PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 24 de julho de 2017

POR QUE LER OS CLÁSSICOS – ÍTALO CALVINO – PARTE VII

“Hemingway tem um estilo seco, sem exageros ou paramentos”

HEMINGWAY E NÓS

Temos em Hemingway uma crueza que tem a direção literária realista de uma narrativa que se estende como um tipo de atitude de escritor que revela um empenho prático, que tem sentido tanto técnico como moral, e que, nas palavras de Calvino, eram também uma “limpidez de olhar, de recusa a contemplar-se e lamentar-se, de presteza em captar um ensinamento de vida”.
Hemingway tem um estilo seco, sem exageros ou paramentos, não faz enxertos no texto, diz direto, ligado junto às coisas mesmas que se nos apresenta, e que, para Calvino “O herói de Hemingway quer identificar-se com as ações que executa, ser ele mesmo na soma de seus gestos, na adesão a uma técnica manual ou pelo menos prática, trata de não ter outro problema, outro empenho além de saber fazer bem uma coisa”.  
Tal empenho prático dos heróis hemingwaianos também acusa algo lateral, que é o fato de que o derredor que inclui o existencial e questões como a morte, por exemplo, são objetos de fuga da reflexão de tal personagem tão ligado direto às coisas, no seu labor, como um mundo mecânico que gira na obrigação de ser a força, e a fuga é também desta inutilidade de tudo, e das imagens estáticas do desespero e da derrota.
Logo, tal herói se lança à prática da vida e do trabalho, ao movimento, sem criar o limo que é a lástima e a lamúria dos que se fincam no desvio da contemplação. O que para Calvino é nada mais que o fato do herói em Hemingway ser este que “Concentra-se na estrita observância de seu código, daquelas regras desportivas que em todos os lugares ele sente necessidade de impor a si com o empenho de regras morais”. E que, por fim, Calvino acusa, “Aferra-se àquilo, pois fora daquilo existe o vácuo, a morte”.
Hemingway não tem o temperamento filosófico, ele não faz filosofia, se muito, se mete com a filosofia pragmática norte-americana, ligada à concepção de estrutura, que lida com o ambiente humano comum das atividades e do mundo prático, e que assim como o neopositivismo apresenta um sistema fechado de regras para cumprir, tais que refletem a orientação do pensamento, e temos, igualmente, do lado de Hemingway,  seus heróis e a obediência destes a um código bem definido de ética desportiva, que é o lugar seguro para um mundo que é, na verdade, misterioso, tal mistério que é evitado por tais sistemas fechados de vida e de pensamento.  
Contudo, em Hemingway temos uma espécie de vacuidade do diálogo, e que nele é um caráter pausado e divagante da fala, que lembra os desvios dos diálogos que estavam presentes em Tchekhov, por exemplo, e temos assim a insensatez do mundo convulsionado presentes em tais autores, o desespero da vida contemporânea de Hemingway já nos aparece em seu Fiesta de 1926, que é o desfile de turistas, erotômanos e beberrões.
Por sua vez, enquanto os pequeno-burgueses de Tchekhov sucumbem na prática, mas conseguem manter uma ideia de dignidade, ainda almejando um mundo reformado e ideal, cheio de esperança, os americanos sem raízes de Hemingway, por sua vez, se lançam sem proteção num mundo cruel e feito de massacres, mas tais personagens têm o interesse em dominar uma habilidade qualquer, em fazer bem uma coisa, em ser eficientes, virtudes que dão satisfação pessoal, mas que estão diante de um mundo em que reina a desolação, a morte e a guerra.  Mas este é o fato crucial, Hemingway marca território numa moral antifascista, e para Calvino “porém aceita o massacre como cenário natural do homem contemporâneo”.
Para Calvino, portanto, o ponto nevrálgico da obra deste escritor é condensada na seguinte afirmação: “Ter sentido a guerra como a imagem mais verdadeira, como a realidade normal do mundo burguês na idade imperialista, foi a intuição fundamental de Hemingway”. E Calvino nos descreve a origem de tudo em Hemingway: “Aos dezoito anos, antes ainda da intervenção americana, só pelo gosto de ver como era a guerra, conseguiu atingir o front italiano, de início como motorista de ambulância, depois como diretor de uma cantina, fazendo a ligação de bicicleta entre as trincheiras do Piave (E quanto da Itália ele entendeu, e como já na Itália de 1917 soube ver o rosto “fascista” e o rosto popular contrapostos e os representou, em 1929, no mais belo de seus romances, A farewell to arms)”.
Muito se especula se tal atração pelo cenário de guerra tenha sido influência de Tolstoi, mas a descrição que Hemingway faz da guerra já não tem nada mais a ver com a de Tolstoi, pois, para Calvino, “Hemingway antecipa aquilo que será o espírito do soldado americano na Europa”. Por fim, Calvino conclui que “Hemingway compreendeu alguma coisa sobre como se está no mundo de olhos abertos e enxutos, sem ilusões nem misticismos, elaborou um estilo que exprime de forma completa a sua concepção da vida”.

