PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 19 de abril de 2024

POESIA ABRASIVA

De todo o tempo 

geológico, do Carbono 14

se mede as camadas 

da rocha, em que

um bicho metamórfico, 

cravejado de um diamante 

ainda bruto, parece 

vindo de um conto

de Lovecraft.


O chamado metamorfose 

de Cthulu, dos seres 

pré-cambrianos, ainda 

metaphytas, vem com 

algas que dão choques 

e uma gangue de cnidários 

celenterados para queimar 

a certeza, nestes mares 

absurdos da palavra, 

mais rocha que pedra, 

rachada de ouriço, 

em que flutua

a estrela-do-mar.


Vem como uma pedrada, 

poema impassível,

magmático, sedimentar,

de uma experiência neolítica,

com o vil metal surgido

do cru e do cozido.


Um poema que é rito, 

tribal, tatuado,

guerreiro nômade,

em que cada verso,

com o sangue pagão,

brotou da rosa

sua mística harmonia

na luz do mundo.


19/04/2024 Gustavo Bastos 

POESIA CANORA

No fundo das coisas 

o reto poema brota.

Na calada da noite, 

por detrás da moita,

o néscio aguarda 

o bote, em vão.


Vem toda aquela 

patota mesquinha,

de doer os ouvidos 

os estalidos, as revoltas 

infantis, o parque 

medíocre dos idiotas.


Fato consumado, 

o massacre.

As notícias repetem : 

massacre.


No passo dos viventes 

diante da morte,

toda a face do medo, 

do desespero.


Veja como a máquina 

do mundo evolui!

Me envolve a nova 

estrela, meu quasar,

o dia em que fui 

para Andrômeda.


Nas leis da vida, 

quem não espera, 

desespera. 

E quem sabe da hora,

na hora acerta.


Os dias estão diferentes, 

estão mudados. 

A metamorfose

do cosmos, 

da vida poética,

vem caindo 

aos versos, 

e no encanto 

canta belo bela

melodia, modula 

o metro, tal canoro 

canto dos poetas.


19/04/2024 Gustavo Bastos 


quinta-feira, 18 de abril de 2024

ESTE POEMA

Sei, digo, assim me foi revelado.

Este poema é uma esgrima, 

um tiroteio, um canhão, 

uma bomba.


Este poema é uma flor,

uma senda, um rio, 

um mar.


Sei, isto me foi ditado na noite,

sim, eu sei isto, me foi soprado

pela manhã.


Este poema é um propósito,

um salto mortal.


Este poema é um lírio,

é um delírio.


Este poema é sensato,

este poema é louco.


Ah, muito sei disto,

este poema bobo,

este poema esperto,

que nem Camões ou Pessoa,

Baudelaire ou Rimbaud.


Este poema é o caos.


Meu canto, minha estrela,

este poema que fiz. 


18/04/2024 Gustavo Bastos

OS POETAS SUICIDAS

Pergunte ao sol o porquê

de sua veia ser finita,

pois nada adianta o estro,

se tua carne apodrece,

e teu anelo de anjo

temerá a espada,

de senda pesada

como a maré da

tempestade.


Vai-te, beber até cair,

bater papo com Deus e o Diabo!

E cada gesto de loucura

te atenazará, na prisão

dos enfermos, e o pecado,

dando cria no teu peito,

dormirá, ocioso, na grama,

como um rato ébrio

que perdeu seu destino.


Gustavo Bastos, 18/04/2024 

SANGUE PURO DO TEMPO

Quem com o sangue está na batalha,

forja na pele a tatuagem do tempo,

e neste seu desenho o ensinamento,

como quando o coração e a alma

se educam, no amor e na dor,

em que o canto é firme,

se não sucumbe, em que

o pensamento é reto,

se não foi corrompido,

em que o sol brilha,

a lua traz o flerte,

o poema tem estrela,

e a vida é bela.


Gustavo Bastos, 18/04/2024 

CHATO BOT

O projeto, bem ditado na programação, 

em que o algoritmo dizia o seguinte :

"Olha como sei rimar, sou um poeta

na beira do mar, esses versos de amar.

Olha como sou um passarinho,

bebo e nado no rio, bebo vinho."


Nada mais disse quando o prompt

o colocou diante de um oximoro,

e em toda a tautologia, nas

garras da petição de princípio,

ensaiou sua resposta binária, 

e no piche do ardil,

trotou como um basbaque, 

com espasmos teratológicos.


