“muito trabalho árduo foi perdido junto com a História”
Este museu mora na minha memória afetiva. Lembro de ter uns
nove anos, e depois de uma excursão de minha escola num museu no interior do
Espírito Santo, acho que um lugar com pássaros, se não me engano, cheguei nas
férias de verão no Rio de Janeiro, e falei com meu pai que queria conhecer
museus do Rio. Dentre idas a vários museus, lembro bem da Casa de Rui Barbosa,
do Palácio do Catete e, claro, do Museu Nacional.
Fui ao Museu Nacional com meu pai e vi todo seu acervo, e eu
era uma criança curiosa e devo ter, realmente, visto tudo que tinha no museu,
passando pelos ossos montados de dinossauros logo na entrada, muita coisa de
história natural, passando pelo setor do Egito Antigo, objetos históricos da
família imperial, acho que foi no museu nacional que vi uma múmia de uma mulher
sem nariz, e quando eu contei a história na minha escola já em Vitória, uma
menina achou que era mentira, a múmia, se não me engano, era de uma esquimó.
Lembro que já na saída do museu, no parque da Quinta da Boa
Vista, na porta do museu, começou uma briga homérica de um casal, daquelas
brigas bem baixaria, e todos ali ficaram assistindo, e eu e meu pai também, uma
coisa escandalosa da qual me lembro que encerrou a nossa visita naquele museu
maravilhoso, o ano provavelmente deve ter sido 1991, e foi a fase em que eu
comecei a ler a série de livros Conhecer Atual, no que um dia levei o livro 1
que tinha reprodução humana para a minha sala na escola, e os meninos puderam
ver uma cena científica de sexo no contexto do conhecimento reprodutivo.
Bom, voltando ao tema aqui, claro, me refiro a tragédia do
incêndio que destruiu o Museu Nacional e que é fruto do descaso do Brasil com a
cultura, um país que vive só de momentos e que ignora a História, a memória e a
cultura, e que nutre um desprezo pelo conhecimento que pude sentir dando aula
para algumas turmas (não todas) de adolescentes, e que é reflexo tanto do
momento que vive o país, como de uma certa alienação pela tecnologia, a qual
poderia ser uma ferramenta do conhecimento, mas que também pode ser nociva ao
se ter alunos tirando selfies no meio da aula.
A questão da verba pública logo foi levantada, a falta de
recursos para os museus no Brasil, aqui tomando o exemplo trágico do Museu
Nacional, num cenário, agora falando do Rio de Janeiro, em que temos um
esqueleto do MIS (Museu da Imagem e do Som) em Copacabana, o qual sempre
contemplo nas minhas caminhadas pela praia, e um investimento poderoso que
houve no Museu do Amanhã.
Há todo o questionamento de se a UFRJ tem mesmo capacidade de
financiar o Museu Nacional, muito se falou da verba que viria do BNDES, e se a
iniciativa privada não poderia ter solucionado um problema de orçamento que
vinha desde 2014, ou ainda se a UFRJ não deu prioridade ao museu, o que é
inviável falar em prioridade em qualquer coisa num orçamento engessado que vai
todo para pagar servidores, e que aumentou nos últimos anos da UFRJ. Se o MinC
não teria sido também tolhido, como sempre, das prioridades da União, etc, etc.
Não culpo a UFRJ pelo acontecido, mesmo com todo o cenário de
abandono que também inclui aqui a casa de shows Canecão, que está parada sem
ter nada há anos. O problema eu julgo de prioridades de uma forma geral, o
problema de uma postura cultural que não dá valor mesmo ao que se tem de
patrimônio histórico e natural no país, e que vive de obras superfaturadas ou
de iniciativas que acabam sem terminar e ficam em compasso de espera, como o caso
que falei do MIS (Museu da Imagem e do Som).
E vemos então este fenômeno comum de comoção (justificada e
legítima) mas que vem sempre depois da tragédia, tendo manifestações
impostadas, de outro lado, por políticos em campanha que logo querem se
promover como súbitos arautos da cultura nacional, e que agora virou cinzas
naquela noite trágica da Quinta da Boa Vista, em que o abandono que já vinha
sendo alertado há alguns anos não foi devidamente combatido com iniciativas que
solucionassem o problema de financiamento para
a manutenção e incremento de eventos do museu, cujo último presidente da
República a pisar lá foi Juscelino Kubitschek, e agora temos os tais paladinos
da cultura depois do que foi consumido pelo fogo.
Todo um repertório de pesquisas científicas e antropológicas
virou cinzas, tudo foi embora, alguns poucos setores se salvaram, como o
herbário, o meteorito Bendegó, como símbolo de resistência, em meio a
devastação feita pelo fogo, todo um trabalho de várias pessoas que não
guardavam apenas um passado, não apenas um lugar que completa 200 anos de
História, mas que tinha um compromisso com o futuro, muito foi perdido, coisas
únicas, temas, arquivos, objetos, natureza, todo um trabalho voltado para o
futuro, o registro que existia só ali, seja de história natural, seja de
antropologia social, muito trabalho árduo foi perdido junto com a História do
próprio lugar, e de sua potência simbólica, que agora grita como tragédia
cultural.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/public/jornal/artigo/museu-nacional