“uma poesia com precisão nos detalhes”
Na poética do espaço, por sua vez, Ana Martins Marques nos dá
como tema o espaço do lar, a imagem poética da casa, aqui mais uma vez
reforçando a relação de parte da poesia contemporânea brasileira com temas do
cotidiano. O espaço interior, a imagem do dentro, ao mesmo tempo, está aqui
fora do mundo, o limiar entre uma vivência particular, o dentro, entra neste
contraste com o mundo exterior, criando este limiar entre uma poesia íntima e o
que fica fora deste lugar particular.
Em poemas como “Arquitetura de Interiores” do livro A Vida
Submarina, temos este contraste entre dentro e fora, com a ideia de limiar
tencionando todo o poema. E neste mesmo livro há toda uma série com este tema
da casa, com a porta sempre como este limiar que tenciona a casa com o mundo
exterior.
Na poética de Ana Martins Marques temos toda uma série de
utensílios que irão compor a sua paisagem de poemas do cotidiano, desde xícaras
lascadas até encanamentos, com a poesia dos utensílios ou a poesia das coisas
aqui virando, de modo amplo, a poesia da casa. Com o tema do cotidiano em Ana
Martins Marques, temos aqui uma herança que vem do Modernismo, e que passa,
claro, por Ana Cristina César, esta influência indisfarçável para muitos poetas
brasileiros contemporâneos, sem demérito, ao contrário, e que também vem de
Chacal, Cacaso e Adélia Prado.
Temos, também, nos poemas de A Vida Submarina, a imagem da
casa como fonte da memória e não apenas de um ímpeto objetivo e de uma poesia
descritiva, a imagem dos afetos e a relação memorial de objetos com vivências,
também amorosas, aparece nesta poesia do cotidiano de Ana Martins Marques. O
espaço da casa, que tem, de um lado, nostalgia amorosa, também vira campo de
anelo e sonho, uma paisagem imaginada ideal, impulsionando o poema que parte
deste espaço particular.
Em Da Arte das Armadilhas, a concentração objetiva deste
cotidiano, de uma poesia da casa, aumenta, aprofundando um microcosmo que aqui
aparece com mais nitidez do que em A Vida Submarina. E finalmente, em O Livro
das Semelhanças, esta relação entre dentro e fora se intensifica de modo mais
amplo, com o tema metapoético do poema e do livro, culminando em poemas
cartográficos, com o tema do mapa como o “fora” que a poesia busca.
Um ponto interessante é também de como a poeta vai edificar a
sua subjetividade a partir deste espaço da casa, pois, partindo de uma
linguagem cotidiana, inicialmente descritiva, logo vemos se desenhar nos poemas
de Ana Martins Marques sobre a casa, a sua condição subjetiva, tanto de memória
como de sonho, e a construção de sua reflexão pessoal partindo deste espaço de
subjetivação particular que é do verbo habitar e que vem do substantivo casa.
A poesia de Ana Martins Marques, por fim, compõe um espaço de
subjetivação e construção do eu lírico que não se limita numa poesia da casa e
do cotidiano tomada como simples descrição objetiva e comezinha, mas como lugar
em que a poeta reconfigura seu espaço objetivo e familiar e nos aponta para
algo desconhecido.
Tal rearranjo cotidiano é próprio da linguagem poética se
confrontando com sua reflexão subjetiva e o choque desta com o mundo objetivo
da casa, uma poesia com precisão nos detalhes que, ao fim, coloca a poeta nesta
tensão entre sua casa e o mundo, uma poesia do dentro e do fora que reconfigura
a realidade com uma poesia atenta aos detalhes e que se forja entre o eu lírico
e uma interação deste com o cotidiano, agora redesenhado pela linguagem
poética.
POEMAS :
SEM TÍTULO : O poema vem com o tema do mapa, este
contato da poesia de Ana Martins Marques com o mundo, com o que está fora, no
que vem : “E então você chegou/como quem deixa cair/sobre um mapa/esquecido
aberto sobre a mesa/um pouco de café uma gota de mel/cinzas de cigarro/preenchendo/por
descuido/um qualquer lugar até então/deserto”. E seu interlocutor, aqui
incógnito, deixa seu rastro no mapa, como que preenchendo o vazio, seja o
deserto do mapa, ou um deserto na poeta que ali olhava o mapa.
