PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A PESTE

O mundo em convulsão com o surto de Wuhan, das feiras animais o que abre a besta-fera viral que se espalha ininterruptamente. Os corpos se infectam desta tosse que cai do pulmão e tapa a respiração, a tragédia mundial em sua escala tectônica.

O surto, seu nome : pandemia. Na China que entra em sua convulsão mais intensa, a morte começa sua caminhada em Wuhan, os dias parecem ser ainda tranquilos, as notícias não fazem alarde, tudo corre no ritmo do mundo que labora dia a dia, ainda estamos vendo a normalidade fazendo a sua rotina, não há sinal da devastação.

Vamos ao mundo em seu tear, no entanto, a doença se instala, como um cancro, pela Europa, a vida tenta seguir, em vão, a Itália cai em sua densidade e Bérgamo sofre como num ritual macabro, estamos vendo algo histórico, a pandemia é oficial, não há mais a tranquilidade que imaginávamos de algo que ficasse quieto como um pequeno surto local.

Caem mais corpos, a doença se espalha, os rostos ficam contritos, o coração gela, a doença é fatal, a fatalidade toma todo o campo e todo o ar, o ar nos falta, vamos para casa, não há nada além do quarto, a distância vira um imperativo, não é inédito, as pestes são seculares, mas é chocante, um mundo distópico é visto como nos romances ficcionais.

Mais corpos caem, o cheiro de morte toma o plano e o noticiário é cada vez mais tétrico, a distopia é o delírio real desta morte viral, o mundo convulsiona com toda a sua dor, as famílias enfrentam o sofrimento, a prova de resiliência mundial vê na palavra esperança a mais pura forma de superação, diante do inominável, e lidando com o imponderável.

O poema é o susto, o poema é o surto, a História será contada com toda a sua dor dos que se foram sem poderem respirar, I can`t breathe! O poema não pode respirar, ele é solidário com os mortos, a tragédia vem com toda a sua força imensa de destruição, a pandemia nos toma a rotina e o pensamento, a prova de vida vem por cada dia vivido.

A saída para respirar este ar que nos falta, a pandemia fecha a respiração de todos, em seu isolamento, em seu distanciamento, a tragédia não nos deixa respirar, o ar é poluído pelo cheiro de morte, o poema não silencia, tenta respirar em meio da tragédia, as palavras tentam capturar o sentido, mas não faz sentido, o frio cego do acaso leva estes corpos, estas vidas, estas histórias, uma faca cega que corta e que ceifa, sem podermos prever a dimensão exata de seu termo.

I can`t breathe, diz George Floyd, e os respiradores tentam dar ar aos que estão internados, não há mais o que fazer a não ser precaver, esperando a vacina, lidando com as fake news que se multiplicam, os remédios falsos que são vendidos como panaceia, e o ridículo dos poderes em meio ao caos.

A doença se espalha como rastilho de pólvora, a pandemia toma a vastidão dos países, vi nestes noticiários o choro incontido dos que perderam seus entes queridos, a dor vira a rotina de um enfrentamento humano, há um tipo trágico de comunhão da pandemia, a humanidade na mesma lida diária, a doença que ceifa vidas de forma bruta e constante, as estatísticas assustadoras e a proporção gigantesca de uma coleção de mortes com nomes e histórias.

Não existe a luz da sabedoria que nos conduza a um oásis, é uma tragédia, os nomes e as histórias se vão, e tudo parece congelado esperando um novo momento de liberdade, o mundo está sob um gelo espesso em que ninguém se move, tudo em suspenso, para lidar com a saída que será a nova liberdade depois da pandemia. O poema também está congelado, sob o gelo espesso da tragédia.

A tecnologia tenta contornar com seus movimentos este gelo, a vida tenta lutar em suas saídas possíveis, as vidas possíveis da pandemia, em seu isolamento que se move em meio ao gelo terrível da morte que nos paralisa, tudo em suspenso, na verdade, e esta verdade é a pandemia que mata cada dia e os que gritam de dor, podem ser ouvidos, mas o grito é seco, também congelado, num velório estranho e distante.

A pandemia não escolhe seus mortos, não há escrita coerente da carga viral, todos estão expostos, o caminho é brutal, pedregoso, acidentado, as mutações e caminhos são tortuosos, o mecanismo aleatório do vírus em seu caminho de morte e infecção é imprevisível, o imponderável é a noção mais gritante de lidar com uma pandemia, sabermos que existe algo que nos ultrapassa e que nos exige ação inteligente. A tragédia, por sua vez, não é uma lição do universo, é a natureza que age por suas próprias leis, como quando um vírus sai de uma feira e mata meio mundo.

