Alice, nascida em 7
de maio de 1903, num vilarejo no fim da
estrada, longe da cidade principal, tinha uma família abastada. Tinha outros
três irmãos, estes mais velhos, todos homens. Seu pai, Roberto, era caçador de
aves, ganhara prêmios inumeráveis, pois já tinha aprendido tiro quando serviu ao
Exército dos 18 aos 21 anos. A mãe da Alice morreu no parto da mesma, seu nome
era Bianca. Alice cresceu num ambiente rural, era paparicada por todos os seus
irmãos e, sobretudo, pelo seu pai. Aos três anos passou a ter um amigo
imaginário de nome Buddy. A família estranhava aquela nova fixação da menina
Alice, mas deixavam-na com seus brinquedos e sua imaginação quase delirante.
Aos 6 anos, Alice se
revelou uma menina superdotada, principalmente em matemática e lógica, a qual
aprendera sozinha na biblioteca do pai, pois era a única, além do pai, que lia
livros. Seus irmãos eram todos esportistas, o mais velho, caçador de aves e
animais, o segundo, atleta de corrida e salto, o terceiro, um desses novos
jogadores de futebol. Alice, aos sete anos, inventou um teorema e apresentou ao
seu preceptor que não entendeu nada e disse para ela se ocupar de outras
coisas. Alice obedeceu e decidiu que faria dança, foi atrás de um professor, a
experiência não deu muito certo, durou 6 meses, mas Alice era um desastre.
Alice então foi
enviada à cidade pelo pai para ser educada por um novo preceptor, o qual tinha
cátedra em letras, e ela então descobriu a literatura, seus estudos de
matemática e lógica só retornariam aos 16 anos, e o que depois viria seria
decisivo. Mas, dos 8 aos 12 anos, ela foi educada exclusivamente em literatura,
escreveu contos loucos, um deles, aos 9 anos, sobre ratos e ratoeiras, uma
coisa que ela tinha como experiência na sua casa rural, aonde já havia
aparecido ratos e que tinha ratoeiras com queijo para matá-los. Um dia apareceu
aranhas caranguejeiras e ela levou um tabefe do pai depois de uma brincadeira
de mau gosto com uma aranha de plástico neste dia das caranguejeiras.
O pai ia visitá-la
na cidade com frequência, e se sentia aliviado de vê-la cercada de literatura,
pois tivera um mau pressentimento com a tal “história do teorema”. Nada mais
certo, o pai de Alice sabia que o lúdico trazia mais segurança para a sua mente
imaginativa que descobertas herméticas de fundo misterioso. Alice não tinha
tempo livre, tudo era aplicado na feitura de contos fantásticos e leituras
intermináveis de Dickens, Dostoiévski, Tolstói, e de tragédias gregas. Aos 12
anos, publicou um conto no jornal da cidade, seu nome estava relativamente conhecido
como uma menina prodígio. Mas tal fato alegre era algo que ficaria naquela
época dourada, sua adolescência seria algo perturbador, Alice retornaria à
matemática e misturaria seus estudos de lógica com magia luciferiana, negra e
ocultismo.
Tudo começou aos
quinze, quando abandonou a literatura. Aos 14 anos, publicou seu único livro de
contos até então, o qual ficou relativamente conhecido, mas ela tinha
interesses conflitantes, e não se decidia em nada. Seu pai ficou sabendo da inconstância
de humor da filha pelo preceptor. Roberto enviou, então, seu filho mais velho
para morar com a irmã na cidade, com todas as despesas pagas. Disse para ele
não tirar o olho da irmã. Pois, da fala do preceptor, Roberto sabia que as
coisas tinham ficado um pouco estranhas ultimamente. O preceptor achava uma
loucura a ideia de Alice de abandonar a literatura na flor da idade e com nome
de peso médio na crítica literária, e não tinha ideia do que ela faria dali
para a frente.
Alice, secretamente,
ia a um grupo de ocultistas de magia negra já fazia uns meses. Logo, foi
encarada como uma das mestras daquele grupo, o que incluía votos perpétuos à Satã
e suas potestades, além de sacrifícios rotineiros de sangue que eram animais
como bodes, bezerros, galinhas, coelhos, e ratos. Alice impressionava o grupo
de ocultistas, na magia luciferiana foi logo para outra, a magia de
necromancia, na qual ganhou graus em dois anos, aos 18 anos misturava um ímpeto
de sacerdotisa com pura delinquência. Seu pai não tinha ideia do carma
ancestral que sua filha acumulara. O preceptor, coitado, muito menos. Este
enlouquecera pelas mãos da mesma, depois de um trabalho mágico, ela tinha
conseguido se livrar dele.
