“A pesquisa poética avançada de Ana C. é recuperada com
justiça.”
Ana Cristina Cesar
(1952-1983) nasceu no Rio de Janeiro, formou-se em letras, foi poeta,
jornalista, tradutora e crítica literária. Neste ano agora, de 2013, temos o
imenso prazer de ter o lançamento de uma compilação de suas obras completas,
sobretudo a sua poesia, no livro que saiu com o título Poética, que, dentre outros achados, recupera obras fora de
catálogo há décadas, tais como A Teus Pés
e Inéditos e Dispersos, que voltam agora a se tornar acessíveis, através desta
reunião da obra de Ana C. que, por seu turno, teve a contribuição de Armando
Freitas Filho, Viviana Bosi e Mariano Marovatto. Este lançamento coincide com
os trinta anos da morte da poetisa.
Agora, temos esta
nova dádiva para a História da poesia brasileira, a qual já foi brindada com o
livro Toda Poesia de Paulo Leminski, e recebe este sopro novo, agora, de
recuperação de poetas fora de catálogo, com esta compilação mais que
providencial do trabalho poético e literário de Ana C.
Seu trançado
inventivo, de conversa em forma poética, ganha novo fôlego. A pesquisa poética
avançada de Ana C. é recuperada com justiça, e vem à tona toda uma prosa de
conversa, poemas curtos de fina ironia, trabalhos extremamente originais, que
tinham uma voz única e diferente, lá nos idos dos anos 70 e início dos 80, onde
o sentido pop, com um caudal de narrativa entrecortada e radical, criava um
diálogo com o leitor em vias heterodoxas. E tudo isso vem num conjunto de
elementos-personagens que formam um mar que leva o tom intimista de um diário,
mas que, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, revela o traço de uma poesia que se
estende nesta trama plural de estorinhas, de indagações, reclamações, questões,
confissões “inconfessáveis” e expressão estética de riqueza ímpar, muito de
original, muito de diferente. Ana C. é uma poeta (poetisa) diferente, não se
encaixa num lugar só, uma vez que estes lugares são só dela e de sua poesia.
Sua linguagem quebra
a expectativa comum, é inconclusiva muitas vezes, tem cortes bruscos, retornos
sem fim, ou fins que morrem de súbito, voltam, se fragmentam, fazem trançados
com pedaços muitas vezes soltos, narrativas dentro de passagens que se
entrecruzam formando o novelo que dá no poema em prosa, ou que se descortinam
como verso em aliteração. O jogo se impõe, e nada em Ana C. é previsível, sendo
esta, certamente, a sua qualidade maior. Ao lermos Ana C., não temos um trajeto
ao qual percorrer nela, ao menos prévio. A leitura de seus escritos é uma
descoberta, a sensação que se tem é de ter um insight bem bacana a cada remada
no seu mar narrativo e poético, leitura leve, a quem tem sentidos para a
poesia, não sendo uma leitura para quem quer compreender, mas sim para a
fruição de cortes e estalos de linguagem, aos quais Ana C., o tempo todo, te
propõe e te desafia. A leitura de Poética é uma boa viagem num texto que se
firma nesta fratura existencial, não se dá de todo, e não nos traz, ainda bem,
pérolas de sabedoria. A prosa e o verso de Ana C. se instauram na fratura da
existência, fratura na qual se dá seu possível entendimento, e tal prosa e
verso se conduzem no rasgo de percepção que toda poesia verdadeira exige.
Nos seus poemas se
revela seu traçado, seu trançado inventivo, seu traço particular de diário, tal
como na página 22: “Noite de Natal./ Estou bonita que é um desperdício.” Aí
temos uma constatação banal, que se conclui com fina ironia, e o poema todo se
faz fragmentado, num movimento de ida e volta, se tem o mundo dos objetos, tal
como as botas pretas, e a voz feminina numa poesia original. Em “Arpejos”
(pg.26), se situa sua fala cotidiana como tom intimista do diário, é a
poesia-documento de Ana C. Em 19 de abril, página 34, ela sai toda-toda, “saí
com júbilo escolar nas pernas, frases bem compostas de pornografia pura”.
Na prosa de Ana C.,
que são de extensão curta, o sentir de um dia-a-dia formatado em linguagem
poética aparece, como no “guia semanal de ideias” e no “jornal íntimo”, estes sendo
os modos novos em que se dá a poesia de Ana C., cotidiano em diários íntimos, o
particular da vida poética que se faz universal ao se tornar também parte da
arte literária. Aqui, a poesia se enuncia de um lugar singular, em formas
inesperadas, com datas e dias da semana.