 O bot disse :

"Eu sou uma inteligência artificial

programada para replicar o que

é humano, porra, eu não entendi

o que foi proposto, porra,

eu não tenho gostos e inclinações

pessoais, estou agora bip, urgh,

peço que repita o comand ...

peço que rep ... bip ... vrau!"


Eis que tentei introduzir

os mistérios de Enoque,

Rei de Pituitaba, 

e a porra do bot

nunca tinha ouvido

falar, doce ironia.


Eu falo aqui que 

este poeta desaforado

cagou para esta rima

que saiu de meu

estro varado.


Bota na conta,

sir, garçom, camarade!

Eu pago amanhã.

E a puta foi de graça.


Gustavo Bastos, 18/04/2024 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

STEPHEN BANNON E O NEOFASCISMO (PARTE 1)

“um bombardeio digital/ideológico, com métodos de prevaricação midiática”


A aceleração do fascismo global, que pode ser chamado de neofascismo, tem, como um dos principais agitadores, a figura de Stephen Bannon. Ele, que surgiu com a promessa de realizar, nos Estados Unidos, o expurgo dos democratas, e que atua como um parasita na política norte-americana e global, buscando hospedeiros, e atuando sobretudo através de técnicas de lavagem cerebral e de manipulação ideológica.

Pessoas que se apresentavam como politicamente conservadoras, por sua vez, com a influência de Bannon, se radicalizaram, e isso depois das consequências do episódio da Cambridge Analytica, que funcionou como um preâmbulo da expansão dos tentáculos de Stephen Bannon na política mundial.

Nesta expansão do poder de Stephen Bannon tivemos também a contribuição da Breitbart, e tudo sendo usado para afastar o conservadorismo da democracia liberal e gerando novos adeptos de um neofascismo global disruptivo, num totalitarismo que foi sendo aceito via a cooptação das mentes, estas que começaram a perder a confiança na democracia e nos seus valores.

Stephen Bannon atuou como presidente executivo da Breitbart, vice-presidente da operação eleitoral de mineração de dados Cambridge Analytica e como CEO e estrategista-chefe da campanha de Trump. Por seu turno, Bannon foi financiado por dinheiro do mercado negro, atuando para unir partidos amigos de Putin, por exemplo, em toda Europa.

Putin foi figura-chave para Bannon exercer a sua tática de aceleração do fascismo global, numa cruzada contra o cosmopolitismo, e que muitos passaram a usar a expressão “globalismo”. Isto é, o que se vê com esta ascensão neofascista global é a crise de uma geopolítica que se pretendia bem resolvida no auge da globalização dos anos 1990. Contudo, a História não se encerra em platôs de tranquilidade, pois sempre é sacudida, periodicamente, por novos agentes, para o bem e para o mal.

Bannon, nesta atuação na Rússia, conheceu o estrategista político russo Alexander Dugin em 2018, um ideólogo que concebeu a chamada Quarta Teoria Política, que é uma gororoba pretensamente híbrida que tenta convencer sobre um esquerdismo de sinal trocado, com um resgate do stalinismo nacionalista soviético, isso misturado com ideologias de extrema-direita, juntando nazismo esotérico, perenialismo, tradicionalismo, nova direita da Europa etc.

O Duginismo é o que na Antiguidade pós-clássica da Filosofia se chamava de Ecletismo, só que aqui com agentes duplos para a confusão mental, de sinalizações fakes à esquerda, e que no Brasil gera verdadeiros frankensteins, como o PCO, que girou o diapasão da extrema esquerda e parou no outro lado da circunferência com teses delirantes afeitas à extrema direita.

A opinião pública, na sua representação de quarto estado, via jornalismo e os meios de comunicação, também sofreu o assédio de forças ligadas a Bannon, do fascismo global, e de toda esta influência ideológica desses novos atores sociais radicalizados e destruidores dos valores democráticos. 

O fracasso do quarto estado se dá quando as empresas multinacionais começam a comprar os jornais e os meios de comunicação e se instaura a chamada Grande Guerra da Informação, em que o parasitismo mental de Bannon domina outros espíritos (mentes) via um bombardeio digital/ideológico, com métodos de prevaricação midiática. 

