“Matilde estudou Línguas e Literaturas Modernas, variante
Estudos Portugueses e Ingleses”
Jóquei tem um ar sui generis, é um livro de poemas que não
estava no radar da crítica literária, nem no mercado, mas que deu super certo,
e foi um livro muito bem acolhido por crítica e público, Matilde Campilho se
saiu bem e logo ganhou seu espaço, o meio literário português e brasileiro logo
passou a entender os códigos desta poesia de Matilde.
Gustavo Rubim, crítico de poesia do Ípsilon, chamou-lhe “um
acontecimento precioso em língua portuguesa” e disse que Matilde era uma voz
poética como um “vento de pura selvajaria”. Dos diversos elogios à obra Jóquei
está um leitmotiv deste híbrido ligando Portugal e Brasil, é o que eu chamei no
texto anterior de clichê-Matilde.
A poesia de Matilde Campilho está livre do tom austero,
grave, e também livre de toda a pomposidade, e tem no inglês uma bem-vinda
influência de Eliot e Whitman. Citando de novo o texto de Rubim, há “verso
curto, prosa longa, diálogo, narrativa, quase aforismo, espécie de carta,
glosa”.
Em Jóquei os poemas dançam, podemos usar expressões mais
sisudas como ética poética, por exemplo, uma vez que Jóquei, em parte, está
mais ligado a um modo de falar, um linguajar, do que a uma relação de
significados que as palavras de seus poemas comportam. No livro Jóquei temos
múltiplas vozes, numa dicção que ganha pluralidade, ecoa muita coisa nestes
poemas de Jóquei.
Antes do Brasil (uma vez que a história da poeta tem um antes
e um depois do Brasil), Matilde estudou Línguas e Literaturas Modernas,
variante Estudos Portugueses e Ingleses, sendo que, curiosamente, a sua “fase
de não ler foi na universidade”. Depois tirou um minor em História da Arte, em
Milão, mesmo que tenha ficado mais tempo em Florença, e viveu dois anos em
Madrid, e no Brasil fez novamente o trabalho de editora de texto para um canal
de televisão. E foi no Brasil que Matilde “soltou a língua” que, segundo a
própria “estava travada”.
POEMAS :
GOLPE DE 7 GRAUS : O poema se abre em uma peculiar
astrolírica, no que vem : “Depois de Manuel de Castro, que disse/Venho dum país
de neve e floresta/Há aquele poema que fala de renas/e do filho gigantesco/que
nos atravessa as cabeças geladas/Fala de uma astrolírica saudade/que levantava
a nave até ao nome/Mas olha esse nome nem é meu/porque ao meu nome lhe falta
uma letra/É um poema mais ou menos de exílio”. O poema que Matilde diz ser de
exílio, também desfaz velhas noções sobre o amor, e segue : “O amor desenhado à
luz das flores velhas/não me interessa mais”. Em sua casa, a poeta tenta ver
algo, e lembra da cidade em que já morou, no que segue : “Uma porta entreaberta/não
deixa ver o real/Esta manhã não sei se existiriam os melros/depenicando a relva
do vizinho/Não sei se vieram as ruas/da cidade onde já morei”. O poema segue em
sua visão : “Passeava na avenida onde uma vez/um colibri se embrenhou em minha
testa/na época pensei que era o sinal do amor/Fui a ver e não era sinal de nada/era
só a simpatia do passarinho”. Matilde descreve então a sua visão durante o
sono, em que ela elenca toda uma teia de acontecimentos que viram aqui poesia,
no que temos : “Hoje durante o sono/eu passeava na cidade/onde o filho até já
pariu irmãos/onde Carlos me ofereceu três papéis de Zbigniew/onde o cachorro
andava meio adoentado/e onde precisei fazer de spiderman/para fugir ao feitiço
da umbanda”. Matilde segue : “eu me perdi nas sete estradas/ao volante de um
opel vectra/Mas rapidamente me achei/porque casa da gente a gente acha/Depois acordei/para
o poema”. Ela se encontra, e nesta aventura, acorda para o poema, no que segue
: “Acordei para o som do rádio/que não tocava triste nem fútil/não falava da
morte nem dos carretos/Que só acertava os pontos/com o planeta/repetindo aquela
frase/que sempre vem exatamente antes/da frase que diz/It`s lonely out in
space./Saudade, astrolírica saudade/Teu nome perdeu o agá.”. Sua coda retoma a
astrolírica, e a palavra saudade ganha corpo aqui encerrando o poema, a última
ideia que revela então esta coda já com mais uma prática do inglês pela poeta
que gosta de brincar em seu linguajar esperto.
