PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

OS PROJETOS DE LEI PARA PROTEGER OS TRABALHADORES DE APLICATIVOS

 “propostas de parlamentares envolvem projetos de lei que visam a proteção social destes trabalhadores”

Alguns projetos de lei estão avançando para atender reivindicações e balizar direitos para os entregadores de aplicativos, tais propostas que estão no Congresso Nacional incluem desde um valor mínimo por hora trabalhada, como fornecimento de equipamentos de segurança e EPIs, e o afastamento remunerado por motivos de saúde e, de fundamental importância, a questão do vínculo empregatício. Portanto, estas propostas de parlamentares envolvem projetos de lei que visam a proteção social destes trabalhadores.

Dentre estes projetos, o que tem mais abrangência é o do senador Jaques Wagner (PT-BA), que envolve os trabalhadores de aplicativos de transportes individuais privados, visando a proteção social destes trabalhadores, este que é o Projeto de Lei (PL) 3.570 que visa um valor mínimo para hora de trabalho, fornecimento, pelas empresas, de equipamentos de segurança e a possibilidade de seguro-desemprego.

Também temos no projeto do senador a inclusão de direitos como o de associação, cooperativismo e a sindicalização, tendo, por fim, também incluso no projeto de lei, o plano de saúde, auxílios alimentação e transporte, além de seguro-desemprego, seguro de vida e de acidentes, estes que, por fim, seriam negociados coletivamente.

Temos, dentre outros projetos que estão sendo propostos, os dos deputados federais Márcio Jerry (PCdoB-MA), Bira do Pindaré (PSB-MA), José Airton Félix Cirilo (PT-CE) e Eduardo Bismarck (PDT-CE). O PL 3.577/2020, de Jerry, por exemplo, tenta encaixar na CLT os entregadores de aplicativos. O PL 3.597/20, de Bira do Pindaré, visa uma equivalência entre o entregador de aplicativo e um trabalhador contratado diretamente pela empresa prestadora de serviço. O PL 3.599, do deputado Bismarck, visa regulamentar o serviço de entrega de mercadorias com o uso de bicicleta.

Um Projeto de Lei (PL) da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP), por sua vez, propõe a regulação da relação entre os trabalhadores das plataformas e as mesmas, num novo regime de trabalho sob demanda, uma vez que a intermediação é feita, por exemplo, por empresas como iFood e Uber, entre clientes e os trabalhadores dos aplicativos, pode até haver casos de Microempreendedores Individuais (MEIs), dentre alguns deste serviços, mas em geral a informalidade é a praxe usual destes serviços.

E hoje temos, segundo o a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de quatro milhões de trabalhadores prestando serviço para estes aplicativos, desde os de entrega de mercadorias, os de transporte individual privado, dentre outros.

O projeto de lei de Tabata Amaral visa preencher, segundo a própria deputada, um vácuo jurídico entre estes aplicativos e seus trabalhadores, dando regramento a esta relação, o PL 3748/2020, da deputada, coloca um valor por hora que não pode ser menor tanto do piso da categoria como do salário mínimo, incorporando a este valor os proporcionais de férias e o décimo-terceiro.

Os direitos levantados por esta PL também incluem seguro-desemprego e obrigações das empresas como fornecimento de EPI (Equipamentos de Proteção Individual) e a contribuição para a Previdência. A PL pode criar uma figura híbrida entre um autônomo e um celetista, e pode, ainda, criar um marco legal abrangente que vai além desta categoria de serviços.

Esta regulamentação por lei específica pode, por exemplo, evitar o que ocorreu com a questão da terceirização, que inicialmente era regulada por uma Súmula Vinculante do TST, a qual impedia que as chamadas atividades-fim fossem terceirizadas, restringindo este escopo das atividades terceirizadas às atividades-meio, e que teve uma nova posição, por parte do STF (Supremo Tribunal Federal), contrária a esta jurisprudência feita pela Justiça do Trabalho, liberando, a partir de decisão de 2018 da Corte, todo o tipo de subcontratação, e não mais somente as atividades laborais de limpeza e vigilância.

