Em meio a uma cultura ateniense requentada, os estudantes passaram dois períodos em estudos medievais enfadonhos, escalando os castelos de uma abstração abstrusa de tomismo que deglutia e vomitava a sua versão neo em Maritain, não havia nada o que fazer com o tal mestre Bourbon, este professor bolorento de filosofia medieval, a recapitular a aurora deste martirológio com Tertuliano e se esgotando cansado com a prova ontológica do divino com um macambúzio Santo Anselmo.
O musicólogo daquele universo que parecia um convento e não
uma universidade conversou com um dos estudantes, o rapaz de nome Victor tinha
uma inteligência viva, mas dissipada em vinho e jogos. Maritain para ele soava como
uma relíquia perdida num século em que correntes de vanguarda arrebentavam tudo
como Futurismo e Dadaísmo, portanto, procurar metafísica diante de uma dinamite
contra a onipotência do sentido parecia um combate filosófico inglório diante
destes olhos enevoados de Victor, que não via saída para a sua pesquisa a não
ser virar livre pensador.
Nietzsche ecoava como uma tentação, o estudante Antônio se
vangloriava de seu trabalho premiado sobre Zaratustra, e prometia fazer uma
pesquisa sobre a loucura em Ecce Homo, depois de já ter esmiuçado Para Além do
Bem e do Mal, ele sonhava ter a mesma febre de Friedrich em Turim quando este
teve seu surto psicótico ou insight do eterno retorno.
Antônio era um dos amigos mais próximos de Victor e
considerava este o mais inteligente, mas academicamente desnorteado. Victor,
cada dia mais na boêmia, se orgulhava de seu estado de espírito avançado e
fazia galimatias pela noite entre vagabundos alcoólatras.
José Carlos, outro destes estudantes, acompanhava o professor
e padre Leôncio, que pesquisava Heidegger e Habermas furiosamente, tudo lido em
alemão, e auxiliava este estudante em sua pesquisa em Kant, começando pela
pedra de roseta do Iluminismo, o pequeno texto kantiano “O que é o
Esclarecimento?”.
Ele tinha lido muito também sobre a Fundamentação da
Metafísica dos Costumes e citava toda a arenga do imperativo categórico
sopesando com os hipotéticos, prometendo se meter nos juízos sintéticos a
priori da Crítica da Razão Pura para fazer deste livro a matéria de sua
monografia.
Pelas matérias estudadas naqueles dois períodos, alguns
destes estudantes resolveram criar uma confraria de pensamento independente, o
meio acadêmico, para eles, parecia enfadonho, repetindo fórmulas que os
colocariam a serviço exclusivo do pensamento europeu, como predestinados a
serem comentadores de filosofia pelo resto de suas vidas.
Ao contrário de Antônio e José Carlos, estes queriam a
liberdade de pensamento, o grupo que tinha, a princípio, cinco homens e duas
mulheres, era uma turma mais dispersa pelos corredores e pátios do que
ciceroneando vagas em futuros acadêmicos com velhos mestres que tinham que
ficar recebendo a corte para abrir uma brecha.
Se passaram mais dois períodos, e a confraria se expandiu um
pouco, entrando novos membros ininterruptamente, mês a mês, a líder desta
confraria se torna a moça de nome Estella, estudante de Letras em Língua
Portuguesa, mas que tinha contatos estreitos com pessoas do curso de Filosofia,
ela que lia muita poesia, e via na Estética e na Filosofia da Arte um respiro
em relação aos exercícios de silogismos e demais jogos de linguagem.
Ela ficava entediada, por fim, com toda a arenga em torno de
Wittgenstein, qualquer um dos dois deste filósofo bicéfalo, tolerando, no
máximo, Descartes, pois este tinha um estilo simples e direto de escrita, ao
contrário do Idealismo Alemão, que, para ela, parecia um grande edifício criptografado
em que o engenheiro civil era Hegel, e o único que dava martelada para
derrubá-lo era o infortunado do Schopenhauer, falando de uma vontade que
explodiria em Nietzsche, este sim, o filósofo do martelo.
O grupo começou a se reunir em vários dos jardins da
universidade, e outros estudantes começaram a chamá-los de os novos
peripatéticos, sem intenção de gracejo irônico, mas como um chiste de que esta
atividade lúdica já tinha sido feita antes, e na verdade a confraria se chamava
“os libertários”.
Mas, depois, o grupo, a pedido da reitoria, ganhou um espaço
num anexo da biblioteca da universidade, e o grupo se organizou melhor,
favorecendo a sua expansão, com Estella de presidente, e um vice-presidente
fanfarrão, de nome Fábio, que estudava Foucalt e pensava fora da caixa como um
tipo de flâneur que ainda buscava um lugar seu no mundo, conhecia Victor da
boêmia, mas sabia que este não era da confraria, era um errante entre
vagabundos, um filósofo da noite e não um adepto da discussão filosófica livre,
menos ainda da acadêmica.
Certa tarde, Victor voltou de seu trabalho, dera um pulo numa
loja de discos usados, e levava consigo um exemplar dos Rolling Stones, Sticky
Fingers, encontrou na rua seu camarada Fábio, disse que depois procuraria
Antônio, pois, para ele, o amigo provavelmente estava enfurnado na biblioteca
da universidade, com a cabeça enfiada em algum livro de Nietzsche.
Victor pediu então uma cerveja e acendeu um cigarro e começou
uma arenga com Fábio de como eram ridículos os retóricos de universidade, uma
espécie de proto-política que poluía a linguagem com sofismas, um canteiro de
sofistas modernos, piores do que a corruptela erística do sofismo decadente,
Fábio aquiesceu e disse que a confraria estava livre disto e tentou mais uma
vez cooptar Victor, em vão.
Logo apareceu à mesa um tal de Ricardo, repetente e malandro,
que fazia Biblioteconomia, mas que provavelmente acabaria jubilado, pois não
fazia nada o dia todo, e tinha conhecido Victor na noite, jogando sinuca,
bebendo entre convivas e algumas moças que se perdiam em meio àquela fumaça
insuportável de cigarro e maconha. Ricardo logo começou a falar seu monte de
asneiras habituais, o que Victor completava com chistes improvisados, levando
Fábio a gargalhar ininterruptamente.