JORGE LUIS BORGES

Temos em Borges o resgate de um mundo governado pelo intelecto, e este atua como a ideia literária da obra borgiana, contra o domínio da exploração do inconsciente na massa caótica do mundo da literatura mundial do século XX, num acúmulo progressivo de uma linguagem que já nos aparecia em saturação psicológica. Borges que acompanha neste privilégio do intelecto uma minoria que incluía Paul Valéry, num movimento que Calvino vai chamar de “revanche da ordem mental sobre o caos do mundo”.
Em Borges se descobre, em toda a sua obra, a potência que nos leva ao esforço deste escritor em criar e dar forma a um mundo igual ao que é o intelecto, com um conjunto de signos em que reine uma geometria rigorosa de temas, ações e direções, numa narrativa que tenha uma métrica concatenada que leve a este mundo estável que é o espaço de elaboração que faz todo intelecto.
E chegando ao ato de escrita em si, em Borges temos toda uma economia de expressão, pois Borges ficará bem conhecido como um dos mestres da escrita breve, sobretudo como contista sui generis que foi. Em seus textos breves ele condensa um manancial de sugestões, caminhos, com fatos narrados e outros aventados, portas de entrada e de saída para vários lados que se entrecruzam numa geometria e com a perícia deste escritor que se comporta como um poliedro, e que nos leva, nas palavras de Calvino, para “aberturas vertiginosas para o infinito”.  
Borges realiza tal texto de uma densidade que não implode, não sucumbe, não sofre congestão, com o domínio de clareza necessário, embora em um espaço narrativo exíguo, com texto sóbrio e com espaços de movimento, e que demonstram, para Calvino “como o narrar sinteticamente e enviesado conduz a uma linguagem toda precisão e concretude, cuja inventiva se manifesta na variedade dos ritmos, dos movimentos sintáticos, dos adjetivos sempre inesperados e surpreendentes, isso é um milagre estilístico, sem igual na língua espanhola, de que só Borges tem o segredo”.
E Calvino nos descreve como e quando se deu o insight mais importante da obra borgiana, no que temos: “Para escrever breve, a invenção fundamental de Borges, que foi também a invenção de si mesmo como narrador, o ovo de Colombo que lhe permitiu superar o bloqueio que o impedia, até cerca de quarenta anos, de passar da prosa ensaística para prosa narrativa, fingiu que o livro que desejava escrever já estivesse escrito, escrito por um outro, por um hipotético autor desconhecido, um autor de uma outra língua, de uma outra cultura, e descreveu, resumiu, resenhou esse livro hipotético”.
Borges tem a faculdade de duplicar e multiplicar cada texto seu, e isso na imagem de uma biblioteca imaginária e real ao mesmo tempo, em que figuram obras clássicas, eruditas e outras simplesmente inventadas, Borges eleva a sua literatura ao quadrado, literatura potencial, em que muito se guarda em crisálida, uma literatura de conteúdo sugestivo, que abre um mundo e um abismo, que se multiplica com gestos que colocam a narrativa como um sinal de sinais, como um conto que é uma resenha, como um texto que abre outros conteúdos imaginários ou eruditos, mas sem fazer distinção de ambos, jogando-os no mesmo caldeirão em que a plena geometria borgiana ganha vida literária. E que Calvino nos diz que “cujos prenúncios podem ser encontrados em Ficciones, nos estímulos e formas daquelas que poderiam ter sido as obras de um hipotético Herbert Quain”.
E Calvino encerra aqui o périplo borgiano, quando nos diz: “Esses núcleos míticos ou arquetípicos, que provavelmente podem ser reduzidos a um número finito, se destacam contra o fundo desmesurado dos temas metafísicos mais caros a Borges. Em cada texto, por todos os meios, Borges fala do infinito, do inumerável, do tempo, da eternidade ou da presença simultânea ou da dimensão cíclica dos tempos. E aqui retomo o que dizia antes sobre a máxima concentração dos significados na brevidade dos seus textos. Concepção do tempo múltiplo é cara a Borges porque é aquela que reina na literatura, ou melhor, é a condição que torna a literatura possível”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/35022/17/por-que-ler-os-classicos-italo-calvino01
 
