PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

MUSEU NACIONAL


“muito trabalho árduo foi perdido junto com a História”

Este museu mora na minha memória afetiva. Lembro de ter uns nove anos, e depois de uma excursão de minha escola num museu no interior do Espírito Santo, acho que um lugar com pássaros, se não me engano, cheguei nas férias de verão no Rio de Janeiro, e falei com meu pai que queria conhecer museus do Rio. Dentre idas a vários museus, lembro bem da Casa de Rui Barbosa, do Palácio do Catete e, claro, do Museu Nacional.
Fui ao Museu Nacional com meu pai e vi todo seu acervo, e eu era uma criança curiosa e devo ter, realmente, visto tudo que tinha no museu, passando pelos ossos montados de dinossauros logo na entrada, muita coisa de história natural, passando pelo setor do Egito Antigo, objetos históricos da família imperial, acho que foi no museu nacional que vi uma múmia de uma mulher sem nariz, e quando eu contei a história na minha escola já em Vitória, uma menina achou que era mentira, a múmia, se não me engano, era de uma esquimó.
Lembro que já na saída do museu, no parque da Quinta da Boa Vista, na porta do museu, começou uma briga homérica de um casal, daquelas brigas bem baixaria, e todos ali ficaram assistindo, e eu e meu pai também, uma coisa escandalosa da qual me lembro que encerrou a nossa visita naquele museu maravilhoso, o ano provavelmente deve ter sido 1991, e foi a fase em que eu comecei a ler a série de livros Conhecer Atual, no que um dia levei o livro 1 que tinha reprodução humana para a minha sala na escola, e os meninos puderam ver uma cena científica de sexo no contexto do conhecimento reprodutivo.
Bom, voltando ao tema aqui, claro, me refiro a tragédia do incêndio que destruiu o Museu Nacional e que é fruto do descaso do Brasil com a cultura, um país que vive só de momentos e que ignora a História, a memória e a cultura, e que nutre um desprezo pelo conhecimento que pude sentir dando aula para algumas turmas (não todas) de adolescentes, e que é reflexo tanto do momento que vive o país, como de uma certa alienação pela tecnologia, a qual poderia ser uma ferramenta do conhecimento, mas que também pode ser nociva ao se ter alunos tirando selfies no meio da aula.
A questão da verba pública logo foi levantada, a falta de recursos para os museus no Brasil, aqui tomando o exemplo trágico do Museu Nacional, num cenário, agora falando do Rio de Janeiro, em que temos um esqueleto do MIS (Museu da Imagem e do Som) em Copacabana, o qual sempre contemplo nas minhas caminhadas pela praia, e um investimento poderoso que houve no Museu do Amanhã.
Há todo o questionamento de se a UFRJ tem mesmo capacidade de financiar o Museu Nacional, muito se falou da verba que viria do BNDES, e se a iniciativa privada não poderia ter solucionado um problema de orçamento que vinha desde 2014, ou ainda se a UFRJ não deu prioridade ao museu, o que é inviável falar em prioridade em qualquer coisa num orçamento engessado que vai todo para pagar servidores, e que aumentou nos últimos anos da UFRJ. Se o MinC não teria sido também tolhido, como sempre, das prioridades da União, etc, etc.
Não culpo a UFRJ pelo acontecido, mesmo com todo o cenário de abandono que também inclui aqui a casa de shows Canecão, que está parada sem ter nada há anos. O problema eu julgo de prioridades de uma forma geral, o problema de uma postura cultural que não dá valor mesmo ao que se tem de patrimônio histórico e natural no país, e que vive de obras superfaturadas ou de iniciativas que acabam sem terminar e ficam em compasso de espera, como o caso que falei do MIS (Museu da Imagem e do Som).
E vemos então este fenômeno comum de comoção (justificada e legítima) mas que vem sempre depois da tragédia, tendo manifestações impostadas, de outro lado, por políticos em campanha que logo querem se promover como súbitos arautos da cultura nacional, e que agora virou cinzas naquela noite trágica da Quinta da Boa Vista, em que o abandono que já vinha sendo alertado há alguns anos não foi devidamente combatido com iniciativas que solucionassem o problema de financiamento para  a manutenção e incremento de eventos do museu, cujo último presidente da República a pisar lá foi Juscelino Kubitschek, e agora temos os tais paladinos da cultura depois do que foi consumido pelo fogo.
Todo um repertório de pesquisas científicas e antropológicas virou cinzas, tudo foi embora, alguns poucos setores se salvaram, como o herbário, o meteorito Bendegó, como símbolo de resistência, em meio a devastação feita pelo fogo, todo um trabalho de várias pessoas que não guardavam apenas um passado, não apenas um lugar que completa 200 anos de História, mas que tinha um compromisso com o futuro, muito foi perdido, coisas únicas, temas, arquivos, objetos, natureza, todo um trabalho voltado para o futuro, o registro que existia só ali, seja de história natural, seja de antropologia social, muito trabalho árduo foi perdido junto com a História do próprio lugar, e de sua potência simbólica, que agora grita como tragédia cultural.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/public/jornal/artigo/museu-nacional 