Um professor jovem, também conhecido de Victor, que dava
aulas de Física, e já tinha doutorado, de nome Walter, também logo aparece, a
mesa parecia um ímã de malucos, que começavam a se juntar no mesmo espaço.
Ricardo falava asneiras, Victor fazia chistes inusitados, Fábio gargalhava e,
finalmente, Walter, que era tão maluco que fumava maconha antes de dar suas
aulas de Física na universidade, falava pouco, vai ao balcão do bar, e volta
depois de tomar um shot de cachaça, enquanto Victor bancava a mesa com seu
salário de funcionário público, pois quem botava a maconha era o parvo louco do
Ricardo.
Começava a noite, e duas amigas de Victor aparecem, Vanessa e
Larissa, que sempre andavam juntas, e tinham um vício em sinuca, que ganhava a
companhia bêbada de Victor, muitas vezes, e elas também conheciam Fábio, mas
não conversavam intimamente com Walter e Ricardo, que era de outro círculo
social de Victor, que sempre fora um flâneur, que estudava a sério quando
precisava, enquanto, na maior parte do tempo, fazia sua tour de Holden Caulfield
pelo campus, conhecendo gregos e troianos.
Aparece depois uma tal de Joana, que fumava muito cigarro, e
tinha passado uma noite beijando Victor, eles se encontravam eventualmente, mas
depois de um tempo aquilo acabou sem sobreaviso, agora Joana era uma presença
bissexta na vida de Victor, pois ela se afastara da universidade, somente
aparecendo neste bar de nome Brisa, sem avisar, e agora bem raramente, mas
continuava gostando de encontrá-lo, quando dava.
Naquele dia não haveria testes ou aulas importantes, e muitos
dos que estavam na mesa decidiram matar a aula daquela noite, Fábio começou a
falar sobre Estella e seu grupo da confraria, no que os olhos de Victor
começaram a brilhar e ele então começou a pensar em ir a um encontro desta tal
confraria, pois o relato de Fábio sobre Estella impressionara este boêmio que
dissipava a sua inteligência na noite.
Aquilo ainda ia demorar uma semana, o próximo encontro da
confraria teria como tema Charles Baudelaire, As Flores do Mal, e Victor disse
a Fábio que iria, pois estava escrevendo umas coisas, mas Fábio sacou qual foi,
a súbita mudança de ideia de Victor, e não disse nada, pois torcia pelas
intenções de Victor, mas o deixara à vontade para ver o que ele ia fazer.
Victor, Fábio e toda a sua turma teriam um teste de
Fenomenologia no meio da semana, uma overdose eidética de Husserl foi injetada
na veia na aula anterior ao teste, enquanto Victor estava numa viagem de
estudar Merleau-Ponty por conta própria, uma ideia efêmera e passageira, pois
logo ele se dissiparia novamente com seus amigos numa noite enfumaçada, sem
nunca chegar a ler o tal fenomenólogo francês.
Victor vai bem no teste, tira dez, Fábio também tira dez, Antônio,
que estudava muito e se levava a sério, ficou com um nove e meio, dando um
muxoxo quando viu a nota de seus dois outros amigos, Fábio estava bem
disciplinado e só faltava decidir seu futuro acadêmico, pois também fazia uma
graduação em jornalismo em uma universidade particular. Antônio também andava
assoberbado, pois também estudava outra faculdade, a de Direito, e fazia
estágio no escritório de advocacia de seu pai.
Victor gostava de brincar com Antônio nos dias em que este
chegava esbaforido de terno e gravata para as aulas de filosofia, os dois eram
muito próximos, de todos os conhecidos de Victor, Antônio era o que, na
verdade, sempre estivera mais próximo, mesmo com fases de Victor que viriam ao
lado de Ricardo, durante as noites de bebedeiras. Fábio era amigo de Victor,
mas esta relação era mais dentro da universidade, por afinidades de pensamento,
Antônio era quem sempre orbitava na vida de Victor de fato.
Vanessa e Larissa, também muito amigas de Victor, não se
esforçavam muito na graduação, com Vanessa trabalhando de bartender numa boate,
depois de namorar por pouco tempo um dos sócios desta boate, e Larissa que logo
largaria a faculdade de Filosofia para fazer Farmácia, em uma mudança drástica
de planos.
José Carlos, por sua vez, falava, eventualmente, com Fábio e
Antônio, e não tinha muita proximidade com Victor, que lhe parecia um boêmio
sem futuro. José Carlos não era exatamente o que se pode chamar de blasé, mas
estava sempre ligado aos estudos de um modo sistemático, sem ter uma vida
social universitária expandida, só se juntava com dois amigos, e sua namorada,
que estudava Física.
O tal professor de Física, Walter, Victor conhecera numa roda
de maconha, e achava este cara muito doido, pois Walter fumava maconha o dia
todo, e mantinha a capacidade de se concentrar para ser um bom professor
universitário, e volta e meia, dava surras como enxadrista em desavisados da
universidade em meio à fumaça da erva que passava de mão em mão.
Walter impressionava Victor pela capacidade lógica, pois este
louco era uma fera em Física e xadrez, enquanto Victor balbuciava ensaios
literários ainda incipientes, ele estava escrevendo algo sobre T.S.Eliot e
também Ferreira Gullar, mas logo foi comprar Flores do Mal de Charles
Baudelaire para conhecer a tal da confraria “os libertários”.
O estudo de Victor sobre “The Waste Land” agora fora
interrompido por um artigo sobre o “spleen”, que ele queria apresentar na
confraria. Antônio encontra Victor numa tarde ensolarada, e eles decidem ir à
praia antes de ter as aulas noturnas, foi uma tarde em que os dois ficaram
pegando onda de peito e fumando maconha, arrumaram as mochilas no fim da tarde
e seguiram rumo à universidade, com a mente deles misturando a maresia da praia
com a da maconha, num tipo de relaxamento máximo do corpo e do pensamento.
