“uma consciência poética bem trabalhada e madura”
Ana Martins Marques é uma poeta brasileira da cepa atual, e
que vem de publicações bem sucedidas como A Vida Submarina de 2009, e aí veio
Da Arte das Armadilhas de 2011, livro que venceu o prêmio Biblioteca Nacional
de Literatura na categoria de poesia. E aqui venho falar de O Livro das
Semelhanças, este livro que, por sua vez, foi lançado em 2015.
O seu livro de estreia A Vida Submarina tem um volume um
pouco maior de poemas, pois soma um total de cento e dez poemas, todos de curta
duração, uma lauda na média, livro este dividido em sete seções : Barcos de
Papel, Arquitetura de Interiores, A Outra Noite, Episteme & Epiderme,
Exercícios para a noite e o dia, Caderno de caligrafia, e a última seção, A
vida submarina.
As temáticas de Ana aqui em A Vida Submarina já nos aparecem,
que são a viagem e os mapas, a casa, o cotidiano, e o tema da própria poesia,
que vai produzir um conteúdo de metapoesia. E, em um retorno ao lirismo de
certa poesia contemporânea, depois de um distanciamento a partir da geração
marginal dos anos 1970, temos este lirismo também presente na produção poética
de Ana Martins Marques. Aqui, no entanto, já temos um lirismo herdado dos anos
1980 em diante, uma versão mais sóbria, a lírica entendida aqui como a
manifestação subjetiva, depois de um desaparecimento deste sujeito durante boa
parte da poesia do século XX.
Por sua vez, o estatuto do eu poético sofreu mutações
diversas desde sua versão arrebatada e extática vinda do Romantismo, este
sujeito exaltado que desaparece no Simbolismo e depois nas Vanguardas. E as
versões aguadas, de uma subjetivação nauseante do Romantismo se tornou algo
deslocado e datado. E na versão do sujeito na poesia contemporânea, por sua
vez, neste retorno ao eu lírico, aqui se trata de uma versão que não cai em
tentações melodramáticas ou de aflições de um sujeito sentimental no sentido de
um transbordamento adjetivado ou exclamativo.
Portanto, a lírica contemporânea não é dada aos arroubos
sentimentais de afetação romântica, aqui temos uma sobriedade de um sujeito que
atua de modo discreto, a experiência do sujeito com o mundo, nesta versão de um
lirismo contemporâneo, portanto, tem um modus operandi muito mais sutil do que
as obviedades de um sujeito exaltado que parece o tempo todo colapsar através
de sentimentos excessivos.
O lirismo contemporâneo usa uma subjetividade que mal se
identifica, o eu lírico aqui tem um diálogo com o mundo com termos sóbrios de
um observador atento, que conhece a vida cotidiana em suas exigências, e que,
por conseguinte, se coloca em um lugar de entendimento direto, a subjetividade
do poeta aqui tem uma certa veia mundana, observa, e quando sente, não cai em
afetação ou numa versão forçada de aflições. O lirismo contemporâneo, por fim,
ganha uma plasticidade comum que se aproxima da realidade vivida pelo leitor.
A dicção poética de Ana Martins Marques mantém este lirismo
novo em seus livros posteriores. No livro Da Arte das Armadilhas temos um livro
menor que seu debut, e que nos apresenta duas partes denominadas, a primeira,
Interiores, e a outra, da arte das armadilhas, a primeira parte com dezessete
poemas e a segunda parte com trinta e nove poemas. Aqui os temas de contraste
entre o dentro e o fora são, por sua vez, os temas da casa e da viagem. E neste
contraste, na jornada de Odisseu, temos Penélope, como o lugar familiar da
casa, e Circe, a feiticeira, no tema da distância e da viagem.
Já em O Livro das Semelhanças temos um exercício bem
interessante de metapoesia, e que dialoga e até introjeta várias influências
poéticas, com a permanência dos temas do dentro e do fora. Aqui o tema de
contraste é da própria estrutura do livro, portanto, a experiência metapoética
aqui vai mais longe, temos sobretudo, em O Livro das Semelhanças, a experiência
do livro.