segunda-feira, 10 de setembro de 2018

JORGE LUIS BORGES, OS CAMINHOS DA METÁFORA


“os modelos metafóricos, embora limitados, ainda podem ter uma elasticidade em que se pode ter algo novo”

INTRODUÇÃO

Temos aqui, neste texto, partes resenhadas de uma palestra borgiana que veio a se tornar livro, Esse Ofício do Verso, e se trata de palestras proferidas em inglês por Jorge Luis Borges nos anos de 1967 e 1968 na Universidade de Harvard, e aqui temos a digressão do escritor sobre questões que tocam ao estudo linguístico e a literatura, numa riqueza de erudição própria do saber que podemos chamar sui generis da percepção intelectual borgiana.

O ENIGMA DA POESIA

Borges começa tratando da palavra enigma já dizendo que não tem nada a revelar neste sentido, que o mistério que cerca a poesia como um todo não é facultado a seu intelecto desvelar, portanto, aqui já de saída desmistifica-se a poesia e seu enigma, uma vez que o saber borgiano discorre mais etimologicamente sobre o tema do que sobre um suposto dom revelador de um adivinho das letras que Borges logo refuta.
Portanto, a postura de Borges diante da poesia é muito mais lúdica, de perplexidade, isto é, de um leitor que tem dúvidas sobretudo, do que de um conhecedor profundo de arcanos que na verdade não existem, pois o intelecto borgiano funciona aqui muito mais como um documento do que um fundamento para a análise da poesia.
E, falando da perplexidade, Borges nos convida ao próprio espanto histórico de que se fez e com a qual se edificou todo o saber filosófico, pois desde as origens do pensamento reflexivo da filosofia temos o espanto, aqui em Borges com a palavra perplexidade, a qual alimentou as especulações filosóficas desde os hindus, chineses, gregos, escolásticos, seja já na filosofia moderna com Berkeley, Hume, Schopenhauer, etc, tal sentimento de dúvida que Borges nos faz saber e compartilha como o começo de sua reflexão sobre o estro poético.
Na análise borgiana temos sobretudo a refutação da ideia ou conceito de forma e conteúdo como expressão, esta que vem da estética, e que está aqui bem citada no livro de estética de Benedetto Croce, área teórica que toma poesia e linguagem segundo o conceito de expressão, num modo de ver que Borges julga equivocado, pois se descola da coisa própria, a poesia aqui vira um fato para a teoria, mas Borges tenta situá-la em seu terreno, a vida.
Borges nos cita John Keats em seu famoso e batido soneto “On first looking into Chapman`s Homer”, o qual é, na fala de Borges, “um poema escrito a respeito da própria experiência poética”. Aqui vigora não a comunicação tomada como tal, mas uma paixão e um prazer, no qual Borges se vê impactado e impressionado não somente em seu intelecto como “com todo o meu ser, minha carne e meu sangue”.
E, fenômeno comum a um leitor, a primeira impressão ao ler um poema impactante nunca se repetirá, isto é, a primeira leitura de um poema causa ao leitor algo tão intenso em termos de deleite e paixão, que não se repetirá em leituras posteriores, já esfriadas por um conhecimento de causa. Contudo, Borges, mesmo diante desta evidência, ainda tenta nos fazer crer que a leitura de um poema se renova e que é possível termos “uma experiência nova a cada vez” com a poesia.
Borges lembra da importância da memória e do saber oral nos inícios da Antiguidade e como isto evoluiu para escritas sagradas como a Bíblia e o Alcorão, sendo aqui o sagrado como escrita do Espírito Santo, por exemplo, quando falamos das Sagradas Escrituras, e atributo do próprio Deus, quando falamos do Alcorão. E segue a leitura de Borges então sobre os clássicos, que lhe são mais caros pela beleza do que necessariamente por sua tomada imortalidade histórica.
E a experiência de beleza passa aqui por uma operação etimológica que se modifica a cada tempo e que na leitura poética tem em palavras de origens diversas uma leitura própria nestes contextos em que a poesia se exerce. A poesia ganha aqui impacto próprio, mesmo em diversas experiências de tradução pelas quais passe. Quando Borges nos diz da beleza, ele nos diz da permanência da poesia.

