PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 2 de abril de 2020

GURUS E CURANDEIROS – PARTE XXIII


“Padre Cícero já é tido, há muito tempo, por santo por uma legião imensa de fiéis pelo Brasil”

Padre Cícero nasceu numa pequena cidade do Ceará, Crato, no ano de 1844. Aos doze anos de idade fez voto de castidade, já influenciado pela leitura de São Francisco de Sales. Em 1860, aos dezesseis anos, Cícero foi para Cajazeiras, na Paraíba, para estudar, mas ficou lá até 1962 somente, quando houve o falecimento de seu pai e ele teve que voltar para ajudar a sua mãe e suas duas irmãs solteiras, pois a morte de seu pai trouxe graves problemas financeiros para a sua família. E, em 1865, aos vinte e um anos, Cícero entrou no seminário de Fortaleza. Padre Cícero se ordenou em 1870, aos vinte e seis anos e voltou para Crato, procurando uma paróquia para liderar.
No final de 1871, no Natal, Padre Cícero conheceu o povoado de Juazeiro, gostou muito do local e retornou para lá alguns meses depois, já em 1872, para morar, e reza a lenda que ele foi impulsionado para isto depois de ter tido um sonho com Jesus e os doze apóstolos, quando uma multidão com pertences humildes invadiu o local e Jesus lhe disse : “E você, Padre Cícero, tome conta deles!”. Padre Cícero respondeu ao chamado, e dali para a frente faria a sua história em Juazeiro.
Juazeiro ainda era um pequeno lugarejo, mas Padre Cícero começou por lá um intenso trabalho pastoral, com reforma da capelinha que já havia no local, pregações, aconselhamentos, confissões e inúmeras visitas domiciliares, com este esforço foi ganhando a confiança e a admiração da população do local e se tornou a maior liderança da comunidade de Juazeiro.
Padre Cícero tinha uma moral rígida e logo reformou os costumes do local, acabando com as bebedeiras e a prostituição, e seu trabalho pastoral foi crescendo, recrutando mulheres solteiras e viúvas, organizando uma irmandade leiga, formada por beatas, que o ajudariam em seu trabalho pastoral. Num local em que dominavam a lei do punhal e do bacamarte, Padre Cícero conseguiu mudar esta cultura violenta e converter Juazeiro num lugar de devoção católica e de religiosidade popular.
Em 1889, no dia 1 de março, aconteceria o fato que mudaria a história de Padre Cícero e também de Juazeiro, que seria o milagre da hóstia, quando a beata Maria de Araújo recebeu a comunhão das mãos de Padre Cícero e a hóstia consagrada se transformou em sangue ao ir para a boca da beata. O fenômeno aconteceu outras vezes, e o povoado entendeu o milagre como uma manifestação de derramamento do sangue de Cristo. Os jornais abriram manchetes para noticiar o fenômeno e os sertanejos ficaram fascinados e creram no dito milagre.  
Inicialmente, Padre Cícero foi com cuidado verificar do que se tratava tal fenômeno ou suposto milagre da hóstia e chamou dois médicos e um farmacêutico para dar um parecer, e eles disseram que não havia explicação científica para o caso. Tal afirmação de que não havia explicação pela ciência deste caso reforçou a ideia de que se tratava de um milagre, e a fé sobre o caso como uma manifestação do sangue de Cristo se expandiu, e começou uma verdadeira peregrinação de diversos locais do sertão nordestino em direção de Juazeiro para ver o tal milagre.
A repercussão do milagre, e sua consequente peregrinação massiva para Juazeiro, chamou a atenção do bispo de Fortaleza, que chamou o Padre Cícero para prestar esclarecimentos. E o bispo, em seguida, mandou que tais fatos fossem investigados oficialmente pela Igreja para uma posição definitiva sobre o caso, e uma comissão nomeada pelo bispo foi a Juazeiro estudar o caso da hóstia. A constatação da comissão, depois de ver o fenômeno como um todo, atestou de que se tratava de um milagre, de um fenômeno de origem divina, que entra no Vaticano na classificação conhecida como milagres eucarísticos.