O poema é este, e que a sobrevida da pandemia vire muita vida nesta nova liberdade que virá.

 

Poema em prosa – 28/12/2020 – Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

 

 

 

 

 

 

domingo, 27 de dezembro de 2020

UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO, LIVRO DE ANGÉLICA FREITAS

“uma visão sobre sexualidade e o feminino numa perspectiva bem esperta e leve”

O segundo livro de poemas de Angélica Freitas, “Um útero é do tamanho de um punho”, lançado em 2012, tem um humor inteligente, uma visão sobre sexualidade e o feminino numa perspectiva bem esperta e leve, indo além de convenções poéticas viciadas, uma poesia renovada, contemporânea com propriedade, com estilos misturados, uma comunicação direta que descreve e também coloca uma realidade dinâmica da própria vida em evidência, ler Angélica é estar num mundo real de uma experiência viva, não se trata somente de uma invenção poética, aqui a gente lê o mundo real.

Na escrita poética de Angélica, temos a ausência completa de pontuação e de letras maiúsculas, criação de uma língua do “i”, ditados, cantigas populares e invenção de onomatopeias, e Angélica coloca o leitmotiv do útero, e neste centro envolve toda a poesia de seu livro, no questionamento da submissão feminina em relação ao útero, em seu sentido simbólico, a significação que este órgão, esta imagem, este signo, tem em seu poder sobre o feminino.

As sete seções do livro giram neste tema de uma violência normalizada sobre o feminino, esta violência naturalizada sobre a mulher, as seções são : “Uma mulher limpa”, “Mulher de”, “A mulher é uma construção”, “Um útero é do tamanho de um punho”, “3 poemas com auxílio do Google”, “Argentina” e “O livro rosa do coração dos trouxas”. 

O poema que dá nome ao livro é um poema extenso, e o útero aparece aqui numa tensão em que esta imagem pode se voltar contra a própria mulher, mais uma vez, o feminismo, no livro inteiro, aparece numa abordagem pessoal, os ecos biográficos neste livro são sutis, mas ao mesmo tempo evidentes, uma poesia de vivência, e o feminino que é narrado com a naturalidade da própria vida, sem atavios de uma poesia mais clássica, numa linguagem direta que mostra o mundo em forma instantânea, aqui, o mundo da mulher e o leitmotiv do útero, que aprofunda, como órgão e como signo, a questão do feminino.

Os estereótipos femininos são muito bem trabalhados neste livro, e numa chave de humor própria aos temas estereotipados, e sempre num mecanismo de série, como se fosse uma enumeração destes estereótipos, para criar um tipo de extensão de significado e reflexão, Angélica faz este caminho em que estas imagens, estes estereótipos, são colocados em sua perspectiva própria e até em seu ridículo, como um tipo de retrato fiel de uma realidade crua e direta.

Angélica Freitas nasceu em Pelotas (RS) em 1973, e tem publicações como a sua estreia em poesia, Rilke Shake, também podemos citar a HQ Guadalupe. O livro “Um útero é do tamanho de um punho” foi escolhido como melhor livro de poesia de 2012 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). A poeta também teve poemas publicados em revistas como Poetry, Granta, Diario de Poesía e Modern Poetry in Translation.

POEMAS :

uma mulher limpa

1 : O poema nos diz da mulher limpa que é a mulher boa, e da mulher suja, que é braba, que ladrava, no que temos : “porque uma mulher boa/é uma mulher limpa/e se ela é uma mulher limpa/ela é uma mulher boa” (...) “há milhões, milhões de anos/pôs-se sobre duas patas/a mulher era braba e suja/braba e suja e ladrava” (...) “porque uma mulher braba/não é uma mulher boa/e uma mulher boa/é uma mulher limpa”. O poema então volta ao ponto que começou, e seu looping conclui este poema no que diz na abertura, a repetição aqui é o próprio tipo de humor de Angélica neste poema.