A METÁFORA

Borges logo nos dá o fenômeno inusual de que as combinações metafóricas se nos dão como infindáveis, mas que temos contudo o fenômeno usual de que muitos de nossos poetas se utilizam geralmente de metáforas surradas que se repetem pelos anos, no que Borges nos dá este paradoxo em que a amplitude da língua se limita, talvez, quando tratamos desta na língua poética.
Borges segue a sua análise e tem em conta que a metáfora se dá tal qual, isto é, funciona sempre para a percepção do leitor como ela é, ou seja, uma metáfora. Podemos até bem citar a análise borgiana das palavras poéticas como espécies de palavras-valise (aqui lembrando uma leitura exógena carroliana que aqui o resenhista inclui por contra própria) e temos então usos que se dão em metáforas que fluem diversamente, independentemente de condições lógicas prestabelecidas, mas do uso diverso feito pelos poetas e suas idiossincrasias simbólicas feitas pelo estro em ação, e que Borges nos dá exemplos como pela palavra noite, ampla em seu ir e vir pelas metáforas em seu sentido e uso.
Contudo, embora Borges nos dê a diversidade da palavra noite como metáfora, nos dá a entender também, por conseguinte, a limitação das metáforas surradas em palavras como lua, rio e pela manjadíssima comparação das mulheres com flores num estro romântico desavisado em língua-clichê que a poesia sempre conflui para o bem ou para o mal. Temos que a metáfora surrada dos poetas é um limite não linguístico, mas estilístico, em que o poeta é escravo de seu próprio estilo e não tem para onde ir.
E Borges segue a sua análise comparando o argumento filosófico em seu conteúdo lógico como insuficiente diante da verdade metafórica encontrada na poesia, e temos que Borges vê um discurso filosófico como o de Martin Buber, por exemplo, tendo mais valor como algo de beleza poética ou sonora como de um argumento filosófico propriamente dito, o que leva Borges a viver em Walt Whitman, por conseguinte, uma medida que ele usa para chancelar sua análise de que a poesia é mais convincente do que as ideias racionais, pois estas estão sem o brilho da beleza que a poesia proporciona.
E Borges nos dá sinais na poesia que atuam como velhos encantamentos que passam com o tempo a configurar truques de obviedade de modelos limitados de metáforas na poesia, desde afetações gongóricas do repertório barroco ou ainda imagens reiteradas de um estro romântico byroniano, por exemplo.
O que temos, por fim, dados exemplos de poetas históricos, é que os modelos metafóricos, embora limitados, ainda podem ter uma elasticidade em que se pode ter algo novo, “novas variações das principais tendências” em que temos o paradoxo dos modelos limitados, quase truques, com a inovação possível ainda por novos poetas históricos em correntes ou tendências ainda inauditas.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/jorge-luis-borges-os-caminhos-da-metafora