitos humanos, e o sentido que se dá aos atos políticos de ambos os lados da guerra na ditadura militar, tudo isso tem que ser bem refletido quanto ao que se fará a respeito da Lei da Anistia, baseando-se nesses fatores todos que citei, somando-se a isso o quesito das informações, trabalho que foi feito da forma possível pela CNV. O que, ao fim, será decidido primeiro pelo lado da interpretação da lei, cargo que caberá, se for o caso, dada a recomendação da CNV, se esta for considerada, mais uma vez pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

(Obs: caros leitores, estou entrando de férias, volto com minha coluna no fim de janeiro de 2015, trazendo novidades, feliz natal e ano novo para todos, boas festas, e até a volta.)


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://www.seculodiario.com.br/20494/14/comissao-nacional-da-verdade-1