       


domingo, 23 de julho de 2017

CRUZ E SOUSA – BROQUÉIS E FARÓIS – PARTE I

“um dos mais conhecidos representantes da poesia simbolista brasileira”

No cenário progressivo da literatura brasileira, mais especificamente na linha do tempo da poesia brasileira, Cruz e Sousa é mais um destes escritores e poetas que teve mais a glória póstuma do que uma fortuna crítica em vida, e foi postumamente que o ilustre poeta do simbolismo ganhou a luta contra muitos dos seus detratores.
Cruz e Sousa, por sinal, teve em vida uma obra errática, que se resumia a uma parte de Tropos e Fantasias, ao volume de prosa Missal e ao volume de versos Broquéis. Após sua morte, já temos, ainda em 1898, Evocações, que não aparece com as 500 páginas prometidas no noticiário, mas 394, o que já rendia bons frutos póstumos de um poeta que teve muitas dificuldades em vida.
No contexto do movimento simbolista, estilo de poesia criticado por ser invariavelmente palavroso, mas vazio de substância, isto é, uma poesia muito escorreita na forma, mas que tinha pouca densidade de significado, pois era uma poesia sugestiva, extremamente metafórica, e de temática por vezes etérea, como forma e sentido. Cruz e Sousa, por sua vez, tem uma biografia heroica, filho de escravos, negro, e que recebe boa educação de seu ex-senhor, mesmo nascido num contexto provinciano, poeta que floresceu de forma incrível, portanto.
E na sua biografia também temos à frente um cenário de dificuldades, uma situação desesperadora, cheio de filhos para criar, com um mísero emprego de extra-numerário na Central do Brasil, escrevendo a poesia luxuriante do simbolismo em meio de uma casa paupérrima, e que ainda tinha o poeta uma esposa que era louca, para, por fim, morrer o poeta heroico de tuberculose, sina dos poetas. Ele é, no entanto, um dos mais conhecidos representantes da poesia simbolista brasileira, um mestre desta poesia de cunho sugestivo, um dos pontos culminantes da lírica brasileira.  
Por sua vez, com o empenho de seu amigo Nestor Victor, o livro Faróis vem a lume em 1900, como um volume de 184 páginas. Por fim, também foi de responsabilidade deste amigo a impressão em Paris, do livro Últimos Sonetos. Na publicação de Faróis, Nestor Victor diz que guarda “algumas peças de prosa e verso a mim confiadas pela piedosa viúva do poeta.”
No entanto, considera que não valeria a pena publicá-las, “por serem uns trabalhos modernos que, no entanto, ele retirou das coleções a que os destinava a princípio, outras produções antigas, dos primeiros tempos da formação do seu talento, completamente destoantes da obra definitiva”. Contudo, mais tarde, tais produções tiveram grande parte divulgadas numa edição popular do Instituto do Livro, organizada por Andrade Muricy, este que considerou tal material como de mesma qualidade do restante da obra de Cruz e Sousa.