Fábio encontra então os dois seres praianos com os olhos
absurdamente vermelhos, e cai na gargalhada, soluça, e chama os dois para uma
videoteca em que haveria uma sessão de filme no horário após a aula sobre
Descartes. Naquela noite haveria, primeiro, uma aula sobre Lógica, algo sobre
silogismos e sofismas, o Organon seria esmiuçado até o talo.
Em seguida haveria uma aula sobre O Discurso do Método de
Descartes, na aula de Filosofia Geral -II. O estudo sobre a cera e toda a
ladainha até o cogito, num movimento em que Descartes começa numa crise
psicótica com o gênio maligno, até salvar seu sistema racional, não exatamente
com o cogito, mas salvando a sua res extensa com, adivinha, Deus.
Após a aula sobre Descartes, Fábio segue com Antônio e Victor
para o tal videoclube, e lá ia passar “Ritual dos Sádicos” de José Mojica
Marins, o Zé do Caixão, eles acendem um baseado de king size pouco antes de
começar a sessão, e o filme começa minutos depois, quando uma pequena ponta já
rumava ao fim, possuída pela brasa indômita tragada com ferocidade pelos
rapazes que queriam ver aquele filme trash sob efeito de erva.
O filme começa, e entre incursões do Zé do Caixão, e uma
filmagem caótica e erótica, também baseada em escatologia, reunia ali vários
egressos de aulas do campus, muita gente das Artes Plásticas e alguns
estudantes de Cinema, e aqueles três fugitivos da cátedra de Filosofia.
Depois do filme, Fábio se despede de Victor e Antônio, e vai
se encontrar com três membros da confraria, a presidente Estella, e dois
colegas, um também da Filosofia, Marcos Antônio, e um artista plástico já
formado, que começava a despontar na carreira, José Felipe, eles eram os
principais organizadores da confraria.
Esta confraria já tinha tido temas sobre Mallarmé, Lord
Byron, Goethe, Friedrich Schiller e agora mergulharia em As Flores do Mal de
Charles Baudelaire. O estudo sobre o spleen se misturaria ao tema da cidade, e
a inovação baudelairiana, suas polêmicas, os poemas sobre o vinho, e em breve,
Estella tinha planos de fazer um estudo sobre Thomas DeQuincey, o livreto “Um
comedor de ópio”.
Fábio volta a conversar com Victor no dia seguinte e este lhe
diz que tinha comprado e lido As Flores do Mal de Charles Baudelaire e feito um
pequeno texto sobre o “spleen”. Fábio lê o texto inteiro e elogia muito, sabia
que Victor estava fazendo uma pesquisa independente em T.S.Eliot, e percebeu
que o vívido interesse de Victor em Baudelaire estava funcionando, e Fábio
também tinha uma suposição do que já percebera quando falou de Estella para
Victor, ele pensou positivo e achou que a confraria poderia ter uma boa
contribuição deste pretenso livre pensador.
A reunião da confraria foi marcada para uma sexta de noite,
às 21 horas, e o encontro duraria de duas a duas horas e meia, sem prorrogação,
como era a praxe do comitê organizador “os libertários”. Fábio levaria uns
poemas próprios que escrevera sobre vinho, uma série dividida em sete partes
interligadas. Fábio apresentou a Victor a bibliografia e os textos que já
tinham sido trabalhados na confraria.
Fábio lhe apresentou uma pasta cheia, com textos
encadernados, e Victor foi xerocar tudo, encadernou, e naquela quarta, depois
de uma aula sobre História da Filosofia, com temas sobre o Idealismo Alemão, e
depois de uma aula de Filosofia Política, em que o professor falou sobre Tito
Lívio e O Príncipe de Nicolau Maquiavel, Victor leu algumas destas coisas da
confraria que copiara de Fábio.
Victor mergulhou na madrugada lendo, entre algumas baforadas
em pequenos baseados, e aquilo durou até cinco da manhã, e ele caiu no sono,
depois de ler as considerações sobre Lord Byron, e toda aquela poesia inglesa
que vivia no luxo, e que resultaria na morte por afogamento de Percy Shelley na
queda de uma embarcação.
Chega o dia do encontro da confraria, e o título, inventado
por Fábio e aprovado por Estella, era “O spleen e a poesia nova de Baudelaire”.
Naquela tarde haveria uma aula sobre Santo Agostinho, estava se encerrando o
tema dos solilóquios, que teria um trabalho que deveria ser entregue para
correção, e o professor começaria a falar sobre o livre-arbítrio na obra
agostiniana, para depois, finalmente, esmiuçar Confissões até o final do
período.
E a aula seguiu com
toda aquela conversão do santo quando este vê Santo Ambrósio ministrar uma
missa, lembra do que dizia a sua mãe, Santa Mônica, e tem uma metanoia, que o
faz apagar o Maniqueísmo para sempre de sua mente, se tornando sacerdote
católico.
Chega a noite, se juntam numa roda de maconha, Fábio,
Antônio, Victor, Walter, depois aparece Ricardo, e um tal de Bruno, que não era
da universidade, mas veio junto com Ricardo, e parecia um tipo social perdido,
pior do que o doidivanas do Ricardo, e que logo fica interessado naquela
conversa criptografada entre Fábio e Victor, pois não estava entendendo porra
nenhuma, mas achava aquilo tudo muito inteligente.
Gilda, uma outra amiga de Victor, e também amiga de Antônio,
aparece e traz um punhado de skank para colocar na roda, ali todo mundo aprecia
o skank, foram dois baseados de green que fazia aquele efeito profundo, mas sem
o embotamento comum de um prensado todo mijado.
Enfim, deu o horário marcado, nove da noite, Antônio iria
para uma boate, Ricardo e Bruno somem sem destino, Fábio e Victor seguem para o
local em que os encontros de “os libertários” sempre era realizado, após a fase
peripatética, que era um anexo da biblioteca da universidade.