Contudo, o bispo, influenciado por clérigos céticos, que refutavam a ideia de milagre em Juazeiro, nomeou uma nova comissão, e desta vez, ao chegar a comissão em Juazeiro, o fenômeno não se repetiu, e a conclusão, desta vez, foi de que não havia milagre. O Padre Cícero, o povoado de Juazeiro e os padres que acreditavam no milagre protestaram, e o bispo entendeu tal movimento como uma desobediência a ele, que enviou um relatório à Santa Sé, e esta confirmou a negativa do milagre dada pelo bispo, os padres tiveram que se retratar, e Padre Cícero foi suspenso da ordem e acusado de manipular a fé. Tal pena foi combatida pelo resto da vida de Padre Cícero, mas este morreu sem a sua revogação.
Padre Cícero foi proibido de celebrar missas e acabou entrando para a política, já na luta da emancipação de Juazeiro, que aconteceu em 22 de julho de 1911, e o Padre Cícero foi nomeado o prefeito do novo município, chegando a ser nomeado, posteriormente, como Vice-Governador do Ceará, mas sem chegar a ocupar o cargo. Padre Cícero, depois de ter sido proibido de celebrar, dentre alguns ritos católicos, também os de batismos, aceitou apadrinhar várias crianças, quando surgiu o epíteto de Padrinho Padre Cícero, que teve uma corruptela popular, virando Padim Pade Ciço.
Padre Cícero passou a se tornar a figura mais importante da História de Juazeiro, e seu maior benfeitor, e a cidade se tornou, depois de toda a atividade política e do trabalho pastoral realizado por Padre Cícero, como o local mais importante do interior do Ceará, pois o município cresceu e se incrementou com o tempo, e sobretudo depois da passagem célebre do Padre Cícero por lá. Ele faleceu em 1934, aos 90 anos, e depois disso, Juazeiro só prosperou, e a devoção a Padre Cícero só aumentou entre os sertanejos do Nordeste, e até hoje, no Dia de Finados, uma multidão de romeiros peregrina para Juazeiro para visitar o seu túmulo, na Capela do Socorro.
Idolatrado por cerca de 2,5 milhões de romeiros, que peregrinam todos os anos para Juazeiro, Padre Cícero foi por muito tempo um maldito renegado pela Igreja Católica, mas, mesmo banido pelo clero católico, ele ganhou vulto no imaginário popular e coletivo, e virou uma espécie de mártir, só sendo reabilitado pela Igreja Católica recentemente. Padre Cícero viveu entre os mundos do misticismo sertanejo, um universo mágico povoado por mulas-sem-cabeça, lobisomens e almas penadas, de santos padroeiros que recebiam devoções festivas pela população, além da profusão de profetas populares do apocalipse, que volta e meia apareciam no sertão nordestino, e o mundo da fé ritualizada, da disciplina clerical e da doutrina do seminário, que é o mundo oficial da ascese católica.
Entre 2001 e 2006, uma comissão multidisciplinar se debruçou sobre a vasta documentação sobre Padre Cícero, tanto no Vaticano como no Brasil, coordenada pelo bispo de Crato, com Fernando Panico, e o relatório final foi entregue em maio de 2006 à Santa Sé, junto com este relatório, 11 volumes de transcrições das centenas de certas trocadas entre as principais personagens da história da vida do padre, e um outro volume com cerca de 150 mil assinaturas de populares a favor da reabilitação do Padre Cícero, e junto com tais assinaturas se somava um abaixo-assinado com o nome de 253 bispos brasileiros a favor da causa. E como soma final uma carta de dom Fernando ao papa, também com o fito da reabilitação de Padre Cícero pela Igreja Católica.
Em 2015, o perdão da Igreja se tornou 100 % oficial, e o bispo Dom Fernando Panico declarou a sua reabilitação em 13 de dezembro, que foi o passo para a sua beatificação, e a autorização do culto público a seu nome. E devido aos inúmeros milagres e graças alcançados por romeiros que dizem terem sido possíveis por intercessão do Padre Cícero, o caso pode evoluir para a sua canonização, processo este que, por exemplo, no caso do primeiro santo nascido no Brasil, o Frei Galvão, demorou vários anos. Contudo, mesmo ainda não canonizado pela Igreja Católica, Padre Cícero já é tido, há muito tempo, por santo por uma legião imensa de fiéis pelo Brasil, e já é uma das figuras mais biografadas do mundo, sendo estudado academicamente no Brasil e no Exterior.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.





