PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

JOÃO CABRAL, O MESTRE TALHADO NA PEDRA

João Cabral de Melo Neto, este seu nome, de uma poética ou poesia talhada na pedra. Sua rotina é descrita neste poema emblemático de toda a sua obra, as lições de que ele retira o sumo são duras, duras como pedra. Já a sua conhecida letra fria, concisa, neste poema, tem na metáfora da pedra exatamente a dicção própria e a linguagem definida neste ser mineral duro e impassível, a pedra.

João Cabral não tem fraco por lírica, mas sua beleza vem da dura lição que ele encarna ou petrifica. João Cabral enumera o Sertão como origem de seu discurso, o mestre talhado na pedra sabe de si neste que é o ser duro de ser pedra, e poema de pedra, educação pela pedra. O poeta aqui não finge dor, não se lamenta, apenas descreve a mecânica de seu trabalho bruto, de poema bruto, puramente mineral, inanimado na imagem da pedra, mas se movimentando nesta descrição de um ser estático.

O movimento do poema é definido por poucas linhas, e já são suficientes, João Cabral marca na concisão deste poema o contrário de uma retórica enfadonha de poemas longos, não que ele não os faça, e não por razão de poemas longos serem melhores ou piores do que este, mas a demanda da educação da pedra é muito esta marca concisa, curta e certeira, do que ele quis apresentar como pedra, como a lição fundamental, a educação pela pedra.

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

Uma educação pela pedra: por lições:
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta;
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la,

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, estranha a alma.

(João Cabral de Melo Neto, do livro A Educação Pela Pedra, da edição Poesias Completas da José Olympio Editora)

Obs: Caros leitores, estou saindo de férias, o espaço de poesia e as resenhas no caderno de cultura voltam no fim de janeiro com novidades, abraços e boas festas!)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/26569/17/joao-cabral-o-mestre-talhado-na-pedra


quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O LIVRO TIBETANO DOS MORTOS

“o Bardo Thödol é um livro sumamente budista.”

INTRODUÇÃO

O Bardo Thödol, intitulado mais apropriadamente por seu organizador, W.Y.Evans-Wentz, O livro tibetano dos mortos, pertence a uma categoria de escritos que não se resumem a um estudo específico do Budismo Mahayana, mas contém elementos que respondem com eficiência a questionamentos que perpassam o próprio fenômeno humano e seu possível sentido, com um conteúdo humanista e que carrega uma compreensão profunda dos segredos da psique humana, proporcionando ao leitor comum um meio de ampliar seus conhecimentos da vida.
Ao contrário de O livro egípcio dos mortos, por exemplo, que nos induz a sempre falar demais ou muito pouco, o Bardo Thödol nos oferece uma filosofia inteligível, direcionada aos seres humanos, mais do que a deuses, contendo uma filosofia que é, por outro lado, para além de um guia espiritual do pós-morte, a quintessência da crítica psicológica budista. Pois este livro não é um cerimonial fúnebre, mas um conjunto de instruções para os mortos, um guia através dos cambiantes fenômenos do reino do Bardo, esse estado de existência que continua por 49 dias após a morte até a próxima reencarnação.
Segundo observação do Dr.Evans-Wentz, o Bardo Thödol é um processo de iniciação cujo propósito é o de restaurar na alma a divindade que ela perdeu ao nascer, pois o livro descreve um caminho de iniciação em sentido inverso, a qual, diversamente das expectativas escatológicas do Cristianismo, prepara a alma para uma descida à existência física. Esse tratado é, então, um guia tão detalhado sobre as aparentes modificações na condição do morto, que o leitor poderá, ao fim de sua jornada de leitura, se perguntar se esses lamas tibetanos não teriam, por fim, apreendido algo da quarta dimensão e levantado o véu de um dos maiores segredos da vida.