Aos dezoito anos,
Alice, em seu grupinho de satanistazinhos doentes, intitulados erroneamente de
ocultistas, eram mais delinquentes que mágicos, tudo se misturava ali, num
amálgama perigoso e explosivo. Começou uma disputa de poder dentro do grupo.
Abbath, homem líder do grupo, junto com Alice, a mulher, que a esta altura
tinha o epíteto de Dora, passaram a não se bicar. Abbath (seu nome era Ricardo)
queria eliminá-la. Começou a fazer trabalhos para matar Alice.
Passaram uns meses,
e a resistência espiritual de Alice desafiava Abbath, que então, como último
gesto, decidiu preparar uma emboscada para Dora (Alice). Ele reuniu o grupo dos
ocultistas, e disse que todos tinham que ir num riacho juntos para fazer um
trabalho de magia negra com fetos. Todos foram, incluindo Alice (Dora). Só não
se sabia que Abbath (Ricardo) tinha chamado a polícia e um médico psiquiatra,
através de uma denúncia. Abbath, durante o ritual, e contando o tempo certo de
deixar Alice sozinha lá no riacho, disse que todos tinham de sair dali, pois o
fim da magia ficaria com a mestra Dora, com a mesma se envaidecendo de tal
prestígio, e que era na verdade um embuste para capturá-la.
Alice ficou ali no
riacho, com três fetos mortos, e seus encantamentos satânicos de nervos à flor
da pele. Ela incorporava demônios como numa síncope nervosa, apareciam sete
nomes ao mesmo tempo. Abbath ficou de tocaia para observar a cilada de sua
concorrente no grupo de jovens metidos a adoradores do Diabo. Bingo. Chegaram
cinco policiais e um psiquiatra. Alice acabou sendo condenada a dois anos de
cadeia, trocados por uma internação no manicômio, por diagnóstico de transtorno
de personalidade, e também como paranoia e identidade bipartida, pois parecia
um anjo quando chegou ao manicômio, contrastando com sua fúria radical no
riacho.
O psiquiatra de nome
Ronaldo a achara uma criminosa e dissimulada, seu crime de matar fetos
inominável, mas não conseguia entender seu estado de beatitude repentino depois
daquele esfolamento de fetos à meia-noite. No entanto, ele não estava ali para
entender, e sim para fazer os procedimentos de rotina, que incluíam
eletrochoque, e imobilização por cordas durante tempo indeterminado, pois o
caso parecia muito grave.
Quanto à família,
Roberto descobrira que seu filho mais velho não tomara conta de Alice, tinha se
rendido à boêmia de um bom vivant em eternas férias, a cidade o seduzira por
todos os poros. Roberto ficou enraivecido e tentou trazê-lo de volta para casa,
tarde demais, ele se casara secretamente com uma viúva que o sustentava.
Roberto foi à casa em que morava Alice, no
seu quarto, vasculhando suas coisas, livros e mais livros de ocultismo e magia
negra, e na mesa uma imensidão de papéis com cálculos matemáticos de outro
mundo e o tal teorema maluco que ela guardara como uma relíquia.
Havia uma tentativa,
nos estudos de Alice, de unir a lógica ao espiritualismo, mas era uma bomba
relógio de efeitos nocivos o que estava sendo edificado, Roberto chorou ao
encontrar seus milhares de contos num canto esquecido de um passado que Alice
desdenhara. Roberto decidiu pagar e publicar aqueles contos, pois dois terços
daquela imensidão era de inéditos, e logo depois tomou coragem e foi visitá-la
no manicômio.
Alice informou que
teve uma visão, e disse que Abbath fez magia negra contra ela num boneco de
vodu, mais uma vez Roberto levou a sério, mas o psiquiatra disse que aquilo
fazia parte do quadro de perseguição em que ela se enovelara, Alice teve que
ser obrigada a acreditar naquilo.
Roberto disse à
Alice que ele publicaria seus contos inéditos, e ela, no entanto, não esboçou nenhuma
reação, era indiferente quanto ao destino daqueles escritos, dizia que era
parte de sua infância boba e molenga. Neste ínterim, seu estado de beatitude,
logo depois que seu pai saíra do quarto em que Alice estava amarrada, virara
uma miração alucinógena, um êxtase profundo e sombrio.