O questionamento levantado, contudo, é o de que haja uma migração de trabalhadores celetistas para este modelo sob demanda, abrindo um precedente para a precarização, se não tiver balizas claras na legislação que vem proposta na PL de Tabata Amaral, que diz, por sua vez, que o projeto não se aplica a atividades em que o usuário da plataforma escolhe a pessoa responsável pelo serviço.

Mas a PL de Tabata vem sendo questionada neste sentido da necessidade de uma maior clareza nas fontes de custeio dos benefícios deste novo regime sob demanda, e desta legislação proposta não incluir a responsabilidade de outra empresas, como os restaurantes e as plataformas de e-commerce, que também utilizam de forma disseminada os serviços destes trabalhadores.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/os-projetos-para-proteger-os-trabalhadores-de-aplicativos 

 

 

 

 

 

domingo, 9 de agosto de 2020

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A VONTADE GERAL, A LEI E O LEGISLADOR

Rousseau pensa o contrato social como uma solução para o problema fundamental de toda comunidade humana, que é a conciliação entre liberdade e obediência, tal associação serve para que os homens, que atuam como cidadãos na vida social, possam recuperar a liberdade que tinham no estado de natureza. Tal contrato social teria a capacidade de que todos obedecessem sem ninguém comandar, todos são livres sob este contrato, todos servem sem ter senhor, e tal obra é da Lei, pois é a ela que devemos a justiça e a liberdade.

O que será dito como o prodígio da lei é o acordo entre obediência e liberdade, e tal se realiza na noção de Soberania, que tem como essência, por sua vez, a vontade geral. Rousseau nos diz que a soberania é o exercício da vontade geral. Em Rousseau, por conseguinte, a legitimidade política depende da vontade geral.

Rousseau começa a sua definição de vontade geral diferenciando esta da vontade particular, este que se move por preferências pessoais, e a vontade geral que tende ao interesse comum, e que deve ser o verdadeiro motor do corpo político, uma vez que ocorra isto a vontade geral se torna a vontade do todo.

Rousseau, em seguida, distingue a vontade geral da vontade de todos, pois a vontade geral se liga ao interesse comum somente, e a vontade de todos visa o interesse privado e é nada mais que a soma de vontades particulares. A vontade geral, portanto, é mais o interesse comum, ela é sempre a mesma, e não é geral por ser de todos, não interessa o número de votos que ela expressa, mas sim o interesse comum que une estes votos.

A vontade geral é a essência da soberania, e ela mais se manifestará quanto mais se mantiver ativa, isto é, quanto mais for contínuo o seu exercício, através da participação do cidadão nas deliberações coletivas, a vontade geral dirige o Estado na medida em que é sempre consultada e que responda a esta consulta. A vontade geral, em Rousseau, se expressa no consenso coletivo obtido pela participação permanente do conjunto dos cidadãos nos assuntos da comunidade, ela parte de todos para aplicar-se a todos igualmente.

Rousseau, uma vez tendo estabelecido como princípio fundamental que é soberana somente a sociedade que é dirigida pela vontade geral, ele se volta para o corpo político e sua dinâmica social, ou seja, ele vê a necessidade de dar a este corpo político movimento e vontade pela legislação. O corpo político ganha este movimento através de um governo que tem como tarefa zelar pelo cumprimento da cláusula essencial do contrato, e dar vontade é dotar este corpo político de um sistema de leis fundamentais que fixem o conteúdo concreto da vontade geral.

As leis são atos da vontade geral, atos estes que são expressos pelo conjunto dos cidadãos no exercício do interesse público, as leis são as condições da associação civil, e o povo que se submete a estas leis deve ser seu verdadeiro autor, isto deve resultar das chamadas “luzes públicas”, o que se dá pelo debate público aonde se pode depreender a verdadeira vontade geral da comunidade.