A INTERPRETAÇÃO JUNGUIANA

Primeiro, cabe destacar a divisão do livro: O Bardo Thödol ou O livro tibetano dos mortos pretende ser um guia para os mortos durante o seu período de existência no Bardo, descrita simbolicamente como um estado intermediário, de 49 dias de duração, entre a morte e o renascimento. Por conseguinte, o texto está dividido em três partes.
 A primeira, chamada Chikhai Bardo, que descreve acontecimentos psíquicos no momento da morte, a segunda parte, por sua vez, que é o Chönyid Bardo, que trata dos estados de sonho que começam imediatamente após a morte, o que também pode ser compreendido como a fase a que chamamos de “ilusões kármicas”, e a terceira parte que, por fim, é o Sidpa Bardo, que se refere ao surgimento do impulso de nascimento e aos acontecimentos pré-natais.
Tudo passa, portanto, na visão budista mahayana, como um grande processo que envolve, de um lado, a suprema compreensão e a iluminação, podendo proporcionar a libertação, e de outro lado, o começo das “ilusões”, tais que são os caminhos que conduzem finalmente à reencarnação, com as luzes iluminadoras ficando opacas e as visões do Bardo mais aterradoras.
Essa descida, para o Budismo Mahayana, é a tradução do afastamento da consciência do morto da verdade libertadora, numa aproximação, portanto, do renascimento físico. Logo, o propósito principal de O livro tibetano dos mortos é uma instrução para fixar a atenção do homem morto no sentido de distanciá-lo das etapas sucessivas de engano e confusão do Bardo, para levá-lo à libertação, assim como o livro também é um conjunto de explicações da natureza das visões do Bardo.
Neste livro, por sua vez, não só as chamadas divindades “iradas”, mas também as “pacíficas”, são concebidas como projeções do mundo ilusório de sangsara, que é também o conjunto de ilusões da psique humana. Por conseguinte, quando o Budismo Mahayana (assim como outras denominações budistas) insistem no ponto de que a mente humana é vazio ou vacuidade, no seu estado original e iluminado, temos que o chamado estado de autorrealização ou libertação, também conhecido como Nirvana, é, para o Mahayana, o estado de Dharmakaya de iluminação perfeita.
Para Jung, isto significa que, numa expressão de linguagem ocidental, que o fundamento criativo de toda postulação metafísica é a consciência, isto enquanto manifestação invisível, intangível, da alma. A Vacuidade ou Vazio seria, portanto, o estado transcendente que suplanta toda asserção e toda predicação.

COMPREENDENDO O LIVRO TIBETANO DOS MORTOS

O Bardo Thödoltrata, de um modo único, o ciclo completo da existência sangsárica (isto é, fenomenal) que intervém entre o nascimento e a morte, sendo também a antiga doutrina do karma e do renascimento aceita como as mais essenciais leis que afetam a vida humana.
Por outro lado, há um cisma entre os Budismo do Norte e do Sul que, por sua vez, se refere ao fato de que o Budismo do Norte (donde provém o Budismo Mahayana, intérprete do Bardo Thödol) tem no simbolismo um conteúdo vital, o que é condenado pelos budistas da escola do Sul (donde provém , por exemplo, o Budismo Theravada) por haver reivindicado a custódia de uma doutrina esotérica, transmitida, em grande parte, oralmente por reconhecidos iniciados, geração após geração e na linhagem direta de Buda, assim como pelos ensinamentos, que estão no, por exemplo, Saddharma-Pandarika, que registram doutrinas que não estão de acordo com os Tripitaka, que é nada mais que o Cânone Páli seguido pelos budistas do Sul.
Os lamas afirmam que o Tripitaka (“Três Pitakas ou Cestos da Lei”) são, segundo postula o Budismo do Sul, a palavra (Doutrina) registrada pelos Antigos, isto é, pelos Theravadas, e que os lamas do Norte dizem ser incompletos, pois não fornecem muito dos ensinamentos iogues de Buda, e que estes saberes foram, por sua vez, transmitidos esotericamente até os dias atuais. O que o Cânone Páli recusa, pois afirma que Buda não conservou nenhuma doutrina secretamente.
Por outro lado, se seguirmos a orientação do Budismo do Norte, não há problemas em referendar que um Budismo esotérico não deve necessariamente discordar ou conflitar com o Budismo exotérico, mas ser antes uma complementação deste. Porém, ao contrário do Budismo do Sul, os lamas do Norte reafirmam a evidência inegável de que há, como o Bardo Thödol parece sugerir, um corpo não-registrado das escrituras, de ensinamentos budistas transmitidos oralmente, que são realmente um complemento do Budismo canônico.