VENDAVAL : O poema descreve um menino prodígio
português num tom de humor poético próprio de Matilde, enquanto ela descreve a
si como personagem também deste seu poema, junto com um amor seu, e o bar do
Doug, aonde se ambienta toda a descrição peculiar deste poema bem interessante,
no que temos : “O rapaz prodígio venceu/o prêmio de ouro/É Portugal brilhando/na
grama internacional” (...) “Veja bem não é por nada/Absolutamente nada contra/nosso
menino dourado” (...) “Mas repare/Tomei umas quantas cervejas/no bar do hotel
do Doug/faz uma semana agora/Era dia de reis/e troquei mirras & beijos/com
meu velho costumeiro/amor de aço/Sabe aquele amor/que permanece nos dias/Se
espalha nos areais/sem tempo nem nome” (...) “Aquele que sempre vai/e que
sempre vem”. Matilde segue esta sua descrição riquíssima, o menino prodígio de
Portugal, seu prêmio de menino de ouro, e a vida própria da poeta neste poema
louco, no que segue : “Hércules visitou nossa costa/E ao invés de vestir o
escafandro/meu velho amor e eu/escolhemos ver a revolução aquática/a partir da
bancada do bar”. Ela segue, e se diz mais vivida que o tal prodígio, ela
descreve a visita de Hércules, e diz que se abrem fendas na cidade, no que
segue : “Foi tudo muito maravilhoso/visto da bancada/Sempre é/desde 1982” (...)
“aquele velho amor e eu/Temos uns quantos anos mais/do que o rapaz prodígio/Não
saímos nunca no noticiário” (...) “Hércules ainda vem para nos visitar/a cada
quatro ou cinco tempos/E sim ainda/se abrem fendas na cidade”. O poema segue, e
Matilde descreve esta sua visão da proa que também enxerga um destino, no que
temos : “Meu amor e eu/nós fazemos história/no mapa do casco de Noé” (...) “Sim
amor os dias se fazem/por placas de resignação/Dois meninos acenando/para o
fiel capitão/que chora na proa/do cargueiro da vida/e do destino”. O menino de
ouro vence o prêmio de ouro, no que segue : “deu nas notícias/o rapaz de ouro
venceu/o prêmio de ouro”. Vemos aqui a última estrofe, o poema diz sobre
Portugal, o tal menino de ouro, e a explosão de amor, uma coda brilha no olho
da poeta, todo preto e verde, no que temos : “Portugal meu querido/país dos
descobridores/aposentados/Tenha orgulho de seu menino/Mas saiba igualmente que
você/também foi/para sempre será/o berço e o caixão/para o mais sério caso/de
explosão de amor/que o mundo já viu./E é por causa disso/o brilho de meu olho/todo
preto e verde.”.
BRIGA ENTRE UM TERRENO
SAGRADO E OUTRO : O
poema segue com um interlocutor, um método bem usado por Matilde, e muito
presente nos poemas do seu livro Jóquei, e aqui temos mais um poema que tem
este modo de se colocar, a dicção de Matilde, que volta e meia convoca um
interlocutor, seja este amoroso ou outra coisa, no que temos : “Perdi muito
tempo pensando/sobre se você iria para o céu/ou para o inferno/Achava que com
tanta gente/ferida por seu punhal/havia uma possibilidade/Sim uma possibilidade/de
que você fosse parar/no inferno”. Matilde então descreve esta sua figura neste
seu poema curioso, no que segue : “Tinha a forma como você/conversava com
estranhos/na rua à hora dos lobos” (...) “Aquela sua atrapalhação/quando você
se atrasava/Você sempre se atrasava/e chegava correndo/se justificando/olhando
o relógio/que você nem tinha/Você toda afogueada/subindo no banco de trás/de
minha bicicleta/enquanto eu continuava/lendo o jornal internacional”.
Novamente, Matilde evoca o destino metafísico deste seu interlocutor, e temos :
“Havia a possibilidade/e havia uma forte possibilidade/de que você terminasse
no céu/ou no paraíso/O tempo que você levava/para se despertar/nas manhãs de
dezembro/A atenção que você dedicava/a todas as partes de seu corpo/e de meu
corpo”. O poema de Matilde e esta influência do interlocutor, que flerta aqui
com o inferno e o crime, no que temos : “Passei muito tempo pensando/sobre se
tua inclinação/te levaria até o inferno/pouco depois de tua morte/E mais do que
isso/eu também pensava/se você morrer eu morro/se você escolher o gole do diabo/eu
bebo do mesmo cantil/Foi assim que me tornei ladrão”. E Matilde segue : “Foi
assim que esbofeteei o policial/e pior que isso foi assim que esmurrei/meu
colega samurai”. E a coda inteligente, com a relação desta morte do
interlocutor, que faz Matilde dar de caras com a vida, eis a coda em uma luz
bem intensa de final inteligente de poema, com um estro que responde com este
humor de Matilde toda a sua maneira de fazer um poema, no que temos : “Para
onde você vai eu não sei/Na verdade não me importa mais/Porque no caminho do
post-mortem/Aconteceu que dei de caras com a vida.”.