Nasce a necessidade de um legislador, este que deve ter uma clara consciência dos problemas comuns e intenções honestas, ele aparece aqui como razão encarnada. Se o povo não é capaz de fazer o que manda o bem público, pelas próprias luzes, depende de uma declaração expressa do bem através das leis, por conseguinte, entre o povo e a multidão cega existe um abismo a ser transposto pela intervenção de um indivíduo excepcional, este que é o legislador.

O legislador é aquele que ousa empreender, com capacidade, mudar a natureza humana, transformando cada indivíduo, por si mesmo, de um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior do qual, de certo modo, este indivíduo recebe sua vida e seu ser. Alterar a constituição do homem para fortificá-la, substituir a existência fixa e independente por uma existência parcial e Moral, transformar o homem independente e natural em uma parcela do todo social, é o que Rousseau chama, no Emílio, de desnaturar.

A missão do legislador é pois fixar o bem público. Desnaturar é, desta forma, uma ação ou educação política. Rousseau, no entanto, adverte que aquele que redige as leis não deve ter o direito legislativo. O povo não pode abdicar deste direito incomunicável. 

A PROPRIEDADE

Rousseau desenvolve sua ideia de propriedade intimamente ligada ao surgimento da desigualdade social, isto vemos no Discurso Sobre a Desigualdade, e no Contrato Social, Rousseau argumenta que todo o sistema de legislação de qualquer associação política tem dois objetivos principais : a liberdade e a igualdade. É uma sociedade constituída sobre estes dois princípios que se perseguirá permanentemente o bem público.

É no Contrato Social que Rousseau estabelece os princípios de uma verdadeira comunidade política, negando a sociedade que ele chama como um pacto dos ricos, a sociedade que deu origem às desigualdades. Contrariamente a Locke, que a considera um direito natural, para Rousseau, a propriedade só surge com o estado Civil, pois é ele que a legitima, e que a diferencia da mera usurpação.

Para Rousseau, o homem primitivo, vivendo solitariamente a sua relação com a natureza, não tem um direito no sentido jurídico sobre as coisas de que se apossa premido pela necessidade da sobrevivência. Trata-se de um direito baseado na conservação. Será somente com a divisão das terras que se acrescenta o direito sobre as coisas com a respectiva exclusão de outros. Estando a lei da natureza baseada apenas no instinto de conservação, ela implica unicamente uma relação entre o homem e a natureza.

Num momento seguinte, com o início da construção das cabanas, o direito do primeiro ocupante se consolida como consequência de uma atividade pessoal que Rousseau ainda não chama de trabalho. Este direito é atribuído mais propriamente às construções que ergue do que sobre a terra. O direito sobre as habitações, no entanto, assume uma certa permanência anteriormente não observada. Contudo, ainda não é um direito exclusivo em relação a terceiros.

Somente com a divisão das terras é que emerge uma espécie diversa de direito diferente do direito natural fundado no instinto de conservação. Trata-se, no entanto, ainda, de uma lei sem sanção, por implicar um direito não reconhecido socialmente e, portanto, a única forma de garanti-lo é através de represálias contra aqueles que não o respeitam.

Nesta etapa o direito de propriedade é ainda insuficiente e, por uso, constantemente ameaçado. A posse contínua o fortalece, mas apenas o poder estatal, finalmente, é quem pode garanti-lo. Num segundo momento é que fica assegurada a posse como legítima. É o momento da convenção e que, na origem de nossa sociedade, representa o instante de transformação de usurpação em verdadeiro direito.

A propriedade baseia-se essencialmente sobre uma convenção, mas esta não é a sua fonte originária. Ela só se define completamente, enquanto direito, com a instituição do Estado que tem por objeto legislar sobre esse direito individual que é reivindicado no estado de natureza.

