PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

NATAL VIVIDO

Os olhos lacrimejam na fonte da saudade,
bem feliz o natalino céu se emana.
Boas festas sem passar o frio
que ao espanto se dá lá fora, sem carinho.

Brinde quente, à paz da gente.
Noite feliz e meus amigos,
felizes meus camaradas,
minha família.

Aonde todo homem é ilha,
Natal é ponte.
Pois ligam-se os horizontes,
e a neve se aninha
em quente coração,
calor d`alma
que a tudo se abre,
pois do sol que nascerá,
que seja a noite de fartura
ao bom começo da esperança
que a canção nos leva.

Pois é Natal,
à flor da pele
as estrelas
piscam seus brilhos
de presente
aos olhos que veem.

24/12/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

domingo, 22 de dezembro de 2013

ANA CRISTINA CESAR

“A pesquisa poética avançada de Ana C. é recuperada com justiça.”

   Ana Cristina Cesar (1952-1983) nasceu no Rio de Janeiro, formou-se em letras, foi poeta, jornalista, tradutora e crítica literária. Neste ano agora, de 2013, temos o imenso prazer de ter o lançamento de uma compilação de suas obras completas, sobretudo a sua poesia, no livro que saiu com o título Poética, que, dentre outros achados, recupera obras fora de catálogo há décadas, tais como A Teus Pés e Inéditos e Dispersos, que voltam agora a se tornar acessíveis, através desta reunião da obra de Ana C. que, por seu turno, teve a contribuição de Armando Freitas Filho, Viviana Bosi e Mariano Marovatto. Este lançamento coincide com os trinta anos da morte da poetisa.
   Agora, temos esta nova dádiva para a História da poesia brasileira, a qual já foi brindada com o livro Toda Poesia de Paulo Leminski, e recebe este sopro novo, agora, de recuperação de poetas fora de catálogo, com esta compilação mais que providencial do trabalho poético e literário de Ana C.
   Seu trançado inventivo, de conversa em forma poética, ganha novo fôlego. A pesquisa poética avançada de Ana C. é recuperada com justiça, e vem à tona toda uma prosa de conversa, poemas curtos de fina ironia, trabalhos extremamente originais, que tinham uma voz única e diferente, lá nos idos dos anos 70 e início dos 80, onde o sentido pop, com um caudal de narrativa entrecortada e radical, criava um diálogo com o leitor em vias heterodoxas. E tudo isso vem num conjunto de elementos-personagens que formam um mar que leva o tom intimista de um diário, mas que, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, revela o traço de uma poesia que se estende nesta trama plural de estorinhas, de indagações, reclamações, questões, confissões “inconfessáveis” e expressão estética de riqueza ímpar, muito de original, muito de diferente. Ana C. é uma poeta (poetisa) diferente, não se encaixa num lugar só, uma vez que estes lugares são só dela e de sua poesia.
   Sua linguagem quebra a expectativa comum, é inconclusiva muitas vezes, tem cortes bruscos, retornos sem fim, ou fins que morrem de súbito, voltam, se fragmentam, fazem trançados com pedaços muitas vezes soltos, narrativas dentro de passagens que se entrecruzam formando o novelo que dá no poema em prosa, ou que se descortinam como verso em aliteração. O jogo se impõe, e nada em Ana C. é previsível, sendo esta, certamente, a sua qualidade maior. Ao lermos Ana C., não temos um trajeto ao qual percorrer nela, ao menos prévio. A leitura de seus escritos é uma descoberta, a sensação que se tem é de ter um insight bem bacana a cada remada no seu mar narrativo e poético, leitura leve, a quem tem sentidos para a poesia, não sendo uma leitura para quem quer compreender, mas sim para a fruição de cortes e estalos de linguagem, aos quais Ana C., o tempo todo, te propõe e te desafia. A leitura de Poética é uma boa viagem num texto que se firma nesta fratura existencial, não se dá de todo, e não nos traz, ainda bem, pérolas de sabedoria. A prosa e o verso de Ana C. se instauram na fratura da existência, fratura na qual se dá seu possível entendimento, e tal prosa e verso se conduzem no rasgo de percepção que toda poesia verdadeira exige.
  Nos seus poemas se revela seu traçado, seu trançado inventivo, seu traço particular de diário, tal como na página 22: “Noite de Natal./ Estou bonita que é um desperdício.” Aí temos uma constatação banal, que se conclui com fina ironia, e o poema todo se faz fragmentado, num movimento de ida e volta, se tem o mundo dos objetos, tal como as botas pretas, e a voz feminina numa poesia original. Em “Arpejos” (pg.26), se situa sua fala cotidiana como tom intimista do diário, é a poesia-documento de Ana C. Em 19 de abril, página 34, ela sai toda-toda, “saí com júbilo escolar nas pernas, frases bem compostas de pornografia pura”.
