PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 3 de junho de 2021

SHOW PUNK (MINICONTO)

“o grupo de punks que estava na roda de pogo parte para cima dos carecas”

Chega a noite em São Paulo, no inferninho Madame Satã, o ano era 1986, a banda punk “Inimigos do Poder” tocaria naquela noite fatídica. A banda era um power trio com o vocalista e baixista Paulão, o guitarrista Carlos Soares e o baterista Biriba. O local começou a apinhar de gente já na banda de abertura, a banda “Porcos na Lama” e tudo foi muito divertido, a banda tinha um toque humorístico em suas letras que cativou o público.

O público agora tinha uma tribo de punks bem da suja e agressiva, só não contavam com uma malta de carecas que estava do lado de fora, aquela malta mal encarada do ABC paulista que vivia farejando confusão. Biriba, o baterista, que antes do show estava bebendo cerveja com uns conhecidos e fãs, percebeu a movimentação e informou tudo para a organização do show, um policial entrou para um canto do inferninho para ficar observando tudo.

No intervalo entre a apresentação dos “Porcos na Lama” e o começo de “Inimigos do Poder”, o vocalista e baixista Paulão já tava sabendo de tudo, e sabia do nome de uns carecas que tavam em volta do Madame Satã, eram uns tipos skinhead neonazi que tinham sangue negro, mas eram racistas e antissemitas em pleno país tropical. Paulão tinha um espírito de porco e tava maquinando armar algo durante a apresentação de sua banda, que não levava desaforo para casa.

Paulão já começa a sua provocação antes mesmo de sua banda entrar no palco, pois no camarim tinha uma bandeira da URSS, ele pega a tal bandeira e pendura perto da entrada do show, aquela foice e o martelo aparecem para quem estava do lado de fora, a movimentação dos carecas começa a ficar ressabiada, uns punks de moicano azul e vermelho saem para beber cerveja perto de onde estavam os carecas e começam as provocações mútuas, algo estava para ferver.

Um dos carecas chega mais perto do grupo de punks que bebia cerveja balançando a sua correntinha, esta provocação não passa em branco, um dos punks atira uma cerveja na direção do grupo de carecas, mas, naquele momento, eles não reagem, queriam entrar no show para ver tudo ferver lá dentro do inferninho, e o careca volta para seu grupo, dá uma mijada num canto e tira uma bandana com uma suástica e amarra na própria testa.

O show logo ia começar, Paulão agora pega a bandeira da URSS e pendura atrás do palco, para a vista geral do público, ele começa a pegar seu baixo, com adesivos do Black Flag e do Dead Kennedys colados no instrumento, começa a afinar o baixo de ouvido, solta um “Viva Che Guevara!” do nada no microfone e volta a afinar o seu baixo. Carlos Soares agora entra e começa a afinar a sua guitarra, junto com as afinações de Paulão. Biriba, junto com o roadie Ronald, acertam as tarraxas para bumbo, caixa, ton ton, surdo e os pratos. Paulão vai no microfone de novo e grita : “Pau no cu do Hitler!”.

No show, que estava para começar a primeira música, já tinha vários carecas bem putos nas laterais do público, e no centro uma nuvem de punks prontos para formar a roda de pogo. Paulão não parava de provocar os carecas e solta mais uma : “Nazistas fuck off!”. E começa a tocar seu baixo logo em seguida, soltando o seu vocal rouco no primeiro petardo de “Inimigos do Poder” que era a música “Cheirei um corrosivo”. A música é rápida e dura dois minutos, como uma onda de corrosivo.

Segue a música “Poder inimigo da paz” que dura três minutos, seguida de “São Paulo do caos” e depois Paulão fala durante uns minutos com o público e saúda os punks, depois dizendo que tinha uns “doentes mentais” pelos cantos, procurando provocar os carecas, e chama novamente os carecas de “gente podre do caralho”, e um dos carecas joga uma garrafa na direção de Paulão, que abaixa a cabeça e a garrafa passa lotada, e Paulão começa a tocar logo em seguida “Alarme do asfalto”.

Um dos carecas vê que tinha um policial num dos cantos do inferninho e chega num ângulo mais perto deste e taca uma garrafa que estoura na cabeça do policial, que desmaia, e Paulão, que agora tocava com a banda a música “Inferno urbano”, para o show e começa a dar esporro nos carecas que estavam ali, um grupo de sete carecas vai para o meio do público, perto da roda de pogo dos punks, começa uma pequena confusão, alguns dos seguranças conseguem apartar a confusão e o show recomeça com a música “Petardo mortal”.

A confusão, no entanto, recomeça, e desta vez fica generalizada, o grupo de punks que estava na roda de pogo parte para cima dos carecas, Paulão interrompe o show e grita “porrada nos carecas” e depois solta “Cuba libre!”. Ele se enrola na bandeira da URSS que estava pendurada, a banda ainda tenta tocar “Moinho da cana”, mas o show termina com dez carecas ensanguentados, eles eram minoria, e achavam que iam pegar os punks, mas alguns da roda de pogo eram também grandes como os carecas, e a bandana de suástica de um dos carecas é queimada com isqueiro no centro da roda de pogo.

Os seguranças expulsam alguns punks e carecas do show, os que estavam fodidos são levados para o pronto-socorro, e Paulão volta com seu baixo e disse que a banda tocaria a saideira, e eles tocam “Cerveja”, o show termina e Paulão acende seu charuto Cohiba e solta fumaça, Biriba, junto com o roadie, recolhe a bateria, Carlos Soares, que era quieto e só tocava, fala com Paulão que aquilo tudo tinha sido muito doido, a banda de abertura “Porcos na Lama” se junta aos “Inimigos do Poder” e as duas bandas, um pouco depois, vão para fora do inferninho beber cerveja com os punks que ali ficaram para aproveitar a noite.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/gustavo-bastos 

 

 

 

 

segunda-feira, 31 de maio de 2021

VITÓRIA

 Na via láctea com toda

esta esfera em espiral

o meu peito corrompe

este canto estelar,


frui de sua supernova

e um quasar todo

pronto lança

seus dardos

contra a morte,


quasar e espada,

e o peito estrelado 

da vitória.


31/05/2021 Gustavo Bastos 

NA TERRA PEDREGOSA

 Nas crateras da terra

o grande luar que

uivava na tremenda noite,


varre teu morto dia,

aqui vou vivo

entre a natureza

e a pedra,


montes altos, minha roseta

que eu escrevo,

todo o tratado

sobre a amplidão

em todos os seus 

contornos, como

este enigma primevo

de pássaro.


31/05/2021 Gustavo Bastos 

A ESTRELA

 No jazigo das vitórias-régias

sobrepujaram os nenúfares

e o esmalte botânico

da flor azul e uma lótus

lilás da qual nascia

a seara,


vomitava flores a fada

cintilante, todas estas

flores brotavam

e saíam voando,

na noite funda,

defronte ao lago,

caiu uma estrela.


31/05/2021 Gustavo Bastos 


A MIRRA

 Quando a mirra acabou

"my little sadness"

abriu-se o pranto,

oh my silence

into dreams,


todo o poema era este,

uma esbórnia sucinta

com rouquidão

de uma voz embriagada,


somente posso andar

com este oh my

dreams, I would

be faster than

everything.


31/05/2021 Gustavo Bastos 

O CAMINHO

 Sei das coisas ínfimas

e me perco nos grandes enigmas,

de meu saber rarefeito

faço a colheita sobretudo

do que não sei,

como quem plantou

toda a senda

que maquina

o caminho,

em seu próprio

ímpeto.