Posso dizer, sem ter dúvidas, que como poeta, quando li este
livro, tive a sensação de ter lido um dos livros de poemas mais bem pensados e
organizados que já li, um leitmotiv de uma premeditação que juntou fragmentos
em uma lógica única, como um grande bloco monolítico, a minha sensação é de ter
feito um trajeto coerente, e que não se trata de uma premeditação estudada, no
sentido pejorativo do termo, mas sim do produto acabado de uma consciência
poética bem trabalhada e madura, e que aqui se chama tanto O Livro das
Semelhanças, como a própria poeta Ana Martins Marques.
A temática do livro já começa em O Livro das Semelhanças, num
sentido literal, com elementos tipográficos, com poemas com títulos como capa,
título, dedicatória, e logo em seguida um poema intitulado “Ideias para um
livro”, reforçando esta experiência do livro, para além da metapoética em si,
um metalivro, se assim posso dizer, soando meio ridículo. E logo temos, depois
desta introdução insólita, a primeira parte do livro, seção denominada “Livro”,
que tem vinte poemas. E temos, em seguida, mais três seções, intituladas
“Cartografias”, “Visitas ao lugar-comum” e o “O Livro das Semelhanças”. Partes
estas que somam mais quarenta e nove poemas. E os temas-valise da poesia de Ana
Martins Marques também aparecem em O Livro das Semelhanças, que são o mar, o
mapa, com temas gregos e mitológicos também.
O LIVRO DAS SEMELHANÇAS
POEMAS :
IDEIAS PARA UM LIVRO : Ana Martins Marques nos dá a
experiência do livro, no que segue : “Uma antologia de poemas escritos/por
personagens de romance”. A imagem da antologia, e que vem insólita, poemas
escritos por personagens de romance, um livro feito pela ficção, de um poema
aqui imaginário, e segue a poeta : “Uma antologia de poemas—epitáfios”. Metapoesia
em metalivro, a experiência insólita de estar fora ou vendo a estrutura do
poema e do livro do lado de fora, desdobramento radical, mas que aqui, e isto é
muito doido, se trata de um poema, e o estamos lendo, no que segue : “Uma
antologia de poemas que citem/o nome dos poetas que os escreveram”. Citação, os
livros, antologia e livro, cabedal que se dá em um único poema, um mundo
literário concentrado na imagem deste livro de antologias, de poetas citados,
um mundo vasto comprimido neste poema todo, tudo em um, no que segue : “Um
livro de poemas/que sejam ideias para livros de poemas”. Segue aqui o poema
numa metapoética insólita, a experiência desdobrada da poeta aqui é insana,
reunião de ideias para um livro, e vem a coda, nos dar o próprio livro que
lemos, O Livro das Semelhanças, no que temos, por fim : “Este livro de poemas”.
PARTE I – LIVRO :
PRIMEIRO POEMA : O poema fala do poema, metapoesia,
no que temos : “O primeiro verso é o mais difícil/o leitor está à porta/não
sabe ainda se entra/ou só espia/se se lança ao livro/ou finalmente encara/o dia”.
E aí, quando o poema convida o leitor, temos a imagem do dia, que nos leva ao
cotidiano, no que vem : "o dia : contas a pagar/correspondência atrasada/congestionamentos/xícaras
sujas”. E a poeta é bem simples em sua estrofe final, num estribilho que conclui
sem mais, tranquilizando o leitor : “aqui ao menos não encontrarás,/leitor,/xícaras
sujas”.
SEGUNDO POEMA : O segundo poema desenvolve o
primeiro, no que segue : “Agora supostamente é mais fácil/o pior já passou; já
começamos/basta manter a máquina girando/pregar os olhos do leitor na página”.
O poema vem para manter a atenção do leitor, um certo sentido de alerta nos dá
o trabalho próprio do poeta para com o leitor, no que segue : “arrastando
consigo/a embarcação que é este livro/torcendo pra que ele não o deixe”. O
trabalho do poeta aqui se trata, portanto, de um exercício com o estado de
atenção do leitor, e poderíamos dizer também, como não, de sedução, no que
temos : “pra isso só contamos com palavras/estas mesmas que usamos todo dia”.
Eis o ponto, a poeta diz, são palavras, no que segue : “escada que depois
deitamos fora/aqui elas são tudo o que nos resta/e só com elas contamos agora”.
