PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

POEMA IDIOTINHA

Venham os idiotas com seus
hemistíquios, na casa dos lobos
os idiotas nos governam,
qual idiotas inveterados
são idiotas profissionais.

Eu penso o seguinte :
vamos iludir o populacho
com cambalachos e estelionato,
não temos nada a perder,
farei minha delação
e não vou ressarci-los,
ha ha ha ha ha!

Ah, peraí bobinho,
você pensou que eu
comprei esta farsa?

Faça de conta que não viu
e saia assobiando,
seus podres estão
à vista.

31/12/2019 Gustavo Bastos 

O PENSAMENTO EM ESTADO DE FLORAÇÃO


Brota nas alturas das sombras o elmo que revira as astúcias qual poemas podres de poderes cáusticos. Lia Allen Ginsberg dentro da editora de Ferlinghetti, não via saída para Cassady na linha do trem, sua cabeça foi esmagada. Ria alto depois da chuva, não lia nada que me aborrecesse, nada enfadonho, pensava em estudar Química e cinemática escalar, não via interesse em deambulações adolescentes depois dos trinta.
No roteiro estava escrito certos cortes, não lia a fotografia na descrição da cena, o fade out era postiço, não rimava com a aparição do protagonista, era uma chuva de erros de continuidade e uma febre bruta de cantos improvisados. Caros leitores, eu não via nenhum motivo para aprovar o roteirista, o chamei a um canto e disse umas verdades : ele não tinha talento, falei para ele fazer outra coisa da vida etc, e ele me xingou e quebrou minha caneca de caveira, saiu revoltado e disse que aquilo não ficaria assim, o esculhambei e não tomei conhecimento de seu ódio.
Jogral das rimas, o bobo elencava depois mais uma aventura de tolo, destas aventuras de utópicos que não têm aonde cair morto, poetas de livretos carcomidos de esquina, que fumam mais maconha do que escrevem etc. Ah, não sou ingênuo, lia de novo Ginsberg e gargalhava quando ele tartamudeava na prosa, um improviso de jazz que fumava ardorosamente enquanto rimava.
Ferlinghetti, de chofre, era a verdadeira cabeça pensante, eu não via mais a estrada de Kerouac senão no cinema, e não via mais grande coisa em citar route 66 para tirar onda de “easy rider”, poeta maldito, e estas baboseiras que vendem nos letreiros dos carros e nos out-doors de vendas a jato. Pois sim, puto da vida eu xinguei o motorista de filho da puta, disse a ele que ele tinha passado do ponto, ele me chutou e me jogou na esquina perto de uma boca de fumo, mas eu tinha largado o vício, fiz que não tinha acontecido nada, e saí com uma fleuma qual altivo ego de pombo.
Cortei umas batatas para fazer um prato que inventei, salada de pank com cebola e batatas, não sabia fazer, não li tutorial, cortei também uns tomates, e taquei pimenta, ficou uma merda. Resolvi que ler era melhor, escrever nem tanto, passei a Whitman, desisti. Fui ler Baudelaire, De Quincey, viciados em ópio, Lord Byron, putanheiros que viviam em notas de rodapé, ébrios amalucados que sonhavam em ser épicos, iludidos que pensavam ser gênios, gênios que não estavam nem aí, e projetos abortados por suicídio.
Ginsberg, neste ponto da história, citava Omar Khayann, ah, eu lia o Islã como uma mofa para machistas inveterados, destes governos totalitários que tratam mulheres como bibelôs, e fumam haxixe de tarde para rezar no ramadã em jejum. Nada de novo no front, o baixo clero é como baixa magia, obscurece a mente e faz mal ao coração, nada de novo, tudo velho, com velhacos e delirantes pré-iluministas. O coração das trevas anuncia : Kurtz está no timão, e vai matar seus escravos com tiro de espingarda, suando álcool na testa. Como no romance de Conrad, um ataque contra a degeneração dos costumes, que sempre precisa de um tirano imprevisível.
Reto vai um buda preguiçoso, rimar com os vagabundos iluminados, os poetas bobos que confundem iluminação com vício e decadência, em seus cantos infrutíferos que não passam de versos feitos sob fumaça e ilusão, nada que a consciência desperta considere no mínimo esperto ou inteligente, uma imposição de fracasso que não tem nada de útil na estrada da porrada e da vitória. Volto com mais vigor, já tinha lido todos os sacanas e embusteiros da História, vendi meus livros lidos, e fui ler Hegel, Kant, só filosofia alemã, fiz que entendi a Crítica da Razão Pura e os juízos sintéticos a priori, mas preferia citar o imperativo categórico, e depois de cair em Fichte passei logo e correndo para os bandoleiros de Schiller, este sim um campeão que competia com Goethe, um fausto astuto que era a antítese de um Werther lacrimoso e destinado à morte ritual.
Caiba nesta fábula o que disse, os mártires são idiotas, me recuso a morrer. Vai andando pelo caminho seu poeta pândego, como uma estrela potente que faz plêiade e faz jazz e blues com letras de rock.
Nota final : este poema astuto não foi produzido sob efeito de estupefacientes.

31/12/2019 Gustavo Bastos (poema em prosa).

O POETA CAÇADOR

Ave, entre as rezas montanhosas
eu pintava de vermelho as rosas
coloquiais dos poemas bonitos,

já na rua, com os notívagos
que entram e saem,
o número de loteria me indicava
o prêmio qual utopia,
um canto de ébrios soava
o alarme, era hora de eu
pegar o meu arpão,
ir atrás de um marlin azul
que seria o poeta azul
que virou abóbora
depois do naufrágio,

ah, este estro de parnaso
e suas afetações de mármore,
este putos romantiloides
e seus mimos aguados,
ah, que porre vou
tomar à meia-noite,

e ser eu o ébrio de bruma
em pele de cobra e couro
de réptil, qual um grande
frêmito de sangue frio
e precisão de cirurgião,
eu e meu estilete,
cortando os corações
de seus exangues delírios
de plêiades,

eu, a marretar os mármores
de parnaso e seus castelos
de marfim e frisos castiços,
eu, o borra-botas
que virou falcão,
o déspota com o olho de águia
que captura um verso
no mar e o leva
à terra dos desolados
e dos capitães que
perderam seus navios.

31/12/2019 Gustavo Bastos

O LIVRO DO POETA-DOUTOR

Fecha comigo na página 7 :
depois do introito,
uma carta explosiva
e dançante.

Isto é, vou à página dez
e lá está escrito :
não escrevo nada sobre
o que escrevo,
sou um intuitivo.

Depois de um vinho,
já na página trinta,
lá está :
eu sou eu mesmo quando
finjo estar sendo
eu mesmo,

por fim, depois de uma
série interminável de
poemas bumerangues
até à página noventa
e nove, no epílogo
das páginas cem a
cento e dois,
lá está dito :

volte à carta,
lá coloquei minhas dinamites,
aqui digo : eu danço
e encanto teus lençóis.

31/12/2019 Gustavo Bastos

CLARVOYANT

The clarvoyant read the news
and fell down with
his treasures,

like a terrible nightmare
he wrote a letter against
the censorship of those
bounds of pain,

in his dream like a castle
he sang freely on those
mountains he´d like
to draw when he was a child,

the clarvoyant act in his
dream through the walls
of sorrow and among
the army of freedom,

he teached the beggars,
he saved the life
from nothingness,

and he sang again
during the trip
of bloom.