31/05/2021 Gustavo Bastos 

O SOM DA MONTANHA

 Pronto, a senda vívida

nas costas da montanha,

serve tua espada

no átrio e no fundo

da caverna, a ópera 

grita em seu vasto

campo, a montanha

ecoa seu enigma

pela amplidão

deste campo

como um eco

de ressonância,

 e o peito do poeta

ouve tudo e escreve.


31/05/2021 Gustavo Bastos 

A NOITE ESTRELADA

 Solo io puedo cantarolar

I wanna be crazy,

sou este na cara da poesia

com a noite anárquica

sobre a minha cabeça,

uma abóbada que abre

os sonhos e coloca

a vida em seu diapasão,


vai tomar este canto teu

de cerveja, pronto,

toda a mesa está

possuída de seu caos,

um poeta de menos

e de merda fazendo

ouro e montando

o seu próprio tesouro.


31/05/2021 Gustavo Bastos 

A MALTA

 Os filósofos na estrada

são como palhaços,

um para em frente ao bar

e age qual peripatético,

toda a plebe ri deste

intelecto verboso

que se exibe frente

aos ébrios, toda a claque

ébria, por sua vez,

avança sobre este

peripatético que agora

chora, todo este teatro

toma o proscênio, se

instaura o caos anódino,

chega um poeta desavisado,

este é engolido pela malta

agitada, o dono do bar

expulsa o poeta e o peripatético,

toda a malta estava em festa.


31/05/2021 Gustavo Bastos 

OS MARES VIVOS

Vivamente, caindo sob os espasmos

do aniquilamento, meu corpo

erra sob o signo do sol.


Já vai a tarde prematura,

com os ares de vinho

na águia que dá o seu

rasante, passa o falcão

e no mar mergulha

o albatroz.


Vejo histérico toda a cena :

a praia se abre em sua febre,

vou em cada quiosque

com a fome embrutecida,

e Iemanjá bate nas ondas,

com suas esmeraldas de espuma.


31/05/2021 Gustavo Bastos 

A BENZEDEIRA

A casa amuada sob os destroços,

eu ia a Belém ver os nenúfares

de certa benzedeira, cada karma

em sua mão de fada.


Ela, toda empertigada,

no valão de seu barraco,

a benzedeira fez "meu filho"

você está carregado,

guarda esta sua

mochila aqui.


Vi, venci todas as quedas,

os corações batem

nesta areia preta

e monazítica,

meu peito prorrompe

cálido o estertor

da guerra.


31/05/2021 Gustavo Bastos 

OS FILÓSOFOS

Em meio a uma cultura ateniense requentada, os estudantes passaram dois períodos em estudos medievais enfadonhos, escalando os castelos de uma abstração abstrusa de tomismo que deglutia e vomitava a sua versão neo em Maritain, não havia nada o que fazer com o tal mestre Bourbon, este professor bolorento de filosofia medieval, a recapitular a aurora deste martirológio com Tertuliano e se esgotando cansado com a prova ontológica do divino com um macambúzio Santo Anselmo.

O musicólogo daquele universo que parecia um convento e não uma universidade conversou com um dos estudantes, o rapaz de nome Victor tinha uma inteligência viva, mas dissipada em vinho e jogos. Maritain para ele soava como uma relíquia perdida num século em que correntes de vanguarda arrebentavam tudo como Futurismo e Dadaísmo, portanto, procurar metafísica diante de uma dinamite contra a onipotência do sentido parecia um combate filosófico inglório diante destes olhos enevoados de Victor, que não via saída para a sua pesquisa a não ser virar livre pensador.

Nietzsche ecoava como uma tentação, o estudante Antônio se vangloriava de seu trabalho premiado sobre Zaratustra, e prometia fazer uma pesquisa sobre a loucura em Ecce Homo, depois de já ter esmiuçado Para Além do Bem e do Mal, ele sonhava ter a mesma febre de Friedrich em Turim quando este teve seu surto psicótico ou insight do eterno retorno.

Antônio era um dos amigos mais próximos de Victor e considerava este o mais inteligente, mas academicamente desnorteado. Victor, cada dia mais na boêmia, se orgulhava de seu estado de espírito avançado e fazia galimatias pela noite entre vagabundos alcoólatras.

José Carlos, outro destes estudantes, acompanhava o professor e padre Leôncio, que pesquisava Heidegger e Habermas furiosamente, tudo lido em alemão, e auxiliava este estudante em sua pesquisa em Kant, começando pela pedra de roseta do Iluminismo, o pequeno texto kantiano “O que é o Esclarecimento?”. 

Ele tinha lido muito também sobre a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e citava toda a arenga do imperativo categórico sopesando com os hipotéticos, prometendo se meter nos juízos sintéticos a priori da Crítica da Razão Pura para fazer deste livro a matéria de sua monografia.

Pelas matérias estudadas naqueles dois períodos, alguns destes estudantes resolveram criar uma confraria de pensamento independente, o meio acadêmico, para eles, parecia enfadonho, repetindo fórmulas que os colocariam a serviço exclusivo do pensamento europeu, como predestinados a serem comentadores de filosofia pelo resto de suas vidas.

Ao contrário de Antônio e José Carlos, estes queriam a liberdade de pensamento, o grupo que tinha, a princípio, cinco homens e duas mulheres, era uma turma mais dispersa pelos corredores e pátios do que ciceroneando vagas em futuros acadêmicos com velhos mestres que tinham que ficar recebendo a corte para abrir uma brecha.

Se passaram mais dois períodos, e a confraria se expandiu um pouco, entrando novos membros ininterruptamente, mês a mês, a líder desta confraria se torna a moça de nome Estella, estudante de Letras em Língua Portuguesa, mas que tinha contatos estreitos com pessoas do curso de Filosofia, ela que lia muita poesia, e via na Estética e na Filosofia da Arte um respiro em relação aos exercícios de silogismos e demais jogos de linguagem.

Ela ficava entediada, por fim, com toda a arenga em torno de Wittgenstein, qualquer um dos dois deste filósofo bicéfalo, tolerando, no máximo, Descartes, pois este tinha um estilo simples e direto de escrita, ao contrário do Idealismo Alemão, que, para ela, parecia um grande edifício criptografado em que o engenheiro civil era Hegel, e o único que dava martelada para derrubá-lo era o infortunado do Schopenhauer, falando de uma vontade que explodiria em Nietzsche, este sim, o filósofo do martelo.

O grupo começou a se reunir em vários dos jardins da universidade, e outros estudantes começaram a chamá-los de os novos peripatéticos, sem intenção de gracejo irônico, mas como um chiste de que esta atividade lúdica já tinha sido feita antes, e na verdade a confraria se chamava “os libertários”.

Mas, depois, o grupo, a pedido da reitoria, ganhou um espaço num anexo da biblioteca da universidade, e o grupo se organizou melhor, favorecendo a sua expansão, com Estella de presidente, e um vice-presidente fanfarrão, de nome Fábio, que estudava Foucalt e pensava fora da caixa como um tipo de flâneur que ainda buscava um lugar seu no mundo, conhecia Victor da boêmia, mas sabia que este não era da confraria, era um errante entre vagabundos, um filósofo da noite e não um adepto da discussão filosófica livre, menos ainda da acadêmica.

Certa tarde, Victor voltou de seu trabalho, dera um pulo numa loja de discos usados, e levava consigo um exemplar dos Rolling Stones, Sticky Fingers, encontrou na rua seu camarada Fábio, disse que depois procuraria Antônio, pois, para ele, o amigo provavelmente estava enfurnado na biblioteca da universidade, com a cabeça enfiada em algum livro de Nietzsche.

Victor pediu então uma cerveja e acendeu um cigarro e começou uma arenga com Fábio de como eram ridículos os retóricos de universidade, uma espécie de proto-política que poluía a linguagem com sofismas, um canteiro de sofistas modernos, piores do que a corruptela erística do sofismo decadente, Fábio aquiesceu e disse que a confraria estava livre disto e tentou mais uma vez cooptar Victor, em vão.