POEMAS:

ANTÍFONA : O poema, sonoro, vai com a forma clara, a dança sensorial do poema tem início, e temos um Cruz e Sousa abrindo seus Broquéis com propriedade: “Ó Formas alvas, brancas, Formas claras/De luares, de neves, de neblinas! ...” (...) “Formas do Amor, constelarmente puras,/De Virgens e de Santas vaporosas ...” (...) “Indefiníveis músicas supremas,/Harmonias da Cor e do Perfume ...” (...) “Infinitos espíritos dispersos,/Inefáveis, edênicos, aéreos,/Fecundai o Mistério destes versos,/Com a chama ideal de todos os mistérios.”. O poema mergulha nos mistérios, imaginação febricitante do mundo etéreo do simbolismo, e que segue: “Que brilhe a correção dos alabastros/Sonoramente, luminosamente./Forças originais, essência, graça/De carnes de mulher, delicadezas ...” (...) “Desejos, vibrações, ânsias, alentos/Fulvas vitórias,”. E o poema com veia adjetivada, prorrompe, numa orgia sonora e de imagens: “Flores negras do tédio e flores vagas/De amores vãos, tantálicos, doentios .../Fundas vermelhidões de velhas chagas/Em sangue, abertas, escorrendo em rios .../Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,/Nos turbilhões quiméricos do Sonho,/Passe, cantando, ante o perfil medonho/ E o tropel cabalístico da Morte ...”. O poema lida o tempo todo com a faculdade misteriosa do mundo, o simbolismo que toma forma enunciando a sugestão de uma fantasmagoria como a forma sublime da poesia.

LÉSBIA : O poema tem um tom todo vermelho, selvagem, carnívoro, planta demoníaca e que em lascivo canto é também báquico: “Cróton selvagem, tinhorão lascivo,/Planta mortal, carnívora, sangrenta,/Da tua carne báquica rebenta/A vermelha explosão de um sangue vivo./Nesse lábio mordente e convulsivo,/Ri, ri risadas de expressão violenta/O Amor, trágico e triste, e passa, lenta,/A morte, o espasmo gélido, aflitivo .../Lésbia nervosa, fascinante e doente,/Cruel e demoníaca serpente/Das flamejantes atrações do gozo./Dos teus seios acídulos, amargos,/Fluem capros aromas e os letargos,/Os ópios de um luar tuberculoso ...”. O luar em ópio tuberculoso e a imagem dileta do amor trágico, cume do simbolismo no caudaloso rio poético de Cruz e Sousa.

TORRE DE OURO : O poema tem todo um jogo imagético em que se desfraldam as bandeiras, leitmotiv destes versos de simbolismo puro: “Desta torre desfraldam-se altaneiras,/Por sóis de céus imensos broqueladas,/Bandeiras reais, do azul das madrugadas” (...) “São pavilhões das hostes fugitivas,/Das guerras acres, sanguinárias, vivas,/Da luta que os Espíritos ufana./Estandartes heroicos, palpitantes,/Vendo em marcha passar aniquilantes/As torvas catapultas do Nirvana!”. E tais imagens que evocam a cena de guerra e batalhas em que o poema evoca a sua potência.