31/12/2019 Gustavo Bastos

PARAÍSOS ARTIFICIAIS

A sintaxe que se abre é uma
bebida premium com o estalo
de cantorias brotadas de caos,

ali, na hora dos vigias,
um delírio leviano chamuscava
e o palavrório operístico
encantava os teatros
com suas madames atávicas,

o samba, de chofre,
prorrompia qual azáfama
alucinado com brio sincopado,

depois, já do sexo refeito,
o dândi semeava seus escritos
nos lagares dos langores
que a festa da morfina
lhe proporcionava,

ah, o silêncio dos soníferos
em baladas em que a penúria
caía no olvido das graças
infinitas da alucinação
e seus paraísos artificiais.

31/12/2019 Gustavo Bastos

A CIDADE

A cidade abre as portas com
a fé dos poetas nas sombras
do acaso que furioso destino
tece entre os gritos,

ah, desde a fé mais pueril
ou aquela fé pétrea que
derruba arengas
como um trator
de linha reta,

a cidade tem ventríloquos
que se disfarçam em seus
teatrinhos de bonecos,
a cantar na chuva dos prantos
seus inferninhos alegrinhos,

a cidade tem desta astúcia
a fábula urbana qual gerânio,
e o passo largo das calçadas
entre os atropelados
das curvas absurdas,

a cidade faz de poema-piada,
a rir dos alcoólatras
e dar sopapos
em mendigos.

31/12/2019 Gustavo Bastos

DOSE CAVALAR

Em certa manhã universal,
quando batiam os dobres
das badaladas d`aurora,
eu precisava dourar os mistérios
com a dose cavalar de ópio
sob as cobertas com o estro de febre
que delira num campo de mártires,

ou seja, em minha túnica azul cobalto,
indubitável, qual supremo sábio,
a elencar das flores botânicas
o canto de soror e seus vinhos
de fêmeas tatuadas,
qual licor que do ventre
à cabeça molha os endereços
perdidos de amores bêbados,

desta feita, no caminho dos ritos
e manjares, anuncia em seu
tabernáculo o vulto de propaganda
entre os intermezzos da paixão,
e rutila meu passarinho
na alvissareira montanha
entre as monções
do crepúsculo.

31/12/2019 Gustavo Bastos 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

GURUS E CURANDEIROS – PARTE XVII


“O Reverendo Moon fundou a Igreja da Unificação em 1954”

O Reverendo Moon fundou a Associação das Famílias para Unificação e Paz Mundial, dentre outras associações, espalhadas no mundo. Tem como obra em livro principal a Exposição do Princípio Divino. Umas de suas funções conhecidas era a de celebrar casamentos em massa. Moon também foi dono de um conglomerado bilionário na área de comunicações, de automóveis, remédios, armas, turismo, publicidade e outras atividades mais.
E o Reverendo Moon decidiu comprar terras no Mato Grosso do Sul e também do lado paraguaio, e nos anos 1990 o Reverendo Moon iniciou um projeto de fazer da cidade de Jardim uma colônia coreana, para onde afluíram tanto coreanos como japoneses. Pelos seus métodos de doutrinação, o Reverendo Moon foi proibido de entrar no Reino Unido em 1995, e em 1982 foi preso nos Estados Unidos por suborno de parlamentares, sonegação fiscal, e especulação acionária.
A Igreja da Unificação foi fundada pelo Reverendo Moon em Seul, na Coreia do Sul. O livro sobre o Princípio Divino foi a base da teologia desta igreja, e tal doutrinação passa pela ideia de que Deus, através de Jesus, escolheu o Reverendo Moon para concluir a missão de Jesus, como uma espécie de segundo advento para terminar o trabalho do Messias.
As controvérsias do movimento de Unificação passam pela política, como nos temas da reunificação coreana e do anticomunismo, sendo um movimento criticado por eruditos judeus e também cristãos, e Moon e sua esposa foram também proibidos de entrar nos países signatários do Acordo de Schengen, como a Alemanha, por exemplo.
A igreja do Reverendo Moon no Brasil começou a ser investigada pela Polícia Federal em dezembro de 2001, com suspeitas de lavagem de dinheiro, uso de documentos falsos, estelionato e problemas trabalhistas, em 2002 chegou a ter uma operação de busca e apreensão tanto em São Paulo como no Mato Grosso do Sul.
No município de Jardim o Reverendo Moon chegou a ser considerado como Deus, com um projeto de erguer ali o Reino dos Céus na Terra. Para os fiéis do Reverendo, ele é o Verdadeiro Pai, e sua esposa, Hak Ja Han, a Verdadeira Mãe, e tudo que diz respeito à seita, por fim, é entendido pelos fiéis como “Verdadeiro”.
A fazenda Nova Esperança, por sua vez, no município de Jardim, foi fundada para virar um verdadeiro paraíso terrestre, e com diversos workshops, o Reverendo Moon consegue fazer a combinação de religião com finanças, com o Reverendo que tinha como objetivo tornar Nova Esperança num modelo autossuficiente de criação de animais e de lavouras, indo dali para todo o Mato Grosso do Sul, para o Brasil, América Latina e dali para o mundo.
O Reverendo Moon fundou a Igreja da Unificação em 1954 para concluir a missão que Jesus lhe confiou quando o mesmo lhe apareceu quando o Reverendo tinha 16 anos. Moon aparece então aos seus fiéis como o novo Messias, com a função de mostrar a salvação por meio da família.
Contudo, essa imagem de entidade espiritual só vigorava dentro de seu círculo de ação, pois na própria Coreia ele já era acusado de orgias sexuais. Depois nos Estados Unidos tiveram novas denúncias, como citei acima neste texto. Mas, mesmo diante de problemas com a justiça, o Reverendo Moon conseguiu fundar um império de empresas diversas.
O cálculo da fortuna do Reverendo Moon em vida, no seu auge, é um caso obscuro, ele tinha tanto o patrimônio próprio, como tinha ajuda financeira para o movimento de empresários japoneses e coreanos. Pode ser que a fortuna do Reverendo Moon chegasse a somar cerca de US$ 8 bilhões, com aportes nos Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão. E grande parte desta fortuna foi aplicada no projeto utópico no município de Jardim.
E o Reverendo usou seu poder econômico para seduzir os populares da região, muitos evangélicos e católicos, por exemplo, e que tiveram chance de emprego graças ao Reverendo, sendo assim um meio de cooptação e de conversão à igreja do Reverendo. O Reverendo Moon morreu em 3 de setembro de 2012 de pneumonia.