Logo apareceu à mesa um tal de Ricardo, repetente e malandro, que fazia Biblioteconomia, mas que provavelmente acabaria jubilado, pois não fazia nada o dia todo, e tinha conhecido Victor na noite, jogando sinuca, bebendo entre convivas e algumas moças que se perdiam em meio àquela fumaça insuportável de cigarro e maconha. Ricardo logo começou a falar seu monte de asneiras habituais, o que Victor completava com chistes improvisados, levando Fábio a gargalhar ininterruptamente.

Um professor jovem, também conhecido de Victor, que dava aulas de Física, e já tinha doutorado, de nome Walter, também logo aparece, a mesa parecia um ímã de malucos, que começavam a se juntar no mesmo espaço. Ricardo falava asneiras, Victor fazia chistes inusitados, Fábio gargalhava e, finalmente, Walter, que era tão maluco que fumava maconha antes de dar suas aulas de Física na universidade, falava pouco, vai ao balcão do bar, e volta depois de tomar um shot de cachaça, enquanto Victor bancava a mesa com seu salário de funcionário público, pois quem botava a maconha era o parvo louco do Ricardo.

Começava a noite, e duas amigas de Victor aparecem, Vanessa e Larissa, que sempre andavam juntas, e tinham um vício em sinuca, que ganhava a companhia bêbada de Victor, muitas vezes, e elas também conheciam Fábio, mas não conversavam intimamente com Walter e Ricardo, que era de outro círculo social de Victor, que sempre fora um flâneur, que estudava a sério quando precisava, enquanto, na maior parte do tempo, fazia sua tour de Holden Caulfield pelo campus, conhecendo gregos e troianos.

Aparece depois uma tal de Joana, que fumava muito cigarro, e tinha passado uma noite beijando Victor, eles se encontravam eventualmente, mas depois de um tempo aquilo acabou sem sobreaviso, agora Joana era uma presença bissexta na vida de Victor, pois ela se afastara da universidade, somente aparecendo neste bar de nome Brisa, sem avisar, e agora bem raramente, mas continuava gostando de encontrá-lo, quando dava.

Naquele dia não haveria testes ou aulas importantes, e muitos dos que estavam na mesa decidiram matar a aula daquela noite, Fábio começou a falar sobre Estella e seu grupo da confraria, no que os olhos de Victor começaram a brilhar e ele então começou a pensar em ir a um encontro desta tal confraria, pois o relato de Fábio sobre Estella impressionara este boêmio que dissipava a sua inteligência na noite.

Aquilo ainda ia demorar uma semana, o próximo encontro da confraria teria como tema Charles Baudelaire, As Flores do Mal, e Victor disse a Fábio que iria, pois estava escrevendo umas coisas, mas Fábio sacou qual foi, a súbita mudança de ideia de Victor, e não disse nada, pois torcia pelas intenções de Victor, mas o deixara à vontade para ver o que ele ia fazer.

Victor, Fábio e toda a sua turma teriam um teste de Fenomenologia no meio da semana, uma overdose eidética de Husserl foi injetada na veia na aula anterior ao teste, enquanto Victor estava numa viagem de estudar Merleau-Ponty por conta própria, uma ideia efêmera e passageira, pois logo ele se dissiparia novamente com seus amigos numa noite enfumaçada, sem nunca chegar a ler o tal fenomenólogo francês.

Victor vai bem no teste, tira dez, Fábio também tira dez, Antônio, que estudava muito e se levava a sério, ficou com um nove e meio, dando um muxoxo quando viu a nota de seus dois outros amigos, Fábio estava bem disciplinado e só faltava decidir seu futuro acadêmico, pois também fazia uma graduação em jornalismo em uma universidade particular. Antônio também andava assoberbado, pois também estudava outra faculdade, a de Direito, e fazia estágio no escritório de advocacia de seu pai.

Victor gostava de brincar com Antônio nos dias em que este chegava esbaforido de terno e gravata para as aulas de filosofia, os dois eram muito próximos, de todos os conhecidos de Victor, Antônio era o que, na verdade, sempre estivera mais próximo, mesmo com fases de Victor que viriam ao lado de Ricardo, durante as noites de bebedeiras. Fábio era amigo de Victor, mas esta relação era mais dentro da universidade, por afinidades de pensamento, Antônio era quem sempre orbitava na vida de Victor de fato.

Vanessa e Larissa, também muito amigas de Victor, não se esforçavam muito na graduação, com Vanessa trabalhando de bartender numa boate, depois de namorar por pouco tempo um dos sócios desta boate, e Larissa que logo largaria a faculdade de Filosofia para fazer Farmácia, em uma mudança drástica de planos.

José Carlos, por sua vez, falava, eventualmente, com Fábio e Antônio, e não tinha muita proximidade com Victor, que lhe parecia um boêmio sem futuro. José Carlos não era exatamente o que se pode chamar de blasé, mas estava sempre ligado aos estudos de um modo sistemático, sem ter uma vida social universitária expandida, só se juntava com dois amigos, e sua namorada, que estudava Física.

O tal professor de Física, Walter, Victor conhecera numa roda de maconha, e achava este cara muito doido, pois Walter fumava maconha o dia todo, e mantinha a capacidade de se concentrar para ser um bom professor universitário, e volta e meia, dava surras como enxadrista em desavisados da universidade em meio à fumaça da erva que passava de mão em mão. 

Walter impressionava Victor pela capacidade lógica, pois este louco era uma fera em Física e xadrez, enquanto Victor balbuciava ensaios literários ainda incipientes, ele estava escrevendo algo sobre T.S.Eliot e também Ferreira Gullar, mas logo foi comprar Flores do Mal de Charles Baudelaire para conhecer a tal da confraria “os libertários”.

O estudo de Victor sobre “The Waste Land” agora fora interrompido por um artigo sobre o “spleen”, que ele queria apresentar na confraria. Antônio encontra Victor numa tarde ensolarada, e eles decidem ir à praia antes de ter as aulas noturnas, foi uma tarde em que os dois ficaram pegando onda de peito e fumando maconha, arrumaram as mochilas no fim da tarde e seguiram rumo à universidade, com a mente deles misturando a maresia da praia com a da maconha, num tipo de relaxamento máximo do corpo e do pensamento.

Fábio encontra então os dois seres praianos com os olhos absurdamente vermelhos, e cai na gargalhada, soluça, e chama os dois para uma videoteca em que haveria uma sessão de filme no horário após a aula sobre Descartes. Naquela noite haveria, primeiro, uma aula sobre Lógica, algo sobre silogismos e sofismas, o Organon seria esmiuçado até o talo.

Em seguida haveria uma aula sobre O Discurso do Método de Descartes, na aula de Filosofia Geral -II. O estudo sobre a cera e toda a ladainha até o cogito, num movimento em que Descartes começa numa crise psicótica com o gênio maligno, até salvar seu sistema racional, não exatamente com o cogito, mas salvando a sua res extensa com, adivinha, Deus.

Após a aula sobre Descartes, Fábio segue com Antônio e Victor para o tal videoclube, e lá ia passar “Ritual dos Sádicos” de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, eles acendem um baseado de king size pouco antes de começar a sessão, e o filme começa minutos depois, quando uma pequena ponta já rumava ao fim, possuída pela brasa indômita tragada com ferocidade pelos rapazes que queriam ver aquele filme trash sob efeito de erva.

O filme começa, e entre incursões do Zé do Caixão, e uma filmagem caótica e erótica, também baseada em escatologia, reunia ali vários egressos de aulas do campus, muita gente das Artes Plásticas e alguns estudantes de Cinema, e aqueles três fugitivos da cátedra de Filosofia.

