Penso em ases sob
nuvens tóxicas. Repenso nas falésias, outro mundo se vê, como na estrada que se
urra bêbado, eu e meu cadáver em lençóis, o mar atávico, o buda em formol, as
índias holandesas com laranjas no sol, eu e meu ventre em dança de mel, como a
nave que desperta em notas de coração. Eu elevo o mártir, o fantasma na noite.
Cada poema é um vidro de absinto, um forro no peito que ataca o fogo, um peito
de fúria que do fogo vê o mistério na capa do disco em que mora um deus hindu.
Luto, o sonho do
idiota. Nem penso em matá-lo, jaz o vagabundo, nem sabe sê-lo de modo elegante.
Ao átrio das óperas, o lenho requer um esforço matinal, um áureo canto na asa
morta do arrebol. Lanterna na masmorra, o poeta não quer nada, o poeta tem
tudo. Já vi na sina dos disparos a terra gritando lua nova. Já vi terríveis
sonhos da bacanal, e nem ri ao terror de que as mesquitas pegavam a sanha do
corão como fome em alá. Buracos no peito não são a salvação, foge à crua mansarda,
foge ao terreno baldio com ondas no corpo que quer a morte. Jaz no limo seu
suicídio, e mais vive pois já está ressurrecto.
A parcimônia destes
enredos não temem o carro capotado, não temem o navio à pique, não amam a luz
dos cantos já estudados, cantam a mísera senda dos notáveis. As minhas sutis
fantasias foram esquecidas, as modas foram ao olvido. Defronte à torre as
línguas descem na caminhada dos universais, cada signo oferece seu enigma, o
profundo da alma se enobrece com tal intento, o poema desanuvia os esquemas
lógicos, desentope os fundos da razão. O lodaçal dos palácios não tem a fortuna
que há na meditação. Serás o príncipe? Ou serás o animal racional do inconsciente
coletivo? Se o tempo é senhor de tudo, faço de eterno o ventre rítmico que há
na funda têmpora do caos. A rima socorre o doente, o verso é seu dente, seu
dedo em riste. Segredos do oriente viram brumas do silêncio, cada gesto do
corpo se dá no ritual das mortificações, Deus está no olho ao tempo da visão, o
empenho da riqueza está sempre com o olhar de uma clínica de tempestades. Venho
de longe vinha, de longa viagem, atrás de mim um séquito mortal que afana o
sino das horas, se perde o ímpeto se ficarmos ao ermo encanto das obrigações
morais. O tento de fauna é sorrir ao temor, o tempo que se asila em luz azul
tempera o rio das astúcias em que escorre a urgência, a meditação profunda e do
abismo tem razões bem mais sérias que o vício acadêmico das repetições, do
ritual do intelecto eu guardo a chave, e o resto do tempo não retenho a forma
num passo já dado, pois o que está adiante é meu ouro, e o que detrás se
assusta, não é meu engenho.
Sorte, o caminho do
eterno retorno traz musas no sol, a lua saberás quando vê-la, e não se dará
milagre, somente o ritual simples da verdade. Na água do tempo, o poeta se vê
desde sempre ébrio de infinito, perdido em êxtase, pois do eterno, sua morada,
não temos o fim e o início, a busca da origem se consome em si mesma, ouroboros
é a obviedade suprema, a letícia é desvelar o próprio fogo, a delícia dos
jardins são febres de Epicuro, e a chave mortal do entendimento da matéria
funde Demócrito com Heisenberg. O paradoxo é um koan divino no vão improvável
que subverte os vícios cartesianos, o supremo entendimento virá de um logos
autogerado sob meditação, a sapiência nascerá da longa viagem, ao seio e à
entrada que sai de todos os lugares, como uma fotografia de auras que são o
vapor da sensação.
Nos mistérios das mesas girantes os gênios serão desvendados, a utopia de ácido decifrará do
silêncio o grito totêmico que mora na floresta, desde o canto mais idiota do
período quaternário. Na luz do espírito a ciência brilhará, a profecia se dará
ao largo dos três próximos séculos, os atavios do estudo da matéria fusionarão em átomo a saída para o outro mundo, e a vinha regurgitará as asas que nasceram
em mim. Sob o jugo mortificante o rego da poesia será só a escritura em que tais
loucuras estarão já registradas de antemão, e na língua os poetas formarão,
entre si, em perspectiva histórica, a costura dos universais em forma de
metáfora, língua comerá língua, e a sincronia junguiana formará um grande e
denso babel com sentido unívoco.