alcachofra : O poema conta a história de um contraste absurdo, o casal formado por Amélia, aquela da música, e a mulher barbada, uma conjuntura inaudita, no que temos : “amélia que era mulher de verdade/fugiu com a mulher barbada/barbaridade/foram morar num pequeno barraco/às margens do arroio macaco/em pedra lascada, rs”. O lugar em que elas moram começa como um muquifo que não tem nada, no que vem : “primeiro a solidão foi imensa/as duas não tinham visitas/nem televisor/passavam os dias se catando/pois tinham pegado piolho/e havia pulgas no lugar” (...) “”somos livres” dizia amélia/e se atirava no sofá/e suspirava/a mulher barbada também suspirava/e de tanto suspirar/já estava desesperada”. A mulher barbada falava pouco, a relação era pouco discutida, mas um dia Amélia mandou a mulher barbada se sentar para ter uma conversa, no que temos : “a mulher barbada simplesmente não sentia/aquela necessidade de discutir/cada coisa do dia a dia/e amélia ficava grilada, então/além das pulgas e dos piolhos/era inseto pra caramba” (...) “”vivo com uma desconhecida”/disse amélia, certo dia, no barraco/”eu vou comprar cigarros”/disse a mulher barbada/”tu não vais a lugar nenhum”/disse amélia, “senta a tua bunda/peluda no sofá/que eu quero conversar”/a mulher barbada bufou/mas fez o que mandou a companheira”. Amélia questiona, aponta problemas, e a mulher barbada vai zarpar, amélia provavelmente é esfaqueada, é o que indica a coda irônica? Vejamos : “misteriosos pontinhos pretos/invadiram o espaço aéreo/dos olhos de amélia/e amélia disse : “chega, tu não me valorizas”/e ainda “levanta essa bunda peluda do sofá,/faz alguma coisa”/então a mulher barbada levantou a sua bunda peluda/do sofá e fez uma coisa : pegou um navio de bandeira grega/o kombustaun spontanya, e zarpou pra servir/na marinha. Virou o cabo seraferydo/dele ou dela não se teve mais notícia/amélia voltou para pinta preta/onde foi perdoa ... promovi ... esfaquea ...”.

mulher de

mulher de vermelho : O poema evoca a imagem clássica da mulher de vermelho, no que temos : “o que será que ela quer/essa mulher de vermelho/alguma coisa ela quer”. O poeta, a poeta, seja lá, é o alvo da mulher de vermelho, um arraso : “ela escolheu vermelho/ela sabe o que ela quer/e ela escolheu este vestido/e ela é uma mulher/então com base nesses fatos/eu já posso afirmar/que conheço o seu desejo/caro watson, elementar :/o que ela quer sou euzinho/sou euzinho o que ela quer/só pode ser euzinho/o que mais podia ser”.

mulher de valores : Aqui o retrato de uma mulher e sua família, ela é a personagem principal, o eixo de tudo, no que temos : “era bem de sagitário/e o primeiro que fazia/era dar bom dia, dia/à janela/depois acordava os filhos/e ao marido lhe dizia/deus ajuda quem madruga/seu madruga/despachava a família/e ligava o notebook/conectava-se à bolsa/de valores”. A descrição cotidiana aqui é riquíssima, no que vem : “e quando chegavam os filhos/e chegava o marido/eles comiam congelados/da sadia/às onze os despachava/e abria o notebook/pra jogar o seu mahjong/descansada/mal podia esperar/que chegasse a manhã/e reabrisse a sua bolsa/de valores/de valores/de valores”.

a mulher é uma construção

a mulher é uma construção :  A construção aqui se dá de forma geral, a mulher, e também se refere à poeta Angélica, no que temos : “a mulher é uma construção/deve ser” (...) “a mulher basicamente é pra ser/um conjunto habitacional/tudo igual/tudo rebocado/só muda a cor” (...) “particularmente sou uma mulher/de tijolos à vista/nas reuniões sociais tendo a ser/a mais malvestida” (...) “digo que sou jornalista”. E a descrição aqui ganha contorno corporal e simbólico, ao mesmo tempo, no que vem : “(a mulher é uma construção/com buracos demais/vaza” (...) “(você gosta de ser brasileira?/de se chamar virginia woolf?)” (...) “a mulher é uma construção/maquiagem é camuflagem” (...) “toda mulher tem um amigo gay/como é bom ter amigos” (...) “neste ponto, já é tarde/as psicólogas do café freud/se olham e sorriem” (...) “nada vai mudar -/nada nunca vai mudar -/a mulher é uma construção”. A coda reforça o recado, esta mulher de que Angélica fala não é um objeto ou sujeito acabado, está em construção.