Ali havia duas grandes mesas, cadeiras, e uma varanda enorme
na qual dava para ver a lua e a noite do lado de fora de toda aquela grande
estrutura arquitetônica que reunia a biblioteca, o refeitório, e alguns anexos,
este era um deles, e a confraria tinha autorização a fazer a cada duas sextas,
nove da noite, os encontros, a dona do molho de chaves era Estella, que tinha
um tipo de ascendência quase sobrenatural em todos os locais que frequentava na
vida, não somente na confraria.
Fábio levava a sua pasta amarela, que continha quase tudo que
já fora tematizado na confraria que, àquela altura completava quinze meses de
existência, com um comitê organizador que teria dois anos de mandato, podendo
ser prorrogado indefinidamente, com a condição de aprovação unânime quando da
renomeação do comitê, isto é, por aclamação, e como a confraria ainda não era
exatamente muito numerosa, a carga de trabalho se concentrava muito neste
comitê, que tinha as pessoas mais engajadas no desenvolvimento desta ideia e
desta ação. Era um núcleo de estudo, mas com pretensões de agitação cultural,
num futuro bem próximo, se tudo desse certo.
Na pasta de Fábio ainda tinha o regulamento e o estatuto,
tais documentos foram redigidos pelo advogado formado que fazia parte da
confraria, mas não do comitê, André Carlos, que era um diletante em Literatura
e Filosofia. Fábio era, como vice-presidente, designado para a atribuição de
cuidar de toda a documentação e arquivologia da confraria, no anexo mesmo.
Estella planejava criar um espaço que se destinasse a uma
pequena biblioteca e arquivo próprio para “os libertários” e o plano era
digitalizar o material, o que Fábio se prontificou a fazer, a ideia de gravar
os encontros ainda estava em andamento, José Felipe, o artista plástico, estava
em contato com um estúdio pequeno, e estava aprendendo manejos de lentes, enquadramento,
ângulos, som, luz, e a edição para futuras consultas deste histórico de
encontros da confraria, que até agora estavam sendo registradas apenas em ata
por Fábio.
O encontro começa pontualmente às nove, como sempre era
feito, com Estella fazendo as considerações iniciais, lá já estava quase todo o
grupo, que já tinha vinte e três componentes, que assinavam a ata, havia de
convidado, desta vez, além de Victor, que veio com Fábio, um operador de
câmera, de nome João, que José Felipe ficara amigo no pequeno estúdio e que se
interessou pelas histórias contadas sobre estes encontros filosóficos e
estéticos.
A abertura de Estella revelava sempre um domínio de dicção,
respiração e autoconfiança que logo confirmou a ideia que Victor fazia do que
ouvira de Fábio, Estella era um fenômeno, sua desenvoltura não a colocava na
liderança daquilo tudo por um acaso.
Ela, depois das considerações iniciais, que misturou coisas
do cotidiano do comitê, da organização dos encontros, e um caleidoscópio
literário que ela adquirira em anos de leitura e vivências em saraus e diversos
eventos que, algumas vezes, ela atuou como curadora.
Sua experiência prática, portanto, com o mundo das artes e da
literatura, tinha o mesmo peso e dimensão de seu conhecimento intelectual. Ela
encerra, então, a sua fala inicial, e começa a sua digressão sobre Charles
Baudelaire, faz um apanhado geral e passa a palavra para Fábio, que conhecia Estella
desde a tenra infância, pois moraram por muitos anos no mesmo condomínio.
Fábio fala do tema do vinho na poesia de Baudelaire, cita
alguns poemas do poeta francês, cita também o spleen, explica de modo
alternativo, sem uma conceituação filosoficamente rígida, e ao fim declama os
seus poemas escritos recentemente sobre o vinho, um que homenageava Baudelaire,
e outros que eram poemas sobre Cabernet Sauvignon, Merlot e Pinot Noir, muitas
vezes com uma fina ironia, a qual agradava Victor, assim como os chistes deste
faziam Fábio gargalhar ininterruptamente. Victor demonstra vivo interesse, e
também dá olhadas eventuais para Estella que, depois deste seu fascínio
intelectual, ainda descobre que se tratava de uma gata, alta e portentosa.
Temos a longa digressão do artista plástico, José Felipe, que
era um tipo de pavão “exibidoso”, mas que tinha um ar mais pedante do que de um
conhecedor de literatura, seus esforços de explicação não pareciam tão genuínos
ou naturais, a impressão que Victor teve, instantaneamente, foi de estar vendo
alguém que tentava ser a “estrela” de um sarau, mas com uma inflexão mal
ajambrada, típica do pedante que simula conhecimento, mas que só transparece
afetação.
Victor, definitivamente, não foi com a cara de José Felipe, e
falou ao pé do ouvido de Fábio que tinha vontade de bater com a cabeça daquele
artista plástico contra a parede, e que achou toda aquela arenga insuportável.
Victor, então, rapidamente, apresenta o seu texto sobre o
spleen em Baudelaire, e propõe, para depois, apresentar seu longo estudo sobre
“The Waste Land” de T.S.Eliot de forma sintetizada, numa outra edição da
confraria, e disse a todos que agora iria empreender um trabalho interpretativo
sobre o poema “The Hollow Men”, também de T.S.Eliot.
Seu interesse sobre Baudelaire soava recente e artificial,
ele pensou dominar o que se tratava da poesia francesa, esta abertura ao
simbolismo francês, mas Fábio acabou o colocando contra a parede, Victor
tartamudeou, e Estella deu um arremate fatal, entrando na digressão e dando
foco final ao tema do vinho e do haxixe, ao fim, convidou quem “gostava de
fumar” para a varanda do anexo, pois ela tinha uma trouxa de skank e uma bolota
de haxixe vermelho do Marrocos.
Começou a roda, primeiro, com um enrolado de haxixe
marroquino com tabaco, e Estella falou de seus estudos no curso de Letras em
Língua Portuguesa, estava numas de estudar obsessivamente regência, e delirava
em um dia estudar fotografia e viajar pelo mundo tirando fotos artísticas.