ENSINAMENTOS DE SABEDORIA

Na tradução do Bardo Thödol, envolto em linguagem simbólica, encontramos doutrinas ocultas fundamentais que aqui traduzidos podem ser denominados Ensinamentos de Sabedoria, os quais, essencialmente doutrinas Mahayana, podem ser vislumbradas pelo seguinte esquema:
O Vazio – Em todos os sistemas tibetanos de yoga, a realização do Vazio (em sânscrito: Shunyata) é a grande meta: realizá-lo é alcançar o não-condicionadoDharmakaya ou “Divino Corpo da Verdade”, que é o estado primordial da não-criação, a celestial Consciência Total bódhica – o estado de Buda. A realização do Vazio também é a meta dos theravadistas.
Os Três Corpos – O Dharmakaya é o mais alto dos Três Corpos (em sânscrito: Trikaya) de Buda e de todos os Budas e seres que possuem Iluminação Perfeita. Os outros dois corpos são o Sambhogakaya ou "Divino Corpo do Dom Perfeito” e o Nirmanakaya ou “Divino Corpo de Encarnação”. E, uma vez que todos os conceitos humanos são inadequados para descrever o Sem-qualidade, temos que usar metáforas que podem ser tais como: o Dharmakaya pode ser simbolizado como um oceano infinito, calmo e sem uma onda, de onde surgem nuvens brumosas e arco-íris, que simbolizam o Sambhogakaya, e as nuvens aureoladas na glória do arco-íris condensam-se e caem como chuva, simbolizando o Nirmanakaya.
O Dharmakaya é o Bodhi primordial, a verdadeira experiência, livre do erro. E, por sua vez, nele residem tanto o Sangsara como o Nirvana. Em outras palavras, o Dharmakaya é literalmente o “Corpo da Lei”, Sabedoria Essencial (Bodhi) não-modificada, o Sambhogakaya é o “Corpo da Compensação” ou “Corpo Adornado”, que encarna, como nos Cinco Dhyani Budas, a Sabedoria Refletida ou Modificada. Já o Nirmanakaya, “Corpo Mutável” ou “Corpo Transformado”, encarna, como nos Budas Humanos, a Sabedoria Prática ou Encarnada.
Ainda na doutrina dos Três Corpos, temos que o Budismo Tântrico associa o Dharmakaya ao Buda Primordial Samanta-Bhadra, Aquele Que Não Tem Princípio Nem Fim, a Fonte de Toda Verdade, o Pai Todo-bondoso da Fé Lamaísta. E nesse reino superior de Buda ainda temos, segundo o Lamaísmo, Vajra-Dhara (que em tibetano é Rdorje-Chang), o “Detentor do Dorje (ou Raio), o “Expositor Divino da Doutrina Mística Chamada VajraYana ou Mantra-Yana, e também o Buda Amitabha, o Buda da Luz Ilimitada, Aquele Que é a Fonte da Vida Eterna. No Sambhogakaya estão colocados os Cinco Dhyani Budas (ou Budas de Meditação), os Herukas do Loto e as Divindades Pacíficas e Iradas, todos os quais aparecerão nas visões do Bardo. Com o Nirmanakaya está associado Padma-Sambhava que, sendo o primeiro mestre no Tibete a expor o Bardo Thödol, é o Grande Guru de todos os devotos que seguem os ensinamentos Bardo. Assim sendo, o Trikaya simboliza a Trindade Esotérica do Budismo superior da Escola do Norte, sendo a Trindade Exotérica, como na Escola do Sul, o Buda, o Dharma (ou Escrituras) e o Sangha (ou Clero).

O BARDO OU ESTADO PÓS-MORTE

A partir do momento da morte e por mais três ou quatro dias, o Conhecedor, como é chamado o princípio de consciência, no caso do falecido ser um homem comum (não-iniciado), acredita-se estar num estado de sono ou de transe, e inconsciente, via de regra, de fato de ter-se separado do corpo no plano humano. Esse período é o do Primeiro Bardo que é chamado de Chikhai Bardo ou “Estado de Transição do Momento da Morte”, e aí surge a Clara Luz, e então, o percipiente, não a reconhecendo e não conseguindo se manter no estado transcendental da mente não-modificada, percebe-a karmicamente obscurecida.
No Segundo Bardo, o Conhecedor toma consciência de que morreu, este é o Chonyid Bardo ou “Estado de Transição da Vivência ou Vislumbre da Realidade”, que se funde, então, ao Terceiro Bardo, o Sidpa Bardo ou “Estado de Transição ou da busca do Renascimento” que termina quando o princípio de consciência adquire o renascimento no mundo humano ou em algum outro ou ainda num dos reinos do paraíso.
Como o Bardo Thödol postula, prudentemente, que as visões do Bardo provêm do próprio conteúdo mental do sujeito ou Conhecedor, sempre karmicamente produzidas, temos que o Bardo Thödol parece estar baseado em dados verificáveis das experiências humanas, fisiológicas e psicológicas, e então este livro vê o problema do estado de pós-morte como um problema puramente psicofísico. Portanto, as visões de deuses ou demônios, céus ou infernos, não são nada mais que originárias de formas-pensamento kármicas e que são peças alucinatórias que constituem a personalidade do percipiente, sendo, por conseguinte, um produto impermanente nascido da sede de existência e da vontade de viver e crer.
O Bardo Thödol, então, é tão contundente em seus postulados que deixa o leitor com a exata impressão de que toda visão, sem qualquer exceção, em que aparecem entes espirituais, deuses ou demônios, paraísos ou lugares de tormento e purgação, no Bardo ou em qualquer outro plano semelhante de sonho ou êxtase, é puramente ilusória, pois se fundamenta exatamente nos fenômenos sangsáricos.
O objetivo precípuo, portanto, do Bardo Thödol, é provocar o despertar do Sonhador para a Realidade, livre da obscuridade das ilusões kármicas ou sangsáricas, num estado celestial ou nirvânico, para além de todos os paraísos fenomenais, céus, infernos, purgatórios ou mundos de encarnação. Neste sentido, o Bardo Thödolé um livro sumamente budista.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/26476/17/o-livro-tibetano-dos-mortos

