“Hemingway tem um estilo seco, sem exageros ou paramentos”
HEMINGWAY E NÓS
Temos em Hemingway uma crueza que tem a direção literária
realista de uma narrativa que se estende como um tipo de atitude de escritor
que revela um empenho prático, que tem sentido tanto técnico como moral, e que,
nas palavras de Calvino, eram também uma “limpidez de olhar, de recusa a
contemplar-se e lamentar-se, de presteza em captar um ensinamento de vida”.
Hemingway tem um estilo seco, sem exageros ou paramentos, não
faz enxertos no texto, diz direto, ligado junto às coisas mesmas que se nos
apresenta, e que, para Calvino “O herói de Hemingway quer identificar-se com as
ações que executa, ser ele mesmo na soma de seus gestos, na adesão a uma
técnica manual ou pelo menos prática, trata de não ter outro problema, outro
empenho além de saber fazer bem uma coisa”.
Tal empenho prático dos heróis hemingwaianos também acusa
algo lateral, que é o fato de que o derredor que inclui o existencial e
questões como a morte, por exemplo, são objetos de fuga da reflexão de tal
personagem tão ligado direto às coisas, no seu labor, como um mundo mecânico
que gira na obrigação de ser a força, e a fuga é também desta inutilidade de
tudo, e das imagens estáticas do desespero e da derrota.
Logo, tal herói se lança à prática da vida e do trabalho, ao
movimento, sem criar o limo que é a lástima e a lamúria dos que se fincam no
desvio da contemplação. O que para Calvino é nada mais que o fato do herói em
Hemingway ser este que “Concentra-se na estrita observância de seu código,
daquelas regras desportivas que em todos os lugares ele sente necessidade de
impor a si com o empenho de regras morais”. E que, por fim, Calvino acusa, “Aferra-se
àquilo, pois fora daquilo existe o vácuo, a morte”.
Hemingway não tem o temperamento filosófico, ele não faz
filosofia, se muito, se mete com a filosofia pragmática norte-americana, ligada
à concepção de estrutura, que lida com o ambiente humano comum das atividades e
do mundo prático, e que assim como o neopositivismo apresenta um sistema
fechado de regras para cumprir, tais que refletem a orientação do pensamento, e
temos, igualmente, do lado de Hemingway, seus heróis e a obediência destes a um código
bem definido de ética desportiva, que é o lugar seguro para um mundo que é, na
verdade, misterioso, tal mistério que é evitado por tais sistemas fechados de
vida e de pensamento.
Contudo, em Hemingway temos uma espécie de vacuidade do
diálogo, e que nele é um caráter pausado e divagante da fala, que lembra os
desvios dos diálogos que estavam presentes em Tchekhov, por exemplo, e temos
assim a insensatez do mundo convulsionado presentes em tais autores, o desespero
da vida contemporânea de Hemingway já nos aparece em seu Fiesta de 1926, que é
o desfile de turistas, erotômanos e beberrões.
Por sua vez, enquanto os pequeno-burgueses de Tchekhov sucumbem
na prática, mas conseguem manter uma ideia de dignidade, ainda almejando um
mundo reformado e ideal, cheio de esperança, os americanos sem raízes de
Hemingway, por sua vez, se lançam sem proteção num mundo cruel e feito de
massacres, mas tais personagens têm o interesse em dominar uma habilidade
qualquer, em fazer bem uma coisa, em ser eficientes, virtudes que dão
satisfação pessoal, mas que estão diante de um mundo em que reina a desolação,
a morte e a guerra. Mas este é o fato
crucial, Hemingway marca território numa moral antifascista, e para Calvino “porém
aceita o massacre como cenário natural do homem contemporâneo”.
Para Calvino, portanto, o ponto nevrálgico da obra deste
escritor é condensada na seguinte afirmação: “Ter sentido a guerra como a
imagem mais verdadeira, como a realidade normal do mundo burguês na idade
imperialista, foi a intuição fundamental de Hemingway”. E Calvino nos descreve
a origem de tudo em Hemingway: “Aos dezoito anos, antes ainda da intervenção
americana, só pelo gosto de ver como era a guerra, conseguiu atingir o front
italiano, de início como motorista de ambulância, depois como diretor de uma
cantina, fazendo a ligação de bicicleta entre as trincheiras do Piave (E quanto
da Itália ele entendeu, e como já na Itália de 1917 soube ver o rosto
“fascista” e o rosto popular contrapostos e os representou, em 1929, no mais
belo de seus romances, A farewell to arms)”.