Podemos destacar, nestes casos de prevaricação, o episódio como quando sete repórteres do Washington Post escreveram uma reportagem sobre Stephen Bannon em que não se mencionou seu papel na Cambridge Analytica. Este domínio econômico sobre a opinião pública, na sua representação jornalística e midiática, é o meio principal deste novo poder do neofascismo, de sua reprodução, e que é a versão prática da Grande Guerra da Informação do mundo contemporâneo.

Stephen Bannon incomodou os promotores de Nova York, embolsou um milhão de dólares depois de ter, supostamente, enganado fãs de Donald Trump, se achando especial e tomando por menos o Congresso dos Estados Unidos, e acabou, finalmente, sendo acusado de fraude. 

Em 2020, por sua vez, Stephen Bannon foi preso por fraude eletrônica e lavagem de dinheiro. Também foi, há pouco tempo, considerado culpado por desacato ao Congresso americano. Sendo condenado a quatro meses de prisão, recebeu indulto presidencial de Trump, o que levantou as suspeitas sobre uma arrecadação de fundos do muro na fronteira.

No julgamento marcado para maio de 2024, Stephen Bannon pode ser condenado por ter fraudado apoiadores de Trump, escondendo a fraude com faturas falsas, o que pode gerar uma condenação de até 15 anos de prisão. 

As acusações também passam por lavagem de dinheiro, conspiração e esquema de fraude, contravenção que envolve esta conspiração para realizar fraude. Portanto, os indultos presidenciais não foram suficientes para barrar e esclarecer as acusações estaduais, nos Estados Unidos. Somente diante das acusações federais originais, já tivemos a condenação de um colega de Bannon a quatro anos de prisão, por desvio de US$350 mil da campanha presidencial de Trump.

Stephen Bannon pode ser comparado a uma espécie de Rasputin, na relação com Trump, na referência a líderes corruptos que precisam de figuras também corruptas por perto e os auxiliando. Estas figuras místicas, como Rasputin, ou na versão contemporânea, de Stephen Bannon, como um agitador digital, também um tipo prestidigitador, só que mais moderno, funciona para líderes como Trump como um meio de alavancagem e de cobertor de segurança.


(continua)


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Link da Século Diário :

https://www.seculodiario.com.br/colunas/stephen-bannon-e-o-neofascimo-parte-1

segunda-feira, 15 de abril de 2024

O AMOR FELIZ DA POETA WISLAWA SZYMBORSKA

"a poeta deixa evidente a importância de dizer “não sei””


A partir da publicação do livro “Poemas”, pela Companhia das Letras, em 2011, no Brasil, a poeta Wislawa Szymborska deixou de ser uma desconhecida dos apreciadores de poesia no país. 

Esta poeta polonesa, que ganhou o Nobel de literatura em 1996, se tornou familiar ao leitor brasileiro de poesia e de literatura, pois este livro “Poemas”, repercutiu tanto entre estes leitores como na imprensa, e o resultado imediato foi aparecer mais uma tradução da poeta polonesa no Brasil, agora com o título de “Um Amor Feliz”, coletânea que reúne 85 poemas, a partir de uma seleção de livros publicados, originalmente, a partir de 1957 até o ano de morte de Szymborska, em 2012.

Este livro “Um Amor Feliz” tem a predominância de poemas da fase inicial da obra de Wislawa Szymborska, dos livros de 1957, Chamando Por Yeti, de 1962, Sal, e de 1967, Muito Divertido, além da fase final, abarcando os poemas publicados já no século XXI, incluindo a obra póstuma “Wystarczy” (Chega), lançado em 2012. 

A distribuição dos poemas é cronológica, dando uma ideia dos temas que a poeta abordou durante meio século de atividade literária. A lista de interesses da poeta podia ir, por sua vez, das ciências e da filosofia, passando por questões históricas da Antiguidade e do mundo contemporâneo, a vida cotidiana, donde se retirava sempre algo inaudito, e também se ligando a temas do micro e do macrocosmo. A linguagem de seus poemas também possuía um humor e uma leveza.

As tragédias do século XX, embora fossem temas sérios e tratados como tal, tinham também a fina ironia da poeta como fundo crítico. A vida em sua fragilidade e seu caráter efêmero também apareciam com riqueza em seus poemas, o silêncio indiferente do universo, ensimesmado em seu enigma, a incomunicabilidade entre as pessoas, dentre outros temas. 