Contudo, ao contrário da tradição jusnaturalista, Rousseau se recusa a ver a propriedade como uma instituição benfeitora da humanidade, não pensa que o papel da convenção seja apenas constatar um direito natural como queria Locke. A propriedade é, ao contrário, colocada em questão como fonte de miséria e de horrores.

 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link do vídeo no Instagram :  https://www.instagram.com/p/CDsSbepDX2t/?hl=pt-br

MATILDE CAMPILHO ANTES DO BRASIL

“Matilde estudou Línguas e Literaturas Modernas, variante Estudos Portugueses e Ingleses”

Jóquei tem um ar sui generis, é um livro de poemas que não estava no radar da crítica literária, nem no mercado, mas que deu super certo, e foi um livro muito bem acolhido por crítica e público, Matilde Campilho se saiu bem e logo ganhou seu espaço, o meio literário português e brasileiro logo passou a entender os códigos desta poesia de Matilde.

Gustavo Rubim, crítico de poesia do Ípsilon, chamou-lhe “um acontecimento precioso em língua portuguesa” e disse que Matilde era uma voz poética como um “vento de pura selvajaria”. Dos diversos elogios à obra Jóquei está um leitmotiv deste híbrido ligando Portugal e Brasil, é o que eu chamei no texto anterior de clichê-Matilde.

A poesia de Matilde Campilho está livre do tom austero, grave, e também livre de toda a pomposidade, e tem no inglês uma bem-vinda influência de Eliot e Whitman. Citando de novo o texto de Rubim, há “verso curto, prosa longa, diálogo, narrativa, quase aforismo, espécie de carta, glosa”.

Em Jóquei os poemas dançam, podemos usar expressões mais sisudas como ética poética, por exemplo, uma vez que Jóquei, em parte, está mais ligado a um modo de falar, um linguajar, do que a uma relação de significados que as palavras de seus poemas comportam. No livro Jóquei temos múltiplas vozes, numa dicção que ganha pluralidade, ecoa muita coisa nestes poemas de Jóquei.

Antes do Brasil (uma vez que a história da poeta tem um antes e um depois do Brasil), Matilde estudou Línguas e Literaturas Modernas, variante Estudos Portugueses e Ingleses, sendo que, curiosamente, a sua “fase de não ler foi na universidade”. Depois tirou um minor em História da Arte, em Milão, mesmo que tenha ficado mais tempo em Florença, e viveu dois anos em Madrid, e no Brasil fez novamente o trabalho de editora de texto para um canal de televisão. E foi no Brasil que Matilde “soltou a língua” que, segundo a própria “estava travada”.

POEMAS :

GOLPE DE 7 GRAUS : O poema se abre em uma peculiar astrolírica, no que vem : “Depois de Manuel de Castro, que disse/Venho dum país de neve e floresta/Há aquele poema que fala de renas/e do filho gigantesco/que nos atravessa as cabeças geladas/Fala de uma astrolírica saudade/que levantava a nave até ao nome/Mas olha esse nome nem é meu/porque ao meu nome lhe falta uma letra/É um poema mais ou menos de exílio”. O poema que Matilde diz ser de exílio, também desfaz velhas noções sobre o amor, e segue : “O amor desenhado à luz das flores velhas/não me interessa mais”. Em sua casa, a poeta tenta ver algo, e lembra da cidade em que já morou, no que segue : “Uma porta entreaberta/não deixa ver o real/Esta manhã não sei se existiriam os melros/depenicando a relva do vizinho/Não sei se vieram as ruas/da cidade onde já morei”. O poema segue em sua visão : “Passeava na avenida onde uma vez/um colibri se embrenhou em minha testa/na época pensei que era o sinal do amor/Fui a ver e não era sinal de nada/era só a simpatia do passarinho”. Matilde descreve então a sua visão durante o sono, em que ela elenca toda uma teia de acontecimentos que viram aqui poesia, no que temos : “Hoje durante o sono/eu passeava na cidade/onde o filho até já pariu irmãos/onde Carlos me ofereceu três papéis de Zbigniew/onde o cachorro andava meio adoentado/e onde precisei fazer de spiderman/para fugir ao feitiço da umbanda”. Matilde segue : “eu me perdi nas sete estradas/ao volante de um opel vectra/Mas rapidamente me achei/porque casa da gente a gente acha/Depois acordei/para o poema”. Ela se encontra, e nesta aventura, acorda para o poema, no que segue : “Acordei para o som do rádio/que não tocava triste nem fútil/não falava da morte nem dos carretos/Que só acertava os pontos/com o planeta/repetindo aquela frase/que sempre vem exatamente antes/da frase que diz/It`s lonely out in space./Saudade, astrolírica saudade/Teu nome perdeu o agá.”. Sua coda retoma a astrolírica, e a palavra saudade ganha corpo aqui encerrando o poema, a última ideia que revela então esta coda já com mais uma prática do inglês pela poeta que gosta de brincar em seu linguajar esperto.