O poema (e também o poeta) aqui sabe que pode descartar as palavras, se deita
fora coisas inúmeras sem parar neste trabalho incessante, mas é com as palavras
que o poeta sempre conta.
O ENCONTRO : Este poema interessante nos convida
ao encontro, no que segue : “Combinamos de nos encontrar num livro”. O Livro
das Semelhanças aqui com o tema do livro, sim, este livro, o livro do livro, a
experiência literária aqui como a experiência do livro, aqui em sentido
desdobrado, um metalivro, para usar um termo estrambótico, mas foi o que
encontrei, mas, contudo, temos uma sequência formidável, no que segue : “combinamos
de nos encontrar num mapa/depois da terceira dobra/entre as manchas de umidade/e
a cidade circulada de azul”. O tema do mapa, estendendo o tema do livro para a
visão do mundo, e o mundo que vira carta, o tema que vai encontrar no poema a
visão, enfim, do cotidiano, no que temos : “combinamos de nos encontrar/na
primeira carta/entre a frase estúpida em que reclamo da falta de dinheiro/e a
única palavra escrita à mão” (...) “combinamos de nos encontrar/no jornal do
dia, em algum lugar/entre os acidentes de automóveis/e as taxas de câmbio”. E o
poema, então, na sua coda, faz a poeta dar o ponto de chegada da jornada deste
poema, nos encontramos, ao fim, neste poema : “combinamos de nos encontrar/neste
poema”.
NÃO SEI FAZER POEMAS
SOBRE GATOS : O
poema, inspirado na gatografia de Ana Cristina César, tem o nome da poeta
inscrito, no que temos : “Não sei gatografia./Ana Cristina César”. E o poema,
na tentativa falha de simular a experiência de Ana C. com a sua gatografia, é
um desastre, o gato, ágil, escapa do poema, e as palavras fogem, Ana Martins
Marques se diz incapaz de capturar o gato, e o poema vem : “Não sei fazer
poemas sobre gatos/se tento logo fogem/furtivas/as palavras” (...) “não
capturam do gato”. O poema segue seu caminho em demonstrar uma experiência falha,
e a poeta, toda humilde, dá a coda, eis seu poema sobre gatos : “a folha
recém-impressa/página branca com manchas negras :/eis o meu poema sobre gatos”.
BOA IDEIA PARA UM POEMA
: O poema em sua
experiência de metapoesia, vem : “Anotei uma frase num caderno/encontrei-a
algum tempo depois/pareceu-me uma boa ideia para um poema/escrevi-o rapidamente”.
A ideia aqui entra em conflito com sua originalidade, a poeta não se lembra de
ter anotado isto de outro poema, ela parece lembrar que é uma citação, e seu poema
entra em parafuso, no que segue : “logo depois me ocorreu que a frase anotada
no caderno/parecia uma citação/pensei me lembrar que a copiara de um poema”. E
a poeta pensa, se a frase lhe tivesse escapado da memória de que era uma cópia
então esta frase seria dela ou não, uma pergunta insólita feita num poema de
complexidade e desdobramento insanos, no que segue : “pensei : se eu não
tivesse me lembrado de que a/frase não era minha/ela seria minha?/pensei : se
eu me lembrasse onde li todas as frases/que escrevi/alguma seria minha?”. A
poeta se aprofunda nesta pergunta nuclear, e pensa em se livrar do poema, fica
em dúvida, também, se o poema é bom, e segue : “pensei : é um plágio se ninguém
nota?/pensei : devo livrar-me do poema?/pensei : é um poema tão bom assim?”. A
coda é de uma esperteza visceral, que conclui, de modo direto : “pensei : nem
era um poema tão bom assim”.
POEMAS REUNIDOS : A poeta aqui nos brinda com versos
bem humorados, tudo bem interessante, no que segue : “Sempre gostei dos livros/chamados
poemas reunidos/pela ideia de festa ou de quermesse/como se os poemas se
encontrassem”. Os poemas se reúnem, vivos, as imagens aqui se sucedem, numa
enxurrada, se tratando da reunião dos poemas, no que segue : “como ex-colegas
de colégio” (...) “como combatentes/numa arena/galos de briga” (...) “como
ministros de estado/numa cúpula/ou escolares em excursão/como amantes secretos/num
quarto de hotel/às seis da tarde”. Sinto, contudo, que a enumeração se torna
excessiva, a criatividade da poeta aqui vira uma repetição enfadonha, um poema
que começa interessante cai numa tentação meio tartamuda, o resultado poderia
ter sido tão interessante quanto a sua abertura sensacional, mas ao fim a
dicção gagueja.