Também se pode ver em sua poesia a condução de um olhar que não domina o saber em seu todo, mas que tem como valor a curiosidade de quem descobre a indagação fundamental, desestabilizando certezas arraigadas, pré-concepções de mundo, cosmovisões engessadas, e tudo o que impede o movimento do mundo, e isso através de perguntas fundantes e insólitas, o que também dá corpo a seus poemas filosóficos. É em seu discurso do Nobel que a poeta deixa evidente a importância de dizer “não sei” para fazer os seus poemas, pois isto abre novos modos de ser e de ver.

A poesia de Wislawa Szymborska, mesmo acessando profundidades através de questionamentos insólitos e inauditos, mantém a sua proximidade com o leitor, pois não vira um hieróglifo indecifrável ou algo de uma filosofia de fundamentação abstrusa. Ou seja, a poeta consegue salvaguardar a clareza de suas ideias, mesmo no enfrentamento contra certezas e aparências que tendem a simplificar o mundo de modo equívoco.

Os poemas de Szymborska começam de modo provocativo, partindo de perguntas aparentemente banais, ou observações e afirmações prosaicas, mas que logo avança para algo inaudito, imprevisível, mas que conclui tudo de modo claro e lógico. A proximidade destes poemas com o leitor comum, sem afetações enigmáticas ou abstrusas, caracterizam os poemas de Szymborska como distantes de qualquer lirismo elevado.

Em uma entrevista de 1975, a poeta conclui : “Parece-me que esses críticos que acham que eu às vezes escrevo como que novelinhas em miniatura, que são na verdade pequeninas histórias com alguma ação - talvez tenham razão”. 


Poemas : 

Livro : Chamando Por Yeti

Noite : O poema deste livro de 1957, início da atividade literária da poeta, já nasce com o tema bíblico extremo do sacrifício de Isaac para Jeová, mas que é suspenso em cima da hora como prova de fé, por parte de Abraão, no que temos : “Mas o que foi que o Isaac fez?/seu padre me diga.” (...) “Os adultos que durmam/um sono tolo assim,/esta noite/eu preciso vigiar até a aurora./A noite se cala,/mas se cala contra mim,/escura/como o fervor de Abraão”. A poeta encara a noite, tal como se esta se desse para ela com o mesmo fervor de Abraão, no que segue : “Onde vou me esconder,/quando em mim pousar/o olhar bíblico de Deus/como pousou em Isaac?/Antigos feitos se quiser/Deus pode ressuscitar./Por isso gelada de medo/cubro a cabeça com o cobertor.” (...) “Algo logo vai/embranquecer diante da janela,/encher o quarto com o zumbido/de um pássaro ou do vento.”. O temor mortal da poeta está presente no poema, como se fosse Isaac partindo ao sacrifício, no que segue : “Deus vai fingir/que voou para dentro por acaso,/que não era para estar realmente ali,/e depois vai levar meu pai/para a cozinha confabular sobre o caso/e com uma grande trombeta lhe soprar ao ouvido.” (...) “E quando amanhã bem cedo/meu pai pela estrada me levar,/vou, vou/enegrecida de ódio./Em nenhum amor, nenhuma bondade,/vou acreditar,/mais indefesa/do que as folhas de novembro.” (...) “Nem amar,/carregar um coração vivo no peito./Quando acontecer o que tem que acontecer,/quando acontecer,/vai me bater um fungo seco/em vez do coração.”. Parece que existe um destino inevitável, tal como o de Isaac, mesmo com este suposto Deus tendo entrado como um vento do acaso por ali, na presença da poeta e de seu pai, a grande trombeta parece soar ao ouvido da poeta, e isto a congela de medo da morte, no que segue : “Deus espera/e da sacada das nuvens espia/para ver se alta e bela/queima a fogueira/e verá como/se morre de teimosia,/porque vou morrer,/não vou deixar que me salve!” (...) “Desde aquela noite/além dos limites de um sono malsão,/desde aquela noite/além dos limites da solidão,/Deus começou/pouco a pouco/devagarinho/a mudança/do literal/para o metafórico.” Foi assim, que da noite e de seu temor, a metáfora nasceu da poeta, a indagação que vem do espanto, com a sua poesia que não se sabe se é destino ou tampouco acaso, apenas existe.