VENDAVAL : O poema descreve um menino prodígio português num tom de humor poético próprio de Matilde, enquanto ela descreve a si como personagem também deste seu poema, junto com um amor seu, e o bar do Doug, aonde se ambienta toda a descrição peculiar deste poema bem interessante, no que temos : “O rapaz prodígio venceu/o prêmio de ouro/É Portugal brilhando/na grama internacional” (...) “Veja bem não é por nada/Absolutamente nada contra/nosso menino dourado” (...) “Mas repare/Tomei umas quantas cervejas/no bar do hotel do Doug/faz uma semana agora/Era dia de reis/e troquei mirras & beijos/com meu velho costumeiro/amor de aço/Sabe aquele amor/que permanece nos dias/Se espalha nos areais/sem tempo nem nome” (...) “Aquele que sempre vai/e que sempre vem”. Matilde segue esta sua descrição riquíssima, o menino prodígio de Portugal, seu prêmio de menino de ouro, e a vida própria da poeta neste poema louco, no que segue : “Hércules visitou nossa costa/E ao invés de vestir o escafandro/meu velho amor e eu/escolhemos ver a revolução aquática/a partir da bancada do bar”. Ela segue, e se diz mais vivida que o tal prodígio, ela descreve a visita de Hércules, e diz que se abrem fendas na cidade, no que segue : “Foi tudo muito maravilhoso/visto da bancada/Sempre é/desde 1982” (...) “aquele velho amor e eu/Temos uns quantos anos mais/do que o rapaz prodígio/Não saímos nunca no noticiário” (...) “Hércules ainda vem para nos visitar/a cada quatro ou cinco tempos/E sim ainda/se abrem fendas na cidade”. O poema segue, e Matilde descreve esta sua visão da proa que também enxerga um destino, no que temos : “Meu amor e eu/nós fazemos história/no mapa do casco de Noé” (...) “Sim amor os dias se fazem/por placas de resignação/Dois meninos acenando/para o fiel capitão/que chora na proa/do cargueiro da vida/e do destino”. O menino de ouro vence o prêmio de ouro, no que segue : “deu nas notícias/o rapaz de ouro venceu/o prêmio de ouro”. Vemos aqui a última estrofe, o poema diz sobre Portugal, o tal menino de ouro, e a explosão de amor, uma coda brilha no olho da poeta, todo preto e verde, no que temos : “Portugal meu querido/país dos descobridores/aposentados/Tenha orgulho de seu menino/Mas saiba igualmente que você/também foi/para sempre será/o berço e o caixão/para o mais sério caso/de explosão de amor/que o mundo já viu./E é por causa disso/o brilho de meu olho/todo preto e verde.”.