SEM TÍTULO : O poema fala sobre a dobra do mapa
que aproxima cidades distantes e corações que desejam se encontrar, o mapa
dobrado junta o que tá longe, no que temos : “Você fez questão/de dobrar o mapa/de
modo que nossas cidades/distantes uma da outra/exatos 1720 km/fizessem
subitamente/fronteira”. A fronteira que se faz aqui é do gesto de dobrar um
mapa, distância que aqui acaba neste gesto poético.
SEM TÍTULO : O mapa aqui aparece mais uma vez
como a indicação do caminho para um encontro, no que vem : “Você assinala no
mapa/o lugar prometido do encontro/para o qual no dia seguinte me dirijo”. O
lugar assinalado logo vira a pressa do desejo, sempre este afoito, que esquece
o mapa sobre a mesa, viagem perdida, no que temos : “a pressa feroz do desejo/deixando
no entanto esquecido sobre a mesa o/mapa que me levaria/onde?”.
SEM TÍTULO : O poema tem o mapa do mundo aqui
descrito de modo físico, disposto de forma que pode ser modificado ao gosto da
poeta, no que temos : “Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem/mas
posso esquecer uma laranja sobre o México/desenhar um veleiro sobre a Índia”.
Ana Martins Marques tem aqui a onipotência de manipular seu mapa ao bel prazer,
no que segue : “duplicar a África com um espelho/criar sobre o Atlântico um
círculo de água/pousando sobre ele meu copo de cerveja/circunscrever a Islândia
com meu anel de noivado”. A intervenção física do mapa como um papel disposto
aqui vira imagem de poder à poeta de revirar um mundo inteiro com pequenos
gestos, no que temos : “visitar os nomes das cidades/levar o mundo a passeio/por
ruas conhecidas/abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse/apenas para
que tome/algum sol”.
SEM TÍTULO : O poema aqui, mais uma vez, usa da
imagem do mapa como fonte para a imagem poética do encontro, no que temos : “Viajo
olhando pela janela do ônibus/em busca das linhas vermelhas das fronteiras/ou
dos nomes luminosos das cidades”. O poema segue aqui com o estudo detido da
poeta sobre o mapa como modo de encontrar o caminho ao seu interlocutor, no que
temos : “e eu passava horas estudando/todos os caminhos que me levariam até
você/mas nos mapas eu nunca te encontrava”. A poeta aqui especula, sonha,
delira, e na conjectura tenta realizar um anelo meio solto, que fica neste
poema, ao ver do mapa a sua esperança de um caminho direto : “talvez você me
espere na rodoviária/talvez eu te veja ainda antes de descer do ônibus/assim
que descer vou entregar nas suas mãos/emboladas num novelo/as linhas desfeitas
das fronteiras e/como as contas luminosas de um colar/cada um dos nomes das
cidades”.
SEM TÍTULO : O poema segue com o tema do mapa,
agora como um efeito da chuva que influi toda a descrição poética que o poema
desenha, aqui também com a imagem física do mapa fazendo uma linha com sua
associação com o que o mapa representa, no que segue : “Abro o mapa na chuva/para
ver/pouco a pouco/diluírem-se as fronteiras” (...) “as cores confundidas/nem
parecem mais aleatórias” (...) “agora há um grande lago/onde antes havia uma
cordilheira/o mar não é mais molhado/do que o deserto logo ao lado”. O mapa,
tomado como objeto físico, ganha a sua proporção gigante de descrição do mundo,
interagindo este microcosmo com uma vastidão de fronteiras e países, entre
insetos que dominam o cenário, e que Ana Martins Marques aproveita aqui para
brincar de modo genial, no que temos : “Deixo depois o mapa/para secar ao sol/sobre
a grama do jardim/mais rápidas do que aviões/as formigas atravessavam/de um
continente a outro/uma lagarta riscada/apossou-se das Coreias/agora unificadas/um
tapete de folhas/cobre o mar Egeu/e o rastro de uma lesma umedeceu/o Atacama”.