segunda-feira, 30 de março de 2020

ANA MARTINS MARQUES E A MARCA DA INVENÇÃO POÉTICA


“Ana, com sua poesia, cria o seu próprio mundo, mundo inventado de um mundo vivido”

No livro Arquitetura de Interiores, Ana Martins Marques dá vazão a uma prática poética de descrições circunstanciais, revezadas com poemas substantivos. Nos seus chamados poemas circunstanciais temos um modus operandi em que a fração temporal ganha corpo como realidade inventada, uma camada de poema reveste o tecido do tempo, o espaço temporal ganha do olhar poético de Ana uma camada de invenção. O espaço ocupado pelos sujeitos é o tema destes poemas circunstanciais, pois aqui não é tão importante criar uma identidade poética própria, a visão, neste caso, lida com o fragmento.
O poema “Pátio” é um bom exemplo deste poema de circunstância, que circunscreve um sujeito num espaço temporal, tal inserção coloca o sujeito numa perspectiva em que a imaginação poética opera no sentido de invenção por sobre este espaço já existente, a realidade verificável retratada pelo poema vira um revestimento feito pelo olhar poético, que é o olhar da invenção acima de tudo. E aqui, com esta operação poética, se revela o estado de alma.
Uma técnica de duplicação, ou melhor, de espelhamento, se dá no poema de Ana, recurso herdado de Manuel Bandeira, já no seu conhecido livro Belo Belo, em poemas como “A Realidade e a Imagem” e “O Bicho”, e um poema dele também chamado “Pátio”. (Me lembro de que uma de minhas primeiras impressões com poesia foi ler O Bicho quando tinha que estudar para a prova de literatura no antigo segundo grau, e ainda me encontrava num universo muito distante de me tornar poeta).
O espelhamento é criar imagens a partir de uma imagem inicial, a invenção se dá no uso da imaginação poética para criar imagens possíveis de uma realidade verificável ou pré-existente. E o poema “Pátio” de Ana, uma inversão do poema de Bandeira, tem este recurso metafórico como o que constrói o poema e sua lógica. O poema de Ana, ao fim, vira um reflexo invertido do poema original de Manuel Bandeira. Aqui, a metalinguagem de Ana é usar Manuel Bandeira como a sua escala para um poema próprio.
Umas das características da poesia de Ana será, portanto, o uso de uma lógica invertida, pois ela parte dos objetos para falar da vida, ou ainda, com seus poemas os objetos ganham vida, e a palavra invenção ganha, neste contexto, um poder imaginário que opera com a poesia uma visão ou olhar poético bem vivo sobre o cotidiano e seu desenho primordial e prosaico repleto de objetos. Os objetos ganham vida e não mais os sujeitos, o poema cotidiano de Ana é um sopro de vida sobre objetos inanimados, é o olhar da poeta que vê pulsar de sua invenção a vida que ela dá aos objetos.
Quando García Lorca analisava a poesia de Góngora, por exemplo, ele dizia que da poesia gongórica se poderia inferir que “a eternidade de um poema depende da qualidade e da coesão de suas imagens”. A invenção poética de Ana, por sua vez, tem como uma de suas formas esta herança distante, e com Bandeira, ela colhe o afeto, a solidão, a melancolia, num sentimento de acolhimento das criaturas em suas sensibilidades, e Ana ainda tem, agora com Drummond, uma ironia que sabe que não pode completar a sua reflexão e vivência amorosas em sua plenitude, que os meios de lapsos e lacunas fazem parte até para os bem amados, e Ana, com sua poesia, cria o seu próprio mundo, mundo inventado de um mundo vivido, a poesia fazendo a sua experiência do mundo como um mundo renovado pelo poder da invenção.

