“o Brasil é o único país do Cone Sul que mantém uma Lei da
Anistia criada com o fito de proteger torturadores e assassinos”
Criada por lei
aprovada no Congresso em 2011 e instalada no ano seguinte, a Comissão Nacional
da Verdade assumiu a atribuição legal de investigar os crimes de violação aos
direitos humanos praticados no Brasil entre 1946 e 1988, mas seu foco,
evidentemente, ficou nos anos de chumbo, isto é, a ditadura que durou 21 anos,
de 1964 a 1985. Temos agora o fim dos trabalhos da comissão, o que resultou nas
4,4 mil páginas do relatório.
Certo que houve
problemas no caminho, sobretudo o embate entre dois grupos dentro da comissão,
implicando num desempenho muitas vezes errante. Os primeiros meses de trabalho
da comissão foram marcados por divergências internas que separaram um grupo
liderado pelo diplomata Paulo Sérgio Pinheiro e pelo advogado José Carlos Dias,
este ex-ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso, grupo que
defendia uma atuação mais discreta, isto é, sem os holofotes da imprensa, e que
só divulgaria o relatório final, e outro grupo, este que tinha o
ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles e a advogada Rosa Cardoso,
que pressionavam pela ampliação do debate público e a divulgação de relatos
parciais para tentar envolver a sociedade no processo. Tal disputa entre estes
dois grupos culminou no abandono da comissão em 2013 por Fonteles.
Dentre os resultados
apresentados pelo relatório, estão dados importantes: a estimativa da CNV é a
de que houve cerca de 20 mil torturados, mas há dificuldade de se chegar a um
número conclusivo. Dos aspectos listados da atuação da repressão, pode-se
enumerar 30 tipos de tortura, dentre elas, incluem-se: os choques elétricos,
palmatórias, cadeira do dragão (assento que dava choque), pau de arara,
afogamento, geladeira (caixa de isolamento acústico onde as vítimas eram
submetidas a calor e frio intensos) e, por bizarro que pareça, se não fosse uma
tragédia, o uso de animais nas celas para aterrorizar os presos, dentre eles,
cobras, ratos e até jacarés.
Dos 191 mortos
listados pela comissão, a maioria abrange a ditadura 1964-1985. Dos 243 desaparecidos,
35 tiveram o seu paradeiro identificado, 3 durante os trabalhos da comissão.
Foram listados ainda 377 responsáveis pelos crimes da ditadura, entre eles, os
cinco generais-presidentes, Humberto Castello Branco (1964-1967), Arthur da
Costa e Silva (1967-1969), Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel
(1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985).
A CNV dividiu os
responsáveis pelos crimes da ditadura em três grupos. O primeiro,
responsabilidade político-institucional, incluindo os presidentes militares e
os ministros das três pastas militares. O segundo, responsabilidade pelo
controle de gestão e estruturas, que incluem os comandantes das unidades das
Forças Armadas e dos Destacamentos de Operações de Informações/Centros de
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). E o terceiro, os de responsabilidade
pela autoria direta, ou seja, os que faziam o serviço sujo nos porões da
ditadura, que inclui 258 nomes, entre civis, e uma maioria de militares. Dentre
as informações relevantes do relatório final da CNV, está que esta traça a
linha de comando durante a ditadura que levou à prática sistemática de tortura.
Dentre as 29 recomendações da CNV está a
revogação parcial da Lei da Anistia, de 1979, para punir torturadores e outros
agentes públicos e privados que cometeram crimes que violam os direitos
humanos. Quanto a esta recomendação envolvendo a anistia não houve consenso, um
dos integrantes da comissão, José Paulo Cavalcanti, discordou dos cinco
colegas, lembrando que em 2010 o Supremo Tribunal Federal manteve a validação
da Lei de Anistia. Dentre outras recomendações estão a de que as Forças Armadas
reconheçam sua responsabilidade sobre as violações de direitos humanos durante
a ditadura, refutando a tese de que houve somente alguns poucos casos isolados.
As outras recomendações incidem sobre o
sistema penitenciário, as Forças Armadas e as forças de segurança pública, como
a desmilitarização da PM e a unificação das forças policiais existentes. A CNV
também pede a revogação da Lei de Segurança Nacional de 1983. Outra
recomendação está na proibição de festejos oficiais que celebrem o golpe de
1964. Outro resultado do relatório está na listagem de 27 unidades militares
que funcionaram como centros de repressão, tortura e morte na ditadura, além de
onze centros clandestinos onde se deram essas violações. São os casos da Casa
da Morte, em Petrópolis, e da Casa Azul, em Marabá, no Pará.
Para defender a
recomendação de revogação da Lei da Anistia, a CNV cita o Direito
Internacional, além de uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
que, em 2010, entendeu que a norma é incompatível com a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, o que vai de encontro com a anterior validação da lei
pelo Supremo, algo que pode criar a necessidade de uma nova jurisprudência pelo
mesmo tribunal.
“A CNV considerou
que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções
ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e
ocultação de cadáveres é incompatível com o Direito brasileiro e a ordem
jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade
com que foram cometidos, constituem crimes contra a Humanidade, imprescritíveis
e não passíveis de anistia.” Diz o relatório.
Qual seria o sentido,
então, desses dois anos e sete meses de investigações, senão como peça
histórica? Uma vez que o Brasil é o único país do Cone Sul que mantém uma Lei da
Anistia criada com o fito de proteger torturadores e assassinos, o que se choca
frontalmente com a interpretação mundialmente aceita de que crimes contra a
Humanidade são imprescritíveis.