   Na prosa de Ana C., que são de extensão curta, o sentir de um dia-a-dia formatado em linguagem poética aparece, como no “guia semanal de ideias” e no “jornal íntimo”, estes sendo os modos novos em que se dá a poesia de Ana C., cotidiano em diários íntimos, o particular da vida poética que se faz universal ao se tornar também parte da arte literária. Aqui, a poesia se enuncia de um lugar singular, em formas inesperadas, com datas e dias da semana.
   Em “My Dear”, o diário ganha a forma da prosa extensa, com personagens que povoam uma voz que é de Ana C., sob uma ficção em linguagem, que revela os tons plurais de uma vida que se desenrola em relato e invenção, a poesia se dá na prosa extensa de Ana C., fundando o corte de vozes que se fundem neste diário-ficção. Na verdade, não há a menor preocupação do diário em ser real ou não, o escrito vale o que é, o biográfico passa ali, mas não é só isso, o literário se mistura com a estrutura íntima que todo diário deve ter.
   O poema epílogo, por sua vez, sustenta o discurso próprio de Ana C., as famosas luvas de pelica, marca que dá à poesia de Ana C., seus tons de mulher em trânsito, tudo passa dos anos 70 aos 80, Ana C. é fruto de sua época e passa em outra seara por esta mesma época dos poetas marginais, como Cacaso e Francisco Alvim. A fragmentação de orações coordenadas aparece algumas vezes nos versos de Ana C., como em “atrás dos olhos das meninas sérias” (pg.94). Já, “aventura na casa atarracada” (pg.107), revela a força expressiva de versos como: “Te pego lá na esquina,/na palpitação da jugular”, e conclui, com olhar de fera: “olhos nos olhos, e quase testa a testa.” Em “fogo do final” (pg.121-123), mais orações coordenadas, uma sensação de noite urbana, “escrevendo no automóvel”, um encadeamento intricado, “me jogo aos teus pés inteiramente grata/ bofetada de estalo – decolagem lancinante – baque de fuzil.” O homem vai embora, e ela diz: “preciso começar de novo o caderno terapêutico.” Eis o sentido da obra, um caderno terapêutico, como todo poeta que se preze, deve ter um. Eureka!
   Onze Horas (pg.145), aliterações tomam o baile do poema, Ana C. forja mais um jogo. O poema da gatografia, por sua vez, é o lampejo criativo sui generis, Ana C. gatografa o poema nesta obra “Poética” na pg.177. O texto de “gota a gota”, por sua vez, é o poema visual com prosa intensa de grito lancinante, “pois chegamos quando nos dispomos a continuar, mas a que custo!” (pg.190), fecha com angústia irônica. No poema sem título da pg.237, discurso fluente como ato de amor, Ana C. faz um pouco da metaliteratura que se autoquestiona, “a chave, a origem da literatura/o ‘inconfessável’ toma forma” concluindo: “não tenho ideias, só o contorno de uma sintaxe (=ritmo)”, e talvez seja esta a busca da poesia, as ideias devem servir ao ritmo, a linguagem se musicografa (gatografa? Ana C.) e se faz ritmo. Na enunciação poética, que é revelação criada, embora profana, a ideia não tem tanta importância, a respiração se impõe a todo poeta que pensa através do ritmo.
   Poemas longos, como “contagem regressiva”, confirmam o fôlego da poetisa, demonstrando que os poemas curtos são parte e não o todo de seu trabalho. Ana C. tem prosa e verso longos e curtos, é completa. Seus passos largos foram para além da moda oswaldiana do poema-piada ou das polaroides dos poemas-minuto que reinavam na poesia marginal dos anos 70. Ana C. é intensa, em um poema sem título, termina, e dá o aviso: “preciso me atar ao velame com as próprias mãos./Sopra fúria.” E, para mim, Ana C. alcança o clímax da expressão no poema 33ª Poética, um desabafo irônico, que começa com o protesto “estou farto da materialidade embrulhada do signo/da metalinguagem narcísica dos poetas”, e propõe: “quero antes/a página atravancada de abajures/o zoológico inteiro caindo pelas tabelas/a sedução dos maxilares/o plágio atroz. (pg.325)” Todo este poema tem uma linguagem trabalhada invejável, todo conduzido numa forma impressionante.

   E aqui termino o relato de minha aventura com Ana C. Fica a recomendação da leitura do livro Poética de Ana Cristina Cesar, mais uma grande sacada, depois de Leminski, para recuperar obras que andavam esquecidas e/ou fora de catálogo. 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.