POEMAS :
IDEIAS PARA UM LIVRO
I
Uma antologia de poemas escritos
por personagens de romance
II
Uma antologia de poemas-
-epitáfios
III
Uma antologia de poemas que citem
o nome dos poetas que os escreveram
IV
Uma antologia de poemas
que atendam às condições II e III
V
Um livro de poemas
que sejam ideias para livros de poemas
VI
Este livro
de poemas
PARTE I – LIVRO
PRIMEIRO POEMA
O primeiro verso é o mais difícil
o leitor está à porta
não sabe ainda se entra
ou só espia
se se lança ao livro
ou finalmente encara
o dia
o dia : contas a pagar
correspondência atrasada
congestionamentos
xícaras sujas
aqui ao menos não encontrarás,
leitor,
xícaras sujas
SEGUNDO POEMA
Para Paulo Henriques
Britto
Agora supostamente é mais fácil
o pior já passou; já começamos
basta manter a máquina girando
pregar os olhos do leitor na página
como botões numa camisa ou um peixe
preso ao anzol, arrastando consigo
a embarcação que é este livro
torcendo pra que ele não o deixe
pra isso só contamos com palavras
estas mesmas que usamos todo dia
como uma mesa um prego uma bacia
escada que depois deitamos fora
aqui elas são tudo o que nos resta
e só com elas contamos agora
O ENCONTRO
Combinamos de nos encontrar num livro
na página 20, linhas 12 e 13, ali onde se diz que
privar-se de alguma coisa
também tem seu perfume e sua energia
combinamos de nos encontrar num mapa
depois da terceira dobra
entre as manchas de umidade
e a cidade circulada de azul
combinamos de nos encontrar
na primeira carta
entre a frase estúpida em que reclamo da falta de dinheiro
e a única palavra escrita à mão
combinamos de nos encontrar
no jornal do dia, em algum lugar
entre os acidentes de automóveis
e as taxas de câmbio
combinamos de nos encontrar
neste poema, na última palavra
da segunda linha
da segunda estrofe de baixo para cima
NÃO SEI FAZER POEMAS
SOBRE GATOS
Não sei gatografia.
Ana Cristina César
Não sei fazer poemas sobre gatos
se tento logo fogem
furtivas
as palavras
soltam-se ou
saltam
não capturam do gato
nem a cauda
sobre a mesa
quieta e quente
a folha recém-impressa
página branca com manchas negras :
eis o meu poema sobre gatos
BOA IDEIA PARA UM POEMA
Anotei uma frase num caderno
encontrei-a algum tempo depois
pareceu-me uma boa ideia para um poema
escrevi-o rapidamente
o que é raro
logo depois me ocorreu que a frase anotada no caderno
parecia uma citação
pensei me lembrar que a copiara de um poema
pensei me lembrar que lera o poema numa revista
procurei em todas as revistas
são muitas
não encontrei
pensei : se eu não tivesse me lembrado de que a
frase não era minha
ela seria minha?
pensei : se eu me lembrasse onde li todas as frases
que escrevi
alguma seria minha?
pensei : é um plágio se ninguém nota?
pensei : devo livrar-me do poema?
pensei : é um poema tão bom assim?
pensei : palavras trocam de pele, tanto roubei por
[amor, em quantos e quantos livros já li
histórias sobre nós dois
pensei : nem era um poema tão bom assim
POEMAS REUNIDOS
Sempre gostei dos livros
chamados poemas reunidos
pela ideia de festa ou de quermesse
como se os poemas se encontrassem
como parentes distantes
um pouco entediados
em volta de uma mesa
como ex-colegas de colégio
como amigas antigas para jogar cartas
como combatentes
numa arena
galos de briga
cavalos de corrida ou
boxeadores num ringue
como ministros de estado
numa cúpula
ou escolares em excursão
como amantes secretos
num quarto de hotel
às seis da tarde
enquanto sem alegria apagam-se as flores do papel
de parede
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.