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O CORTE DE LÂMINA DE JOÃO CABRAL

O corte de faca, o corte de uma faca só lâmina, eis o que João Cabral de Melo Neto nos propõe. Sua imagem da faca é despertada no sentimento de ausência que possui um homem. Este homem quer o corte, João Cabral, com sua poética fria e compassada, nos dá em perfeito esquema uma faca como bala, e que se compassa exatamente como relógio.
João Cabral é colocado como o poeta da educação da pedra e da vida severina, com justiça, de todo, pois o que sua poesia nos dá é um modo de letra lúcida, a lírica por estas bandas não dá muito as caras, e no caso de Cabral, ela é dispensada e torna-se desnecessária, pois dificilmente deveremos nele toda esta nossa herança lusitana ou lusófona que se cria com tiques e batimentos ornados de barroquismos e arcaísmos. João Cabral é seco, aprendi um pouco com ele a também fazer a tal poesia “limpa”, e me dei bem por vezes.
A faca é a coluna vertebral deste longo escrito de João Cabral, e sua língua seca nos oferece na ausência a presença do corte, fundo e profundo, abarcando em um relógio que nos dá o tempo desta secura e deste corte, pois de toda a poesia de Cabral, esta faca só lâmina é um dos possíveis resumos do que significou a jornada poética de João Cabral de Melo Neto enquanto viveu aqui no Brasil e na Terra.


UMA FACA SÓ LÂMINA

(ou: serventia das ideias fixas)
(1955)

Para Vinícius de Moraes

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra os próprios ossos.

A

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta,

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

B

Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.

E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.

Podes abandoná-la,
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.

Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.

E como faca que é,
fervorosa e enérgica,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:

a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que quanto menos dorme
quanto menos sono há,

cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e vive a se parir
em outras, como fonte.

(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja a faca mesmo).

C

Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,

porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se embotam mais no músculo,

Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.

É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,

e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.

Então se for a faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.

Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.

O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.

D

Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré-baixa da faca.

Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.

Mas quer durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor

bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.

E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,

tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira.

Bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.

(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais).

OBS: o poema continua, mas não vou colocá-lo na íntegra, pois é muito longo, aconselho a edição de Poesias Completas de João Cabral de Melo Neto da editora José Olympio)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/26349/17/o-corte-de-lamina-de-joao-cabral

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

JOÃO DO RIO, UMA BIOGRAFIA

“João do Rio se inscreve na História das letras brasileiras como um escritor de vivência”