BRIGA ENTRE UM TERRENO SAGRADO E OUTRO : O poema segue com um interlocutor, um método bem usado por Matilde, e muito presente nos poemas do seu livro Jóquei, e aqui temos mais um poema que tem este modo de se colocar, a dicção de Matilde, que volta e meia convoca um interlocutor, seja este amoroso ou outra coisa, no que temos : “Perdi muito tempo pensando/sobre se você iria para o céu/ou para o inferno/Achava que com tanta gente/ferida por seu punhal/havia uma possibilidade/Sim uma possibilidade/de que você fosse parar/no inferno”. Matilde então descreve esta sua figura neste seu poema curioso, no que segue : “Tinha a forma como você/conversava com estranhos/na rua à hora dos lobos” (...) “Aquela sua atrapalhação/quando você se atrasava/Você sempre se atrasava/e chegava correndo/se justificando/olhando o relógio/que você nem tinha/Você toda afogueada/subindo no banco de trás/de minha bicicleta/enquanto eu continuava/lendo o jornal internacional”. Novamente, Matilde evoca o destino metafísico deste seu interlocutor, e temos : “Havia a possibilidade/e havia uma forte possibilidade/de que você terminasse no céu/ou no paraíso/O tempo que você levava/para se despertar/nas manhãs de dezembro/A atenção que você dedicava/a todas as partes de seu corpo/e de meu corpo”. O poema de Matilde e esta influência do interlocutor, que flerta aqui com o inferno e o crime, no que temos : “Passei muito tempo pensando/sobre se tua inclinação/te levaria até o inferno/pouco depois de tua morte/E mais do que isso/eu também pensava/se você morrer eu morro/se você escolher o gole do diabo/eu bebo do mesmo cantil/Foi assim que me tornei ladrão”. E Matilde segue : “Foi assim que esbofeteei o policial/e pior que isso foi assim que esmurrei/meu colega samurai”. E a coda inteligente, com a relação desta morte do interlocutor, que faz Matilde dar de caras com a vida, eis a coda em uma luz bem intensa de final inteligente de poema, com um estro que responde com este humor de Matilde toda a sua maneira de fazer um poema, no que temos : “Para onde você vai eu não sei/Na verdade não me importa mais/Porque no caminho do post-mortem/Aconteceu que dei de caras com a vida.”.

POEMAS :

GOLPE DE 7 GRAUS

 

Depois de Manuel de Castro, que disse

Venho dum país de neve e floresta

 