Depois do filme, Fábio se despede de Victor e Antônio, e vai se encontrar com três membros da confraria, a presidente Estella, e dois colegas, um também da Filosofia, Marcos Antônio, e um artista plástico já formado, que começava a despontar na carreira, José Felipe, eles eram os principais organizadores da confraria.

Esta confraria já tinha tido temas sobre Mallarmé, Lord Byron, Goethe, Friedrich Schiller e agora mergulharia em As Flores do Mal de Charles Baudelaire. O estudo sobre o spleen se misturaria ao tema da cidade, e a inovação baudelairiana, suas polêmicas, os poemas sobre o vinho, e em breve, Estella tinha planos de fazer um estudo sobre Thomas DeQuincey, o livreto “Um comedor de ópio”.

Fábio volta a conversar com Victor no dia seguinte e este lhe diz que tinha comprado e lido As Flores do Mal de Charles Baudelaire e feito um pequeno texto sobre o “spleen”. Fábio lê o texto inteiro e elogia muito, sabia que Victor estava fazendo uma pesquisa independente em T.S.Eliot, e percebeu que o vívido interesse de Victor em Baudelaire estava funcionando, e Fábio também tinha uma suposição do que já percebera quando falou de Estella para Victor, ele pensou positivo e achou que a confraria poderia ter uma boa contribuição deste pretenso livre pensador.

A reunião da confraria foi marcada para uma sexta de noite, às 21 horas, e o encontro duraria de duas a duas horas e meia, sem prorrogação, como era a praxe do comitê organizador “os libertários”. Fábio levaria uns poemas próprios que escrevera sobre vinho, uma série dividida em sete partes interligadas. Fábio apresentou a Victor a bibliografia e os textos que já tinham sido trabalhados na confraria.

Fábio lhe apresentou uma pasta cheia, com textos encadernados, e Victor foi xerocar tudo, encadernou, e naquela quarta, depois de uma aula sobre História da Filosofia, com temas sobre o Idealismo Alemão, e depois de uma aula de Filosofia Política, em que o professor falou sobre Tito Lívio e O Príncipe de Nicolau Maquiavel, Victor leu algumas destas coisas da confraria que copiara de Fábio.

Victor mergulhou na madrugada lendo, entre algumas baforadas em pequenos baseados, e aquilo durou até cinco da manhã, e ele caiu no sono, depois de ler as considerações sobre Lord Byron, e toda aquela poesia inglesa que vivia no luxo, e que resultaria na morte por afogamento de Percy Shelley na queda de uma embarcação.

Chega o dia do encontro da confraria, e o título, inventado por Fábio e aprovado por Estella, era “O spleen e a poesia nova de Baudelaire”. Naquela tarde haveria uma aula sobre Santo Agostinho, estava se encerrando o tema dos solilóquios, que teria um trabalho que deveria ser entregue para correção, e o professor começaria a falar sobre o livre-arbítrio na obra agostiniana, para depois, finalmente, esmiuçar Confissões até o final do período.

E a  aula seguiu com toda aquela conversão do santo quando este vê Santo Ambrósio ministrar uma missa, lembra do que dizia a sua mãe, Santa Mônica, e tem uma metanoia, que o faz apagar o Maniqueísmo para sempre de sua mente, se tornando sacerdote católico.

Chega a noite, se juntam numa roda de maconha, Fábio, Antônio, Victor, Walter, depois aparece Ricardo, e um tal de Bruno, que não era da universidade, mas veio junto com Ricardo, e parecia um tipo social perdido, pior do que o doidivanas do Ricardo, e que logo fica interessado naquela conversa criptografada entre Fábio e Victor, pois não estava entendendo porra nenhuma, mas achava aquilo tudo muito inteligente.

Gilda, uma outra amiga de Victor, e também amiga de Antônio, aparece e traz um punhado de skank para colocar na roda, ali todo mundo aprecia o skank, foram dois baseados de green que fazia aquele efeito profundo, mas sem o embotamento comum de um prensado todo mijado.

Enfim, deu o horário marcado, nove da noite, Antônio iria para uma boate, Ricardo e Bruno somem sem destino, Fábio e Victor seguem para o local em que os encontros de “os libertários” sempre era realizado, após a fase peripatética, que era um anexo da biblioteca da universidade.

Ali havia duas grandes mesas, cadeiras, e uma varanda enorme na qual dava para ver a lua e a noite do lado de fora de toda aquela grande estrutura arquitetônica que reunia a biblioteca, o refeitório, e alguns anexos, este era um deles, e a confraria tinha autorização a fazer a cada duas sextas, nove da noite, os encontros, a dona do molho de chaves era Estella, que tinha um tipo de ascendência quase sobrenatural em todos os locais que frequentava na vida, não somente na confraria.

Fábio levava a sua pasta amarela, que continha quase tudo que já fora tematizado na confraria que, àquela altura completava quinze meses de existência, com um comitê organizador que teria dois anos de mandato, podendo ser prorrogado indefinidamente, com a condição de aprovação unânime quando da renomeação do comitê, isto é, por aclamação, e como a confraria ainda não era exatamente muito numerosa, a carga de trabalho se concentrava muito neste comitê, que tinha as pessoas mais engajadas no desenvolvimento desta ideia e desta ação. Era um núcleo de estudo, mas com pretensões de agitação cultural, num futuro bem próximo, se tudo desse certo.

Na pasta de Fábio ainda tinha o regulamento e o estatuto, tais documentos foram redigidos pelo advogado formado que fazia parte da confraria, mas não do comitê, André Carlos, que era um diletante em Literatura e Filosofia. Fábio era, como vice-presidente, designado para a atribuição de cuidar de toda a documentação e arquivologia da confraria, no anexo mesmo.

Estella planejava criar um espaço que se destinasse a uma pequena biblioteca e arquivo próprio para “os libertários” e o plano era digitalizar o material, o que Fábio se prontificou a fazer, a ideia de gravar os encontros ainda estava em andamento, José Felipe, o artista plástico, estava em contato com um estúdio pequeno, e estava aprendendo manejos de lentes, enquadramento, ângulos, som, luz, e a edição para futuras consultas deste histórico de encontros da confraria, que até agora estavam sendo registradas apenas em ata por Fábio.

O encontro começa pontualmente às nove, como sempre era feito, com Estella fazendo as considerações iniciais, lá já estava quase todo o grupo, que já tinha vinte e três componentes, que assinavam a ata, havia de convidado, desta vez, além de Victor, que veio com Fábio, um operador de câmera, de nome João, que José Felipe ficara amigo no pequeno estúdio e que se interessou pelas histórias contadas sobre estes encontros filosóficos e estéticos.

A abertura de Estella revelava sempre um domínio de dicção, respiração e autoconfiança que logo confirmou a ideia que Victor fazia do que ouvira de Fábio, Estella era um fenômeno, sua desenvoltura não a colocava na liderança daquilo tudo por um acaso.

Ela, depois das considerações iniciais, que misturou coisas do cotidiano do comitê, da organização dos encontros, e um caleidoscópio literário que ela adquirira em anos de leitura e vivências em saraus e diversos eventos que, algumas vezes, ela atuou como curadora.

Sua experiência prática, portanto, com o mundo das artes e da literatura, tinha o mesmo peso e dimensão de seu conhecimento intelectual. Ela encerra, então, a sua fala inicial, e começa a sua digressão sobre Charles Baudelaire, faz um apanhado geral e passa a palavra para Fábio, que conhecia Estella desde a tenra infância, pois moraram por muitos anos no mesmo condomínio.