Ela era bem-nascida, assim como Fábio também era bem-nascido,
pois tinham morado por muito tempo num mesmo condomínio caro e protegido, mas Estella,
mesmo tendo todo o conforto do mundo, era um azougue de trabalho e estudo, não
perdia tempo, e era bem conceituada como curadora de saraus literários e
vernissages de artes plásticas, e Victor logo lembra de alguns vernissages em
que tinha ido com Ricardo para comer os quitutes que serviam, vendo as pinturas
e esculturas sob efeito de maconha. Estella ri daquelas histórias de Victor e
simpatiza com ele genuinamente.
Fábio dá a última baforada naquele haxixe vermelho, que
morria na ponta, e Estella dá o skank para Victor apertar um cone, e o cone
fica perfeito, parecia ter saído da indústria da Souza Cruz, e ela acha aquele
rapaz o máximo, lhe parecia uma mistura irresistível de maluco e intelectual no
mesmo pacote.
O skank roda e é tragado com ferocidade por todos da roda,
Victor já estava bem chapado, quando José Felipe, o artista plástico metido a
literato, começa a falar de temas pretensamente intelectuais, meio que
quebrando o clima descontraído e de amenidades que até ali dominara a conversa.
Victor dá umas estocadas, falando que a apresentação da
confraria já tinha se encerrado, e Estella, que era muito amiga de José Felipe,
tenta apaziguar o ambiente, e um dos membros da confraria, que estava na roda,
de apelido Besouro, vai pegar um violão que estava guardado no anexo, traz o
instrumento para a roda e começa a tocar Rolling Stones, Creedence Clearwater
Revival, e encerra com músicas de Simon & Garfunkel, fechando com “The
Sound of Silence”.
Victor, quando todos já se despediam, deixa o seu telefone
celular para Estella, ela anota e também passa o seu número, Fábio, pouco
depois de Estella ter ido embora, e quando só sobravam ele, Victor e o Besouro,
decide apertar um último baseado, já numa madrugada que adentrava numa lua
cheia com noite estrelada de céu limpo, e conversa longamente com Victor.
Fábio estava fascinado pela possibilidade que ele tentava
antever daquela conversa de seu amigo de universidade com a sua amiga de
infância, ele percebia uma união de pensamento mais ligada à loucura de ambos
do que a uma suposta onda intelectual. Fábio virou uma espécie de torcedor
fanático daquela história que poderia se desenrolar e já sabia que Victor faria
a sua inscrição como membro da confraria “os libertários”.
No dia seguinte, ao fim da tarde, Victor encontra Antônio no
bar Brisa para beber uma cerveja e depois eles fumam um baseado e seguem para a
aula da noite, que seria sobre Schopenhauer, apenas uma introdução sobre
Parerga e Paralipomena, depois o tema logo entra em Nietzsche, Genealogia da
Moral e Para Além do Bem e do Mal, Antônio, ao final, mostra seu esboço sobre
Ecce Homo para Victor, que pede a obra emprestada para ler.
Quando Victor chega em casa, sob efeito de mais um baseado e
começa a ler o livro, ele acha muito hilário aqueles títulos arrogantes do
pequeno Frederico que tinha levado um fora de Lou Salomé : Por que sou tão inteligente?
Por que sou tão sábio? Por que escrevo livros tão bons? Ele logo antevê a
loucura de Nietzsche em vontade de potência e ao fim o balbuciar sob tutela que
acaba num grunhido nas trevas da loucura para ter a sua obra adulterada pela
irmã que era antissemita, e a moral da transvaloração vira um prato cheio para
delírios de força deturpada e lições de pseudo-aristocracia do espírito.
A leitura é rápida, em um dia, Ecce Homo é devorado por
Victor, que volta a encontrar Antônio num shopping para eles irem ao cinema ver
uma reedição de “Festim Diabólico” de Alfred Hitchcock, aquele filme em uma
única tomada, que cria uma expectativa que faz você torcer para os vilões do filme.
Depois disso, eles voltam novamente para o Bar Brisa para
beber cerveja e jogar sinuca, depois vão fumar maconha num jardim da
universidade, e nesta noite decidem matar aula, encontram Ricardo, e este
estava novamente com o tal Bruno, um tipo de asno que não entendia nada do que
Antônio e Victor diziam, mas achava tudo muito inteligente, e gostava, mesmo
não entendendo nada.
Victor então, no dia seguinte, telefona para Estella, que
sorri de felicidade ao saber que era Victor ligando, eles combinam de se
encontrar num quiosque na praia, bebem cerveja e a conversa é bem frutífera, a
identificação era evidente, e Victor só esperaria mais um encontro para se
declarar, pois via em Estella uma força que ele ainda não tinha, mas que
buscava ter, esta ascendência que ele viu em todas as cores no encontro da
confraria, e uma luz que já se acendera ao simplesmente ouvir sobre ela sem nem
saber como ela era, pelas palavras de Fábio. Ele tinha encontrado uma pepita de
ouro no meio de um mar de lama, e ele sabia disso.
Chega a noite de sexta, depois de mais um encontro da
confraria, Victor, que desta vez faz uma leitura de T.S.Eliot, uma parte
inicial de sua obsessão, “The Waste Land”, e tem que aturar, numa parte da
sessão de digressões, novamente o artista plástico José Felipe, ele o tolera
por causa de Estella, e ouve um Fábio divertido e inspirado, com um poema sobre
o haxixe, numa imitação desassombrada de Baudelaire, seu amigo de universidade
se considerava um arremedo de poeta, um escritor anacrônico e pré-histórico,
com um fetiche deslocado pelo século XIX.
Victor encara aquilo como um tipo de natureza nostálgica de
Fábio, que só parava de falar sobre poesia bolorenta e velha quando se
empolgava com seus estudos de Nietzsche. Ao fim, o encontro acaba, e Estella
apresenta um bom punhado de skank para todos, eles vão para a varanda do anexo,
e aparece um tal de Vicente, ali Victor vê que ele namorava Estella, que, no
entanto, dá umas três piscadelas para Victor, que fica num estado de
ambiguidade e bem apreensivo.