POEMAS :
GOLPE DE 7 GRAUS
Depois de Manuel de Castro, que disse
Venho dum país de neve
e floresta
Há aquele poema que fala de renas
e do filho gigantesco
que nos atravessa as cabeças geladas
Fala de uma astrolírica saudade
que levantava a nave até ao nome
Mas olha esse nome nem é meu
porque ao meu nome lhe falta uma letra
É um poema mais ou menos de exílio
mais ou menos não
Não sei se fala do amor por alguém
e isso não me importa nem um pouco
O amor desenhado à luz das flores velhas
não me interessa mais
Não agora, não depois disto
Esta manhã a persiana do meu quarto
partiu ao meio
não deu para ver o mar da varanda
Uma porta entreaberta
não deixa ver o real
Esta manhã não sei se existiriam os melros
depenicando a relva do vizinho
Não sei se vieram as ruas
da cidade onde já morei
Sim as ruas estiveram neste quarto
isso é mais que certo
Mas eu não sei se vieram antes
ou depois do princípio da manhã
Hoje durante o sono
eu passeava na cidade sem renas
Passeava na avenida onde uma vez
um colibri se embrenhou em minha testa
na época pensei que era o sinal do amor
Fui a ver e não era sinal de nada
era só a simpatia do passarinho
e isso foi mais que suficiente
Hoje durante o sono
eu passeava na cidade
onde o filho até já pariu irmãos
onde Carlos me ofereceu três papéis de Zbigniew
onde o cachorro andava meio adoentado
e onde precisei fazer de spiderman
para fugir ao feitiço da umbanda
Hoje durante o sono
eu me perdi nas sete estradas
ao volante de um opel vectra
Mas rapidamente me achei
porque casa da gente a gente acha
Depois acordei
para o poema
Para o urro doloroso
da palavra Fidelidade
Para o contorno trêmulo
da letra que me falta
Para o país do azevinho
e da excitação coletiva
costurada a verde e a vermelho
Para o tom neutro do cansaço
que acontece principalmente aos domingos
quando a rena ainda não se transformou em cervo
Quando o bicho ainda não veio
comer das folhas de minhas mãos
Nem soprar seu bafo quente
para formar as folhas
que devem crescer-me nos pulmões
Acordei para o som do rádio
que não tocava triste nem fútil
não falava da morte nem dos carretos
Que só acertava os pontos
com o planeta
repetindo aquela frase
que sempre vem exatamente antes
da frase que diz
It`s lonely out in space.
Saudade, astrolírica saudade
Teu nome perdeu o agá.
VENDAVAL
O rapaz prodígio venceu
o prêmio de ouro
É Portugal brilhando
na grama internacional
e brilhando tão pouco
em meu olho preto
Veja bem não é por nada
Absolutamente nada contra
nosso menino dourado
Ele que já era de ouro
mesmo antes da loucura
do Zé Bexiga
Mas repare
Tomei umas quantas cervejas
no bar do hotel do Doug
faz uma semana agora
Era dia de reis
e troquei mirras & beijos
com meu velho costumeiro
amor de aço
Sabe aquele amor
que permanece nos dias
Se espalha nos areais
sem tempo nem nome
Se enterra vezinquando
nas barbas de um estrangeiro
e depois volta
no cangote de um peixe prata
Aquele que sempre vai
e que sempre vem
feito o trem de Minas
Quase ninguém viu Maria
Fumaça
mas todo mundo sabe que existe
Li um poema que falava de
“my little space cadet”
É mais ou menos isso
My little space cadet
veio comigo ao bar do Doug
e juntos enfrentamos
as ondas de 22 metros
Sim foi na noite da tempestade
Faça suas contas
está fazendo uma semana agora
Hércules visitou nossa costa
E ao invés de vestir o escafandro
meu velho amor e eu
escolhemos ver a revolução aquática
a partir da bancada do bar
Nos estamos quedando mayores
mi viejito amor y yo
já não temos estofo
pra ver as ondas do pontão
Vai que entra uma pedra
de sal no olho
Vai que surge a verdade
de Netuno
na cara dos vagalhões
e na cara de nosso friso
Foi tudo muito maravilhoso
visto da bancada
Sempre é
desde 1982
Somos bastante da mesma idade
e do mesmo time
aquele velho amor e eu
Temos uns quantos anos mais
do que o rapaz prodígio
Não saímos nunca no noticiário
O país não vestiu de todo
nossa camisa vermelha e verde
Quase ninguém brindou a nossa vitória
Mas nós sim
O Doug sim
O Doug ainda nos trata