Há aquele poema que fala de renas

e do filho gigantesco

que nos atravessa as cabeças geladas

Fala de uma astrolírica saudade

que levantava a nave até ao nome

Mas olha esse nome nem é meu

porque ao meu nome lhe falta uma letra

É um poema mais ou menos de exílio

mais ou menos não

Não sei se fala do amor por alguém

e isso não me importa nem um pouco

O amor desenhado à luz das flores velhas

não me interessa mais

Não agora, não depois disto

Esta manhã a persiana do meu quarto

partiu ao meio

não deu para ver o mar da varanda

Uma porta entreaberta

não deixa ver o real

Esta manhã não sei se existiriam os melros

depenicando a relva do vizinho

Não sei se vieram as ruas

da cidade onde já morei

Sim as ruas estiveram neste quarto

isso é mais que certo

Mas eu não sei se vieram antes

ou depois do princípio da manhã

Hoje durante o sono

eu passeava na cidade sem renas

Passeava na avenida onde uma vez

um colibri se embrenhou em minha testa

na época pensei que era o sinal do amor

Fui a ver e não era sinal de nada

era só a simpatia do passarinho

e isso foi mais que suficiente

Hoje durante o sono

eu passeava na cidade

onde o filho até já pariu irmãos

onde Carlos me ofereceu três papéis de Zbigniew

onde o cachorro andava meio adoentado

e onde precisei fazer de spiderman

para fugir ao feitiço da umbanda

Hoje durante o sono

eu me perdi nas sete estradas

ao volante de um opel vectra

Mas rapidamente me achei

porque casa da gente a gente acha

Depois acordei

para o poema

Para o urro doloroso

da palavra Fidelidade

Para o contorno trêmulo

da letra que me falta

Para o país do azevinho

e da excitação coletiva

costurada a verde e a vermelho

Para o tom neutro do cansaço

que acontece principalmente aos domingos

quando a rena ainda não se transformou em cervo

Quando o bicho ainda não veio

comer das folhas de minhas mãos

Nem soprar seu bafo quente

para formar as folhas

que devem crescer-me nos pulmões

Acordei para o som do rádio

que não tocava triste nem fútil

não falava da morte nem dos carretos

Que só acertava os pontos

com o planeta

repetindo aquela frase

que sempre vem exatamente antes

da frase que diz

It`s lonely out in space.

Saudade, astrolírica saudade

Teu nome perdeu o agá.

 

VENDAVAL

O rapaz prodígio venceu

o prêmio de ouro

É Portugal brilhando

na grama internacional

e brilhando tão pouco

em meu olho preto

Veja bem não é por nada

Absolutamente nada contra

nosso menino dourado

Ele que já era de ouro

mesmo antes da loucura

do Zé Bexiga

Mas repare

Tomei umas quantas cervejas

no bar do hotel do Doug

faz uma semana agora

Era dia de reis

e troquei mirras & beijos

com meu velho costumeiro

amor de aço

Sabe aquele amor

que permanece nos dias

Se espalha nos areais

sem tempo nem nome

Se enterra vezinquando

nas barbas de um estrangeiro

e depois volta

no cangote de um peixe prata

Aquele que sempre vai

e que sempre vem

feito o trem de Minas

Quase ninguém viu Maria

Fumaça

mas todo mundo sabe que existe

Li um poema que falava de

“my little space cadet”

É mais ou menos isso

My little space cadet

veio comigo ao bar do Doug

e juntos enfrentamos

as ondas de 22 metros

Sim foi na noite da tempestade

Faça suas contas

está fazendo uma semana agora

Hércules visitou nossa costa

E ao invés de vestir o escafandro

meu velho amor e eu

escolhemos ver a revolução aquática

a partir da bancada do bar

Nos estamos quedando mayores

mi viejito amor y yo

já não temos estofo

pra ver as ondas do pontão

Vai que entra uma pedra

de sal no olho

Vai que surge a verdade

de Netuno

na cara dos vagalhões

e na cara de nosso friso

Foi tudo muito maravilhoso

visto da bancada

Sempre é

desde 1982

Somos bastante da mesma idade

e do mesmo time

aquele velho amor e eu

Temos uns quantos anos mais

do que o rapaz prodígio

Não saímos nunca no noticiário

O país não vestiu de todo

nossa camisa vermelha e verde

Quase ninguém brindou a nossa vitória

Mas nós sim

O Doug sim

O Doug ainda nos trata

por menino e menina

apesar de nossos 30 e tal anos

Hércules ainda vem para nos visitar

a cada quatro ou cinco tempos

E sim ainda

se abrem fendas na cidade

por cada vez que escolhemos

embater nossas testas

nossos corações

nossos cílios

nossa tenebrosa loucura

Meu amor e eu

nós fazemos história

no mapa do casco de Noé

“All men are Noah’s sons”

a gente sempre confirma isso

Faz uma semana agora

e dessa vez não foi diferente

Para variar a dialética é bom

falar que dessa vez não foi diferente

e assumir nosso velho trem

Dois meninos no bar

Dois meninos medindo

a distância daqui para Sírius

Dois meninos aceitando

a benção horária

que constrói os dias

Sim amor os dias se fazem

por placas de resignação

Dois meninos acenando

para o fiel capitão

que chora na proa

do cargueiro da vida

e do destino

É pois é

deu nas notícias

o rapaz de ouro venceu

o prêmio de ouro

Oito dias depois da morte

do outro futebolista português

Portugal entrou em pausa

para se orgulhar de seus heróis

E nós dois paramos

junto ao balcão do bar de Doug

para aplaudir o amor eterno

numa resignação tão pacífica

mas tão pacífica

que só pode encher o país

de brilho e de sossego.