Depois de toda aquela roda de skank caro, Estella despista
Vicente, e vai ao pé do ouvido de Victor e lhe diz que “resolveria aquilo”, que
era para ele esperar um pouco. Victor, sem se declarar, lhe dá um beijo na boca
num canto do anexo, Estella então para e vai respirar, e Victor pergunta quem
diabos era aquele Vicente, ela diz que iria conversar com este seu namorado,
que era questão de uma semana, Fábio surpreende os dois no canto do anexo e diz
para eles voltarem à roda.
Ali Vicente conversava animadamente com José Felipe, mas
Estella sabia que Vicente, um estudante de administração que herdaria os
negócios do pai, era um tipo superficial, ajeitado para uma vida planificada, o
que ia contra seus conhecimentos literários, ela ainda não tinha um norte,
Vicente era uma realidade cômoda, até aparecer Victor e mudar tudo.
Besouro desta vez toca um repertório nacional de Lobão,
Paralamas, Titãs, Legião e encerra com “Blues da Piedade” de Cazuza, todos vão
embora, Estella vai ao pé de ouvido de Victor e diz que queria encontrá-lo no
dia seguinte, numa praia, pois naquela
noite teria que sair com Vicente e uns amigos do mesmo, Victor fica meio
amuado, mas Estella repete que daria um jeito naquilo tudo rapidamente.
Fábio percebe a situação e fala para Victor que Vicente logo
faria um drama imenso, ele já conhecia a peça, pois sempre foi próximo de
Estella, não somente na época de condomínio. Fábio sabia que aquela história
era séria, ele tinha esta percepção como um soco, e já antevia um melodrama de
Vicente diante da desdita.
No dia seguinte, Victor encontra Estella num quiosque, eles
bebem cerveja, se beijam e conversam longamente, ela disse que Vicente era
muito sensível e que estava com medo dele fazer alguma bobagem depois que ela
deixá-lo, mas que ela faria aquilo nesta mesma noite, ela tinha marcado um
sábado de noite com uma amiga dela, Dora, e já tinha combinado com esta Dora de
encontrar Vicente num restaurante e fazer o caminho de despedida.
Victor entende tudo, já sabia que Estella queria se libertar,
e que ele poderia dar esta liberdade para Estella, pois Vicente lhe parecia um
tipo possessivo e que não tinha um senso emocional muito esclarecido, ele tinha
conversado muito pouco com Vicente, mas pelo que ouviu de Fábio e de Estella,
ele já antevia uma cena patética iminente.
Nesta noite, depois da comunicação de Estella, Vicente fica
desorientado e faz um interrogatório para Estella, quem era o causador daquela
loucura, Estella diz que ela era dona da vida dela, Dora dá um tipo de lição
bem sutil e certeira em Vicente, que passa subitamente da indignação para um
desespero quase infantil, ele era uma criança emocional, mimado pelo pai
empresário.
Dora era tão viva como Estella, e diz a ela que queria ver
este Victor de perto, pois adorava um filósofo. Estella encerra, então, a
conversa longa com Vicente, este sai depois de moto, completamente instável, e
vai para a sua grande casa em que ainda morava com o pai. Estella sai com Dora
para outro lugar, elas vão para uma boate e enchem a cara de Smirnoff Ice,
dando foras em bombados presumidos a cada dez minutos durante três horas
seguidas naquela madrugada regada a música eletrônica.
No dia seguinte, logo pela manhã, o celular de Estella começa
a tocar sem parar, era Vicente, desesperado, chorando, ela fala com ele por
trinta minutos, desliga depois de perder a paciência, o celular volta a tocar
insistentemente, ela atende e fala que ele ia ser bloqueado, dito e feito, ela
desliga e bloqueia as chamadas de Vicente. Este sai de sua casa em direção da
universidade, queria vê-la, Dora, a amiga de Estella, fica sabendo por um amigo
que este tinha visto Vicente saindo com sua moto a mil, que ele parecia
perturbado.
Dora avisa Estella e que era para ela ficar atenta caso
Vicente aparecesse na universidade, ela já estava batendo papo com Victor, e
acabara de conhecer seu amigo Antônio, Fábio chega logo depois, meia hora
depois, aparece um Vicente completamente esbaforido, vai em direção da mesa e
tem uma crise emocional de choro, Victor se levanta e diz que Estella tava com
ele, Vicente fica surpreso, e faz uma cena patética rastejando perdão para
Estella, e ela diz que simplesmente tinha terminando seu caso, que era a vida,
etc.
Vicente começa a importunar a todos e acaba expulso da mesa
por Fábio, que era a pessoa que mais conhecia Estella ali, ele diz que não
toleraria molecagem no meio universitário, e que conhecia uns caras que
poderiam dar um jeito nele, Vicente, caso ele aparecesse novamente na
universidade.
Foi um blefe de Fábio, mas Vicente ficou branco que nem vela,
pegou a sua moto e desapareceu. Estella então voltou a falar de seus saraus,
pelos quais era apaixonada, e de seus estudos de regência, sua nova obsessão
gramatical. Fábio sorri, ele era mestre em fazer magias como aquela, falar algo
para assustar, e funcionar facilmente, Vicente tinha desaparecido, e a mesa
toda voltara a ficar em paz.
Naquela semana teria uma bateria intensa de provas para os
alunos de Filosofia, eram as provas finais, Antônio estava assoberbado com
Filosofia Política e Filosofia Geral, Fábio e Victor, idem, eles eram da mesma
turma, os estudos na biblioteca só se tornavam comum para Victor nestes
períodos decisivos, e ele pegava uns resumos com Antônio.
Mas, desta vez, a sua pesquisa e a apresentação de um
trabalho de grupo lhe deram uma correria intensa durante sete dias seguidos,
tanto, que ele só poderia encontrar Estella novamente somente depois desta
semana louca, então Estella colou em Dora, e elas foram mais uma noite para uma
boate beber Smirnoff Ice.
O trabalho em grupo de Victor é feito com colegas de uma
outra turma compartilhada, pois fazia parte de uma disciplina optativa, que foi
Filosofia da Arte, e se concentrou em Baumgarten, para depois fechar com considerações
sobre a Estética kantiana, sobre apreciação desinteressada da obra de arte e
demais questões do belo, remetendo, ao fim, para as origens, com Arte Poética e
a catarse aristotélica.