Fábio fala do tema do vinho na poesia de Baudelaire, cita alguns poemas do poeta francês, cita também o spleen, explica de modo alternativo, sem uma conceituação filosoficamente rígida, e ao fim declama os seus poemas escritos recentemente sobre o vinho, um que homenageava Baudelaire, e outros que eram poemas sobre Cabernet Sauvignon, Merlot e Pinot Noir, muitas vezes com uma fina ironia, a qual agradava Victor, assim como os chistes deste faziam Fábio gargalhar ininterruptamente. Victor demonstra vivo interesse, e também dá olhadas eventuais para Estella que, depois deste seu fascínio intelectual, ainda descobre que se tratava de uma gata, alta e portentosa.

Temos a longa digressão do artista plástico, José Felipe, que era um tipo de pavão “exibidoso”, mas que tinha um ar mais pedante do que de um conhecedor de literatura, seus esforços de explicação não pareciam tão genuínos ou naturais, a impressão que Victor teve, instantaneamente, foi de estar vendo alguém que tentava ser a “estrela” de um sarau, mas com uma inflexão mal ajambrada, típica do pedante que simula conhecimento, mas que só transparece afetação.

Victor, definitivamente, não foi com a cara de José Felipe, e falou ao pé do ouvido de Fábio que tinha vontade de bater com a cabeça daquele artista plástico contra a parede, e que achou toda aquela arenga insuportável.

Victor, então, rapidamente, apresenta o seu texto sobre o spleen em Baudelaire, e propõe, para depois, apresentar seu longo estudo sobre “The Waste Land” de T.S.Eliot de forma sintetizada, numa outra edição da confraria, e disse a todos que agora iria empreender um trabalho interpretativo sobre o poema “The Hollow Men”, também de T.S.Eliot.

Seu interesse sobre Baudelaire soava recente e artificial, ele pensou dominar o que se tratava da poesia francesa, esta abertura ao simbolismo francês, mas Fábio acabou o colocando contra a parede, Victor tartamudeou, e Estella deu um arremate fatal, entrando na digressão e dando foco final ao tema do vinho e do haxixe, ao fim, convidou quem “gostava de fumar” para a varanda do anexo, pois ela tinha uma trouxa de skank e uma bolota de haxixe vermelho do Marrocos.

Começou a roda, primeiro, com um enrolado de haxixe marroquino com tabaco, e Estella falou de seus estudos no curso de Letras em Língua Portuguesa, estava numas de estudar obsessivamente regência, e delirava em um dia estudar fotografia e viajar pelo mundo tirando fotos artísticas.

Ela era bem-nascida, assim como Fábio também era bem-nascido, pois tinham morado por muito tempo num mesmo condomínio caro e protegido, mas Estella, mesmo tendo todo o conforto do mundo, era um azougue de trabalho e estudo, não perdia tempo, e era bem conceituada como curadora de saraus literários e vernissages de artes plásticas, e Victor logo lembra de alguns vernissages em que tinha ido com Ricardo para comer os quitutes que serviam, vendo as pinturas e esculturas sob efeito de maconha. Estella ri daquelas histórias de Victor e simpatiza com ele genuinamente.

Fábio dá a última baforada naquele haxixe vermelho, que morria na ponta, e Estella dá o skank para Victor apertar um cone, e o cone fica perfeito, parecia ter saído da indústria da Souza Cruz, e ela acha aquele rapaz o máximo, lhe parecia uma mistura irresistível de maluco e intelectual no mesmo pacote.

O skank roda e é tragado com ferocidade por todos da roda, Victor já estava bem chapado, quando José Felipe, o artista plástico metido a literato, começa a falar de temas pretensamente intelectuais, meio que quebrando o clima descontraído e de amenidades que até ali dominara a conversa.

Victor dá umas estocadas, falando que a apresentação da confraria já tinha se encerrado, e Estella, que era muito amiga de José Felipe, tenta apaziguar o ambiente, e um dos membros da confraria, que estava na roda, de apelido Besouro, vai pegar um violão que estava guardado no anexo, traz o instrumento para a roda e começa a tocar Rolling Stones, Creedence Clearwater Revival, e encerra com músicas de Simon & Garfunkel, fechando com “The Sound of Silence”.

Victor, quando todos já se despediam, deixa o seu telefone celular para Estella, ela anota e também passa o seu número, Fábio, pouco depois de Estella ter ido embora, e quando só sobravam ele, Victor e o Besouro, decide apertar um último baseado, já numa madrugada que adentrava numa lua cheia com noite estrelada de céu limpo, e conversa longamente com Victor.

Fábio estava fascinado pela possibilidade que ele tentava antever daquela conversa de seu amigo de universidade com a sua amiga de infância, ele percebia uma união de pensamento mais ligada à loucura de ambos do que a uma suposta onda intelectual. Fábio virou uma espécie de torcedor fanático daquela história que poderia se desenrolar e já sabia que Victor faria a sua inscrição como membro da confraria “os libertários”.

No dia seguinte, ao fim da tarde, Victor encontra Antônio no bar Brisa para beber uma cerveja e depois eles fumam um baseado e seguem para a aula da noite, que seria sobre Schopenhauer, apenas uma introdução sobre Parerga e Paralipomena, depois o tema logo entra em Nietzsche, Genealogia da Moral e Para Além do Bem e do Mal, Antônio, ao final, mostra seu esboço sobre Ecce Homo para Victor, que pede a obra emprestada para ler.

Quando Victor chega em casa, sob efeito de mais um baseado e começa a ler o livro, ele acha muito hilário aqueles títulos arrogantes do pequeno Frederico que tinha levado um fora de Lou Salomé : Por que sou tão inteligente? Por que sou tão sábio? Por que escrevo livros tão bons? Ele logo antevê a loucura de Nietzsche em vontade de potência e ao fim o balbuciar sob tutela que acaba num grunhido nas trevas da loucura para ter a sua obra adulterada pela irmã que era antissemita, e a moral da transvaloração vira um prato cheio para delírios de força deturpada e lições de pseudo-aristocracia do espírito.

A leitura é rápida, em um dia, Ecce Homo é devorado por Victor, que volta a encontrar Antônio num shopping para eles irem ao cinema ver uma reedição de “Festim Diabólico” de Alfred Hitchcock, aquele filme em uma única tomada, que cria uma expectativa que faz você torcer para os vilões do filme.

Depois disso, eles voltam novamente para o Bar Brisa para beber cerveja e jogar sinuca, depois vão fumar maconha num jardim da universidade, e nesta noite decidem matar aula, encontram Ricardo, e este estava novamente com o tal Bruno, um tipo de asno que não entendia nada do que Antônio e Victor diziam, mas achava tudo muito inteligente, e gostava, mesmo não entendendo nada.

Victor então, no dia seguinte, telefona para Estella, que sorri de felicidade ao saber que era Victor ligando, eles combinam de se encontrar num quiosque na praia, bebem cerveja e a conversa é bem frutífera, a identificação era evidente, e Victor só esperaria mais um encontro para se declarar, pois via em Estella uma força que ele ainda não tinha, mas que buscava ter, esta ascendência que ele viu em todas as cores no encontro da confraria, e uma luz que já se acendera ao simplesmente ouvir sobre ela sem nem saber como ela era, pelas palavras de Fábio. Ele tinha encontrado uma pepita de ouro no meio de um mar de lama, e ele sabia disso.

Chega a noite de sexta, depois de mais um encontro da confraria, Victor, que desta vez faz uma leitura de T.S.Eliot, uma parte inicial de sua obsessão, “The Waste Land”, e tem que aturar, numa parte da sessão de digressões, novamente o artista plástico José Felipe, ele o tolera por causa de Estella, e ouve um Fábio divertido e inspirado, com um poema sobre o haxixe, numa imitação desassombrada de Baudelaire, seu amigo de universidade se considerava um arremedo de poeta, um escritor anacrônico e pré-histórico, com um fetiche deslocado pelo século XIX.