Por sua vez, esta
comissão não conseguiu avançar muito na localização de restos mortais, uma vez
que houve falta de colaboração por parte dos militares. As Forças Armadas
boicotaram sistematicamente os trabalhos da comissão. Poucos agentes da
repressão, a exemplo do delegado Cláudio Guerra, da Polícia Civil do Espírito
Santo (ver livro Memórias de uma Guerra Suja, em que o mesmo dá um depoimento
aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros), e do coronel reformado Paulo
Malhães, encontrado morto em sua residência em abril deste ano, falaram com
todas as letras o que de fato houve nos meandros da política de tortura e
desaparecimentos da ditadura militar. A grande maioria optou pelo silêncio,
negou as denúncias e até mesmo nem atenderam à convocação da comissão.
Por conseguinte,
houve a permissão de acesso dos ex-torturados às instalações onde se efetuaram
os atos de tortura, embora com uma sistemática negativa à cessão de documentos
da época. O único passo importante dado pela comissão para os familiares das
vítimas foi o reconhecimento de que as graves violações aos direitos humanos
foram uma política de Estado, e não atos isolados. Às vítimas, Wadih Damous,
presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, prometeu levar adiante os
trabalhos de investigação, e que do relatório nacional, este será ampliado nas
investigações aprofundadas do Ministério Público e pelas comissões locais.
Pelo que se pode ver
das enumerações acima, quanto ao trabalho e resultado das investigações da CNV,
podemos depreender que há dois caminhos: encará-la como peça histórica e
assunto encerrado, ou como o primeiro passo para a discussão pública a respeito
da Lei da Anistia, o que inclui se haverá a necessidade de o Supremo Tribunal
Federal (STF) criar uma jurisprudência que ainda não existe, uma vez que pela
decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, tal lei vai contra os
princípios desses direitos.
Já que a Lei da
Anistia do Brasil representa uma reconciliação que se deu em circunstâncias
históricas específicas, em que tal acordo era quase incontornável, e que agora
quer se fazer valer como norma atualizada, e que, na verdade, não está de todo
em acordo com o direito internacional, a discussão da Lei da Anistia passará
pela jurisprudência do Supremo, sopesando a validação da lei com normas
reconhecidas internacionalmente.
O embate
constitucional se dará no enfrentamento com tratados assinados por esta mesma
nação. Ou seja, o constitucionalismo e sua interpretação terá de ser feito
tanto com o resultado do relatório da CNV e suas recomendações, como por algo
que ultrapassa, ao fim, a mera jurisprudência de um tribunal, as violações de
direitos humanos.
Quanto ao
posicionamento da imprensa sobre os resultados e intenções da CNV, houve uma
divisão entre os que aprovam a revisão da Lei da Anistia e os que consideram
que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, validando a lei mais
uma vez, é uma confirmação do entendimento de que a anistia foi um acordo justo
historicamente, e que não há motivo de revisão.
Se diz que a decisão
da CNV, considerando que alguns crimes ainda podem ser passíveis de punição, é
um retrocesso para os fins de apaziguamento, depois de um período de exceção, e
o que se sabe da posição que quer punir os torturadores é que não há relação de
igualdade entre crimes de tortura e as reações da esquerda armada no período da
ditadura, uma vez que a relação de forças era desproporcional, e tendo-se que a
política de tortura e desaparecimentos, na visão da CNV, foi uma política de
Estado.
Alguns articulistas
de posição a favor da Lei da Anistia pensam o contrário, que as ações da
esquerda em luta armada são tão graves quanto às praticadas pelo Estado
ditatorial, e que, portanto, as sanções deveriam estar de ambos os lados no
caso de uma suposta queda da validade da Lei da Anistia.
No entanto, o que se
deve ter em mente agora são as recomendações da CNV, o que leva ao
entendimento, mais uma vez, da questão nevrálgica da jurisprudência, e do
sentido de revisão da Lei da Anistia, sem qualquer viés de revanchismo. Pois, os
atos de torturas e mortes como política de Estado assumiram proporções bem
maiores que a reação armada dos guerrilheiros da esquerda de fim dos anos 60,
isso sem falar dos desaparecidos e presos políticos que nem participaram da
luta armada.
A grande questão
levantada pela CNV, como era de se prever, é a da Lei da Anistia e sua validade
ou não. Trata-se, então, de uma questão legal e histórica, aonde os pesos da
História, da Constituição Federal, das interpretações da lei pelo nosso Supremo
Tribunal Federal (STF), do peso do Direito Internacional, da validade de
sanções e punições quanto ao fato de violações de direitos humanos, e o sentido
que se dá aos atos políticos de ambos os lados da guerra na ditadura militar,
tudo isso tem que ser bem refletido quanto ao que se fará a respeito da Lei da
Anistia, baseando-se nesses fatores todos que citei, somando-se a isso o
quesito das informações, trabalho que foi feito da forma possível pela CNV. O
que, ao fim, será decidido primeiro pelo lado da interpretação da lei, cargo
que caberá, se for o caso, dada a recomendação da CNV, se esta for considerada,
mais uma vez pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
(Obs: caros leitores, estou entrando de férias, volto com
minha coluna no fim de janeiro de 2015, trazendo novidades, feliz natal e ano
novo para todos, boas festas, e até a volta.)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://www.seculodiario.com.br/20494/14/comissao-nacional-da-verdade-1
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