A intenção do professor era que cada grupo concatenasse três
temas de Estética ou Filosofia da Arte, a primeira que trata do belo, a segunda
pensa filosoficamente sobre o fenômeno artístico, outros grupos falaram de
Walter Benjamin, reprodutibilidade técnica, e o último grupo tascou a Escola de
Frankfurt e a indústria cultural.
Victor, ao fim, estava exausto, mas teria que fazer uma prova
final de Filosofia Política, com o tema de Leviatã de Thomas Hobbes, e uma
última prova sobre pensadores brasileiros da Filosofia do século XX, como
Farias Brito, por exemplo, que mais pareciam poetas brincando de Filosofia,
algo mais para rir do que para pensar.
Depois daquela semana intensa, o período se encerra, e antes
de ele se reencontrar com Estella, que preparava uma pauta enorme para a
próxima sessão de “os libertários”, enquanto revezava isto com mais uma
demanda, seria curadora de uma semana do cinema, algo que ela nunca tinha
feito, e que seria um desafio, pois sua curadoria tinha sido até então somente
nas artes plásticas.
Ela se prepara para aquilo em tempo recorde, pede ajuda para
Fábio, que era um cinéfilo inveterado, ele dá uns caminhos, e tal semana seria
sobre cinema brasileiro de curtas metragens. Enquanto isso, na primeira noite
depois da bateria de provas finais, todos os amigos e colegas da Filosofia se
reúnem no Bar Brisa para comemorar mais um desafio vencido.
A universidade entra de férias. Estella volta de sua semana
intensa de curadoria de cinema com uma sensação vitoriosa, tinha sido um
sucesso, o diretor geral da organização cultural que era a responsável pelo
evento faz um contrato com Estella, pois haveria mais uns saraus e encontros,
além de diversas vernissages, e Estella, que era freelancer nesta área, agora
tinha um contrato firmado com o setor da cultura, seu nome começa a se destacar
no mercado de curadoria cultural.
Haveria agora o próximo encontro da confraria “os
libertários”. Estella tinha esta confraria como sua atividade principal, mesmo
sendo uma iniciativa gratuita e voluntária, pois seu objetivo era tornar este
grupo um centro de agitação cultural, e seu contrato com o setor de cultura
poderia auxiliar neste processo de divulgação e expansão da influência destes
encontros universitários.
Fábio preparava, desta vez, um texto sobre cinema, seria uma
abordagem alternativa sobre “O Cão Andaluz” de Luis Buñuel, e os sonhos que
deram origem ao roteiro e à filmagem. Salvador Dali entraria como o personagem
surrealista que brincaria com o inconsciente de forma excêntrica, segundo a
tese também excêntrica e alternativa de Fábio, que da poesia com bolor do
século XIX, agora faria o seu número de cinéfilo inveterado na confraria.
O diretor geral da organização cultural, de nome José Egydio,
ouve Estella falando vivamente sobre as histórias da confraria e, sem que ela
premeditasse, ele se interessa muito e disse que iria ver o tal grupo de “os
libertários”, ela então fica feliz, mas não havia ali qualquer outra pretensão,
pois Estella já estava radiante com seu contrato profissional de curadora cultural,
e não mais como uma freelancer, ou seja, o seu “passe” agora pertencia a esta
organização, e ela era exclusiva da curadoria dos eventos desta organização
cultural, e era um super-contrato, que dava várias garantias e uma boa
divulgação de seu nome no mercado.
Antônio encontra novamente Victor, os dois se viam toda
semana ao menos uma vez, pois era algo bem estreito e de confiança, ao passo
que as diversões de Victor com Ricardo eram bem pueris e ele sabia que era algo
efêmero e que logo acabaria. Sua relação com Fábio avançava, em uma amizade
universitária que agora crescia com o elo de Estella entre eles.
Antônio andava angustiado, pois queria ser professor de
filosofia, mas seu pai, que era dono do escritório de advocacia em que ele
fazia estágio, já fazia vários planos para o filho sem consultá-lo, e Antônio
não tinha vocação para a advocacia, parecia que seu destino lhe reservava uma
forca. As expectativas paternas sobre Antônio eram enormes e ele se sentia cada
vez mais massacrado por um trabalho burocrático que ele passou a odiar. Ele
fala chorando com Victor, que lhe diz para estudar profundamente filosofia e
virar o jogo. Pelo visto, Antônio teria que abrir uma guerra campal para viver
de sua paixão filosófica. Victor brinca com Antônio e o chama de Franz Kafka
sem a metamorfose.
Chega a sexta e começa o encontro da confraria, Fábio abre os
trabalhos e faz a sua digressão alternativa sobre “O Cão Andaluz”, faz uma
longa colocação sobre o sonho e o inconsciente, a mente onírica, o surrealismo,
Luis Buñuel, A Persistência da Memória, e finaliza com um tipo de atuação como
um ator mambembe imitando Salvador Dali enquanto cofiava um bigode imaginário.
José Felipe, o tal artista plástico que Victor só tolerava porque era amigo de
Estella, dá mais um show de afetação e se podia ver um sorriso de canto de boca
em Estella sabendo que Victor estava puto.
Besouro desta vez entra no meio da sessão de colocação
literárias e toca Robert Johnson, Fábio simula o pacto de Robert Johnson com
Besouro e este termina a encenação fingindo que estava sendo envenenado. Entra
Victor que apresenta um estudo sobre “O Albatroz” de Charles Baudelaire, seu
vivo interesse no poeta francês advinha da história de Estella com a literatura
francesa, e ela apresenta sua microtese sobre Thomas DeQuincey.
