O debate em torno do marco temporal no Brasil foi e ainda é objeto de disputa política e de interesses econômicos, além da defesa do meio ambiente que acaba por se confrontar com estes interesses mais pragmáticos e que, em alguns casos, servem também para favorecer crimes ambientais.
O marco temporal é uma tese jurídica que estabelece que os indígenas têm direito sobre terras que já ocupavam ou disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Esta tese se opõe à teoria do indigenato, esta que estabelece o direito originário, ancestral, sobre as terras por parte dos indígenas. Tal direito é feito pela tradição, anterior à criação do Estado brasileiro. Esta tese de direito originário é definida pela Constituição Federal de 1988, o que coloca a tese jurídica do Marco Temporal como inconstitucional.
O Marco Temporal também vai de encontro a normativas e convenções internacionais ratificadas pelo governo brasileiro. A posse e o usufruto das terras pelos indígenas pela Constituição Federal são dados pela tradição, e isto atua como elemento cultural e não temporal.
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou, agora em setembro de 2023, por 9 votos a 2, a tese do Marco Temporal para as demarcações de Terras Indígenas. A decisão constitui uma jurisprudência, isto é, tem caráter de repercussão geral, solucionando disputas jurídicas em todas as instâncias judiciais do Brasil.
Contudo, no Senado tivemos a reação ruralista que, no mesmo dia de conclusão do julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal), aprovou o Projeto de Lei (PL) 2.903, que institui o Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas. Este PL também visa inviabilizar novas demarcações, barrar processos demarcatórios em curso e liberar as terras já demarcadas para a exploração econômica e para a instalação de empreendimentos predatórios.
Além disso, a proposta serve para desconstituir reservas indígenas e abre o precedente de contatos forçados com indígenas isolados, além de favorecer a grilagem, reconhecendo títulos de propriedade em áreas tradicionalmente ocupadas por indígenas.
Contudo, o presidente Lula sancionou com 34 vetos a Lei 14.701, que trata do Marco Temporal, o que inclui atividades econômicas predatórias sobre as terras demarcadas, impedindo a revogação de terras já demarcadas fora do crivo do Marco Temporal e anulando o precedente de forçar contato com indígenas isolados.
A tese jurídica teve origem no Projeto de Lei (PL) 2.903 do ex-deputado Homero Pereira (MT) e aprovado pelo Senado em setembro, tendo o senador Marcos Rogério como relator. Do PL 2.903 restaram intactos do veto o Artigo 26, que trata da cooperação entre indígenas e não indígenas para a exploração das terras demarcadas, e o Artigo 20, que define o interesse de defesa nacional acima do usufruto dos indígenas, abrindo precedente para intervenções militares nestas áreas.
Ao menos desde 2010 as tentativas de avanço sobre as terras públicas do Brasil se intensificaram, muito devido ao que veio a ficar conhecido dentro do Congresso Nacional como a bancada ruralista. Tais investidas se dão, portanto, sobre as terras indígenas e nos recursos naturais, como forma de avanço predatório da fronteira econômica.
A bancada ruralista, por sua vez, também já apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para alterar o Artigo 231 da Constituição Federal e estabelecer dentro dela o Marco Temporal. Por sua vez, se aprovado o Marco Temporal sob a forma de PEC (Proposta de Emenda Constitucional), a jurisprudência criada com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de barrar o Marco Temporal poderá ser derrubada, ao contrário do que ocorre com um projeto de lei (PL).
Os vetos parciais ao PL serão analisados em sessão conjunta entre deputados e senadores no Congresso. Se os vetos forem derrubados, por sua vez, o texto promulgado do Marco Temporal passa a valer como lei, podendo ainda ser questionado pelo Supremo em seguida. Se a decisão colegiada do Supremo obtiver maioria absoluta pela inconstitucionalidade do Marco Temporal, a lei será anulada.
É bom lembrar que a polêmica começou com a votação feita na Câmara dos Deputados no dia 30/05/2023, em que se aprovou o projeto de lei sobre o marco temporal da ocupação de terras por povos indígenas (PL 490/07). Por sua vez, o governo Lula tem interesse na derrubada do Marco Temporal, pois a pauta ambiental teve importância ressaltada no início do governo com a criação do Ministério dos Povos Originários, e que foi a primeira pasta com dedicação exclusiva ao tema dos povos nativos brasileiros.
A tese do Marco Temporal tenta se fundamentar na data da promulgação da Constituição, o que foi aplicado quando da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O relator do PL 490/07, deputado Arthur Oliveira Maia, explicou que o projeto se apoiou na decisão do próprio Supremo e disse esperar que o STF paralise o julgamento sobre o tema.
O argumento de defesa do Marco Temporal, por sua vez, levanta a tese de que a lei garante a segurança jurídica para os proprietários rurais. E os que são contra dizem que a lei ameaça os direitos dos povos indígenas e traz prejuízos ao meio ambiente, na contramão do que é discutido internacionalmente em termos de preservação ambiental e defesa dos povos originários.
Como a ocupação das terras indígenas se dá pela tradição e não temporalmente, de acordo com a Constituição Federal, isso implica em dizer que a posse territorial indígena é diferente da posse civil, ou seja, é objeto de uma ocupação ancestral, e a aprovação do Marco Temporal aprofundará o genocídio vivido pelos povos originários.
(continua)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário :
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