   João do Rio tem muitas histórias, ele é uma das testemunhas da cultura e da sociedade brasileira e carioca, também tendo passado temporadas na Europa, abrangendo o período da virada do século XIX para o século XX, tendo então vivido durante grande parte da vigência da República Velha aqui no Brasil.
   João Carlos Rodrigues escreveu uma das melhores biografias do cronista, escritor e jornalista João do Rio, a qual tenho em mãos pela edição da Topbooks. João do Rio só viveu 39 anos, mas sua produção foi fecunda e prolífica, talvez tendo sua verve de romancista sido eclipsada pelas demandas dos jornais em que trabalhou escrevendo e até dirigindo a redação, uma vez que ele realizou grandes feitos, mas além de algumas partes de seus escritos terem sumido no tempo, apesar da pesquisa intensa em arquivos do biógrafo João Carlos Rodrigues, também projetos ficaram por fazer, devido a uma vida atribulada e cercada da boemia reinante principalmente no Rio de Janeiro.
   João do Rio se inscreve na História das letras brasileiras como um escritor de vivência, muito para além de uma figura erudita, pois sua formação não foi formal, mas na vida, mesmo com seu estudo de Letras. Este grande cronista, seara em que mais se destacou, citando-o aqui também como exímio contista, tem o caráter de um pesquisador in loco, quase um antropólogo urbano, um vivente social, curioso, que soube reunir informações em textos que tentavam descobrir por um olhar atento aspectos da cultura, sobretudo da carioca, num retrato da primeira metade do século XX.
   A dimensão de reportagem e crônica se fundem no trabalho de João do Rio, produzindo um jornalismo cultural que ainda podem ser atuais no que consta como sátira política e social, com quadros até então inéditos da vida social carioca. O biógrafo tenta, com justiça, tirar do obscurantismo este trabalho tão importante, documento da sociedade das duas primeiras décadas do século XX. A literatura vertiginosa de João do Rio é resgatada pelo biógrafo numa verdadeira garimpagem nos arquivos de jornais antigos, num esforço para fazer um novo juízo de quem foi e o que produziu João do Rio.
   Aos vinte e poucos anos, João do Rio já era conhecido na sua atividade jornalística, sendo um escritor e cronista da vida da ralé e da feitiçaria, ainda incluindo suas andanças pela Europa, dando algumas bordoadas em figurões da República Velha, tal como Pinheiro Machado, um político destacado neste período. E se pode dizer, também, que o período de João do Rio, em relação ao que escreveu, é uma imagem de tudo o que representou o fascínio tardio da belle-époque que o Brasil experimentou.
   É muito difícil separar autor e obra no caso de João do Rio (Paulo Barreto, seu nome real), pois sua extensa bibliografia está muito na primeira pessoa, isto é, uma grande parte de tudo que João do Rio produziu de escritos está relacionada com sua vivência social, de seu faro jornalístico no sentido de pesquisa in loco de tudo o que viu e traduziu em letras. Portanto, estamos falando de um escritor plural, já que podemos citar, com certeza, que João do Rio (um de seus pseudônimos) tinha ainda mais outros pseudônimos, moda que saiu de cartaz do jornalismo contemporâneo, mas que em sua época era febre e até um método de se fazer jornalismo crítico.
   Paulo Barreto (João do Rio) esteve presente nos acontecimentos mais díspares, tais como: nasceu no fim do Segundo Império, quando menino assistiu a Abolição e a proclamação da República, já rapaz, viu reformas urbanas, tal como a de Pereira Passos, no Rio de Janeiro, e adulto, participou dos intensos debates ideológicos após a Primeira Grande Guerra, tendo também estado presente em elegantes recepções no palácio do Catete, nos bombardeios durante a Intentona Monarquista em Lisboa, nas rodas de samba numa favela do Largo da Carioca, e também, na Cascatinha da Tijuca ao luar com Isadora Duncan.
   O biógrafo lamenta, no entanto, que o trabalho de João do Rio se dispersou, pois apenas 1/3 da sua obra foi publicada em livro, restando um mundaréu de coisas esparsas em jornais e revistas. O biógrafo conseguiu acessar cerca de 2.500 escritos entre contos, crônicas, peças de teatro e reportagens. Sendo que a maior lamentação do biógrafo se refere à perda ou dispersão, quase irreparável, da correspondência de João do Rio, assim como rascunhos e trabalhos inéditos.
   O trajeto da vida de João do Rio é riquíssimo, pois ele se deparou com figuras como João Cândido (o líder da revolta da Chibata), o que resultou numa polêmica biografia do marujo que foi logo destruída ou perdida, o célebre ladrão de casaca Doutor Antônio, a cartomante Madame Zizina, o príncipe Luiz de Orleans e Bragança e a internacional Isadora Duncan.