De madrugada, aos
olhos do enfermeiro, que foi orientado pelo psiquiatra a deixá-la “curtir seus
delírios” enquanto não se recuperava, este viu Alice conversar com uma entidade
invisível, o enfermeiro, que era forte, se borrou nas calças e saiu do quarto
sem avisar o psiquiatra, que estava de plantão, acompanhando outros pacientes
de quadros tão graves como o de Alice, e que só olharia o quarto às 4 da manhã,
antes da injeção e de mais uma sessão de eletrochoques.
No quadro de Alice,
cenário tétrico que ela edificara para si, com a contribuição maligna do olho
gordo de Abbath, ali naquele quarto, suas conversas com entidades se revezavam
com a visão de um anão, dito exú mirim, e de um gigante, de nome desconhecido, que,
pelos conhecimentos ocultos de Alice, se tratava de uma entidade de origem
alienígena.
O anão fazia parte
do teatro pós-grego, um misto de ritual báquico com magia negra, as visões de
fetos e bezerros flutuavam no quarto, enquanto isso o anão apresentava um show
de piadas para Alice. Era sua imago histriônica, o anão, exú mirim, não tinha
censura, contava trinta piadas para Alice em trinta minutos, ela ria,
misturando seu êxtase com sorrisos nervosos de um surto de humor trágico. Aquele
show do anão, somente de madrugada, duraria todas as noites de sua estadia.
Às quatro da manhã, o
anão já deixara o recinto, e o psiquiatra viu que Alice olhava para a sua cara
e dava gargalhadas nervosas, decidiu então dar mais uma sessão de
eletrochoques, ela contorceu-se e dormiu.
De manhã, na aurora,
Alice acordou, e, ao ver o raio de sol na basculante, sentiu uma beatitude
espiritual inexplicável, algo como o sintoma prévio de epilepsia de Dostoiévski.
Mas ela não teve ataques, não era epilética, ficou durante uma hora sorrindo
numa letargia mística, como se já tivesse transcendido o mundo de sofrimento de
que falou Buda.
Às dez da manhã,
mais uma sessão de eletrochoques para ver se ela saía da catatonia, que ninguém
percebera que era na verdade um estado extático. Ao meio-dia, depois de muita
conversa do psiquiatra, o enfermeiro tomou coragem e voltou ao quarto de Alice,
e o psiquiatra disse ao enfermeiro para não tirar o olho de Alice, se saísse do
quarto com medo novamente seria lotado em outra emergência, bem longe de sua
residência.
Antes da nova noite,
o irmão boêmio de Alice apareceu na emergência, olhou Alice e disse para ela
que ela estava muito “viajandona”, que tinha que beber ao invés de delirar com
magia. Nada feito, embora ela tenha sorrido candidamente para o irmão
fanfarrão.
Chegou a noite,
desta vez não houve mais eletrochoques. Alice estava acordada e aparentemente
consciente, e até conversava com o enfermeiro, que começou a se afeiçoar por
Alice, e disse ao psiquiatra que nunca vira um coração tão meigo, apesar de terem-na
encontrado com fetos esfolados num riacho de madrugada.
O enfermeiro já
tinha sido informado por Alice que teriam novas aparições naquela noite, e de
que ele não deveria ter medo, pois ele estava com ela, Alice. O nome Dora
parecia ter se apagado da memória de Alice. Sua história com a magia negra,
embora recente, parecia ter se escondido num lugar de amnésia da sua mente.
Quando o enfermeiro lhe perguntou sobre a história dos fetos, ela disse que não
se lembrava.
No meio disso, veio
uma visão para Alice e ela viu Abbath sendo devorado por demônios. Ela então
descobriu que tinha sido vítima de uma cilada armada por Abbath. Neste mesmo
momento da visão de Alice, Abbath, na realidade, estava sendo assassinado pelo grupo
dos satanistas, pois ele se demonstrara muito autoritário para com o grupo, que
então decidiu sacrificá-lo num ritual de purificação, e também por terem
percebido que a presença de Dora (Alice) era importante, e por culpa de Abbath,
ela estava no manicômio.