Victor encara aquilo como um tipo de natureza nostálgica de Fábio, que só parava de falar sobre poesia bolorenta e velha quando se empolgava com seus estudos de Nietzsche. Ao fim, o encontro acaba, e Estella apresenta um bom punhado de skank para todos, eles vão para a varanda do anexo, e aparece um tal de Vicente, ali Victor vê que ele namorava Estella, que, no entanto, dá umas três piscadelas para Victor, que fica num estado de ambiguidade e bem apreensivo.

Depois de toda aquela roda de skank caro, Estella despista Vicente, e vai ao pé do ouvido de Victor e lhe diz que “resolveria aquilo”, que era para ele esperar um pouco. Victor, sem se declarar, lhe dá um beijo na boca num canto do anexo, Estella então para e vai respirar, e Victor pergunta quem diabos era aquele Vicente, ela diz que iria conversar com este seu namorado, que era questão de uma semana, Fábio surpreende os dois no canto do anexo e diz para eles voltarem à roda.

Ali Vicente conversava animadamente com José Felipe, mas Estella sabia que Vicente, um estudante de administração que herdaria os negócios do pai, era um tipo superficial, ajeitado para uma vida planificada, o que ia contra seus conhecimentos literários, ela ainda não tinha um norte, Vicente era uma realidade cômoda, até aparecer Victor e mudar tudo.

Besouro desta vez toca um repertório nacional de Lobão, Paralamas, Titãs, Legião e encerra com “Blues da Piedade” de Cazuza, todos vão embora, Estella vai ao pé de ouvido de Victor e diz que queria encontrá-lo no dia seguinte, numa praia, pois  naquela noite teria que sair com Vicente e uns amigos do mesmo, Victor fica meio amuado, mas Estella repete que daria um jeito naquilo tudo rapidamente.

Fábio percebe a situação e fala para Victor que Vicente logo faria um drama imenso, ele já conhecia a peça, pois sempre foi próximo de Estella, não somente na época de condomínio. Fábio sabia que aquela história era séria, ele tinha esta percepção como um soco, e já antevia um melodrama de Vicente diante da desdita.

No dia seguinte, Victor encontra Estella num quiosque, eles bebem cerveja, se beijam e conversam longamente, ela disse que Vicente era muito sensível e que estava com medo dele fazer alguma bobagem depois que ela deixá-lo, mas que ela faria aquilo nesta mesma noite, ela tinha marcado um sábado de noite com uma amiga dela, Dora, e já tinha combinado com esta Dora de encontrar Vicente num restaurante e fazer o caminho de despedida.

Victor entende tudo, já sabia que Estella queria se libertar, e que ele poderia dar esta liberdade para Estella, pois Vicente lhe parecia um tipo possessivo e que não tinha um senso emocional muito esclarecido, ele tinha conversado muito pouco com Vicente, mas pelo que ouviu de Fábio e de Estella, ele já antevia uma cena patética iminente.

Nesta noite, depois da comunicação de Estella, Vicente fica desorientado e faz um interrogatório para Estella, quem era o causador daquela loucura, Estella diz que ela era dona da vida dela, Dora dá um tipo de lição bem sutil e certeira em Vicente, que passa subitamente da indignação para um desespero quase infantil, ele era uma criança emocional, mimado pelo pai empresário.

Dora era tão viva como Estella, e diz a ela que queria ver este Victor de perto, pois adorava um filósofo. Estella encerra, então, a conversa longa com Vicente, este sai depois de moto, completamente instável, e vai para a sua grande casa em que ainda morava com o pai. Estella sai com Dora para outro lugar, elas vão para uma boate e enchem a cara de Smirnoff Ice, dando foras em bombados presumidos a cada dez minutos durante três horas seguidas naquela madrugada regada a música eletrônica.

No dia seguinte, logo pela manhã, o celular de Estella começa a tocar sem parar, era Vicente, desesperado, chorando, ela fala com ele por trinta minutos, desliga depois de perder a paciência, o celular volta a tocar insistentemente, ela atende e fala que ele ia ser bloqueado, dito e feito, ela desliga e bloqueia as chamadas de Vicente. Este sai de sua casa em direção da universidade, queria vê-la, Dora, a amiga de Estella, fica sabendo por um amigo que este tinha visto Vicente saindo com sua moto a mil, que ele parecia perturbado.

Dora avisa Estella e que era para ela ficar atenta caso Vicente aparecesse na universidade, ela já estava batendo papo com Victor, e acabara de conhecer seu amigo Antônio, Fábio chega logo depois, meia hora depois, aparece um Vicente completamente esbaforido, vai em direção da mesa e tem uma crise emocional de choro, Victor se levanta e diz que Estella tava com ele, Vicente fica surpreso, e faz uma cena patética rastejando perdão para Estella, e ela diz que simplesmente tinha terminando seu caso, que era a vida, etc.

Vicente começa a importunar a todos e acaba expulso da mesa por Fábio, que era a pessoa que mais conhecia Estella ali, ele diz que não toleraria molecagem no meio universitário, e que conhecia uns caras que poderiam dar um jeito nele, Vicente, caso ele aparecesse novamente na universidade.

Foi um blefe de Fábio, mas Vicente ficou branco que nem vela, pegou a sua moto e desapareceu. Estella então voltou a falar de seus saraus, pelos quais era apaixonada, e de seus estudos de regência, sua nova obsessão gramatical. Fábio sorri, ele era mestre em fazer magias como aquela, falar algo para assustar, e funcionar facilmente, Vicente tinha desaparecido, e a mesa toda voltara a ficar em paz.

Naquela semana teria uma bateria intensa de provas para os alunos de Filosofia, eram as provas finais, Antônio estava assoberbado com Filosofia Política e Filosofia Geral, Fábio e Victor, idem, eles eram da mesma turma, os estudos na biblioteca só se tornavam comum para Victor nestes períodos decisivos, e ele pegava uns resumos com Antônio.

Mas, desta vez, a sua pesquisa e a apresentação de um trabalho de grupo lhe deram uma correria intensa durante sete dias seguidos, tanto, que ele só poderia encontrar Estella novamente somente depois desta semana louca, então Estella colou em Dora, e elas foram mais uma noite para uma boate beber Smirnoff Ice.

O trabalho em grupo de Victor é feito com colegas de uma outra turma compartilhada, pois fazia parte de uma disciplina optativa, que foi Filosofia da Arte, e se concentrou em Baumgarten, para depois fechar com considerações sobre a Estética kantiana, sobre apreciação desinteressada da obra de arte e demais questões do belo, remetendo, ao fim, para as origens, com Arte Poética e a catarse aristotélica.

A intenção do professor era que cada grupo concatenasse três temas de Estética ou Filosofia da Arte, a primeira que trata do belo, a segunda pensa filosoficamente sobre o fenômeno artístico, outros grupos falaram de Walter Benjamin, reprodutibilidade técnica, e o último grupo tascou a Escola de Frankfurt e a indústria cultural.

Victor, ao fim, estava exausto, mas teria que fazer uma prova final de Filosofia Política, com o tema de Leviatã de Thomas Hobbes, e uma última prova sobre pensadores brasileiros da Filosofia do século XX, como Farias Brito, por exemplo, que mais pareciam poetas brincando de Filosofia, algo mais para rir do que para pensar.

Depois daquela semana intensa, o período se encerra, e antes de ele se reencontrar com Estella, que preparava uma pauta enorme para a próxima sessão de “os libertários”, enquanto revezava isto com mais uma demanda, seria curadora de uma semana do cinema, algo que ela nunca tinha feito, e que seria um desafio, pois sua curadoria tinha sido até então somente nas artes plásticas.