(Obs : Caros leitores, estou saindo de férias e retorno em fevereiro de 2020, para encerrar esta série sobre os gurus e trazendo novidades para a coluna, boas festas!)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.



sexta-feira, 29 de novembro de 2019

GURUS E CURANDEIROS – PARTE XVI


“Muitos estudiosos apontam Thomas como uma farsa, um ilusionista, e nem é um dos melhores”

No Brasil, Thomas Green Morton apareceu como alguém dotado de capacidades sobrenaturais, cujo dom era produzir fenômenos inexplicáveis apenas usando a mente, o que levou Thomas a ser considerado, em certo ponto, o maior paranormal do Brasil. Seu auge foi nos anos 1970 e 1980, passando por um período de ostracismo nos anos 1990, foi ressuscitado pelo Fantástico da Rede Globo no início do século XXI e depois voltou ao esquecimento novamente.
Thomas, no entanto, era considerado por muitos parapsicólogos como uma fraude, e muitas vezes se esquivou de participar de experiências controladas por cientistas, ao contrário de Uri Geller, que chegou a ser testado, e Thomas então seguiu um caminho midiático com fenômenos registrados em vídeo e apresentados na televisão.
Thomas até os doze anos foi uma criança normal, até que em 1959 houve uma mudança abrupta, sua vara de pesca foi atingida por um raio e ele foi jogado para trás, batendo no chão e levitando. Ele teve um desdobramento e viu seu próprio corpo recebendo as luzes de uma nuvem escura.
E veio uma voz desta nuvem e disse : “Thomaz… Várias forças te protegeram… protegeram… A partir deste momento, terás um poder mental muito grande. Poderás curar, ajudar as pessoas a resolver problemas diversos. Chegarás a fazer coisas impossíveis, inexplicáveis. Escute bem. Não esqueça! Guarde este pedaço de varinha pelo resto de sua vida e a toda pessoa que precisar de alguma força, ou de resolver algum problema dê um pedacinho desta varinha. Basta que a pessoa tenha fé e faça um pedido todos os dias às 18 horas e terá o problema resolvido. Você não poderá usar esta força para seu próprio proveito. Este pedacinho de varinha será um meio de sintonização com todas as forças cósmicas e divinas e você formará através dela, uma corrente mental e espiritual muito grande e muito poderosa”. Foi quando começou a história que daria no movimento da Mentalização Positiva.
Thomas, depois de voltar de um circo e fascinado com um número de hipnotismo, aplicou isto em um amigo e deu certo, ele dormiu, começava a história de Thomas como paranormal. E com os anos as habilidades de Thomas foram se desenvolvendo, tais como telepatia, teleporte, projeções, atuação sobre metais, depois fenômenos de energia perfumada. E Thomas então, em Divisa Nova, na fazenda de sua irmã Sônia, tem seus contatos com luzes extradimensionais, conhecidas orbs ou ultras. E Thomas passa também a fazer cirurgias psíquicas e observa óvnis na sua casa em Três Corações.
E a conhecida palavra “Rá” surgiu em 1980, depois de ouvir um ruído na sala da pirâmide, na propriedade de sua prima. Ele fez uma cirurgia psíquica, depois deste ruído, uma pedra atravessou a vidraça sem quebrar nada e pousou na sala da câmara planetária, lugar das energizações. Thomas pegou a pedra e levou um choque, e nos sinais que tinha na pedra, o nome Rá lhe surgiu com grande força, e ele passou a usar esta expressão para liberação de energia positiva.
Muitos estudiosos apontam Thomas como uma farsa, um ilusionista, e nem é um dos melhores, ao ponto de já ter sido flagrado com um flash fotográfico que saiu antes da hora de seu famoso grito Rá, o que era um truque barato para seus fenômenos luminosos.
E o desmascaramento de Thomas se deu pelo ilusionista Khronnus, no programa do Fantástico, demonstrando que todos os fenômenos feitos por Thomas eram truques baratos de ilusionismo, com os raios de luz sendo flashes fotográficos. A história do Fantástico começou na série Paranormal, quando Thomas começou a ser questionado e foi desafiado pelo mágico James Randi, que já havia desmascarado Uri Geller nos anos 1980, e prometeu a Thomas um milhão de dólares caso provasse a veracidade de seus poderes. Depois de aceitar o desafio, Thomas, contudo, desapareceu. E o Fantástico foi investigar, descobrindo que Thomas atuara como mágico em Três Corações, antes da fama.
E mesmo diante da revelação dos truques de Thomas, como a da moeda torta (para quê serve uma coisa desta no mundo prático, mesmo se fosse autêntico, de fato não sei, uma coisa frívola, como as cadeiras girantes), pelo Fantástico, ele teve defensores como Ivo Pitanguy que disse que Thomas entortou talheres seus sem tocar em nenhum deles, Sepúlveda Pertence, que foi ministro do Supremo, que disse que Thomas tratou a sua mulher que esteve doente, e Elba Ramalho que afirmou já ter visto Thomas levitar.

Link recomendado : Especial 1º Abril: Thomaz Green Morton, o homem do rá :


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.



segunda-feira, 18 de novembro de 2019

ANA MARTINS MARQUES E A POESIA COTIDIANA


“uma poesia com precisão nos detalhes”