POEMAS :

MAR : O poema vem com o tema-valise de poetas entre poetas, o mar, mas aqui ganhando um contorno original, digamos, contemporâneo, sem as afetações náuticas de um poeta esteta de antanho, no que temos : “Ela disse/mar/disse/às vezes vêm coisas improváveis/não apenas sacolas plásticas papelão madeira/garrafas vazias camisinhas latas de cerveja/também sombrinhas sapatos ventiladores”. Do mar a poeta Ana nos apresenta o que ele contém, objetos descartáveis, que aparecem no poema, e que em outros tempos não evocariam uma poesia sobre o mar, e ela segue : “aqueles que nasceram longe/do mar/aqueles que nunca viram/o mar/que ideia farão/do ilimitado?”. Da colheita de objetos renegados, a poeta Ana parte para a indagação filosófica que o mar provoca, no que vem : “quando disserem/quero me matar/pensarão em lâminas/revólveres/veneno?/pois eu só penso/no mar”. A morte, questão que envolve poesia, filosofia e vida, aqui tem no mar uma imagem poética para o suicídio.

CENTAURO : O poema usa a imagem do centauro como a vida humana que adquire acessórios durante o seu trajeto e os deixa depois da morte, a vida humana como uma coleção que vai além do corpo que morre, no que temos : “Como um velho centauro/cuja parte humana/sobrevivesse à parte animal/temos próteses, extensões/enfeites, móveis/que nos sobrevivem”. E o poema é o centauro que nos diz que carregamos mais do que somos, como seres que vivem do supérfluo, numa passagem da qual não seremos nada, logo mais : “como um velho centauro/que levasse a passeio/seu rabo/morto/de cão/seus olhos/mortos/de pássaro”.

ÍCARO : O poema descreve uma das imagens poéticas mais queridas da mitologia grega, o famoso voo de Ícaro e sua queda, no que temos : “Quando Ícaro/caiu/no mar/a sereia que/primeiro/o encontrou/amou nele/o pássaro/ele amou nela/o peixe”. E o poema segue, aqui com o contato com a realidade mais palpável do lixo do mar, novamente a subversão de uma imagem mais clássica do mar feita pela poesia, aqui o mar aparece materialmente, em sua nudez, que traz em si, não a poesia, mas um amontoado de lixo : “Os restos de suas asas/desfeitas/foram dar na praia/entre embalagens/de plástico preservativos/garrafas vazias latas/de cerveja”.

O LIVRO DAS SEMELHANÇAS : O poema longo e que dá título ao livro tem uma intensidade própria, um poema para um interlocutor amoroso, admirado, em um modo de ver este ser de um jeito simples, não afetado, no que temos : “O modo como o seu nome dito muito baixo pode/[ser confundido com a palavra xícara/e como ele esquenta de dentro para fora/o modo como a palma das suas mãos se parece com/                                                      [porcelana trincada”. No que segue : “o modo como dita por você  a palavra “sim” parece/[uma palavra/que fizesse o mesmo sentido em todas as línguas/o modo como dita por você a palavra “não” parece/[uma palavra/que você acabou de inventar”. A observação da poeta sobre o seu amado ou interlocutor é um modo de curiosidade inteligente, em que não se debruça, observa como quem lê algo interessante e novo, o mundo da poeta aqui se enriquece e se renova, sempre com este olhar sobre o interlocutor, que aqui, neste poema, ganha um ar elegante, no que temos : “o modo como no seu apartamento as coisas sempre/[parecem estar em casa/e você sempre parece estar de visita/e como você pede licença à penteadeira para chorar/o modo como as nossas conversas me lembram/[bilhetes interceptados cardápios de/restaurantes exóticos rótulos de bebidas fortes/[documentos comidos nas bordas/por filhotes de cão”. E o poema segue : “o modo como os seus sonhos parecem os/[pensamentos de pessoas que sobreviveram/a um desastre de avião/parecem as lembranças de um ex-boxeador/[apaixonado/parecem os projetos de futuro de crianças muito/[pequenas/parecem os contos de fadas preferidos de ditadores/                                                                 [sanguinários” (...) “o modo como apesar de tudo isso você não se/                                                   [parece com ninguém/a não ser talvez com certas coisas/similaridades a nada”. Ao fim, a observação da poeta vai para o outro lado, a sombra de seu interlocutor, como um contraponto saudável à sua fascinação inocente que abre o poema e conduz, até que, ao fim, do poema a identidade ou reconhecimento deste interlocutor se liquefaz no nada, num estranhamento singular.

