PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 6 de julho de 2020

A PESTE – PARTE VII

“o governo dos Estados Unidos comprou praticamente todo o estoque mundial do remédio remdesivir para 
os próximos três meses”

O remdesivir foi criado originalmente para o combate do ebola, antiviral que se tornou uma aposta dos Estados Unidos contra a Covid-19. Contudo, estudo publicado na The Lancet não apontou resultados efetivos do remdesivir, apenas uma ligeira diminuição do tempo na recuperação de doentes pela Covid-19, redução também do índice de mortalidade, mas nada estatisticamente relevante.
A Gilead, farmacêutica norte-americana, acusada de abuso de monopólio e violação de patentes, tem planos de lucrar por anos com o remdesivir. “Hoje nós temos um remédio com potencial para acabar com a epidemia do HIV. O problema é que a Gilead é a única proprietária, e ela cobra preços astronômicos.”
A crítica feita pelo deputado Elijah Cummings se dirige a Gilead Sciences, fabricante de remédios contra HIV, hepatite C e, agora, a Covid-19. A empresa Gilead é conhecida por tirar o máximo proveito de suas patentes, mesmo quando isso impede o tratamento de milhões de pessoas. A patente da Gilead garante exclusividade de venda do remdesivir por 20 anos.  A farmacêutica, contudo, vem sendo pressionada a dividir a patente com o governo dos Estados Unidos.
A Gilead tem um histórico vasto de práticas de preços exorbitantes de suas medicações, que envolve, por exemplo, o remédio anti-HIV truvada, que levou o governo norte-americano a processar a Gilead, em novembro passado, por infração de patentes, envolvendo a propriedade do truvada como tratamento preventivo do HIV.
Também houve prática de preços abusivos, por parte da Gilead, na comercialização de uma droga revolucionária contra a hepatite C, lançada em 2014, o sofosbuvir, e foram dirigidas críticas ao que foi chamada de “pílula de mil dólares”, o que levou o Senado dos Estados Unidos a abrir uma investigação sobre a política de preços da empresa. E o relatório final concluiu que a Gilead buscava o máximo de lucro sem considerar a saúde dos pacientes.
Por sua vez, a prática bem conhecida de abrir mão da patente em mercados mais pobres e menos lucrativos se repete no caso do remdesivir, num acordo da Gilead com laboratórios da Índia e do Paquistão, distribuindo a droga em 127 países em que a empresa abriu mão das patentes, o que é mais uma jogada, pois a Gilead receberá royalties assim que a OMS anunciar o fim do estado de emergência.
Tal prática se repete, também, com o kaletra, por parte de Israel, medicação para HIV que também vem sendo testada contra a Covid-19, medicação esta que é de baixo retorno financeiro, patente da farmacêutica Abbvie, o que deixa feliz o marketing da empresa, mas não tem impacto econômico algum.
Recentemente, a agência reguladora de saúde europeia tem na remdesivir o primeiro tratamento, pois a agência recomendou a aprovação condicional do tratamento antiviral remdesivir da Gilead Sciences Inc para pacientes de Covid-19 na Europa, remédio que na região será batizado com o nome de Veklury, assim que a Comissão Europeia aprovar a droga.
Contudo, não há resultados definitivos sobre a eficácia da droga no tratamento da Covid-19, e a Gilead promete tais resultados para dezembro deste ano. Por sua vez, o remdesivir já foi aprovado para uso emergencial em pacientes gravemente doentes nos EUA, Índia e Coreia do Sul e recebeu aprovação total no Japão.
Nos últimos dias, contudo, recebemos a notícia polêmica de que o governo dos Estados Unidos comprou praticamente todo o estoque mundial do remédio remdesivir para os próximos três meses. Donald Trump fez um acordo com a Gilead, e tal acordo recebeu críticas, assim como o preço da droga.
A droga será distribuída a hospitais a partir da regulação das pastas de saúde estaduais e federal, e o preço não poderá passar dos quase US$ 3.200 estipulados pela Gilead. Por sua vez, haverá entregas a cada duas semanas em hospitais, lembrando que nos Estados Unidos não há um sistema de saúde universal gratuito e os custos estão sob responsabilidade de planos de saúde ou pelo próprio paciente.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.



HERZOG E SUA CONQUISTA DO INÚTIL NO CORAÇÃO DA FLORESTA

“se tratava tão somente de atravessar um navio sobre uma montanha de uma margem de rio à outra”