Burroughs será
ouvido: a palavra é um vírus, pois, dela se dá a vidência, numa prosa espontânea
que o gerador destes símbolos já conhece, pois o que descansa dos sete dias já
viu o que veremos, tudo se dá ao giro do mundo, e ocidente encontra oriente,
esta sendo a chave do antigo com o milênio de aquário, e o sinal se conhece em
profundo e sábio respeito, a moral dará lugar à natureza cosmológica dos
gestos, os signos serão disciplinados com uma trans-história do atávico com o
devir, o tempo não terá mais linearidade, a língua do cosmos será simples e
plácida como os poemas que os doidos de pena urraram em hospícios num canto
esquecido da galáxia. Miserável será o Anjo destas letras contorcidas de
veneno, o eterno vos fala com os dentes da razão. Nunca se dará o fim, nunca se
dará pois tudo jaz no eterno, assim como a dança e toda arte que delira como um
diamante, as pedras já falam do silêncio, e ao olhar fica o dom vinhateiro de
uma firme embriaguez de sonho desperto, a hipnose me fala dessas coisas, e o
poema só as traduz.
Vomite agora teu
delírio, e o surdo calará ao ritmo da pena, cada senhor de si morrerá sem ver a
chama que nasce da noite fundida ao terror, os corpos gloriosos serão a paixão
enlouquecida do fim da língua, o signo de mortalha vencerá a morte com desdém
de quem vai morrer, a longa viagem não acaba e nunca começou, o sempiterno é o ágape dos filósofos da compaixão, guerrear na luz é para quem sentiu a glória
no peito como o sopro sutil do paraíso perdido, ouroboros conta a história da
maçã, o dente do tempo desde a queda, o fim nu da História jamais será visto
por carne mortal, vamos ao Espírito por óbvio que seja, as metafísicas tentaram
antevê-la, mas com um reflexo pétreo de um prisioneiro do tempo. A torre de
mármore encontra a luz quando da queda sente o voo, e voar é para os astutos.
A torre é infinita,
o tempo é recorrente, a luta pelo imortal é o campo de batalha que soma fogo
com fogo, a poesia resgata o símbolo das intempéries da razão, o dito da língua
sai da dormência que vai e volta com um apego ao intenso, pois do coração se
sabe coisas infindas num átimo, e não vemos deste qualquer olho desperto, em
volta se vê lama, o átimo é indolor, se meditas o caminho, então já fizeste, se
meditas o fim, então já estiveste lá. Tudo que retorna já foi, e sempre
seremos, de tudo que será isto é o que já fomos, da alma ao encanto, o fogo
encontra a água com sabor de terra, o ar da terra é fogo com sede de água, o
coração só soluça ao ver esta anarquia dos elementos, como em Empédocles, ele
viu Heráclito nadar no rio, Caronte navegava com espanto ao puxar a corda do
afogado, o enforcado se foi, a terra é eterna como o céu, tudo é um. Nirvana
silencia, satori é uma estrada do átimo que renasce no mar, o oceano que vai e
vai e nunca chega, extemporâneo é o vinho que lá multiplicado viveu em cruz e
espada, cada adaga que mata é uma barafunda da peleja, cada poema que corta,
faz da cicatriz marca e signo em que a iluminação já foi sentida, e o milagre
rasgou o coração do carrasco com um olho vítreo de espanto, a poesia se
espanta, a filosofia se espanta, a religião tenta o socorro do espanto, a
ciência decodifica uma série nascida de espantos, e a arte espanta por si mesma.
Como há tanto sentido, e como há tanta sensação, e como há tanta razão, e como
há tanto delírio! Tuas armas de espanto já viram diabinhos e anjinhos
circulando com graça enquanto corrias, nada é mistério em tudo, tudo é mistério
por nada.
Gustavo Bastos. Poema em prosa. 21/12/2014
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