Estella encerra o encontro perguntando quem queria fumar
“ópio” e tira do bolso uma bola preta de haxixe, Besouro aperta um cone e todos vão para a varanda do anexo, José
Egydio já sabia que Estella fumava, pois ela tinha falado isto quando foi
contratada, mas ela descobre que Egydio tinha trazido um beque de skank e ri,
pois seu chefe tinha escondido o jogo no dia de seu contrato. O skank e o
haxixe rolam na roda simultaneamente e Victor brincava de fazer formas de
fumaça com a boca e tosse depois de uma tragada no haxixe de Estella que diz
para ela que aquilo era bem forte, pura resina.
José Egydio se anima muito com tudo aquilo e diz para Estella
que aquilo poderia ser patrocinado por ele, que organizaria também a confraria
no seu equipamento cultural, pois ali tinha mais espaço e ele poderia fazer uma
ampla divulgação no setor de cultura, e finalmente Estella antevê seu futuro de
agitadora cultural se abrindo, ela que se mostrara uma exímia curadora, agora
tinha nas mãos o equipamento cultural ideal, com contrato e tudo.
Passa sábado e Victor atende um telefonema de Antônio que
tinha brigado com o pai, ele queria arrumar um estágio para dar aulas de
filosofia durante o dia, pois estava indo muito bem na iniciação científica em
Nietzsche, e seu orientador recomendou que era hora de ele começar a dar aulas
para então poder virar professor universitário de filosofia, mas os horários
das aulas que ele poderia arranjar num colégio estadual conflitavam com seus
compromissos de estagiário no escritório de advocacia de seu pai, e sua mãe não
entrava na discussão, seu embate com o pai começa e ele estava desesperado.
Passa mais uma semana, Antônio volta e diz para Victor que
decidira por dar aulas de filosofia como estagiário num colégio estadual e que
saíra do escritório de advocacia de seu pai, este ficou puto, e alugou um
quitinete para Antônio, seu pai só lhe sustentaria até a sua formação em filosofia
e direito, que depois era para ele se virar, que todos os planos para o escritório
de advocacia tinham acabado ali. Antônio, junto com seu estágio de professor, decide
abrir um pequeno CNPJ para design gráfico, contrata um conhecido que lhe dá
dicas e começa a fazer isto em paralelo à sua carreira filosófica.
Victor estava de férias e passa uma semana com Estella num
balneário, eles voltam depois e encontram com Dora, que estava com um playboy
sem noção, eles vão para a boate, e este cara loucão ficava soltando fumaça de
narguilé, tudo foi muito divertido e engraçado, Victor nunca tinha visto uma
figura como aquela, com cara de pitbull, mas um figuraça. Estella, no dia seguinte,
encontra com José Egydio, haveria na semana subsequente uma reunião geral dos
contratados do equipamento cultural para definir novos planos para agitação
cultural e demais iniciativas. Ela e Egydio bebem cerveja e conversam animadamente,
os planos eram incorporar a confraria de “os libertários” a este equipamento
cultural.
José Egydio, em duas semanas, termina o trabalho de montagem
do espaço de “os libertários”, um espaço grande e com uma grande varanda, todo
o arquivo da confraria vai para lá, Estella trabalhava duro naqueles dias, pois
ainda haveria mais uma semana de cinema, desta vez sobre filmes de terror
brasileiros, é quando, no meio da tarde, Estella conversava sobre trabalho com
José Egydio, e aparece Vicente, completamente esbaforido, falando que a amava e
que era para ela “voltar” para ele.
Estella fica assustada com aquela cena, Vicente tenta agarrar
Estella, no que José Egydio disse que chamaria a polícia, ele já sabia da
história dela com Victor e disse que tinha seguranças no local que poderiam dar
um jeito em Vicente, este fica branco que nem vela e sai com a sua moto em alta
velocidade.
Victor encontra Fábio, ele chama Antônio, que chega depois,
eles vão para o Bar Brisa, Antônio parecia mais feliz e aliviado, tinha tomado
distância do pai, encontrava a mãe eventualmente, levava agora uma vida
própria, seu CNPJ já tinha uns contratos de design gráfico com agências de
publicidade, ele trabalhava com um sócio, e estava muito feliz com seu estágio
de professor, e seu projeto de iniciação científica em Nietzsche era seu ideal
filosófico, ele partiria com tudo para seu mestrado e doutorado.
Estella, na noite seguinte, recebe um telefonema do pai de
Vicente, ele fala na lata, Vicente tinha sofrido um acidente fatal numa batida
em L num cruzamento, sua moto tinha sido destruída por um caminhão. Estella
fica em prantos, mas disse que não iria para o velório, o pai de Vicente era fã
de Estella e disse que tudo bem, que cada um seguiria a sua vida, e assim foi.
O equipamento cultural, depois da semana de filmes de terror,
mais um trabalho em que Estella se destaca como curadora, entra com a gestão de
José Egydio que começa a viabilizar o projeto da confraria de “os libertários”
dentro de seu equipamento cultural. O primeiro encontro é um sucesso, tudo ia
bem, e passam seis meses e várias atividades, a confraria virou rapidamente um
dos focos de agitação cultural deste equipamento cultural de José Egydio,
Estella ganha outras funções, agora também na gestão, junto de José Egydio, que
tinha total confiança no taco dela, e ele não erra.
A universidade tem mais uns períodos até que todos se formam,
Antônio segue para a sua vida acadêmica, conciliando esta sua nova vida longe
do pai com seu CNPJ de design gráfico, que já lhe dava o sustento. Victor
consegue um trabalho no equipamento cultural de José Egydio como agitador
cultural de “os libertários”, uma vez que Estella ficara assoberbada nas
demandas da gestão e era a sucessora natural da empresa quando José Egydio se
aposentasse, Fábio entabula uma carreira literária que começa a deslanchar com
seu romance “A Vida Inteira” e segue como romancista e contista. Dora, a amiga
de Estella, casa com o tal playboy figuraça e eles se mudam para Amsterdã. A
vida segue bem, Estella se casa com Victor, José Egydio em pouco tempo decide
se aposentar, e a sociedade do equipamento cultural fica com Victor e Estella,
ela como gestora, e Victor como organizador dos eventos, pois começa a aprender
curadoria na prática, com dicas de Estella, que o coloca na fita, e tudo dá
certo.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com
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