Herzog continua seu relato, acontece o primeiro encontro entre Fitzcarraldo e os índios, o rio Camisea, em alguns lugares, só tinha um metro de profundidade, a água ficava clara, o navio Huallaga continuava preso e imóvel no banco de areia, houve explosões de dinamite numa tarde, das quais os índios fugiram, e Herzog diz : “Fora de cena, eles se divertiram muito com a dinamite e queriam que eu lhes desse um pouco – alguns deles pescavam com ela já há anos, pela facilidade”.
E Herzog continua, logo após, a descrever mais uma curiosidade : “Hoje se espalhou pela equipe a febre do ouro, provocada por Huerequeque, Paul e Laplace, que pensaram em, para depois do filme, lavar ouro mecanicamente com uma plataforma flutuante no alto do rio Santiago. Todos agora sonhavam com isso”.
Herzog, na sua ideia insana de atravessar um navio por uma montanha, nos dá o relato deste trabalho : “Quando filmamos hoje no Narinho, o navio foi se deslocando de ré na curva ao lado do banco de cascalho e de início não reagiu com toda a força. Tínhamos descarregado o lastro porque a intenção era começar logo a puxar o navio montanha acima, razão pela qual a hélice estava alta demais e fora da água, já não sendo possível alcançá-la.
Então, em um impulso repentino, enquanto três barcos o empurravam pelo lado, o navio se virou e quase esmagou os barcos, que não conseguiram se soltar com rapidez suficiente, passando por cima do banco de cascalho. Galhos voaram pelo deque, cipós foram arrancados, e nós fomos levados para um ponto muito raso onde o Narinho teria ficado preso, mas, com um impulso vindo de todos os barcos, conseguimos empurrar o navio de volta para a curva, de onde provavelmente conseguiremos puxá-lo com cabrestantes até a outra margem, e lá ele vai começar a travessia por cima da montanha”.
Herzog enuncia as dificuldades : “O Narinho está encalhado na curva, e seu gêmeo, o Huallaga, descansa no pongo em uma ilha de cascalho que fica cada vez maior. O bom e o ruim têm aqui um indicador : nível do rio alto é bom; baixo, ruim. O Caterpillar precisa de novos filtros de combustível e óleo para o sistema de transmissão. O diesel fornecido aqui vem sempre misturado com uma parte de água. E nossa provação não para aí. Estou em contato tão imediato com os fundamentos do mundo real, que hoje pensei ter intimidade até mesmo com a morte. Se eu morresse, não faria nada além de morrer”.
Herzog prossegue, com mais descrições de dificuldades e bizarrices : “O Narinho está preso ao fundo de maneira sólida e pesada; o Huallaga também, o trator não sai do lugar, não chove, o rio corre lenta e silenciosamente, atingindo níveis cada vez mais baixos. Mas ainda podemos continuar trabalhando : cabana do Fitz, Don Aquilino no pongo, o início do rebocamento do navio. Kinski caminhou vestido com o figurino em torno das bananeiras da minha cabana e mandou Beatus fotografá-lo centenas de vezes entre as folhas exuberantes; depois os dois andaram mais alguns metros até a margem da floresta.
Lá K. encostou o rosto carinhosamente em um tronco e começou a copular com a árvore. É algo que ele considera erótico – ele, o homem natural e a perigosa selva. Acontece que até agora ele não avançou nem dez metros floresta adentro, e isso faz parte da sua pose. O seu conjunto para selva, feio por Yves St.Laurent, é muito mais importante para ele do que a própria selva, e eu lhe disse, como quem não quer nada, no momento em que ele esperava de mim que de bom grado concordasse que a floresta seria erótica, que não via ali nenhum erotismo – apenas obscenidade”.
Herzog segue seu relato, desta vez sobre os custos da filmagem e mais uma alusão aos ataques de fúria de Kinski : “Eu me assustei ao ver quanto dinheiro já gastamos, e W. simplesmente não queria acreditar nos números que Lucki apresentou, pois perdeu a noção de contexto.
Gritaria durante a filmagem hoje entre ele e K., depois da qual Miguel, o cacique, fez algumas leves insinuações sobre K., que todos os campas odeiam. Miguel me disse que eu devia ter percebido que seu pessoal se juntava em grupos e mantinha-se calado durante os ataques de fúria de K., mas eu não devia pensar que eles tinham medo dele – na verdade tinham medo era de mim, porque eu sempre ficava completamente calmo diante do colérico”.
Em Iquitos, Herzog continua seu relato, com mais curiosidades e mais uma descrição da personalidade colérica e vaidosa de Kinski : “Chegada de Lewgoy, Grande Otelo, Rui Polanah. Confusões noturnas com Lewgoy, que provavelmente pegou isangos na grama do campo de pouso em Camisea, como já ocorreu com Lucki, W. e Sluizer.
Os ácaros o fazem se coçar como um demente, e ele reclama que a coceira é por causa dos lençóis da casa de Paul, onde provisoriamente o hospedamos, já que o Holiday Inn está lotado. Quando a água acabou na cidade inteira e depois ainda ficamos sem luz, ele foi a pé para o Holiday Inn no meio da noite, aparentemente supondo haver ali as duas coisas.
Passamos a tarde nos figurinos, onde Kinski também estava e acabara de provar um alinhado terno azul-escuro, do qual gostou muito. Toda lógica, e o roteiro também, falava em favor do terno, mas quando o vi achei difícil reconhecê-lo como Fitzcarraldo; na imagem que internalizo, ele já se fixou como um arquétipo, com seu terno de linho claro e o grande chapéu de palha.
Eu lhe disse isso sem titubear, e percebi que ele estava a ponto de iniciar um ataque de fúria; então lhe expliquei que, quando eu visualizava Fitzcarraldo, muito tempo depois de o público ter assistido ao filme, ele precisava ser um conceito fenotipicamente firme, e o princípio férreo de um único terno branco só poderia ser quebrado no final, com um fraque – meu instinto sentenciava isso.
Hesitante entre a fúria e uma centelha de compreensão que se acendeu em K., de repente ele se mostrou bastante atento, e eu soube que ele me compreendera. Qualquer um que agora quisesse convencê-lo a usar o terno azul e lhe mostrasse a falta de lógica, ele expulsaria imediatamente com fúria intempestiva”.
Herzog faz um relato que é descritivo, na maioria das vezes, com eventuais divagações, faz um inventário do que é uma filmagem, contudo, em caráter sui generis, pois não é uma experiência de estúdio, mas uma aventura para dentro do coração da floresta, uma experiência única que reúne toda uma gama de características naturais e culturais, na obsessão somente possível de um diretor que não se sabe se é corajoso ou temerário, mas que, ao fim, nos entrega um resultado único de filmagem.
Não era a primeira ideia louca de Herzog ao filmar, já tínhamos tido isto com a filmagem de Aguirre, A Cólera dos Deuses, de 1972, e agora, em 1981, na filmagem de Fitzcarraldo, contudo, havia uma ideia mais extrema, que se tratava tão somente de atravessar um navio sobre uma montanha de uma margem de rio à outra.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.