Na poética do espaço, por sua vez, Ana Martins Marques nos dá como tema o espaço do lar, a imagem poética da casa, aqui mais uma vez reforçando a relação de parte da poesia contemporânea brasileira com temas do cotidiano. O espaço interior, a imagem do dentro, ao mesmo tempo, está aqui fora do mundo, o limiar entre uma vivência particular, o dentro, entra neste contraste com o mundo exterior, criando este limiar entre uma poesia íntima e o que fica fora deste lugar particular.
Em poemas como “Arquitetura de Interiores” do livro A Vida Submarina, temos este contraste entre dentro e fora, com a ideia de limiar tencionando todo o poema. E neste mesmo livro há toda uma série com este tema da casa, com a porta sempre como este limiar que tenciona a casa com o mundo exterior.
Na poética de Ana Martins Marques temos toda uma série de utensílios que irão compor a sua paisagem de poemas do cotidiano, desde xícaras lascadas até encanamentos, com a poesia dos utensílios ou a poesia das coisas aqui virando, de modo amplo, a poesia da casa. Com o tema do cotidiano em Ana Martins Marques, temos aqui uma herança que vem do Modernismo, e que passa, claro, por Ana Cristina César, esta influência indisfarçável para muitos poetas brasileiros contemporâneos, sem demérito, ao contrário, e que também vem de Chacal, Cacaso e Adélia Prado.
Temos, também, nos poemas de A Vida Submarina, a imagem da casa como fonte da memória e não apenas de um ímpeto objetivo e de uma poesia descritiva, a imagem dos afetos e a relação memorial de objetos com vivências, também amorosas, aparece nesta poesia do cotidiano de Ana Martins Marques. O espaço da casa, que tem, de um lado, nostalgia amorosa, também vira campo de anelo e sonho, uma paisagem imaginada ideal, impulsionando o poema que parte deste espaço particular.
Em Da Arte das Armadilhas, a concentração objetiva deste cotidiano, de uma poesia da casa, aumenta, aprofundando um microcosmo que aqui aparece com mais nitidez do que em A Vida Submarina. E finalmente, em O Livro das Semelhanças, esta relação entre dentro e fora se intensifica de modo mais amplo, com o tema metapoético do poema e do livro, culminando em poemas cartográficos, com o tema do mapa como o “fora” que a poesia busca.
Um ponto interessante é também de como a poeta vai edificar a sua subjetividade a partir deste espaço da casa, pois, partindo de uma linguagem cotidiana, inicialmente descritiva, logo vemos se desenhar nos poemas de Ana Martins Marques sobre a casa, a sua condição subjetiva, tanto de memória como de sonho, e a construção de sua reflexão pessoal partindo deste espaço de subjetivação particular que é do verbo habitar e que vem do substantivo casa.
A poesia de Ana Martins Marques, por fim, compõe um espaço de subjetivação e construção do eu lírico que não se limita numa poesia da casa e do cotidiano tomada como simples descrição objetiva e comezinha, mas como lugar em que a poeta reconfigura seu espaço objetivo e familiar e nos aponta para algo desconhecido.
Tal rearranjo cotidiano é próprio da linguagem poética se confrontando com sua reflexão subjetiva e o choque desta com o mundo objetivo da casa, uma poesia com precisão nos detalhes que, ao fim, coloca a poeta nesta tensão entre sua casa e o mundo, uma poesia do dentro e do fora que reconfigura a realidade com uma poesia atenta aos detalhes e que se forja entre o eu lírico e uma interação deste com o cotidiano, agora redesenhado pela linguagem poética.
POEMAS :
SEM TÍTULO : O poema vem com o tema do mapa, este contato da poesia de Ana Martins Marques com o mundo, com o que está fora, no que vem : “E então você chegou/como quem deixa cair/sobre um mapa/esquecido aberto sobre a mesa/um pouco de café uma gota de mel/cinzas de cigarro/preenchendo/por descuido/um qualquer lugar até então/deserto”. E seu interlocutor, aqui incógnito, deixa seu rastro no mapa, como que preenchendo o vazio, seja o deserto do mapa, ou um deserto na poeta que ali olhava o mapa.
SEM TÍTULO : O poema fala sobre a dobra do mapa que aproxima cidades distantes e corações que desejam se encontrar, o mapa dobrado junta o que tá longe, no que temos : “Você fez questão/de dobrar o mapa/de modo que nossas cidades/distantes uma da outra/exatos 1720 km/fizessem subitamente/fronteira”. A fronteira que se faz aqui é do gesto de dobrar um mapa, distância que aqui acaba neste gesto poético.
SEM TÍTULO : O mapa aqui aparece mais uma vez como a indicação do caminho para um encontro, no que vem : “Você assinala no mapa/o lugar prometido do encontro/para o qual no dia seguinte me dirijo”. O lugar assinalado logo vira a pressa do desejo, sempre este afoito, que esquece o mapa sobre a mesa, viagem perdida, no que temos : “a pressa feroz do desejo/deixando no entanto esquecido sobre a mesa o/mapa que me levaria/onde?”.
SEM TÍTULO : O poema tem o mapa do mundo aqui descrito de modo físico, disposto de forma que pode ser modificado ao gosto da poeta, no que temos : “Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem/mas posso esquecer uma laranja sobre o México/desenhar um veleiro sobre a Índia”. Ana Martins Marques tem aqui a onipotência de manipular seu mapa ao bel prazer, no que segue : “duplicar a África com um espelho/criar sobre o Atlântico um círculo de água/pousando sobre ele meu copo de cerveja/circunscrever a Islândia com meu anel de noivado”. A intervenção física do mapa como um papel disposto aqui vira imagem de poder à poeta de revirar um mundo inteiro com pequenos gestos, no que temos : “visitar os nomes das cidades/levar o mundo a passeio/por ruas conhecidas/abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse/apenas para que tome/algum sol”.
SEM TÍTULO : O poema aqui, mais uma vez, usa da imagem do mapa como fonte para a imagem poética do encontro, no que temos : “Viajo olhando pela janela do ônibus/em busca das linhas vermelhas das fronteiras/ou dos nomes luminosos das cidades”. O poema segue aqui com o estudo detido da poeta sobre o mapa como modo de encontrar o caminho ao seu interlocutor, no que temos : “e eu passava horas estudando/todos os caminhos que me levariam até você/mas nos mapas eu nunca te encontrava”. A poeta aqui especula, sonha, delira, e na conjectura tenta realizar um anelo meio solto, que fica neste poema, ao ver do mapa a sua esperança de um caminho direto : “talvez você me espere na rodoviária/talvez eu te veja ainda antes de descer do ônibus/assim que descer vou entregar nas suas mãos/emboladas num novelo/as linhas desfeitas das fronteiras e/como as contas luminosas de um colar/cada um dos nomes das cidades”.
SEM TÍTULO : O poema segue com o tema do mapa, agora como um efeito da chuva que influi toda a descrição poética que o poema desenha, aqui também com a imagem física do mapa fazendo uma linha com sua associação com o que o mapa representa, no que segue : “Abro o mapa na chuva/para ver/pouco a pouco/diluírem-se as fronteiras” (...) “as cores confundidas/nem parecem mais aleatórias” (...) “agora há um grande lago/onde antes havia uma cordilheira/o mar não é mais molhado/do que o deserto logo ao lado”. O mapa, tomado como objeto físico, ganha a sua proporção gigante de descrição do mundo, interagindo este microcosmo com uma vastidão de fronteiras e países, entre insetos que dominam o cenário, e que Ana Martins Marques aproveita aqui para brincar de modo genial, no que temos : “Deixo depois o mapa/para secar ao sol/sobre a grama do jardim/mais rápidas do que aviões/as formigas atravessavam/de um continente a outro/uma lagarta riscada/apossou-se das Coreias/agora unificadas/um tapete de folhas/cobre o mar Egeu/e o rastro de uma lesma umedeceu/o Atacama”. E diante desta festa da natureza, a poeta deixa o mapa para um pequeno inseto novo lhe dar a feição, ao fim este mapa se dobraria sobre si mesmo, revelando lugares secretos, no que temos : “Penso que se deixasse o mapa aí/tempo o bastante/em algum momento surgiria/quem sabe/um pequeno inseto novo/com esse dom que têm os bichos/e as pedras e as flores e as folhas/de imitarem-se/uns aos outros” (...) “Quando enfim/fechássemos o mapa/o mundo se dobraria sobre si mesmo/e o meio-dia/recostado sobre a meia-noite/iluminaria os lugares/mais secretos”.
POEMAS :
SEM TÍTULO
E então você chegou
como quem deixa cair
sobre um mapa
esquecido aberto sobre a mesa
um pouco de café uma gota de mel
cinzas de cigarro
preenchendo
por descuido
um qualquer lugar até então
deserto

SEM TÍTULO
Você fez questão
de dobrar o mapa
de modo que nossas cidades
distantes uma da outra
exatos 1720 km
fizessem subitamente
fronteira

SEM TÍTULO
Você assinala no mapa
o lugar prometido do encontro
para o qual no dia seguinte me dirijo
com apenas café preto o bilhete só de ida do metrô
a pressa feroz do desejo
deixando no entanto esquecido sobre a mesa o
mapa que me levaria
onde?

SEM TÍTULO
Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem
mas posso esquecer uma laranja sobre o México
desenhar um veleiro sobre a Índia
pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma
como se fossem unhas
duplicar a África com um espelho
criar sobre o Atlântico um círculo de água
pousando sobre ele meu copo de cerveja
circunscrever a Islândia com meu anel de noivado
ou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele
uma moeda média
visitar os nomes das cidades
levar o mundo a passeio
por ruas conhecidas
abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse
apenas para que tome
algum sol

SEM TÍTULO
Viajo olhando pela janela do ônibus
em busca das linhas vermelhas das fronteiras
ou dos nomes luminosos das cidades
pairando sobre elas
como nos mapas
neles não ventava nem chovia
e nunca era noite
e eu passava horas estudando
todos os caminhos que me levariam até você
mas nos mapas eu nunca te encontrava
chego em duas ou três horas
o coração no peito como um pão
ainda quente na mochila
talvez você me espere na rodoviária
talvez eu te veja ainda antes de descer do ônibus
assim que descer vou entregar nas suas mãos
emboladas num novelo
as linhas desfeitas das fronteiras e
como as contas luminosas de um colar
cada um dos nomes das cidades

SEM TÍTULO
Abro o mapa na chuva
para ver
pouco a pouco
diluírem-se as fronteiras
as cidades borradas
diminuem de distância
as cores confundidas
nem parecem mais aleatórias
perderam aquele modo abrupto
com que as cores mudam nos mapas
agora há um grande lago
onde antes havia uma cordilheira
o mar não é mais molhado
do que o deserto logo ao lado