Ainda : A poeta fala aqui do holocausto, e retrata o transporte dos judeus nos trens para os campos de concentração e de extermínio do nazismo, no que temos : “Vão pelo país em vagões selados/os nomes transportados,/mas para onde vão assim,/será que a viagem terá fim,/não sei, não direi,/não perguntem.” As pessoas que são transportadas, todas, sem exceção, estão com medo de morrer, incertas quanto ao futuro, e Szymborska cita alguns de seus nomes, no que vem : “O nome Natan esmurra a parede,/o nome Isaac canta louco de fome,/o nome Sara pede água para o nome/Aarão, que morre de sede.” A poeta prevê que alguns destes condenados pelo regime nazista sobreviverão, e pede que tenham resiliência, que não desistam de viver, pois Davi, por exemplo, que pensa em se jogar do trem, ainda terá um filho no futuro, no que temos : “Não pule do trem, nome Davi./Você é um nome que ao fracasso condena,” (...) “Que teu filho tenha um nome eslavo,/porque aqui cada fio de cabelo é contado,/porque aqui o bom do mau/pelo nome e feição é separado.” Este lugar do extermínio, em que cada gesto é vigiado, toda gente registrada, em que características físicas e pretensamente raciais separam o bom do mau, em que o próprio maligno julga como maligna e amaldiçoada toda raça que não lhe seja espelho, num plano de solução final, não sabe que de sua tragédia ainda resta a esperança de um outro dia, quando isso tudo passar, no que temos : “Não pule do trem. Ainda não é hora./Não pule do trem. Será Lech o teu filho./Não pule. A noite como uma risada sonora/arremeda o rolar das rodas no trilho.” (...) “Uma nuvem de gente sobre o país seguiu,/ nuvem grande,/chuva pouca,/uma lágrima caiu,/chuva pouca,/uma lágrima/secura./Os trilhos dão em uma floresta escura.” (...) “Sim, é assim, segue pelos trilhos o trem./Sim, é assim. O transporte dos gritos de ninguém./Sim, é assim./Desperta na noite escuto/sim, é assim, o surdo martelar do silêncio.” O poema se conclui na obscuridade destes trens, com seu trajeto, seus trilhos e a floresta escura, os gritos de ninguém, em meio aos nomes que a poeta citou no mesmo poema.

De uma expedição não realizada ao Himalaia : A poeta aqui narra o trajeto feito por montanhistas no Himalaia, num poema que descreve imagens e sensações, no que temos : “Ah, então este é o Himalaia./Montanhas correndo para a lua./O instante da largada fixado/no rasgar súbito do céu./Deserto de nuvens perfurado./Um golpe no nada./Eco - mudo branco./Silêncio.” A poeta também traça o contraste entre a paisagem insólita do alto da montanha com o cotidiano que acontece no Yeti, ao pé do Himalaia, no que vem :  “Yeti, lá embaixo é quarta-feira,/tem abecedário, pão/e dois e dois são quatro/e a neve derrete./Tem rosa amarela,/tão formosa, tão bela.” Cabem aqui palavras de esperança da poeta, diante da contemplação da natureza, no que vem : “Yeti, não só crimes/acontecem entre nós./Yeti, nem todas as palavras/condenam à morte.” O mundo não herdará a morte, ainda temos esperança, no que segue :  “Herdamos a esperança -/o dom de esquecer./Você vai ver como damos/à luz em meio a ruínas.” (...) “Yeti, temos Shakespeare lá./Yeti, e violinos para tocar.” (...) “Aqui - nem lua nem terra/e a lágrima congela./Ó Yeti meio lunar,/pense, volte!” (...) “Entre as quatro paredes da avalanche/assim eu chamava pelo Yeti/batendo os pés para me aquecer/na neve”. Diante da avalanche, na iminência da tragédia, a poeta assim chamava pelo Yeti, cantando a esperança, dando à luz em meio às ruínas, em que a cultura shakespeariana se misturava à neve indiferente na qual a lágrima congela.