POEMA NÃO DE AMOR : O poema coloca como anti-tema o amor, um poema paradoxal que evoca o amor em estado negativo, um anti-poema de amor, e que a poeta, aqui, enumera os infinitos modos de fazer poesia sem falar de amor, num poema em que o amor tem uma presença invertida, como mote para as metáforas de todo o poema, imagens que, pretensamente, e o tempo todo, tentam se descolar da palavra e do fenômeno do amor, no que temos : “Não vou falar de amor, vou falar do tempo que faz/dos animais do zoológico/de como eles não parecem tristes em suas jaulas/para onde os enviamos sem julgamento” (...) “você me pede para não falar de amor/eis que tenho agora uma ocupação/não te ver, não te telefonar/não pensar em você”. O interlocutor desaparece, o poema não vai falar de seu anti-tema, mas fala para reforçar a negação do tema, um poema que opera pela ambiguidade, um poema complexo, que afirma e nega, que do amor fala lateralmente para novas metáforas inauditas, um poema que se desfaz de seu anti-tema, e se reforça nesta negação, no que temos : “não vou falar de amor/vou falar do vento, das inundações,/do vinco das calças/dos meus amigos exilados/que viajam com malas cheias de livros” (...) “vou falar sobre dançar/num transatlântico/sobre esse livro que se escreve/à roda do seu nome/todas essas coisas que não são o amor/não vou escrever cartas de amor/vou escrever cartas sobre cartas” (...) “uma história de exílio/uma parábola antiga/porque eu sei como é feito Dom Quixote/mas não sei escrever uma carta de amor”. O poema, em sua operação de paradoxo, faz de seu anti-tema a fonte de sua enumeração, de sua elucubração sem fim, em que o mundo de imagens se abre a partir de seu mote, que é não falar de seu tema, e fala para falar de outra coisa, seu paradoxo como poema que inverte para se renovar : “porque no amor não deve valer a lei do mais forte/nem mesmo a do mais forte amor” (...) “os animais do zoológico fazem isso melhor do que eu/eles não falam de amor, eles amam com suas plumas/e suas garras/também te amo com minhas garras e minhas plumas/é o que eu diria se este fosse um poema de amor/este é um poema não de amor”. A indagação, o pensamento do poema aqui se encerra com a coda que afirma o que o poema em todo o seu trajeto reforça, a poeta aqui avisa, a coda é a saturação de seu anti-tema.

UMA CAMINHADA NOTURNA : O poema coloca a imagem dos animais e indaga pelo seus modos de existência, que o poema tenta capturar com um olhar poético próprio, no que segue : “Os animais existem durante a noite/ou durante o dia/eles têm modos próprios de existir/há um modo cão de existir no dia/um modo águia ou cavalo ou búfalo/e um pássaro está tão à vontade/na noite quanto na floresta/mas nós podemos trocar/a noite pelo dia/e andar sem destino sob as luzes da rua” (...) “há insônias planejadas e noites que se estendem/como uma luva longa/penso em tudo o que existe/e no pouco que sabemos sobre tudo”. O poema segue e se encontra, enfim, ao interlocutor-amante, no que temos : “desperto tarde demais e afogada na cama/como entre lençóis de água/e quando estou com você é como se estivesse/em uma escada alta/penso que o seu corpo imita a praia luminosa/da sua infância/e penso que nunca poderei conhecer você/quando criança/e queria beber em seus lábios/a sua sede de então”. E o poema vai ao mar, e segue em metáforas de intensidade e gênio, Ana fecha o poema com imagens potentes de um poema que se encerra com um desejo bonito e uma poesia que nem todo poeta tem capacidade de produzir e condensar : “penso que o mar não escolhe/entre a nau e o naufrágio/como para a primavera é indiferente/o mel ou as abelhas/como as mulheres que foram amadas/em duas línguas/os pássaros enlouquecem em pleno voo/o desejo é imenso e no entanto/penso/também não durará”.

POEMA DE TRÁS PARA FRENTE : O poema se inverte, lê ao contrário, e abre um moto-contínuo, no que temos : “A memória lê o dia/de trás para frente/acendo um poema em outro poema/como quem acende um cigarro no outro/que vestígio deixamos/do que não fizemos?”. O poema é breve, e se encerra com a visão melancólica do tempo, de uma juventude que se reforça na fotografia, a passagem do tempo : “somos cada vez mais jovens/nas fotografias/de trás para frente/a memória lê o dia”.