   Paulo Barreto (João do Rio) nasceu quase pobre e ascendeu socialmente, alcançando fama, e o ódio que desperta nos menos talentosos. Foi então atacado brutalmente, física e moralmente, pelos desafetos, nas páginas dos principais jornais cariocas. Depois de sua morte trágica no meio da rua, foi rapidamente esquecido, mas teve a feliz reabilitação nos últimos anos, tendo trabalhos destacados como A Alma Encantadora das Ruas, que ganhou novas edições.
   Como autor, João do Rio teve como estilo principal, sobretudo, a influência da Art-Noveau na literatura brasileira, reunindo em seus escritos de um modo magistral fontes decadentistas, muito de Oscar Wilde, dentre outros, e por vezes, a morbidez do enredo. E como jornalista, temos o seu já citado misto de reportagem e crônica, num novo gênero de sua lavra e personalidade, então ainda pouco comum. E como cidadão carioca e do mundo, entra no anedotário de seus inimigos da época, pois era o arquétipo incomparável de mulato, gordo e homossexual, típico carioca, com qualidades e defeitos que todos têm, visto com admiração e desdém pelos provincianos da República Velha. João do Rio é então objeto do sucesso e do escárnio de sua época sinistra.
   O Rio de Janeiro da bela época, por sua vez, é ainda o provincianismo tipicamente brasileiro que ainda reina por estas bandas, uma babel imitadora do que vem de fora, ainda que a semana de 22 tenha dado um sopro de folclore brasileiro nas letras, temos, com toda a riqueza brasileira, uma súcia mais que provinciana, cabeça dura, que na República Velha beirava a caricatura. Portanto, a bela época carioca é nada mais que uma invenção, e João do Rio mergulha nela não como deslumbrado, mas como observador arguto e pronto para tecer sua visão de pesquisa e entusiasmo, pois transcendeu os salões do Catete, indo parar nas favelas e na feitiçaria no que será denominado como resquícios de falso espiritismo, um cético dado a falar com cartomantes, o paradoxal João do Rio.
   Podemos dizer que o Rio de Janeiro da bela época é também uma das invenções de João do Rio, sendo repetida por falastrões e imitadores de menor estirpe que sucederam ao caudaloso rio de João do Rio. E como autor de ficção João do Rio deve tributo e influência a figuras estrangeiras do filão “malditos” como Wilde, Lorrain e Huysmans, e como cronista é fanático por e tem descendência no grande e onipresente Artur Azevedo, antecedendo Lima Barreto, que nem citara em suas crônicas, não gostava dele, os dois não se bicaram, e o lendário Nelson Rodrigues, já na partida para a segunda metade do século XX, isso se falarmos da famosa crônica carioca, que tem como uma das concorrentes a geração dos mineiros como Otto Lara Resende.
   A primeira colaboração regular de Paulo Barreto (João do Rio) foi no jornal A Cidade do Rio, jornal que tinha como dono José do Patrocínio, e era, portanto, um dos órgãos principais da gloriosa campanha abolicionista, com a cara de Patrocínio: “virulento, generoso e desorganizado”, segundo o jovem colaborador, Patrocínio era “irreprimível, impetuoso, como certos fenômenos da natureza que os poetas corporificam em deuses, preto, musculoso, bocarra aberta e pulso grosso, só teve na vida uma atitude: a de portador de raios, e de fulminante (...) ora chamando-nos de gênio, ora achando-nos piores que a poeira.” Na virada do século, empobrecido por combater o presidente Campos Salles, Patrocínio perdeu alguns colaboradores como Bilac, Coelho Neto, Guimarães Passos, Emílio de Menezes, lançando então novos nomes como o próprio Paulo Barreto (João do Rio), Vivaldo Coaracy e Joaquim de Salles. Neste jornal, Paulo Barreto (João do Rio) ficou até 1900.
   Entre janeiro de 1901 e março de 1902 João do Rio escreveu consecutivamente em O PaizO Dia de Dunshee de Abranches, e O Correio Mercantil de Virgílio Brígido – os dois últimos de curta duração. Neste período Paulo Barreto (João do Rio) traçou um de seus caminhos: surgiu como um paladino do Realismo e do Naturalismo e crítico contundente dos românticos, mas a sua mira principal estava dirigida contra os simbolistas. Estes “usavam coisas esquisitas, embebedavam-se, andavam sujos e cantavam numa apoteose nevrótica, de palavras azuis e brancas, todos os vícios proibidos” e por causa deles “os métodos científicos vão por terra, todo o trabalho de gerações para a obra da Verdade, que começa no século XVI, termina aqui bruscamente diante da vara de um mágico ou da gritaria cavernosa do Simbolismo.”