A DOR : O poema se abre com tom plangente, em que o simbolismo de tais versos explodem, num rito sonoro e imagético em que a torrente é de lágrimas e de poesia na sua maior potência: “Torva Babel das lágrimas, dos gritos,/Dos soluços, dos ais, dos longos brados,/A Dor galgou os mundos ignorados,/Os mais remotos, vagos infinitos./Lembrando as religiões, lembrando os ritos,/Avassalara os povos condenados,/Pela treva, no horror, desesperados,/Na convulsão de Tântalos aflitos.” (...) “As gerações vão todas proclamando/A grande Dor aos frígidos espaços .../E assim parecem, pelos tempos mudos,/Raças de Prometeus titâneos, rudos,/Brutos e colossais, torcendo os braços!”. E a dor aqui, ao fim, é a batalha do homem com o mundo, raças de prometeus, estes que dão ao humano o poder e sucumbem diante da brutalidade dura do universo e sua nêmesis por vezes cega e incompreensível.

LUA : Este poema sugere as mil faces da lua, e que a poesia, inteira, canta este sonho lunar em todas as suas nuances, e que Cruz e Sousa, o poeta, lhe aproveita tais feições inumeráveis, no que temos: “Surgindo a Lua nebulosa e leve .../Névoas e névoas frígidas ondulam ...” (...) “Vagam baladas e visões e lendas/No florido noivado das Alturas .../E fria, fluente, frouxa claridade/Flutua como as brumas de um letargo .../E erra no espaço, em toda a imensidade,/Um sonho doente, cilicioso, amargo .../Da vastidão dos páramos serenos,/Das siderais abóbadas cerúleas/Cai a luz em antífonas, em trenos,/Em misticismos, orações e dúlias ...”. As visões lunares são canções que prorrompem da pena febricitante do poeta que registra tudo na mestria de sua pena: “E a Lua vai clorótica fulgindo/Nos seus alperces etereais e brancos,/A luz gelada e pálida diluindo/Das serranias pelos largos flancos .../Ó Lua das magnólias e dos lírios!” (...) “Quando ressurges, quando brilhas e amas,/Quando de luzes a amplidão constelas,/Com os fulgores glaciais que tu derramas/Dás febre e frio, dás nevrose, gelas .../A tua dor cristalizou-se outrora/Na dor profunda mais dilacerada/E das dores estranhas, ó Astro, agora,/És a suprema Dor cristalizada! ...”. O frio e a dor se cristalizam aqui, com o poema lunar e suas febres e sonhos.

SATÃ : O poema satânico nos dá seu canto tétrico, no que temos: “Capro e revel, com os fabulosos cornos/Na fronte real de rei dos reis vetustos,/Com bizarros e lúbricos contornos,/Ei-lo Satã entre os Satãs augustos.”. A besta é bem apresentada, e segue seu périplo, e o poema conflui radiante com a pena poética que sonha: “Arcangélico e audaz, nos sóis radiantes,/À púrpura das glórias flamejantes .../Alarga as asas de relevos bravos .../O Sonho agita-lhe a imortal cabeça ...”.

POEMAS:

DO LIVRO “BROQUÉIS”

ANTÍFONA

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas! ...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas ...
Incensos dos turíbulos das aras ...

Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas ...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dotências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume ...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Requiem do Sol que a Dor da Luz resume ...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes ...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes ...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos,
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente ...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas ...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas ...

Cristais diluídos de clarões álacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos ...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios ...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios ...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte ...

LÉSBIA

Cróton selvagem, tinhorão lascivo,
Planta mortal, carnívora, sangrenta,
Da tua carne báquica rebenta
A vermelha explosão de um sangue vivo.

Nesse lábio mordente e convulsivo,
Ri, ri risadas de expressão violenta
O Amor, trágico e triste, e passa, lenta,
A morte, o espasmo gélido, aflitivo ...

Lésbia nervosa, fascinante e doente,
Cruel e demoníaca serpente
Das flamejantes atrações do gozo.

Dos teus seios acídulos, amargos,
Fluem capros aromas e os letargos,
Os ópios de um luar tuberculoso ...

TORRE DE OURO

Desta torre desfraldam-se altaneiras,
Por sóis de céus imensos broqueladas,
Bandeiras reais, do azul das madrugadas
E no íris flamejante das poncheiras.