POEMAS :

MAR

Ela disse
mar
disse
às vezes vêm coisas improváveis
não apenas sacolas plásticas papelão madeira
garrafas vazias camisinhas latas de cerveja
também sombrinhas sapatos ventiladores
e um sofá
ela disse
é possível olhar
por muito tempo
é aqui que venho
limpar os olhos
ela disse
aqueles que nasceram longe
do mar
aqueles que nunca viram
o mar
que ideia farão
do ilimitado?
que ideia farão
do perigo?
que ideia farão
de partir?
pensarão em tomar uma estrada longa
e não olhar para trás?
pensarão em rodovias
aeroportos
postos de fronteira?
quando disserem
quero me matar
pensarão em lâminas
revólveres
veneno?
pois eu só penso
no mar

CENTAURO

[...] E morreu relativamente jovem – porque a parte animal mostrou-se menos capaz de durar que a sua humanidade

Joseph Brodsky, “Epitáfio para um centauro”

Como um velho centauro
cuja parte humana
sobrevivesse à parte animal
temos próteses, extensões
enfeites, móveis
que nos sobrevivem
levamos conosco
palavras que já não usamos
planos que já não temos
mulheres que não amamos
pai morto
cachorro morto
amigos mortos

como um velho centauro
que levasse a passeio
seu rabo
morto
de cão
seus olhos
mortos
de pássaro

ÍCARO

Quando Ícaro
caiu
no mar
a sereia que
primeiro
o encontrou
amou nele
o pássaro
ele amou nela
o peixe

Os restos de suas asas
desfeitas
foram dar na praia
entre embalagens
de plástico preservativos
garrafas vazias latas
de cerveja

O LIVRO DAS SEMELHANÇAS

O modo como o seu nome dito muito baixo pode
                         [ser confundido com a palavra xícara
e como ele esquenta de dentro para fora
o modo como a palma das suas mãos se parece com
                                                      [porcelana trincada
o modo como ao levantar-se você lembra um
                                                              [grande felino
mas ao caminhar já não se parece com um animal
                                   [mas com uma máquina rápida
e de costas sempre me lembra um navio partindo
embora de frente nunca pareça um navio chegando
o modo como dita por você  a palavra “sim” parece
                                                                 [uma palavra
que fizesse o mesmo sentido em todas as línguas
o modo como dita por você a palavra “não” parece
                                                                [uma palavra
que você acabou de inventar
o parentesco entre as fotografias rasgadas os
                     [brinquedos esquecidos na chuva cartas
que deixamos de enviar produtos em liquidação
                                [frases escritas entre parênteses
papel de presente as toalhas que acabamos de usar
                                                             [e massa de pão
e, mais importante, o parentesco de tudo isso
com o modo como você chama o táxi por telefone
a camisa branca que você acabou de despir sempre
                             [me lembra um livro aberto ao sol
seus sapatos deixados na sala sempre me parecem
                          [ensaiar os primeiros passos de dança
numa versão musical para o cinema do seu livro
                                                                    [preferido
o modo como no seu apartamento as coisas sempre
                                                [parecem estar em casa
e você sempre parece estar de visita
e como você pede licença à penteadeira para chorar
o modo como as nossas conversas me lembram
                            [bilhetes interceptados cardápios de
restaurantes exóticos rótulos de bebidas fortes
                                [documentos comidos nas bordas
por filhotes de cão
o modo como os seus cabelos parecem as linhas de
                                     [um livro lido por uma criança
que ainda não sabe ler
ou apenas desenhos que alguém por equívoco
                                                     [tomasse por escrita
o modo como os seus sonhos parecem os
              [pensamentos de pessoas que sobreviveram
a um desastre de avião
parecem as lembranças de um ex-boxeador
                                                                [apaixonado
parecem os projetos de futuro de crianças muito
                                                                      [pequenas
parecem os contos de fadas preferidos de ditadores
                                                                 [sanguinários
os parentescos entre as guerras íntimas os jogos de
                                  [armar as primeiras viagens sem
os pais os países coloridos de vermelho no mapa-
                     [-múndi pessoas que sempre esquecem
as chaves as primeiras palavras ditas pela manhã e a
                                  [disposição para usar a violência
o modo como apesar de tudo isso você não se
                                                   [parece com ninguém
a não ser talvez com certas coisas
similaridades a nada