   Segundo ele, o Naturalismo é a “arte sã” e só o Realismo “fará a liberdade plena do escritor”.  É bem crítico e rigoroso com os literatos nacionais: Casimiro de Abreu, “baboseiras em maus poemas e em mau português”, José da Alencar, “finge ser original”, Manuel de Macedo, “literatura de boudoir”, Coelho Neto, “a cada romance mimetiza nova escola”, só elogiando Aluísio de Azevedo e Adolfo Caminha. Citando a biografia, João do Rio queria “plantar convincentemente o Naturalismo, o realismo d`arte no torrão mole e indolente do Brasil com toda a nossa alma moça de 20 anos, nem que para isso precisasse aparecer de chicote na mão.”
   Como crítico, adotando primeiro o pseudônimo Claude (usado por Zola na mesma atividade), sua contribuição vai mais para as Artes Plásticas, em cinco anos de trabalho, com a cobertura que fez do Salão de Belas Artes. E as críticas ao Salão de 1900, além do pseudônimo Claude, apresenta a sua característica de estilo em formação: diálogos com personagens fictícios, de fundo satírico. E, desde a falência do efêmero Correio Mercantil em março de 1902 e do velho A Cidade do Rio no mesmo ano, pela primeira vez em 3 anos Paulo sentiu faltar-se espaço na imprensa, fechada, segundo ele, “às minhas revoluções literárias de adolescente, o jornal dava-me a impressão de turbilhão, onde fosse preciso bracejar incessantemente. E eu via a inveja, a calúnia sórdida, sentia a peçonha dos literatos emasculados, a ignorância recalcitrante dos políticos, a trama de ambição e do negócio.”
   Ainda na biografia, e as palavras de João do Rio: “o jornal, na alvorada do século, é ainda anêmica, clorótica, e inexpressiva gazeta da velha monarquia (...) poucas páginas de texto, quatro ou oito (...) Paginação sem movimento ou graça. Colunas frias, monotonamente alinhadas, jamais abertas. Títulos curtos (...) Desconhecimento das manchetes e outros processos jornalísticos (...) Tempo do soneto na primeira página, dedicado ao diretor ou ao redator principal (...) Começa, geralmente, pelo artigo de fundo, (...) de ar impotente e austero, mas rigorosamente vazio de opinião”. Continua: “O grosso dos diretores é fisiológico, sempre disposto a apoiar o governo em troca de algum, e combatê-lo pela melhor oferta. Nas colunas “a pedidos” saíam denúncias anônimas, facilitando a chantagem. No entanto, desde os tempos de Pedro II reinava a mais absoluta liberdade de imprensa (interrompida apenas no governo Floriano). Dezenas de folhas de todas as tendências, do anarquismo ao jacobinismo, passando pela restauração da monarquia, formava a imprensa nanica de então.”
   A grande imprensa compunha-se dos jornais matutinos, quase todos com sede na Rua do Ouvidor, O Jornal do Commércio é o mais antigo, dirigido por José Carlos Rodrigues, com orientação conservadora, o Jornal do Brasil é o mais popular, igualmente conservador, alinhado pelos diretores Fernando e Cândido Mendes à política católica. O Paiz, tido como o mais fisiológico dos grandes, é dirigido por João Lage, e conta com a colaboração diária de Artur Azevedo, A Gazeta de Notícias favorita da elite cultural, tem uma tendência liberal, comandada por Ferreira de Araújo (depois por Henrique Chaves), seus colaboradores literários são Coelho Neto, Olavo Bilac, Emílio de Menezes, e em 1901 surge O Correio da Manhã, fundado pelo advogado Edmundo Bittencourt, cuja independência marcou época.
   Os jornais vespertinos, por sua vez, são menos informativos e mais dominados pela personalidade dos seus proprietários, como o exemplo de A Cidade do Rio, e o mais vendido, A Notícia, que tinha como principais atrativos os literatos Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac, Coelho Neto e Artur Azevedo. A renovação da imprensa brasileira, por sua vez, começou no Jornal do Brasil e na Gazeta de Notícias. E a ida de Paulo Barreto (João do Rio) para este jornal em novembro de 1903, por indicação do deputado fluminense Nilo Peçanha, é uma prova inequívoca de prestígio e vai coloca-lo mais que nunca no turbilhão do jornalismo, desta vez para sempre.
   No início do século XX, a capital da República passa por mudanças, além de que a imprensa, concomitantemente, se moderniza, é a sucessão da austeridade fiscal impopular de Campos Salles dando lugar a Rodrigues Alves no governo da República, e o novo presidente reuniu uma equipe de notáveis, com Rio Branco na pasta do Exterior, Lauro Muller na Viação e Obras Públicas, Leopoldo de Bulhões na Fazenda, Oswaldo Cruz na Saúde Pública, e Pereira Passos na Prefeitura do Rio, este velho funcionário sexagenário da Estrada de Ferro, que então recebe plenos poderes para fazer a reforma urbana e o saneamento da cidade, inspirado diretamente na reforma de Paris por Haussmans cinquenta anos antes.