Deixo depois o mapa
para secar ao sol
sobre a grama do jardim
mais rápidas do que aviões
as formigas atravessavam
de um continente a outro
uma lagarta riscada
apossou-se das Coreias
agora unificadas
um tapete de folhas
cobre o mar Egeu
e o rastro de uma lesma umedeceu
o Atacama
uma formiga enamorou-se
de um vulcão
exatamente do seu tamanho
um dos polos
ficou à sombra
e resfriou-se mais que o outro
de longe não sei se são moscas
ou os nomes das cidades

Penso que se deixasse o mapa aí
tempo o bastante
em algum momento surgiria
quem sabe
um pequeno inseto novo
com esse dom que têm os bichos
e as pedras e as flores e as folhas
de imitarem-se
uns aos outros
um pequeno inseto novo
eu dizia
um novo besouro talvez
que trouxesse desenhado nas costas
o arquipélago de Cabo Verde
ou as finas linhas das fronteiras
entre a Argélia e a Tunísia

Quando enfim
fechássemos o mapa
o mundo se dobraria sobre si mesmo
e o meio-dia
recostado sobre a meia-noite
iluminaria os lugares
mais secretos

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.



                


domingo, 27 de outubro de 2019

O MITO BRASILEIRO

O Brasil ruiu entre
pólos que se digladiam,
o butim do óbvio
que pulula,
a rachadura em uma
direita de baixo clero
no poder,

a direita chauvinista
que fez crer do mito
seu delírio,

e faz da esquerda o títere
que faz arenga
em lula livre,
mantra que engessa
todo o discurso,
outro mito
a derruir as bases
de um novo caminho,

a mitologia política
e seus salvadores da pátria,
desta pátria infantil
que precisa de heróis,
mesmo que sejam
mitos.

27/10/2019 Gustavo Bastos

AS LUTAS DA PENÍNSULA

A Catalunha grita por liberdade,
a Espanha em seu sonho delirante
juntou as nações sob
uma herança franquista,
bascos, aragoneses, navarros,
a dor em Granada
depois da expulsão
dos árabes,

nunca um parlamentarismo
foi tão inconstante,
nomeia sem maioria,
novas eleições,
e surgem novas
frentes,

do Podemos um novo sonho,
mas temos a nova direita,
a ditar de dentro dos basfonds,
novas velhas direções,

se pende ao PSOE novamente,
um Sánchez redivivo,
e um cadáver insepulto
e autoritário
que brada contra
os independentistas
de Barcelona e Tarragona,
em que o sangue e o fogo
se impõem.

27/10/2019 Gustavo Bastos

DIÁSPORA CONTRA O PODER

Ao fio da espada estouram
as revoluções de veludo,
efeito dominó
entre as nações.

E nos dias de hoje
venho ver Órban
a descortinar sua
xenofobia com um
Fidesz obscuro,
a Polônia tão
perseguida
ser engolfada
pela Lei e Justiça,

ah, que dentre estes
povos não morra
o cosmopolitismo
da imigração,
para uma nação
de povos,
e não barbarismos
atávicos de
delírios medievos,
qual nostalgia
passadista.

27/10/2019 Gustavo Bastos

OS CURDOS

Os curdos se armam
no exército de libertação,
este, o povo sem destino,
na liberdade de sobreviver
seu atinar ao átimo
de se armar,

entre as fronteiras da Síria
e da Turquia, mais lépidos
no Iraque, contra nuvens
tóxicas do Daesh,
contra Erdogan,
com santos do pau oco
de seu partido dos trabalhadores,
também eles herdeiros
do terror,

a nação sem país,
vítima da divisão
fria dos territórios,
ao fim de um sonho
otomano de seus
califas e sultões
de barro.

27/10/2019 Gustavo Bastos

OS MITOS E AS LEIS

Já penso em como Che
não soube mais de seu caminho,
escolheu morrer
na Bolívia,
seu destino lhe chamando
ao grito das balas,

eu, vendo os horrores do Haiti,
as ilusões de Havana,
as lutas renhidas
em Kingston,
sei da febre
em Tegucigalpa
e das hordas
que morrem
no cartel de Sinaloa,
a dizer que El Chapo
era o vilão cruel,
qual foi Pablo Escobar
nas suas pirotecnias
em Medelín,
o mito cruel
do crime
que vira História.

27/10/2019 Gustavo Bastos

FÚRIA LATINO-AMERICANA

Na noite dos tambores,
entre os endividados,
estoura o choque.

A América Latina grita
entre as fumaças,
Piñera se assusta
com a explosão
em Santiago,
eclode a fúria
em Quito,
Lenín Moreno
se refugia
em Guayaquil,

eu vejo ceder no Uruguai
a Frente Ampla,
e os estertores de Macri
no país que revive um peronismo
redivivo em unidade,
com a La Cámpora
na periferia esperando
de Férnandez
sua anuência,

ah, se este grito renasce
no Brasil, a manada
vai ao Planalto com
a sede dos que não
creem em mitos.

27/10/2019 Gustavo Bastos

UMA MOÇA CAROLINE

A cantarolar : ah, sorte ou azar!
A moça Caroline em sua
estrela não se fia
em fraqueza ou langor,
em seu campo de batalha
fica forte como uma leoa,
guerreira de luz
em seus passos firmes
e quedas sublimes,

a moça Caroline vem de longe,
lá das terras mais brutas
da batalha, e seguiu
seu sonho como uma flecha,
acertando o seu alvo
em cheio.

27/10/2019 Gustavo Bastos

PAOLA COM MEL

Arde doce qual mel
na noite de melodia,
e se jacta qual
flor no fastígio,

brio em seu floral de
azul e rosa,
da botânica
a orquídea
em seu coração,

plena, das asas
a mais formosa,
e profunda
em sua hora
de brilho,

a hora da estrela,
de seu mel
o meu dharma,
de seu mel
a minha visão
livre que
sente o peito
cheio da luz
prometida.

27/10/2019 Gustavo Bastos

PAOLA NAS NUVENS

Sobe e desce, volteia entre
madeixa e anca,
se encanta de palavra
e holofote,
tem olhar forte,
qual felina.

Já lá, no alto do sonho,
não se deixa entrever
o que pensa,
mas me dá sinal,
diretamente.

Ou, por outros caminhos,
meio que enigma,
meio que já respondido,
faz que não faz,
e aparece num átimo
com sorriso e simpatia,
fazendo das suas,

segue o caminho,
este da via estelar,
como sempre quis.

27/10/2019 Gustavo Bastos

VIAGEM DO TEMPO

Canto d´areia esta miragem,
qual voragem e floração,
festa de paisagem,
explosão da visão.

Me livra deste canto caudaloso,
tempo sombrio deste Deus
surdo e supremo,
golpeando o meu mármore
para que ele fique
esperto, e despertando
minha fúria para
que a espada
corte este tempo
de guerra entre
o fio e o poder
da palavra,

canto d`areia o sangue,
venho por ter do
flagelo o grito primal
da ousadia, qual cometa
de andrômeda
à via láctea.