ítaca : O poema empreende a viagem da odisseia em perspectiva ou versão de turista moderno, uma viagem nova, no que temos : “se quiser empreender viagem a ítaca/ligue antes/porque parece que tudo em ítaca/está lotado/os bares os restaurantes/os hotéis baratos/os hotéis caros/já não se pode viajar sem reservas/ao mar jônico/e mesmo a viagem/de dez horas parece dez anos” (...) “toda a vida você quis/visitar a grécia/era um sonho de infância”. Aqui o poema dá indicações, a poeta vira uma espécie de catálogo de turismo, e o poema, talvez adrede, nos dá esta sensação : “bem se quiser vá a ítaca/peça a um primo/que lhe empreste euros e vá a ítaca/é mais barato ir à ilha de comandatuba/mas dizem que o azul do mar/não é igual” (...) “mande fotos digitais/torre no sol/leve hipoglós/em ítaca compreenderá/para que serve/o hipoglós.”.

metonímia : O poema segue em sua análise irônica das figuras de linguagem, e este meio do poema representa algumas indicações, e se atém à leitura de um poema, de como ler um poema, no que temos : “alguém quer saber o que é metonímia/abre uma página de wikipédia/se depara com um trecho de borges/em que a proa representa o navio” (...) “a parte pelo todo se chama sinédoque” (...) “eu não queria saber o que era/metonímia”. A leitura, esta leitura, contudo, reside numa linguagem fluida, e também sutil, que não se conclui, não é um texto teórico, o sentido aqui escapa, desliza, metonímia e seu estado de fluidez semântica, no que temos : “não queria fazer uma leitura/equivocada/mas todas as leituras de poesia/são equivocadas” (...) “queria escrever um poema/bem contemporâneo/sem ter que trocar fluidos/com o contemporâneo” (...) “como roland barthes na cama/só os clássicos”.

um útero é do tamanho de um punho

E aqui temos o poema que dá título ao livro, no que temos : “um útero é do tamanho de um punho/num útero cabem cadeiras/todos os médicos couberam num útero/o que não é pouco/uma pessoa já coube num útero/não cabe num punho”. Aqui temos o reforço do título do poema, e tudo que cabe num útero, que é um mundo : “um útero é do tamanho de um punho/num útero cabem capelas/cabem bancos hóstias crucifixos”. A mulher tem um útero, a poeta Angélica afirma que tem um útero, e aqui temos a decorrência de tudo isso, no que vem : “repita comigo : eu tenho um útero/fica aqui/é do tamanho de um punho/nunca apanhou sol”. E aqui um útero livre, com seu sentido feminino, mas com uma chave irônica como se fosse livre para circular nos espaços físicos, numa viagem com passe livre nos estados schengen, por exemplo, no que temos : “apresento-lhes/o útero errante/o único/testado/aprovado/que não vai enganchar/nas escadas rolantes/nem nas esteiras/dos aeroportos/o único/com passe livre nos estados schengen”. E, por fim, o útero como palavra, e suas variações : “monossílabos empregados/em literatura sobre o útero :/um/dissílabos : feto, cérvix, pélvis, parto/trissílabos : útero, vagina, falópio/outros polissílabos : mamíferos, mesométrio/a 36 graus/em ante-verso-flexão/i piri qui”.

O LIVRO ROSA DO CORAÇÃO DOS TROUXAS :

Aqui este livrinho diz a que veio, e não tem peias, no que temos : “1 – eu quando corto relações/corto relações./não tem essa de/briga de torcida/todos os/sábados./é a extinção do estádio.” (...) “tudo é provocação?/então embrulha/tua taquicardia/num sorvete de amêndoas,/reza que derreta.”.

Aqui o poema se dá com uma subversiva em chave bem humorada, lógico, no que temos : “11 – não devias te casar/com uma subversiva/que usa mauser/debaixo do poncho” (...) “que vê um godard/e arrota coca-cola/que anota em/canto de página/de compêndios poéticos/das edições gallimard/”lindo” ou/”how true!”.

Aqui o poema faz senões novamente e finda com os dados da poeta Angélica, no que temos : “12 – não devias te casar/com ela,/ponto final./susana thénon,/filha de neurologista,/morreu de tanto/cérebro./se a história se/repetisse, toda/nanica e irônica,/as filhas das freiras/nunca se casariam,/fariam bem-casados/mas não fariam/sentido.” (...) “e a família de/angélica freitas/por fim convidaria/a sociedade/pelotense para/o enlace/de suas filhas/angélica & angélica/na catedral/são francisco/de paula/às 17 horas do/dia 38-39 (brasil)/40 (europa).”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/um-utero-e-do-tamanho-de-um-punho-livro-de-angelica-freitas