por menino e menina
apesar de nossos 30 e tal anos
Hércules ainda vem para nos visitar
a cada quatro ou cinco tempos
E sim ainda
se abrem fendas na cidade
por cada vez que escolhemos
embater nossas testas
nossos corações
nossos cílios
nossa tenebrosa loucura
Meu amor e eu
nós fazemos história
no mapa do casco de Noé
“All men are Noah’s sons”
a gente sempre confirma isso
Faz uma semana agora
e dessa vez não foi diferente
Para variar a dialética é bom
falar que dessa vez não
foi diferente
e assumir nosso velho trem
Dois meninos no bar
Dois meninos medindo
a distância daqui para Sírius
Dois meninos aceitando
a benção horária
que constrói os dias
Sim amor os dias se fazem
por placas de resignação
Dois meninos acenando
para o fiel capitão
que chora na proa
do cargueiro da vida
e do destino
É pois é
deu nas notícias
o rapaz de ouro venceu
o prêmio de ouro
Oito dias depois da morte
do outro futebolista português
Portugal entrou em pausa
para se orgulhar de seus heróis
E nós dois paramos
junto ao balcão do bar de Doug
para aplaudir o amor eterno
numa resignação tão pacífica
mas tão pacífica
que só pode encher o país
de brilho e de sossego.
Portugal meu querido
país dos descobridores
aposentados
Tenha orgulho de seu menino
Mas saiba igualmente que você
também foi
para sempre será
o berço e o caixão
para o mais sério caso
de explosão de amor
que o mundo já viu.
E é por causa disso
o brilho de meu olho
todo preto e verde.
BRIGA ENTRE UM TERRENO
SAGRADO E OUTRO
Perdi muito tempo pensando
sobre se você iria para o céu
ou para o inferno
Achava que com tanta gente
ferida por seu punhal
havia uma possibilidade
Sim uma possibilidade
de que você fosse parar
no inferno
Mas depois também tinha
aquela coisa de você nadando
na Praia da Amoreira
ou de você desenhando
com uma pedrinha branca
na pele do rochedo irregular
ou até de você aparecendo
sorrindo na minha frente
Tinha a forma como você
conversava com estranhos
na rua à hora dos lobos
Seu jeito de segurar a raquete
quando jogava badminton
Aquela sua atrapalhação
quando você se atrasava
Você sempre se atrasava
e chegava correndo
se justificando
olhando o relógio
que você nem tinha
Você toda afogueada
subindo no banco de trás
de minha bicicleta
enquanto eu continuava
lendo o jornal internacional
calmamente
sempre calmamente
te esperando
Você dizia des-des-desculpa
eu lia a última parte da notícia
que falava de um barco
encalhado na Mesoamérica
e depois te dizia vamos?
Havia a possibilidade
é havia uma forte possibilidade
de que você terminasse no céu
ou no paraíso
O tempo que você levava
para se despertar
nas manhãs de dezembro
A atenção que você dedicava
a todas as partes de seu corpo
e de meu corpo
e do corpo do raminho
de peônias
que adormeciam
e acordavam conosco
no hotel mais sujo da cidade
em dezembro e fevereiro
Isso dizia muito sobre
sua vocação para a meditação
e também para o desespero
Passei muito tempo pensando
sobre se tua inclinação
te levaria até o inferno
pouco depois de tua morte
E mais do que isso
eu também pensava
se você morrer eu morro
se você escolher o gole do diabo
eu bebo do mesmo cantil
Foi assim que me tornei ladrão
Assim que apontei o canivete
na têmpora de Xavier Tementree
Assim que assaltei a horta biológica
para levar todos os pés da salsa dourada
Foi assim que esbofeteei o policial
e pior que isso foi assim que esmurrei
meu colega samurai
quando eu sabia que ele fazia aquilo
só por diversão ou por imitação
Passei muito tempo pensando
num lado e no outro
E portanto nos intervalos do terror
para cobrir minha retaguarda
Eu dançava na quermesse
Alimentava os castores
Contava as línguas das tribos
Fazia vênias aos astrofísicos
Beijava todas as cabeças
dos pássaros e dos lampiões
Não fosse deus tecer a manta
e fazer-te escolher a água benta.
Para onde você vai eu não sei
Na verdade não me importa mais
Porque no caminho do post-mortem
Aconteceu que dei de caras com a vida.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/matilde-campilho-antes-do-brasil