27/10/2019 Gustavo Bastos

DESÍGNIOS DOS ARCANOS DA POESIA

É bom que a paisagem não se desenhe
sempre por expectativas,
que sempre as contrarie,
demolindo as certezas
com seus uivos delirantes,
um bom martelo
destrói para poder
edificar nova obra,
o espanto como guia
e a força como caminho
único destas visões,

não se engane, os arcanos
têm seus desígnios
para a poesia,
e lhes surpreende,
aos ignaros,
os tambores da História
quando lhes estouram
os tímpanos,

pois a poesia é campo de batalha,
e nesta quem é forte
não se cala,
e falando qual
boca de fumaça,
queima com destreza
o inimigo.

27/10/2019 Gustavo Bastos

OS ANACRÔNICOS

A letra dos iletrados
é o canto geral,
faz de todo alfarrábio
canto supérfluo,
fonte melíflua
de poetaços
castiços,
citando
inúmeros
cantochões
anacrônicos,
e um hinário
de antiquário.

A língua da pátria viva
ignora solene os atavios
rebuscados dos pretensos
trovadores feéricos,
e lhes ri de suas roupagens
que edulcoram o kitsch
como se fosse
uma vanguarda
meio aparvalhada,
feita dos basfonds
das sobras e raspas
dos que se foram.

27/10/2019 Gustavo Bastos

CANTO TRIUNFANTE

Quebrem os muros da Turíngia à Bavária,
e me venho dentre os odores
da Bretanha, descer os Alpes
qual aventureiro,

passo aos Pirineus com uivos e laivos,
altiplano de neve, um ósculo
de novo, lá em Bergen,
entre as auroras boreais,

sem lamúrias dos fracos,
sem os lamentos dos derrotados,
um uivo esteta entre
as brutas noites
da Islândia,
um calendário novo
entre os ditos de Londres,
uma capa de revista
entre os passos
de alamedas
de Champs-Elysées,

o grito cruel da vitória,
abrindo os portões
do Arco do Triunfo.

27/10/2019 Gustavo Bastos 

MANTO DA NOTE DA INFÂMIA

Já está lá a bazófia
dos gabolas,
a cantarolar bêbados
sua desonra,
com cantos estourados
do tímpano, e beberagem
cultuando a infâmia,

lá, entre as noites putanheiras
e o sal da coca entre
as narinas,

lá, onde o inferno é mais
misterioso que a morte,
e os suicidas anunciam
suas galhofas
de puro álcool,

vem ver o gabola
cair em si,
da queda mais
brutal da tarde,
trincando os dentes
no seu encontro
com a morte.

27/10/2019 Gustavo Bastos

O VINHO DO BATISMO

Num átimo o poeta sestroso
quebra em pedacinhos
os sonhos do idiota,
cruel com espada
e sábio como
adaga,

vem de espanto ao cobre
e bronze em canções de
prata e um ouro maciço,
e duro qual diamante
faz sua geologia
de ataque,

contrafortes entre as fortalezas,
a virtude da força é a
qualidade da guerra,
e envelhece bem como
vinho, em odre batizado
com a audácia
das feras.

27/10/2019 Gustavo Bastos

CÉU INFINITO

As fronteiras que desenho
são sem portas,
passo direto
ao azul, e por frestas
não me detenho.

Do azul o sumo tenho,
e por vias estranhas
encanto o encanto
de tons do sal
e do sol,
e neste azul
faço o céu.

As densas moradas
deste sonho, as diluo
em leve canto,
e pelos ares brilhosos
deste azul, com o céu
me deliro e me espanto,
deste céu todo azul
tenho o canto,

pois todo azul, o céu
me desenha, e a fronteira
já não existe, eu me
perco no infinito.

27/10/2019 Gustavo Bastos

BATALHAS FEÉRICAS

A fonte enuncia o brilho
de uma água doce,
o plano que se desenha
na fonte é o ímã
da poesia fluida,

ah, mas vem com esta
de morder a isca,
qual peixe
encalacrado,
em um banquete
risonho
de espanto
eclode,

dando à danação seu destino,
e as alvíssaras ao poeta,
como um cabedal,
como um ímã,
do qual a seiva
prorrompe
e a inspiração
tonteia
em pena
de anarquia,

venho por estas bandas de cá,
caminhando qual esteta
para bulir com
uma estrela,

da lua à febre matutina,
d`aurora qual fúria
de arrebol,
o crepúsculo das eras
fazem da constelação
a noite dos cometas,
qual noite feérica
que surge da
poesia visionária,

para lá dos campos deste páramo,
como uma dor ardorosa,
um clamor para os tambores,
os amores ressurgem
em fastígio depois
da guerra,
e o rito de poesia
em sangue flui
pelo corpo inteiro,
e passa indômito
como flor na floração
e canções de novas
estações,

o visionário, em noite delirante,
prorrompe qual enxurrada
que grita os diamantes
no plenilúnio e sorri
para o vinho desta
noite febril.

27/10/2019 Gustavo Bastos 

OS OLHOS DA GUERRA

Quando os olhos lacrimejam de sal,
as portas do céu se abrem
na emoção primeva.

Era tarde no anúncio das tabelas
perdidas e dos planos malfadados,
eu estava entre os dramas
e as tragédias,
e no fio da navalha,
fazia esgares
de comédia,

bruto o passo que ia dar,
e a queda se deu,
da queda mais bruta
da noite,

os olhos do silêncio testemunharam
o grito sem piscar,

ah, e foi enorme o susto
das asas sob o aço
mais profundo,
como um baque
ou uma explosão,

o poeta sorria entre os cacos
de um vício enfermo,
e seu canto se deu
na nuvem torrencial,

lá, ou me mato ou me afogo,
lá, onde a noite mata
o sonho e o delírio,

venho, de dentro do coração sujo,
elencar os hinos ébrios
das brutas canções,
enumerar os hiatos
e os impasses,
fundar a aporia
e a contradição,

lá, ou fico aqui, vivo,
ou morro de ataque
no flanco dos heróis.

27/10/2019 Gustavo Bastos

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

ANA MARTINS MARQUES NA POESIA CONTEMPORÂNEA


“uma consciência poética bem trabalhada e madura”