E diante desta festa da natureza, a poeta deixa o mapa para um pequeno inseto
novo lhe dar a feição, ao fim este mapa se dobraria sobre si mesmo, revelando
lugares secretos, no que temos : “Penso que se deixasse o mapa aí/tempo o
bastante/em algum momento surgiria/quem sabe/um pequeno inseto novo/com esse
dom que têm os bichos/e as pedras e as flores e as folhas/de imitarem-se/uns
aos outros” (...) “Quando enfim/fechássemos o mapa/o mundo se dobraria sobre si
mesmo/e o meio-dia/recostado sobre a meia-noite/iluminaria os lugares/mais
secretos”.
POEMAS :
SEM TÍTULO
E então você chegou
como quem deixa cair
sobre um mapa
esquecido aberto sobre a mesa
um pouco de café uma gota de mel
cinzas de cigarro
preenchendo
por descuido
um qualquer lugar até então
deserto
SEM TÍTULO
Você fez questão
de dobrar o mapa
de modo que nossas cidades
distantes uma da outra
exatos 1720 km
fizessem subitamente
fronteira
SEM TÍTULO
Você assinala no mapa
o lugar prometido do encontro
para o qual no dia seguinte me dirijo
com apenas café preto o bilhete só de ida do metrô
a pressa feroz do desejo
deixando no entanto esquecido sobre a mesa o
mapa que me levaria
onde?
SEM TÍTULO
Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem
mas posso esquecer uma laranja sobre o México
desenhar um veleiro sobre a Índia
pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma
como se fossem unhas
duplicar a África com um espelho
criar sobre o Atlântico um círculo de água
pousando sobre ele meu copo de cerveja
circunscrever a Islândia com meu anel de noivado
ou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele
uma moeda média
visitar os nomes das cidades
levar o mundo a passeio
por ruas conhecidas
abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse
apenas para que tome
algum sol
SEM TÍTULO
Viajo olhando pela janela do ônibus
em busca das linhas vermelhas das fronteiras
ou dos nomes luminosos das cidades
pairando sobre elas
como nos mapas
neles não ventava nem chovia
e nunca era noite
e eu passava horas estudando
todos os caminhos que me levariam até você
mas nos mapas eu nunca te encontrava
chego em duas ou três horas
o coração no peito como um pão
ainda quente na mochila
talvez você me espere na rodoviária
talvez eu te veja ainda antes de descer do ônibus
assim que descer vou entregar nas suas mãos
emboladas num novelo
as linhas desfeitas das fronteiras e
como as contas luminosas de um colar
cada um dos nomes das cidades
SEM TÍTULO
Abro o mapa na chuva
para ver
pouco a pouco
diluírem-se as fronteiras
as cidades borradas
diminuem de distância
as cores confundidas
nem parecem mais aleatórias
perderam aquele modo abrupto
com que as cores mudam nos mapas
agora há um grande lago
onde antes havia uma cordilheira
o mar não é mais molhado
do que o deserto logo ao lado
Deixo depois o mapa
para secar ao sol
sobre a grama do jardim
mais rápidas do que aviões
as formigas atravessavam
de um continente a outro
uma lagarta riscada
apossou-se das Coreias
agora unificadas
um tapete de folhas
cobre o mar Egeu
e o rastro de uma lesma umedeceu
o Atacama
uma formiga enamorou-se
de um vulcão
exatamente do seu tamanho
um dos polos
ficou à sombra
e resfriou-se mais que o outro
de longe não sei se são moscas
ou os nomes das cidades
Penso que se deixasse o mapa aí
tempo o bastante
em algum momento surgiria
quem sabe
um pequeno inseto novo
com esse dom que têm os bichos
e as pedras e as flores e as folhas
de imitarem-se
uns aos outros
um pequeno inseto novo
eu dizia
um novo besouro talvez
que trouxesse desenhado nas costas
o arquipélago de Cabo Verde
ou as finas linhas das fronteiras
entre a Argélia e a Tunísia
Quando enfim
fechássemos o mapa
o mundo se dobraria sobre si mesmo
e o meio-dia
recostado sobre a meia-noite
iluminaria os lugares
mais secretos
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/ana-martins-marques-e-a-poesia-cotidiana
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