Ela se prepara para aquilo em tempo recorde, pede ajuda para Fábio, que era um cinéfilo inveterado, ele dá uns caminhos, e tal semana seria sobre cinema brasileiro de curtas metragens. Enquanto isso, na primeira noite depois da bateria de provas finais, todos os amigos e colegas da Filosofia se reúnem no Bar Brisa para comemorar mais um desafio vencido.

A universidade entra de férias. Estella volta de sua semana intensa de curadoria de cinema com uma sensação vitoriosa, tinha sido um sucesso, o diretor geral da organização cultural que era a responsável pelo evento faz um contrato com Estella, pois haveria mais uns saraus e encontros, além de diversas vernissages, e Estella, que era freelancer nesta área, agora tinha um contrato firmado com o setor da cultura, seu nome começa a se destacar no mercado de curadoria cultural.

Haveria agora o próximo encontro da confraria “os libertários”. Estella tinha esta confraria como sua atividade principal, mesmo sendo uma iniciativa gratuita e voluntária, pois seu objetivo era tornar este grupo um centro de agitação cultural, e seu contrato com o setor de cultura poderia auxiliar neste processo de divulgação e expansão da influência destes encontros universitários.

Fábio preparava, desta vez, um texto sobre cinema, seria uma abordagem alternativa sobre “O Cão Andaluz” de Luis Buñuel, e os sonhos que deram origem ao roteiro e à filmagem. Salvador Dali entraria como o personagem surrealista que brincaria com o inconsciente de forma excêntrica, segundo a tese também excêntrica e alternativa de Fábio, que da poesia com bolor do século XIX, agora faria o seu número de cinéfilo inveterado na confraria.

O diretor geral da organização cultural, de nome José Egydio, ouve Estella falando vivamente sobre as histórias da confraria e, sem que ela premeditasse, ele se interessa muito e disse que iria ver o tal grupo de “os libertários”, ela então fica feliz, mas não havia ali qualquer outra pretensão, pois Estella já estava radiante com seu contrato profissional de curadora cultural, e não mais como uma freelancer, ou seja, o seu “passe” agora pertencia a esta organização, e ela era exclusiva da curadoria dos eventos desta organização cultural, e era um super-contrato, que dava várias garantias e uma boa divulgação de seu nome no mercado.

Antônio encontra novamente Victor, os dois se viam toda semana ao menos uma vez, pois era algo bem estreito e de confiança, ao passo que as diversões de Victor com Ricardo eram bem pueris e ele sabia que era algo efêmero e que logo acabaria. Sua relação com Fábio avançava, em uma amizade universitária que agora crescia com o elo de Estella entre eles.

Antônio andava angustiado, pois queria ser professor de filosofia, mas seu pai, que era dono do escritório de advocacia em que ele fazia estágio, já fazia vários planos para o filho sem consultá-lo, e Antônio não tinha vocação para a advocacia, parecia que seu destino lhe reservava uma forca. As expectativas paternas sobre Antônio eram enormes e ele se sentia cada vez mais massacrado por um trabalho burocrático que ele passou a odiar. Ele fala chorando com Victor, que lhe diz para estudar profundamente filosofia e virar o jogo. Pelo visto, Antônio teria que abrir uma guerra campal para viver de sua paixão filosófica. Victor brinca com Antônio e o chama de Franz Kafka sem a metamorfose.

Chega a sexta e começa o encontro da confraria, Fábio abre os trabalhos e faz a sua digressão alternativa sobre “O Cão Andaluz”, faz uma longa colocação sobre o sonho e o inconsciente, a mente onírica, o surrealismo, Luis Buñuel, A Persistência da Memória, e finaliza com um tipo de atuação como um ator mambembe imitando Salvador Dali enquanto cofiava um bigode imaginário. José Felipe, o tal artista plástico que Victor só tolerava porque era amigo de Estella, dá mais um show de afetação e se podia ver um sorriso de canto de boca em Estella sabendo que Victor estava puto.

Besouro desta vez entra no meio da sessão de colocação literárias e toca Robert Johnson, Fábio simula o pacto de Robert Johnson com Besouro e este termina a encenação fingindo que estava sendo envenenado. Entra Victor que apresenta um estudo sobre “O Albatroz” de Charles Baudelaire, seu vivo interesse no poeta francês advinha da história de Estella com a literatura francesa, e ela apresenta sua microtese sobre Thomas DeQuincey.

Estella encerra o encontro perguntando quem queria fumar “ópio” e tira do bolso uma bola preta de haxixe, Besouro aperta um cone e  todos vão para a varanda do anexo, José Egydio já sabia que Estella fumava, pois ela tinha falado isto quando foi contratada, mas ela descobre que Egydio tinha trazido um beque de skank e ri, pois seu chefe tinha escondido o jogo no dia de seu contrato. O skank e o haxixe rolam na roda simultaneamente e Victor brincava de fazer formas de fumaça com a boca e tosse depois de uma tragada no haxixe de Estella que diz para ela que aquilo era bem forte, pura resina.

José Egydio se anima muito com tudo aquilo e diz para Estella que aquilo poderia ser patrocinado por ele, que organizaria também a confraria no seu equipamento cultural, pois ali tinha mais espaço e ele poderia fazer uma ampla divulgação no setor de cultura, e finalmente Estella antevê seu futuro de agitadora cultural se abrindo, ela que se mostrara uma exímia curadora, agora tinha nas mãos o equipamento cultural ideal, com contrato e tudo.

Passa sábado e Victor atende um telefonema de Antônio que tinha brigado com o pai, ele queria arrumar um estágio para dar aulas de filosofia durante o dia, pois estava indo muito bem na iniciação científica em Nietzsche, e seu orientador recomendou que era hora de ele começar a dar aulas para então poder virar professor universitário de filosofia, mas os horários das aulas que ele poderia arranjar num colégio estadual conflitavam com seus compromissos de estagiário no escritório de advocacia de seu pai, e sua mãe não entrava na discussão, seu embate com o pai começa e ele estava desesperado.

Passa mais uma semana, Antônio volta e diz para Victor que decidira por dar aulas de filosofia como estagiário num colégio estadual e que saíra do escritório de advocacia de seu pai, este ficou puto, e alugou um quitinete para Antônio, seu pai só lhe sustentaria até a sua formação em filosofia e direito, que depois era para ele se virar, que todos os planos para o escritório de advocacia tinham acabado ali. Antônio, junto com seu estágio de professor, decide abrir um pequeno CNPJ para design gráfico, contrata um conhecido que lhe dá dicas e começa a fazer isto em paralelo à sua carreira filosófica.

Victor estava de férias e passa uma semana com Estella num balneário, eles voltam depois e encontram com Dora, que estava com um playboy sem noção, eles vão para a boate, e este cara loucão ficava soltando fumaça de narguilé, tudo foi muito divertido e engraçado, Victor nunca tinha visto uma figura como aquela, com cara de pitbull, mas um figuraça. Estella, no dia seguinte, encontra com José Egydio, haveria na semana subsequente uma reunião geral dos contratados do equipamento cultural para definir novos planos para agitação cultural e demais iniciativas. Ela e Egydio bebem cerveja e conversam animadamente, os planos eram incorporar a confraria de “os libertários” a este equipamento cultural.

José Egydio, em duas semanas, termina o trabalho de montagem do espaço de “os libertários”, um espaço grande e com uma grande varanda, todo o arquivo da confraria vai para lá, Estella trabalhava duro naqueles dias, pois ainda haveria mais uma semana de cinema, desta vez sobre filmes de terror brasileiros, é quando, no meio da tarde, Estella conversava sobre trabalho com José Egydio, e aparece Vicente, completamente esbaforido, falando que a amava e que era para ela “voltar” para ele.