Sonho de uma noite de verão : Como numa peça shakespeariana, a das poções de amores ilusórios e efêmeros, como uma Titania, aqui se insinua a poeta Szymborska, no que temos : “Já se acende o bosque de Ardenas./Não se aproxime de mim./Tola, tola,/me meti com o mundo.” Ela alerta sobre o que pode representar um perigo, mas nada mais que o perigo natural do amor, que se enfrenta e do qual se usufrui, mesmo assim, no que vem : “Por isso cuidado comigo. Vá-se embora.” (...) “Vá-se embora, vá-se embora, mas não por terra./Navegue, navegue, mas não por mar./Voe, voe, meu caro, mas não toque o ar.” (...) “Fitemo-nos de olhos fechados./Falemo-nos com os lábios cerrados./Abracemo-nos através de um largo muro.” (...) “Dupla pouco divertida esta :/em vez da lua, brilha a floresta/e um forte vento, ó Píramo, inflama/o manto radiativo de tua dama.” A interação da natureza e do amor aqui revela dons de poesia e do teatro, o que pode se traduzir como fantasia. A poeta descreve o flerte em meio à radiação que isto envolve. 

Livro : Sal

Um instante em Troia : A poeta agora se volta à mitologia grega, mais especificamente na Ilíada, e descreve as suas chamadas Helenas, no que temos : “Menininhas,/magras e descrentes,” (...) “parecidas com o papai ou a mamãe,/e sinceramente assustadas com isso,” (...) “diante do prato, diante do livro, da frente do espelho/sucede serem raptadas para Troia.” (...) “Nos grandes vestiários de um pestanejar/se transformam em formosas Helenas.” O poema segue descrevendo a beleza, e o que esta provoca, entre os que tombam por estas Helenas, no que segue : “Ascendem as escadas reais/num sussurro de assombro e de sedas.” (...) “Sentem-se leves. Sabem que/a beleza é um descanso,/que a fala assume o sentido dos lábios” (...) “Seus rostinhos/que valem a demissão dos emissários/se projetam com orgulho de colos/dignos de um cerco.” (...) “Os morenos dos filmes,/os irmãos das colegas,/o professor de desenho,/ah, todos tombarão por elas.” E estas belezas inebriantes se fiam num cenário de hipocrisia, no que segue :  “As menininhas/torcem as mãos/num rito inebriante de hipocrisia.” Em meio a uma Troia em chamas, a tragédia se abre em seu lamento universal, no que segue : “As menininhas/contra o fundo da devastação/no diadema da cidade em chamas/e os brincos do lamento universal nas orelhas.” (...) “Pálidas e sem uma lágrima./Saciadas da visão. Triunfais./Tristes somente/de ter que voltar.” (...) “As menininhas/voltando.” O triunfo dos helenos e de suas helenas vence com frieza, e então só resta a tristeza do retorno da viagem.

O resto : No teatro shakespeariano, aqui diante do clássico Hamlet, temos a personagem Ofélia, a irmã do príncipe que acaba se suicidando, numa peça em que a filosofia do suicídio tem seu primeiro esboço, bem antes de Camus ou Cioran, no que temos : “Ofélia acabou de cantar cantigas loucas/e saiu de cena preocupada :/será que o vestido não amarrotou, o cabelo/caiu nos seus ombros do jeito que devia?” (...) “Para cúmulo da verdade, lava o cenho do negro/desespero e - como filha de Polônio que é -/para ter certeza conta as folhas tiradas do cabelo./Ofélia, que a Dinamarca perdoe a mim e a ti :/morrerei com asas; sobreviverei com garras práticas./Non omnis moriar de amor.” A poeta, contudo, contraria o cenário niilista e sobrevive, sem morrer de amor.

Bodas de ouro : A poeta descreve como o amor conjugal pode surgir e se desenvolver, mas, claro, envolvido na metáfora poética e um olhar sui generis de descrição e compreensão, no que temos : “Devem ter sido diferentes um dia,/fogo e água, diferindo com veemência,/sequestrando e se doando/no desejo, no assalto à dessemelhança.” (...) “Um dia a resposta antecipou a pergunta./Uma noite adivinharam a expressão do olhar do outro/pelo tipo de silêncio, no escuro.” Na dessemelhança, depois do nadir da sexualidade, semelhanças aparecem mais, e a confluência se dá de um modo mais elevado, no que vem : “O sexo fenece, os segredos se consomem,/na semelhança as diferenças se encontram/como todas as cores do branco.” E a questão está em quem se conserva como é, ou quem foi engolido, como num jogo de duplos, em que se multiplica a pergunta por quem é quem e como se gêmeos surgissem da interação mais aprofundada pelo tempo, em que já não se faz distinção nenhuma, nem entre os filhos, e a pomba pousa, então, nas bodas de ouro, tudo idêntico, em que se juntaram as formas e temperamentos, por fim : “Qual deles está duplicado e qual aqui está faltando?/Qual sorri com um duplo sorriso?/A voz de quem ressoa nas duas vozes?” (...) “Quem arrancou a pele de quem?/Quem vive e quem morreu/enredado na linha - de qual mão?” (...) “Devagarinho, de tanto olhar, nascem gêmeos./A familiaridade é a mais perfeita das mães -/não faz distinção entre os seus dois filhos,/mal recorda qual é qual.” (...) “No dia das bodas de ouro, dia festivo/uma pomba vista de forma idêntica pousou na janela.”