POEMA NÃO DE AMOR

A partir de Zoo ou cartas não de amor,
                                De Vitor Chklóvski

Não vou falar de amor, vou falar do tempo que faz
dos animais do zoológico
de como eles não parecem tristes em suas jaulas
para onde os enviamos sem julgamento
vou falar do urso, da girafa, da morsa, do falcão
você me pede para não falar de amor
eis que tenho agora uma ocupação
não te ver, não te telefonar
não pensar em você
tudo isso dá algum trabalho
não vou falar de amor
vou falar do vento, das inundações,
do vinco das calças
dos meus amigos exilados
que viajam com malas cheias de livros
e manuscritos
de modo que mal se distinguem
seus ensaios e suas cuecas
vou falar sobre dançar
num transatlântico
sobre esse livro que se escreve
à roda do seu nome
todas essas coisas que não são o amor
não vou escrever cartas de amor
vou escrever cartas sobre cartas
cartas sobre cartas
cartas sobre cartas nas quais irrompe às vezes
uma história de exílio
uma parábola antiga
porque eu sei como é feito Dom Quixote
mas não sei escrever uma carta de amor
você me pede para não falar de amor
eu atendo porque devo te amar
em lugar de amar o meu amor
porque no amor não deve valer a lei do mais forte
nem mesmo a do mais forte amor
porque é solitário estar sozinho num dueto
não falar de amor me mantém ocupado
os animais do zoológico fazem isso melhor do que eu
eles não falam de amor, eles amam com suas plumas
e suas garras
também te amo com minhas garras e minhas plumas
é o que eu diria se este fosse um poema de amor
este é um poema não de amor

UMA CAMINHADA NOTURNA

Os animais existem durante a noite
ou durante o dia
eles têm modos próprios de existir
há um modo cão de existir no dia
um modo águia ou cavalo ou búfalo
e um pássaro está tão à vontade
na noite quanto na floresta
mas nós podemos trocar
a noite pelo dia
e andar sem destino sob as luzes da rua
e a lua alta
e todos os soníferos todos os venenos
todos os banhos quentes e as massagens
e os cremes e os chás não nos darão
uma noite de arminho ou de serpente
há insônias planejadas e noites que se estendem
como uma luva longa
penso em tudo o que existe
e no pouco que sabemos sobre tudo
mas penso sobretudo
em seu sexo
e seu sexo resplandece
sobre o pensamento de tudo
amo em você principalmente o gesto útil
as mãos cheias de sal
seu jeito de dirigir um automóvel austero
sua casa que não é um amontoado de tijolos
sua casa em que as coisas encontram
incandescentes
seus lugares
a mesa e as cadeiras e as cortinas
enquanto os espelhos pensam
a si mesmos
mas eu
desperto tarde demais e afogada na cama
como entre lençóis de água
e quando estou com você é como se estivesse
em uma escada alta
penso que o seu corpo imita a praia luminosa
da sua infância
e penso que nunca poderei conhecer você
quando criança
e queria beber em seus lábios
a sua sede de então
penso
com os prédios à direita
e o mar à esquerda
que um dia o amor terminará
e penso que isso não é triste
para o mar
penso que o mar não escolhe
entre a nau e o naufrágio
como para a primavera é indiferente
o mel ou as abelhas
como as mulheres que foram amadas
em duas línguas
os pássaros enlouquecem em pleno voo
o desejo é imenso e no entanto
penso
também não durará

POEMA DE TRÁS PARA FRENTE

A memória lê o dia
de trás para frente

acendo um poema em outro poema
como quem acende um cigarro no outro

que vestígio deixamos
do que não fizemos?
como os buracos funcionam?

somos cada vez mais jovens
nas fotografias

de trás para frente
a memória lê o dia

(Caros leitores, aqui se encerra a série sobre Ana Martins Marques, o espaço de poesia do caderno de cultura trará mais um poeta para o próximo texto e série, surpresa, sem spoiler).

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.