As torres de outras regiões primeiras
No Amor, nas Glórias vãs arrebatadas,
Não elevam mais alto, desfraldadas,
Bravas, triunfantes, imortais bandeiras.

São pavilhões das hostes fugitivas,
Das guerras acres, sanguinárias, vivas,
Da luta que os Espíritos ufana.

Estandartes heroicos, palpitantes,
Vendo em marcha passar aniquilantes
As torvas catapultas do Nirvana!

A DOR

Torva Babel das lágrimas, dos gritos,
Dos soluços, dos ais, dos longos brados,
A Dor galgou os mundos ignorados,
Os mais remotos, vagos infinitos.

Lembrando as religiões, lembrando os ritos,
Avassalara os povos condenados,
Pela treva, no horror, desesperados,
Na convulsão de Tântalos aflitos.

Por buzinas e trompas assoprando
As gerações vão todas proclamando
A grande Dor aos frígidos espaços ...

E assim parecem, pelos tempos mudos,
Raças de Prometeus titâneos, rudos,
Brutos e colossais, torcendo os braços!

LUA

Clâmides frescas, de brancuras frias,
Finíssimas dalmáticas de neve
Vestem as longas árvores sombrias,
Surgindo a Lua nebulosa e leve ...

Névoas e névoas frígidas ondulam ...
Alagam lácteos e fulgentes rios
Que na enluarada refração tremulam
Dentre fosforescências, calafrios ...

E ondulam névoas cetinosas rendas
De virginais, de prônubas alvuras ...
Vagam baladas e visões e lendas
No florido noivado das Alturas ...

E fria, fluente, frouxa claridade
Flutua como as brumas de um letargo ...
E erra no espaço, em toda a imensidade,
Um sonho doente, cilicioso, amargo ...

Da vastidão dos páramos serenos,
Das siderais abóbadas cerúleas
Cai a luz em antífonas, em trenos,
Em misticismos, orações e dúlias ...

E entre os marfins e as pratas diluídas
Dos lânguidos clarões tristes e enfermos,
Com grinaldas de roxas margaridas
Vagam as Virgens de cismares ermos ...

Cabelos torrenciais e dolorosos
Boiam nas ondas dos etéreos gelos.
E os corpos passam níveos, luminosos,
Nas ondas do luar e dos cabelos ...

Vagam sombras gentis de mortas, vagam
Em grandes procissões, em grandes alas,
Dentre as auréolas, os clarões que alagam,
Opulências de pérolas e opalas.

E a Lua vai clorótica fulgindo
Nos seus alperces etereais e brancos,
A luz gelada e pálida diluindo
Das serranias pelos largos flancos ...

Ó Lua das magnólias e dos lírios!
Geleira sideral entre as geleiras!
Tens a tristeza mórbida dos círios
E a lividez da chama das poncheiras!

Quando ressurges, quando brilhas e amas,
Quando de luzes a amplidão constelas,
Com os fulgores glaciais que tu derramas
Dás febre e frio, dás nevrose, gelas ...

A tua dor cristalizou-se outrora
Na dor profunda mais dilacerada
E das dores estranhas, ó Astro, agora,
És a suprema Dor cristalizada! ...

SATÃ

Capro e revel, com os fabulosos cornos
Na fronte real de rei dos reis vetustos,
Com bizarros e lúbricos contornos,
Ei-lo Satã entre os Satãs augustos.

Por verdes e por báquicos adornos
Vai cr`oado de pâmpanos venustos
O deus pagão dos Vinhos acres, mornos,
Deus triunfador dos triunfadores justos.

Arcangélico e audaz, nos sóis radiantes,
À púrpura das glórias flamejantes ...
Alarga as asas de relevos bravos ...

O Sonho agita-lhe a imortal cabeça ...
E solta aos sóis e estranha e ondeada e espessa
Canta-lhe a juba dos cabelos flavos!

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/35012/17/cruz-e-sousa-e-mais-destes-escritores-que-teve-mais-a-gloria-postuma-do-que-fortuna-critica-em-vida