   A reforma era ambiciosa e de longo prazo. Em menos de uma década somem todas as praias e prainhas entre o Arsenal da Marinha e o Caju. A Prefeitura e a Saúde Pública proíbem hortas e chiqueiros no perímetro urbano, dentre outras intervenções sanitárias. A construção da Avenida Central (atual Rio Branco) foi conseguida às custas do despejo sumário de 20 mil pessoas e a derrubada de quase dois mil imóveis. Foi o famoso “Bota-abaixo” que enlouqueceu a cidade durante 1903 e 1904, exato período em que Paulo Barreto (João do Rio) entrou na Gazeta, na coluna A Cidade, onde comentava fatos cotidianos, utilizando vez por outra diálogos irônicos herdados do estilo de Artur de Azevedo. A Cidade durou cerca de um ano, sendo fonte fidedigna das mentalidades cariocas de então, numa heterogênea mistura de estilo rebuscado com preocupação social. Tal coluna deixou de sair em março de 1904, não sendo possível abarcar as revoltas populares de novembro sob o pretexto da vacina obrigatória, na verdade a reação do lumpen despejado pelo Bota-abaixo.
   Já em outra etapa de seu trabalho, aos 22 anos, Paulo Barreto inventa seu pseudônimo mais famoso, João do Rio. As primeiras matérias com o novo nome são de entrevistas com diplomatas portugueses, italianos e japoneses sobre o tema da imigração, desviada para a Argentina por causa do famoso relatório Rossi, que denunciava maus tratos aos agricultores europeus em São Paulo, por parte de fazendeiros até ontem donos de escravos. E de fevereiro a março de 1904 João do Rio realiza um de seus trabalhos mais importantes e conhecidos, publica na Gazeta as famosas reportagens intituladas As religiões no Rio.
   Neste novo trabalho, João do Rio reúne escritos que beiram a ficção decadentista, como A missa negra, outros revelam confusão (Os fisiólatras) ou falta de densidade como O culto do mar, um tanto ralo. Mas, a maior parte destes escritos é histórico-informativa. Maronitas, presbiterianos, metodistas, batistas, adventistas, israelitas, espíritas, cartomantes e até um frei exorcista do Morro dos Castelo são catalogados, descritos e observados com atenção e curiosidade.
   Por sua vez, ainda em As religiões no Rio, o que mais chama a atenção são as cinco matérias sobre os cultos de origem africana, que atestam uma pesquisa pioneira num assunto ainda muito mal abordado, pois os estudos do professor Nina Rodrigues, feitos na Bahia, tinham circulação restrita e só foram publicados em livro na década de 1930. João do Rio, nestes escritos, é guiado pelo negro Antônio, e com ele, o narrador percorre a Cidade Nova, a Gamboa, o Santo Cristo e as cercanias da praça Tiradentes, à procura dos africanos remanescentes e seus cultos.
   De formação positivista, João do Rio observou os cultos com distanciamento preciso, quando não estupefato pela possessão das iaô e a matança de animais. Mas, contudo, João do Rio consegue descrever com pormenores a hierarquia sacerdotal do candomblé, assim como o panteon dos orixás e o culto dos eguns na Casa das Almas. E a repercussão de As religiões no Rio alçou seu jovem autor à condição de grande jornalista, rapidamente transformou-se num best-seller.
   Logo após o sucesso de As religiões no Rio, João do rio prosseguiu na observação da cidade e de seus habitantes. São dezenas de reportagens, e não apenas  na Gazeta, como na Kosmos, lançada em fevereiro de 1904, uma revista artística, científica e literária, que é um acontecimento na imprensa brasileira. João do Rio agora está no seleto grupo de colaboradores que inclui: Olavo Bilac, Artur Azevedo, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, José Veríssimo, Coelho Neto, dentre outros. E em 1908, sai outro de seus livros conhecidos: A alma encantadora das ruas, que poderia ser uma aparentemente descuidada coletânea de artigos, mas que é uma das melhores obras de João do Rio. E como contista, João do Rio nos dá um de seus contos mais conhecidos O bebê de tarlatana rosa, e que é um clássico da nossa literatura.
   E, por sua vez, aos poucos, o materialismo positivista do jovem Paulo Barreto vai sendo substituído por um vago panteísmo que não exclui consultas do adulto João do Rio a videntes, cartomantes e outras superstições. E fica conhecida a sua relação diante de Madame Zizina, a mais festejada das paranormais da nossa belle-époque. Imitada e invejada, Madame Zizina é mais uma das inusitadas amizades de Paulo Barreto, como o doutor Antônio, Magnus Sondhal e outros por vir. Esses e outros fatos fizeram a vida e a obra de João do Rio.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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