Muito se especula se tal atração pelo cenário de guerra tenha
sido influência de Tolstoi, mas a descrição que Hemingway faz da guerra já não tem
nada mais a ver com a de Tolstoi, pois, para Calvino, “Hemingway antecipa
aquilo que será o espírito do soldado americano na Europa”. Por fim, Calvino
conclui que “Hemingway compreendeu alguma coisa sobre como se está no mundo de
olhos abertos e enxutos, sem ilusões nem misticismos, elaborou um estilo que
exprime de forma completa a sua concepção da vida”.
JORGE LUIS BORGES
Temos em Borges o resgate de um mundo governado pelo
intelecto, e este atua como a ideia literária da obra borgiana, contra o
domínio da exploração do inconsciente na massa caótica do mundo da literatura
mundial do século XX, num acúmulo progressivo de uma linguagem que já nos
aparecia em saturação psicológica. Borges que acompanha neste privilégio do
intelecto uma minoria que incluía Paul Valéry, num movimento que Calvino vai
chamar de “revanche da ordem mental sobre o caos do mundo”.
Em Borges se descobre, em toda a sua obra, a potência que nos
leva ao esforço deste escritor em criar e dar forma a um mundo igual ao que é o
intelecto, com um conjunto de signos em que reine uma geometria rigorosa de
temas, ações e direções, numa narrativa que tenha uma métrica concatenada que
leve a este mundo estável que é o espaço de elaboração que faz todo intelecto.
E chegando ao ato de escrita em si, em Borges temos toda uma
economia de expressão, pois Borges ficará bem conhecido como um dos mestres da
escrita breve, sobretudo como contista sui generis que foi. Em seus textos
breves ele condensa um manancial de sugestões, caminhos, com fatos narrados e
outros aventados, portas de entrada e de saída para vários lados que se
entrecruzam numa geometria e com a perícia deste escritor que se comporta como
um poliedro, e que nos leva, nas palavras de Calvino, para “aberturas
vertiginosas para o infinito”.
Borges realiza tal texto de uma densidade que não implode,
não sucumbe, não sofre congestão, com o domínio de clareza necessário, embora
em um espaço narrativo exíguo, com texto sóbrio e com espaços de movimento, e
que demonstram, para Calvino “como o narrar sinteticamente e enviesado conduz a
uma linguagem toda precisão e concretude, cuja inventiva se manifesta na
variedade dos ritmos, dos movimentos sintáticos, dos adjetivos sempre
inesperados e surpreendentes, isso é um milagre estilístico, sem igual na
língua espanhola, de que só Borges tem o segredo”.
E Calvino nos descreve como e quando se deu o insight mais
importante da obra borgiana, no que temos: “Para escrever breve, a invenção
fundamental de Borges, que foi também a invenção de si mesmo como narrador, o
ovo de Colombo que lhe permitiu superar o bloqueio que o impedia, até cerca de
quarenta anos, de passar da prosa ensaística para prosa narrativa, fingiu que o
livro que desejava escrever já estivesse escrito, escrito por um outro, por um
hipotético autor desconhecido, um autor de uma outra língua, de uma outra
cultura, e descreveu, resumiu, resenhou esse livro hipotético”.
Borges tem a faculdade de duplicar e multiplicar cada texto
seu, e isso na imagem de uma biblioteca imaginária e real ao mesmo tempo, em
que figuram obras clássicas, eruditas e outras simplesmente inventadas, Borges
eleva a sua literatura ao quadrado, literatura potencial, em que muito se
guarda em crisálida, uma literatura de conteúdo sugestivo, que abre um mundo e
um abismo, que se multiplica com gestos que colocam a narrativa como um sinal
de sinais, como um conto que é uma resenha, como um texto que abre outros
conteúdos imaginários ou eruditos, mas sem fazer distinção de ambos, jogando-os
no mesmo caldeirão em que a plena geometria borgiana ganha vida literária. E
que Calvino nos diz que “cujos prenúncios podem ser encontrados em Ficciones,
nos estímulos e formas daquelas que poderiam ter sido as obras de um hipotético
Herbert Quain”.
E Calvino encerra aqui o périplo borgiano, quando nos diz: “Esses
núcleos míticos ou arquetípicos, que provavelmente podem ser reduzidos a um
número finito, se destacam contra o fundo desmesurado dos temas metafísicos
mais caros a Borges. Em cada texto, por todos os meios, Borges fala do
infinito, do inumerável, do tempo, da eternidade ou da presença simultânea ou
da dimensão cíclica dos tempos. E aqui retomo o que dizia antes sobre a máxima
concentração dos significados na brevidade dos seus textos. Concepção do tempo
múltiplo é cara a Borges porque é aquela que reina na literatura, ou melhor, é
a condição que torna a literatura possível”.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/35022/17/por-que-ler-os-classicos-italo-calvino01
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