Estella fica assustada com aquela cena, Vicente tenta agarrar Estella, no que José Egydio disse que chamaria a polícia, ele já sabia da história dela com Victor e disse que tinha seguranças no local que poderiam dar um jeito em Vicente, este fica branco que nem vela e sai com a sua moto em alta velocidade.

Victor encontra Fábio, ele chama Antônio, que chega depois, eles vão para o Bar Brisa, Antônio parecia mais feliz e aliviado, tinha tomado distância do pai, encontrava a mãe eventualmente, levava agora uma vida própria, seu CNPJ já tinha uns contratos de design gráfico com agências de publicidade, ele trabalhava com um sócio, e estava muito feliz com seu estágio de professor, e seu projeto de iniciação científica em Nietzsche era seu ideal filosófico, ele partiria com tudo para seu mestrado e doutorado.

Estella, na noite seguinte, recebe um telefonema do pai de Vicente, ele fala na lata, Vicente tinha sofrido um acidente fatal numa batida em L num cruzamento, sua moto tinha sido destruída por um caminhão. Estella fica em prantos, mas disse que não iria para o velório, o pai de Vicente era fã de Estella e disse que tudo bem, que cada um seguiria a sua vida, e assim foi.

O equipamento cultural, depois da semana de filmes de terror, mais um trabalho em que Estella se destaca como curadora, entra com a gestão de José Egydio que começa a viabilizar o projeto da confraria de “os libertários” dentro de seu equipamento cultural. O primeiro encontro é um sucesso, tudo ia bem, e passam seis meses e várias atividades, a confraria virou rapidamente um dos focos de agitação cultural deste equipamento cultural de José Egydio, Estella ganha outras funções, agora também na gestão, junto de José Egydio, que tinha total confiança no taco dela, e ele não erra.

A universidade tem mais uns períodos até que todos se formam, Antônio segue para a sua vida acadêmica, conciliando esta sua nova vida longe do pai com seu CNPJ de design gráfico, que já lhe dava o sustento. Victor consegue um trabalho no equipamento cultural de José Egydio como agitador cultural de “os libertários”, uma vez que Estella ficara assoberbada nas demandas da gestão e era a sucessora natural da empresa quando José Egydio se aposentasse, Fábio entabula uma carreira literária que começa a deslanchar com seu romance “A Vida Inteira” e segue como romancista e contista. Dora, a amiga de Estella, casa com o tal playboy figuraça e eles se mudam para Amsterdã. A vida segue bem, Estella se casa com Victor, José Egydio em pouco tempo decide se aposentar, e a sociedade do equipamento cultural fica com Victor e Estella, ela como gestora, e Victor como organizador dos eventos, pois começa a aprender curadoria na prática, com dicas de Estella, que o coloca na fita, e tudo dá certo.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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domingo, 30 de maio de 2021

LORDS OF CHAOS – A SANGRENTA HISTÓRIA DO METAL SATÂNICO UNDERGROUND – PARTE IX

“Euronymous e sua loja eram o ponto de encontro físico da cena black metal norueguesa”

Após a morte de Dead, Euronymous continuou no seu esforço de assumir o controle do underground extremo norueguês e já havia restabelecido a sua gravadora sob o nome de Deathlike Silence Productions (DSP).

Em seguida, Euronymous alugou um espaço em Oslo para uma loja de discos, e ali venderia também música menos extrema se fosse o caso, para pagar as contas, mas a identidade da loja seria de black metal, e a loja foi batizada de Helvete, palavra em norueguês que significa inferno.

Em Lords Of Chaos, podemos ler : “Em meados de 1991, as bandas Darkthrone, Burzum, Immortal, Thorns, Enslaved, Arcturus e, posteriormente, Emperor estavam todas em contato com Oystein Aarseth, que tinha planos de lançar a maior parte delas via Deathlike Silence.

O círculo interno de amigos e conhecidos casuais que constituíam essas bandas seria chamado por Aarseth de “O Círculo Negro Norueguês” (The Norwegian Black Circle, no original), quando perguntado pela imprensa sobre os incêndios em igrejas que começariam antes do final daquele ano. Ihsahn, o vocalista do Emperor, relembra a dinâmica que operava na época :

Não existe mais disciplina na cena, como no começo ao redor da loja – você meio que tinha que ser aceito. Você ia lá e se você fosse de confiança, se eles soubessem que você levava suas visões a sério, você era aceito. Existia muito respeito pela loja, e as pessoas iam lá usando corpse paint, o que em alguns casos era bem idiota porque estava de dia, e as pessoas estavam fazendo compras.

Mas era uma atmosfera muito complexa e muito dura, você sentia isso quando você entrava lá – era uma coisa muito poderosa. A loja era um ambiente (...) As pessoas queriam ser aceitas, elas eram meio que humildes diante de Euronymous e dos caras mais antigos da cena”.

Em relação ao que ocorreria em seguida, temos os primeiros indícios na DSP, aqui segue o relato em Lords Of Chaos, no que temos : “Uma das pessoas a chegar na cena tardiamente foi Varg Vikernes, também conhecido como Count Grishnackh, com sua one-man band Burzum, que vivia em Bergen, na costa oeste.

Era uma viagem muito longa de seis ou sete horas de carro ou trem para chegar de lá até Oslo. Vikernes vinha para visitas extensas, ao longo das quais ele e Aarseth rapidamente se tornaram amigos.

Os detalhes para que a DSP assinasse a banda de Varg foram acertados, e um álbum de lançamento já estava gravado. Aarseth estava extremamente empolgado com a sonoridade e com a apresentação do Burzum : a banda se encaixava perfeitamente na sua proposta de lançar apenas música ‘verdadeiramente do mal’. Com sua atmosfera depressiva e seus vocais agudos, gritados e dolorosamente roucos, o som do Burzum era bastante distinto de qualquer outra banda da cena.

Aarseth também manteve contato com um crescente número de bandas de fora da Noruega, às quais ele encorajava e fazia planos de lançar seus álbuns : Sigh, do Japão, Monumentum, da Itália, e a bizarra entidade sueca Abruptum.

Apenas alguns desses planos se concretizariam antes da morte de Aarseth, principalmente porque ele nunca havia sido muito bom como empresário. Ele administrava seu selo com inépcia, e o capital para investir em novos lançamentos simplesmente não existia”.

Portanto, refletindo sobre estas citações de Lords Of Chaos neste texto, podemos ver um engajamento que vinha de um único centro, Euronymous e sua loja eram o ponto de encontro físico da cena black metal norueguesa, o que fez com que esta rede de relações entre bandas fosse também fonte de um estreito relacionamento de convivência pessoal e formação de uma tribo.

Por sua vez, a Deathlike Silence Productions, a sua gravadora, fazia com que Euronymous buscasse contato com bandas de fora do círculo estreito norueguês, e retratava um engajamento de alguém que também buscava se informar sobre os cenários de black metal de outros países, a sua pesquisa foi boa, mas Euronymous era um péssimo administrador, tanto de sua loja como de sua gravadora, e nunca teve uma condição financeira independente.

A cena norueguesa, por fim, tinha em Euronymous a fonte agregadora e que dava diretrizes para a expansão desta, tendo sido ele o principal causador da mudança brusca de bandas que passaram do death metal ao black metal que usa corpse paint.

Euronymous era a figura central, mas os eventos que viriam logo a seguir colocariam outros personagens em evidência, e a polêmica superaria a música, mas, por outro lado, a cena black metal norueguesa, a sua música, também sofreu influxo mundial destes escândalos infames.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/lords-of-chaos-a-sangrenta-historia-do-metal-satanico-underground-parte-ix