Em “My Dear”, o
diário ganha a forma da prosa extensa, com personagens que povoam uma voz que é
de Ana C., sob uma ficção em linguagem, que revela os tons plurais de uma vida
que se desenrola em relato e invenção, a poesia se dá na prosa extensa de Ana C.,
fundando o corte de vozes que se fundem neste diário-ficção. Na verdade, não há
a menor preocupação do diário em ser real ou não, o escrito vale o que é, o
biográfico passa ali, mas não é só isso, o literário se mistura com a estrutura
íntima que todo diário deve ter.
O poema epílogo, por
sua vez, sustenta o discurso próprio de Ana C., as famosas luvas de pelica,
marca que dá à poesia de Ana C., seus tons de mulher em trânsito, tudo passa
dos anos 70 aos 80, Ana C. é fruto de sua época e passa em outra seara por esta
mesma época dos poetas marginais, como Cacaso e Francisco Alvim. A fragmentação
de orações coordenadas aparece algumas vezes nos versos de Ana C., como em
“atrás dos olhos das meninas sérias” (pg.94). Já, “aventura na casa atarracada”
(pg.107), revela a força expressiva de versos como: “Te pego lá na esquina,/na
palpitação da jugular”, e conclui, com olhar de fera: “olhos nos olhos, e quase
testa a testa.” Em “fogo do final” (pg.121-123), mais orações coordenadas, uma
sensação de noite urbana, “escrevendo no automóvel”, um encadeamento intricado,
“me jogo aos teus pés inteiramente grata/ bofetada de estalo – decolagem
lancinante – baque de fuzil.” O homem vai embora, e ela diz: “preciso começar
de novo o caderno terapêutico.” Eis o sentido da obra, um caderno terapêutico,
como todo poeta que se preze, deve ter um. Eureka!
Onze Horas (pg.145),
aliterações tomam o baile do poema, Ana C. forja mais um jogo. O poema da
gatografia, por sua vez, é o lampejo criativo sui generis, Ana C. gatografa o
poema nesta obra “Poética” na pg.177. O texto de “gota a gota”, por sua vez, é
o poema visual com prosa intensa de grito lancinante, “pois chegamos quando nos
dispomos a continuar, mas a que custo!” (pg.190), fecha com angústia irônica. No
poema sem título da pg.237, discurso fluente como ato de amor, Ana C. faz um
pouco da metaliteratura que se autoquestiona, “a chave, a origem da
literatura/o ‘inconfessável’ toma forma” concluindo: “não tenho ideias, só o
contorno de uma sintaxe (=ritmo)”, e talvez seja esta a busca da poesia, as
ideias devem servir ao ritmo, a linguagem se musicografa (gatografa? Ana C.) e se
faz ritmo. Na enunciação poética, que é revelação criada, embora profana, a
ideia não tem tanta importância, a respiração se impõe a todo poeta que pensa
através do ritmo.
Poemas longos, como
“contagem regressiva”, confirmam o fôlego da poetisa, demonstrando que os poemas
curtos são parte e não o todo de seu trabalho. Ana C. tem prosa e verso longos
e curtos, é completa. Seus passos largos foram para além da moda oswaldiana do
poema-piada ou das polaroides dos poemas-minuto que reinavam na poesia marginal
dos anos 70. Ana C. é intensa, em um poema sem título, termina, e dá o aviso: “preciso
me atar ao velame com as próprias mãos./Sopra fúria.” E, para mim, Ana C.
alcança o clímax da expressão no poema 33ª Poética, um desabafo irônico, que
começa com o protesto “estou farto da materialidade embrulhada do signo/da
metalinguagem narcísica dos poetas”, e propõe: “quero antes/a página
atravancada de abajures/o zoológico inteiro caindo pelas tabelas/a sedução dos
maxilares/o plágio atroz. (pg.325)” Todo este poema tem uma linguagem
trabalhada invejável, todo conduzido numa forma impressionante.
E aqui termino o
relato de minha aventura com Ana C. Fica a recomendação da leitura do livro
Poética de Ana Cristina Cesar, mais uma grande sacada, depois de Leminski, para
recuperar obras que andavam esquecidas e/ou fora de catálogo.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.