Desta vez, a liderança
do grupo ficou com Maniac (Rafael), de modo provisório, pois o grupo ainda
tinha a esperança vã do retorno de sua Dora (Alice). Então, o enfermeiro, já
avisado por Alice de que ela conversaria com um anão naquela madrugada, e que
se tratava de um show de variedades até antes da hora do eletrochoque, ficou
tranquilizado, e não conseguia acreditar como Alice se envolvera com magia
negra, era um paradoxo que ele não entendia.
Deu duas da
madrugada, Alice avisou ao enfermeiro que o anão aparecera, ele não via nada,
mas acreditava em Alice, e então o anão, exú mirim, fez dez esquetes de humor
negro que muito agradaram Alice. Depois, o anão sumiu, e um gigante apareceu
dizendo que Alice tinha de “deixar o caminho de então pelo velho caminho”, ela
não entendeu o enigma, mas aquiesceu.
No dia seguinte, uma
editora de porte publica dois livros de contos de Alice, e em uma semana, sua
história se torna pública, “como uma criminosa pode ser um gênio?” perguntava
um dos jornais. Roberto tentava limpar a imagem de Alice, e então, um fato
poderia favorecer Alice: a prisão do grupo de satanistas de que ela participara
por acusação do assassinato de Abbath, e a confissão por Maniac (Rafael) de que
aquilo teria sido também por Dora. Então, o jornal perguntou quem era Dora, era
Alice, e o círculo se fechou.
Então, houve uma
reviravolta, e o caso se tornou um escândalo de proporções homéricas. Começou
uma romaria no manicômio, mas visitas só eram permitidas aos familiares, os
livros de contos de Alice viram sucesso de crítica e de público, havia uma
situação insustentável de deixarem-na apodrecendo amarrada há já um mês no
manicômio. Seus braços estavam vermelhos, seu estado era estável, mas o
psiquiatra dizia que precisava de mais uma semana para avaliar o quadro melhor,
o enfermeiro se voltou contra o psiquiatra, tentou agredi-lo e foi transferido,
deixando Alice com um novo enfermeiro, o qual convenceu então que dali a três
dias o psiquiatra teria de fazer uma nova avaliação do caso, pois o noticiário
perseguia o hospital.
Na última noite
amarrada, Alice se despede do anão, o enfermeiro novo já tinha sido avisado,
não era nada anormal, aparentemente, e o gigante disse que o velho caminho
ficaria maior que o último, Alice aquiesceu, mas ainda não tinha entendido. Então,
depois do último show de variedades do anão, desta vez com uma comédia de dois
atos, e o enigma do gigante, às cinco da manhã, já com os eletrochoques
suspensos pelo psiquiatra, suas amarras são cortadas por uma faca do
enfermeiro, seus braços têm a mesma sensação descrita por Sócrates ao ser
desacorrentado antes de morrer por cicuta, suas pernas flutuavam, sua sensação
de felicidade era descomunal.
Alice vai ao pátio,
já podia circular livremente dentro das dependências da emergência. Após mais
dez dias, e pela pressão da imprensa, Alice é solta. Ela acaba sendo absolvida
dos crimes, pois foi constatado que quem trouxe os fetos tinham sido Maniac e
Abbath, ela era apenas a ritualista, o que lhe rendeu uma multa por magia
negra, mas a sentença penal foi mudada por comoção e pressão da imprensa, ela
então pagou uma multa, e teve que fazer trabalhos voluntários por dois anos num
orfanato, o que lhe provocou novo tipo de beatitude, a compaixão, e depois de
cumprir o trabalho no orfanato, já livre da obrigação, tentou conciliar seu
sucesso literário (ainda com ceticismo, pois não escrevia estórias há uns anos)
com as visitas ao orfanato, dando presentes para as crianças.
Se houve pecado
mortal em sua aventura de magia negra como Dora, parecia que aos céus estava
tudo redimido. Alice quase não se lembrava de Dora, suas lembranças voltaram
aos poucos, mas sua fase celerada era só uma aventura, ela tinha nojo do
passado como nigromante. Voltou a escrever contos fantásticos, seu pai Roberto
então decidiu investir em sua carreira literária. Alice se firmou como contista
fantástica e de terror (a faceta de Dora apaziguada). Seus irmãos sempre a
adoraram, e o mais velho caía de bêbado e de rir com toda aquela agitação entre
a lenda de Dora e o vulto Alice, nada se explicava, mas ele só ria. Depois de
uns anos, Alice se casou, sua filha se chamou Isadora.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor. (Contos Psicodélicos)
27/12/2014
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