Ana Martins Marques é uma poeta brasileira da cepa atual, e que vem de publicações bem sucedidas como A Vida Submarina de 2009, e aí veio Da Arte das Armadilhas de 2011, livro que venceu o prêmio Biblioteca Nacional de Literatura na categoria de poesia. E aqui venho falar de O Livro das Semelhanças, este livro que, por sua vez, foi lançado em 2015.
O seu livro de estreia A Vida Submarina tem um volume um pouco maior de poemas, pois soma um total de cento e dez poemas, todos de curta duração, uma lauda na média, livro este dividido em sete seções : Barcos de Papel, Arquitetura de Interiores, A Outra Noite, Episteme & Epiderme, Exercícios para a noite e o dia, Caderno de caligrafia, e a última seção, A vida submarina.
As temáticas de Ana aqui em A Vida Submarina já nos aparecem, que são a viagem e os mapas, a casa, o cotidiano, e o tema da própria poesia, que vai produzir um conteúdo de metapoesia. E, em um retorno ao lirismo de certa poesia contemporânea, depois de um distanciamento a partir da geração marginal dos anos 1970, temos este lirismo também presente na produção poética de Ana Martins Marques. Aqui, no entanto, já temos um lirismo herdado dos anos 1980 em diante, uma versão mais sóbria, a lírica entendida aqui como a manifestação subjetiva, depois de um desaparecimento deste sujeito durante boa parte da poesia do século XX.
Por sua vez, o estatuto do eu poético sofreu mutações diversas desde sua versão arrebatada e extática vinda do Romantismo, este sujeito exaltado que desaparece no Simbolismo e depois nas Vanguardas. E as versões aguadas, de uma subjetivação nauseante do Romantismo se tornou algo deslocado e datado. E na versão do sujeito na poesia contemporânea, por sua vez, neste retorno ao eu lírico, aqui se trata de uma versão que não cai em tentações melodramáticas ou de aflições de um sujeito sentimental no sentido de um transbordamento adjetivado ou exclamativo.
Portanto, a lírica contemporânea não é dada aos arroubos sentimentais de afetação romântica, aqui temos uma sobriedade de um sujeito que atua de modo discreto, a experiência do sujeito com o mundo, nesta versão de um lirismo contemporâneo, portanto, tem um modus operandi muito mais sutil do que as obviedades de um sujeito exaltado que parece o tempo todo colapsar através de sentimentos excessivos.
O lirismo contemporâneo usa uma subjetividade que mal se identifica, o eu lírico aqui tem um diálogo com o mundo com termos sóbrios de um observador atento, que conhece a vida cotidiana em suas exigências, e que, por conseguinte, se coloca em um lugar de entendimento direto, a subjetividade do poeta aqui tem uma certa veia mundana, observa, e quando sente, não cai em afetação ou numa versão forçada de aflições. O lirismo contemporâneo, por fim, ganha uma plasticidade comum que se aproxima da realidade vivida pelo leitor.
A dicção poética de Ana Martins Marques mantém este lirismo novo em seus livros posteriores. No livro Da Arte das Armadilhas temos um livro menor que seu debut, e que nos apresenta duas partes denominadas, a primeira, Interiores, e a outra, da arte das armadilhas, a primeira parte com dezessete poemas e a segunda parte com trinta e nove poemas. Aqui os temas de contraste entre o dentro e o fora são, por sua vez, os temas da casa e da viagem. E neste contraste, na jornada de Odisseu, temos Penélope, como o lugar familiar da casa, e Circe, a feiticeira, no tema da distância e da viagem.
Já em O Livro das Semelhanças temos um exercício bem interessante de metapoesia, e que dialoga e até introjeta várias influências poéticas, com a permanência dos temas do dentro e do fora. Aqui o tema de contraste é da própria estrutura do livro, portanto, a experiência metapoética aqui vai mais longe, temos sobretudo, em O Livro das Semelhanças, a experiência do livro.
Posso dizer, sem ter dúvidas, que como poeta, quando li este livro, tive a sensação de ter lido um dos livros de poemas mais bem pensados e organizados que já li, um leitmotiv de uma premeditação que juntou fragmentos em uma lógica única, como um grande bloco monolítico, a minha sensação é de ter feito um trajeto coerente, e que não se trata de uma premeditação estudada, no sentido pejorativo do termo, mas sim do produto acabado de uma consciência poética bem trabalhada e madura, e que aqui se chama tanto O Livro das Semelhanças, como a própria poeta Ana Martins Marques.
A temática do livro já começa em O Livro das Semelhanças, num sentido literal, com elementos tipográficos, com poemas com títulos como capa, título, dedicatória, e logo em seguida um poema intitulado “Ideias para um livro”, reforçando esta experiência do livro, para além da metapoética em si, um metalivro, se assim posso dizer, soando meio ridículo. E logo temos, depois desta introdução insólita, a primeira parte do livro, seção denominada “Livro”, que tem vinte poemas. E temos, em seguida, mais três seções, intituladas “Cartografias”, “Visitas ao lugar-comum” e o “O Livro das Semelhanças”. Partes estas que somam mais quarenta e nove poemas. E os temas-valise da poesia de Ana Martins Marques também aparecem em O Livro das Semelhanças, que são o mar, o mapa, com temas gregos e mitológicos também.

O LIVRO DAS SEMELHANÇAS

POEMAS :

IDEIAS PARA UM LIVRO : Ana Martins Marques nos dá a experiência do livro, no que segue : “Uma antologia de poemas escritos/por personagens de romance”. A imagem da antologia, e que vem insólita, poemas escritos por personagens de romance, um livro feito pela ficção, de um poema aqui imaginário, e segue a poeta : “Uma antologia de poemas—epitáfios”. Metapoesia em metalivro, a experiência insólita de estar fora ou vendo a estrutura do poema e do livro do lado de fora, desdobramento radical, mas que aqui, e isto é muito doido, se trata de um poema, e o estamos lendo, no que segue : “Uma antologia de poemas que citem/o nome dos poetas que os escreveram”. Citação, os livros, antologia e livro, cabedal que se dá em um único poema, um mundo literário concentrado na imagem deste livro de antologias, de poetas citados, um mundo vasto comprimido neste poema todo, tudo em um, no que segue : “Um livro de poemas/que sejam ideias para livros de poemas”. Segue aqui o poema numa metapoética insólita, a experiência desdobrada da poeta aqui é insana, reunião de ideias para um livro, e vem a coda, nos dar o próprio livro que lemos, O Livro das Semelhanças, no que temos, por fim : “Este livro de poemas”.

PARTE I – LIVRO :

PRIMEIRO POEMA : O poema fala do poema, metapoesia, no que temos : “O primeiro verso é o mais difícil/o leitor está à porta/não sabe ainda se entra/ou só espia/se se lança ao livro/ou finalmente encara/o dia”. E aí, quando o poema convida o leitor, temos a imagem do dia, que nos leva ao cotidiano, no que vem : "o dia : contas a pagar/correspondência atrasada/congestionamentos/xícaras sujas”. E a poeta é bem simples em sua estrofe final, num estribilho que conclui sem mais, tranquilizando o leitor : “aqui ao menos não encontrarás,/leitor,/xícaras sujas”.

SEGUNDO POEMA : O segundo poema desenvolve o primeiro, no que segue : “Agora supostamente é mais fácil/o pior já passou; já começamos/basta manter a máquina girando/pregar os olhos do leitor na página”. O poema vem para manter a atenção do leitor, um certo sentido de alerta nos dá o trabalho próprio do poeta para com o leitor, no que segue : “arrastando consigo/a embarcação que é este livro/torcendo pra que ele não o deixe”. O trabalho do poeta aqui se trata, portanto, de um exercício com o estado de atenção do leitor, e poderíamos dizer também, como não, de sedução, no que temos : “pra isso só contamos com palavras/estas mesmas que usamos todo dia”. Eis o ponto, a poeta diz, são palavras, no que segue : “escada que depois deitamos fora/aqui elas são tudo o que nos resta/e só com elas contamos agora”. O poema (e também o poeta) aqui sabe que pode descartar as palavras, se deita fora coisas inúmeras sem parar neste trabalho incessante, mas é com as palavras que o poeta sempre conta.

O ENCONTRO : Este poema interessante nos convida ao encontro, no que segue : “Combinamos de nos encontrar num livro”. O Livro das Semelhanças aqui com o tema do livro, sim, este livro, o livro do livro, a experiência literária aqui como a experiência do livro, aqui em sentido desdobrado, um metalivro, para usar um termo estrambótico, mas foi o que encontrei, mas, contudo, temos uma sequência formidável, no que segue : “combinamos de nos encontrar num mapa/depois da terceira dobra/entre as manchas de umidade/e a cidade circulada de azul”. O tema do mapa, estendendo o tema do livro para a visão do mundo, e o mundo que vira carta, o tema que vai encontrar no poema a visão, enfim, do cotidiano, no que temos : “combinamos de nos encontrar/na primeira carta/entre a frase estúpida em que reclamo da falta de dinheiro/e a única palavra escrita à mão” (...) “combinamos de nos encontrar/no jornal do dia, em algum lugar/entre os acidentes de automóveis/e as taxas de câmbio”. E o poema, então, na sua coda, faz a poeta dar o ponto de chegada da jornada deste poema, nos encontramos, ao fim, neste poema : “combinamos de nos encontrar/neste poema”.