 

Portugal meu querido

país dos descobridores

aposentados

Tenha orgulho de seu menino

Mas saiba igualmente que você

também foi

para sempre será

o berço e o caixão

para o mais sério caso

de explosão de amor

que o mundo já viu.

 

E é por causa disso

o brilho de meu olho

todo preto e verde.

 

BRIGA ENTRE UM TERRENO SAGRADO E OUTRO

Perdi muito tempo pensando

sobre se você iria para o céu

ou para o inferno

Achava que com tanta gente

ferida por seu punhal

havia uma possibilidade

Sim uma possibilidade

de que você fosse parar

no inferno

Mas depois também tinha

aquela coisa de você nadando

na Praia da Amoreira

ou de você desenhando

com uma pedrinha branca

na pele do rochedo irregular

ou até de você aparecendo

sorrindo na minha frente

Tinha a forma como você

conversava com estranhos

na rua à hora dos lobos

Seu jeito de segurar a raquete

quando jogava badminton

Aquela sua atrapalhação

quando você se atrasava

Você sempre se atrasava

e chegava correndo

se justificando

olhando o relógio

que você nem tinha

Você toda afogueada

subindo no banco de trás

de minha bicicleta

enquanto eu continuava

lendo o jornal internacional

calmamente

sempre calmamente

te esperando

Você dizia des-des-desculpa

eu lia a última parte da notícia

que falava de um barco

encalhado na Mesoamérica

e depois te dizia vamos?

Havia a possibilidade

é havia uma forte possibilidade

de que você terminasse no céu

ou no paraíso

O tempo que você levava

para se despertar

nas manhãs de dezembro

A atenção que você dedicava

a todas as partes de seu corpo

e de meu corpo

e do corpo do raminho

de peônias

que adormeciam

e acordavam conosco

no hotel mais sujo da cidade

em dezembro e fevereiro

Isso dizia muito sobre

sua vocação para a meditação

e também para o desespero

Passei muito tempo pensando

sobre se tua inclinação

te levaria até o inferno

pouco depois de tua morte

E mais do que isso

eu também pensava

se você morrer eu morro

se você escolher o gole do diabo

eu bebo do mesmo cantil

Foi assim que me tornei ladrão

Assim que apontei o canivete

na têmpora de Xavier Tementree

Assim que assaltei a horta biológica

para levar todos os pés da salsa dourada

Foi assim que esbofeteei o policial

e pior que isso foi assim que esmurrei

meu colega samurai

quando eu sabia que ele fazia aquilo

só por diversão ou por imitação

Passei muito tempo pensando

num lado e no outro

E portanto nos intervalos do terror

para cobrir minha retaguarda

Eu dançava na quermesse

Alimentava os castores

Contava as línguas das tribos

Fazia vênias aos astrofísicos

Beijava todas as cabeças

dos pássaros e dos lampiões

Não fosse deus tecer a manta

e fazer-te escolher a água benta.

 

Para onde você vai eu não sei

Na verdade não me importa mais

Porque no caminho do post-mortem

Aconteceu que dei de caras com a vida.

 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  https://www.seculodiario.com.br/cultura/matilde-campilho-antes-do-brasil        

                          

Nagasaki

 O fim do império de Hiroito,

a rendição enfim trágica

sobre mais um genocídio,

Fat Man sobre a cidade

de Nagasaki,


caiu o último deus fictício

e o fim deste eixo

que desmorona sobre

a pele queimada

do plutônio.


09/08/2020 Gustavo Bastos 

Hiroshima

 A tragédia que ruiu

o império, uma marca

da História que a bomba

delineou em seu desenho

de genocídio,


a bomba, despejada do

Enola Gay, que dizimou

e produziu o câncer,

a bomba Little Boy

sobre o sol nascente

que virou noite e cinzas.


09/08/2020 Gustavo Bastos