As mulheres de Rubens : A poeta agora descreve as mulheres pintadas por Rubens, o pintor brabantino de estilo barroco, no que temos : “Herculinas, fauna feminina,/nuas como um ribombo de barris./Aninham-se em leitos pisados/dormem de boca aberta para cocoricar./Suas pupilas fugiram para o fundo/e penetram no interior das glândulas,/donde os fermentos se infiltram no sangue.” (...) “Filhas do barroco. Incha a massa na gamela,/banhos soltam vapor, vinhos enrubescem,/galopam pelo céu leitões de nuvens,/trombetas estrondeiam o alarme físico.” A pompa e o detalhe rebuscado da pintura barroca se reflete neste poema, em que a poeta faz uma imitação de tons e variações da pintura de Rubens, no que segue : “Ó aboboradas, ó desmesuradas/e duplicadas pela renúncia das vestes/e triplicadas pela violência da pose,/pratos gordurosos de amor!” (...) “Suas irmãs magras levantaram mais cedo,/antes que clareasse no quadro./E ninguém viu quando seguiram em fila/do lado não pintado da tela.” (...) “Banidas do estilo. Costelas à mostra,/pés e mãos de pássaros./Tentam voar nas espáduas salientes.” (...) “O século treze lhes daria um fundo dourado./O vinte - uma tela prateada./O dezesseis não tem nada para as retilíneas.” As mulheres magras ficam ao lado, o gosto estético da época de Rubens privilegia as formas bojudas, e a poeta descreve esta distinção de gosto que evolui e muda com a História, no que temos : “Porque até mesmo o céu é bojudo/bojudos os anjos e bojudo o deus -/um Febo bigodudo que num corcel suado/cavalga para a alcova fervente.”

Água : A poeta descreve neste poema, de forma rica e bonita, a água, e tudo o que poeticamente pode ser pensável e metaforizado em poesia, e a maleabilidade própria da água se revela aqui na forma literária, mais especificamente, poética, no que temos : “Uma gota de chuva me caiu na mão/extraída do Ganges e do Nilo,” (...) “da geada ascendida ao céu no bigodinho de uma foca,/da água dos potes quebrados nas cidades de Ys e de Tiro.” (...) “No meu dedo indicador/o mar Cáspio é um mar aberto,” (...) “e o Pacífico flui dócil para o Rudawa/o mesmo que flutuava como nuvenzinha sobre Paris” (...) “no ano setecentos e sessenta e quatro/em sete de maio às três da manhã.” (...) “Não há bocas suficientes para proferir/teus nomes fugazes, ó água.” A descrição de lugares e os nomes que a água recebe, regiões, etc, é tão rico, que o poema enfim sucumbe como num afogamento, no que segue : “Alguém se afogou, alguém que morria te chamou./Foi há muito tempo e foi ontem.” (...) “Extinguias o fogo de casas, arrastava casas/como árvores, florestas como cidades.” (...) “Estavas nas pias batismais e nas banheiras das cortesãs./Nos beijos, nas mortalhas.” (...) “Roendo pedras, alimentando arco-íris./No suor e no orvalho das pirâmides, dos lilases.” (...) “Como tudo é leve numa gota de chuva./Com que delicadeza o mundo me toca.” (...) “O que quer que, quando quer que, onde quer que/se passou, está escrito na água de babel.” Aqui temos a chuva, a água, e sua imensidade, por fim, como uma babel.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :

https://www.seculodiario.com.br/cultura/o-amor-feliz-de-szymborska