NÃO SEI FAZER POEMAS SOBRE GATOS : O poema, inspirado na gatografia de Ana Cristina César, tem o nome da poeta inscrito, no que temos : “Não sei gatografia./Ana Cristina César”. E o poema, na tentativa falha de simular a experiência de Ana C. com a sua gatografia, é um desastre, o gato, ágil, escapa do poema, e as palavras fogem, Ana Martins Marques se diz incapaz de capturar o gato, e o poema vem : “Não sei fazer poemas sobre gatos/se tento logo fogem/furtivas/as palavras” (...) “não capturam do gato”. O poema segue seu caminho em demonstrar uma experiência falha, e a poeta, toda humilde, dá a coda, eis seu poema sobre gatos : “a folha recém-impressa/página branca com manchas negras :/eis o meu poema sobre gatos”.

BOA IDEIA PARA UM POEMA : O poema em sua experiência de metapoesia, vem : “Anotei uma frase num caderno/encontrei-a algum tempo depois/pareceu-me uma boa ideia para um poema/escrevi-o rapidamente”. A ideia aqui entra em conflito com sua originalidade, a poeta não se lembra de ter anotado isto de outro poema, ela parece lembrar que é uma citação, e seu poema entra em parafuso, no que segue : “logo depois me ocorreu que a frase anotada no caderno/parecia uma citação/pensei me lembrar que a copiara de um poema”. E a poeta pensa, se a frase lhe tivesse escapado da memória de que era uma cópia então esta frase seria dela ou não, uma pergunta insólita feita num poema de complexidade e desdobramento insanos, no que segue : “pensei : se eu não tivesse me lembrado de que a/frase não era minha/ela seria minha?/pensei : se eu me lembrasse onde li todas as frases/que escrevi/alguma seria minha?”. A poeta se aprofunda nesta pergunta nuclear, e pensa em se livrar do poema, fica em dúvida, também, se o poema é bom, e segue : “pensei : é um plágio se ninguém nota?/pensei : devo livrar-me do poema?/pensei : é um poema tão bom assim?”. A coda é de uma esperteza visceral, que conclui, de modo direto : “pensei : nem era um poema tão bom assim”.

POEMAS REUNIDOS : A poeta aqui nos brinda com versos bem humorados, tudo bem interessante, no que segue : “Sempre gostei dos livros/chamados poemas reunidos/pela ideia de festa ou de quermesse/como se os poemas se encontrassem”. Os poemas se reúnem, vivos, as imagens aqui se sucedem, numa enxurrada, se tratando da reunião dos poemas, no que segue : “como ex-colegas de colégio” (...) “como combatentes/numa arena/galos de briga” (...) “como ministros de estado/numa cúpula/ou escolares em excursão/como amantes secretos/num quarto de hotel/às seis da tarde”. Sinto, contudo, que a enumeração se torna excessiva, a criatividade da poeta aqui vira uma repetição enfadonha, um poema que começa interessante cai numa tentação meio tartamuda, o resultado poderia ter sido tão interessante quanto a sua abertura sensacional, mas ao fim a dicção gagueja.

POEMAS :

IDEIAS PARA UM LIVRO

I

Uma antologia de poemas escritos
por personagens de romance

II

Uma antologia de poemas-
-epitáfios

III

Uma antologia de poemas que citem
o nome dos poetas que os escreveram

IV

Uma antologia de poemas
que atendam às condições II e III

V

Um livro de poemas
que sejam ideias para livros de poemas

VI

Este livro
de poemas

PARTE I – LIVRO

PRIMEIRO POEMA

O primeiro verso é o mais difícil
o leitor está à porta
não sabe ainda se entra
ou só espia
se se lança ao livro
ou finalmente encara
o dia

o dia : contas a pagar
correspondência atrasada
congestionamentos
xícaras sujas

aqui ao menos não encontrarás,
leitor,
xícaras sujas

SEGUNDO POEMA

Para Paulo Henriques Britto
Agora supostamente é mais fácil
o pior já passou; já começamos
basta manter a máquina girando
pregar os olhos do leitor na página

como botões numa camisa ou um peixe
preso ao anzol, arrastando consigo
a embarcação que é este livro
torcendo pra que ele não o deixe

pra isso só contamos com palavras
estas mesmas que usamos todo dia
como uma mesa um prego uma bacia

escada que depois deitamos fora
aqui elas são tudo o que nos resta
e só com elas contamos agora

O ENCONTRO

Combinamos de nos encontrar num livro
na página 20, linhas 12 e 13, ali onde se diz que
privar-se de alguma coisa
também tem seu perfume e sua energia

combinamos de nos encontrar num mapa
depois da terceira dobra
entre as manchas de umidade
e a cidade circulada de azul

combinamos de nos encontrar
na primeira carta
entre a frase estúpida em que reclamo da falta de dinheiro

e a única palavra escrita à mão

combinamos de nos encontrar
no jornal do dia, em algum lugar
entre os acidentes de automóveis
e as taxas de câmbio

combinamos de nos encontrar
neste poema, na última palavra
da segunda linha
da segunda estrofe de baixo para cima

NÃO SEI FAZER POEMAS SOBRE GATOS

Não sei gatografia.
Ana Cristina César

Não sei fazer poemas sobre gatos
se tento logo fogem
furtivas
as palavras
soltam-se ou
saltam
não capturam do gato
nem a cauda
sobre a mesa
quieta e quente
a folha recém-impressa
página branca com manchas negras :
eis o meu poema sobre gatos

BOA IDEIA PARA UM POEMA

Anotei uma frase num caderno
encontrei-a algum tempo depois
pareceu-me uma boa ideia para um poema
escrevi-o rapidamente
o que é raro
logo depois me ocorreu que a frase anotada no caderno

parecia uma citação
pensei me lembrar que a copiara de um poema
pensei me lembrar que lera o poema numa revista
procurei em todas as revistas
são muitas
não encontrei
pensei : se eu não tivesse me lembrado de que a
frase não era minha

ela seria minha?
pensei : se eu me lembrasse onde li todas as frases
que escrevi

alguma seria minha?
pensei : é um plágio se ninguém nota?
pensei : devo livrar-me do poema?
pensei : é um poema tão bom assim?
pensei : palavras trocam de pele, tanto roubei por
[amor, em quantos e quantos livros já li
histórias sobre nós dois
pensei : nem era um poema tão bom assim

POEMAS REUNIDOS

Sempre gostei dos livros
chamados poemas reunidos
pela ideia de festa ou de quermesse
como se os poemas se encontrassem
como parentes distantes
um pouco entediados
em volta de uma mesa
como ex-colegas de colégio
como amigas antigas para jogar cartas
como combatentes
numa arena
galos de briga
cavalos de corrida ou
boxeadores num ringue
como ministros de estado
numa cúpula
ou escolares em excursão
como amantes secretos
num quarto de hotel
às seis da tarde
enquanto sem alegria apagam-se as flores do papel
de parede

Link recomendado : Prêmio Oceanos: 'O livro das semelhanças', de Ana Martins Marques : https://www.youtube.com/watch?v=MReAm-i-hlA

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.