“o equívoco fundamental de uma ideologia nacionalista que tenta salvar a própria cultura através da aniquilação”
Na visão de Varg Vikernes, o músico atribui os incêndios de igrejas
na Noruega devido ao Cristianismo ter destruído tradições originais do folclore
norueguês e mitologia nórdica, que vinha do paganismo. Os incêndios seriam uma
espécie de levante contra esta invasão da igreja cristã no território
norueguês. O Burzum, one man band de Varg, por sua vez, seria uma arma de
encorajamento para estes eventos, segundo o músico : “sonho sem base na
realidade. É feito para estimular as fantasias de mortais – para fazê-los
sonhar”.
Em Lords of Chaos, podemos ler : “Ainda que Vikernes e os
outros detidos por queimar igrejas tenham dado motivações para seus atos que
vão além da crueldade, nenhum deles expressou nenhum grau de remorso pelo
sofrimento que causaram nas vidas de sacerdotes e fiéis, ou pelo doloroso
impacto nas comunidades vizinhas. Na época de sua primeira prisão relacionada
aos incêndios, Vikernes fez uma série de comentários extremamente sádicos aos
jornais e revistas, que refletiam as preocupações iniciais do black metal
norueguês com espalhar o “mal” e a dor.”
Contudo, a carga simbólica dos incêndios de igrejas cristãs
vai para além da mera crueldade, há um fator ideológico relacionado a uma
preservação cultural, um tipo de vingança. Por sua vez, os dois casos que
ganharam mais repercussão foram os incêndios das igrejas de Fantoft e
Holmenkollen, que eram mais peças de museus do que verdadeiras congregações, e
segue Lords of Chaos : “Por outro lado, a igreja Hauketo, nos arredores de
Oslo, tinha uma congregação ativa. Na madrugada do dia 3 de outubro de 1992, a
igreja da paróquia queimou até não restar nada.”
Vikernes foi condenado pelo tribunal de Oslo a indenizar os
prejuízos causados pelos incêndios, contudo, seu advogado alegou inocência de
todas as acusações, e Varg ostentava uma
expressão de desdém durante o julgamento, uma vez que já se negara a pagar as
indenizações, ficando ao fim com uma dívida de juros que somavam quase um
milhão de coroas. A igreja de Fantoft, por sua vez, se tornou o maior símbolo
deste período conturbado que envolveu a cena black metal norueguesa.
Varg Vikernes, numa entrevista, diz o seguinte : “Eu não fui
julgado culpado pela queima da igreja de Fantoft em Bergen, mas, de qualquer
forma, foi isso que engatilhou a coisa toda. Foi no dia 6 de junho, e aí todo
mundo ligou com o satanismo, por causa do 06/06, e foi no 6º dia da semana.
O que todo mundo ignorou foi que no dia 6 de junho de 793, em
Lindisfarne na Grã-Bretanha, o primeiro saqueio viking conhecido na história
aconteceu, com vikings de Hordaland, que era o meu condado. Ninguém fez essa
ligação – ninguém. Aquela igreja é construída em solo sagrado, um círculo
natural e um horg de pedra (um altar pagão). Eles enfiaram uma grande cruz no
topo do horg e construíram a igreja no meio do lugar sagrado.”
O ingresso da cena black metal norueguesa se deu, por sua
vez, na conhecida e polêmica entrevista de Varg ao Bergens Tidende, em 20 de
janeiro de 1993. E Lords of Chaos segue : “No bojo do interrogatório de Varg
pela polícia de Bergen, uma série de outros membros da cena black metal também
foram detidos por diferentes departamentos policiais, e interrogados a respeito
de incêndios em igrejas e do assassinato do homossexual em Lillehammer,
incluindo Samoth e Bard Eithun, do Emperor – o último, inclusive, que seria
considerado culpado pelo homicídio. Ainda assim, não havia evidências o
bastante e todos foram soltos após serem interrogados.”
Em Lords of Chaos, a expansão da repercussão da cena black
metal fica estampada no seguinte fato : “Quando a onda de crimes anticristãos
passou a ser vista como algo que emanava, de alguma forma, do movimento black
metal, a atenção da mídia começou a crescer em escala exponencial, para a
alegria dos principais mobilizadores da cena, Vikernes e Aarseth. O artigo mais
infame da época foi uma matéria de capa na edição 436 da importante revista
britânica de metal Kerrang!, que chegou às bancas em 27 de março de 1993.
Quanto à estética da publicação, se dava da seguinte forma :
“Dominada por uma foto marcante de Vikernes olhando por sob longas mechas do
seu cabelo tingido de preto, com duas gigantescas facas cruzadas nas mãos, a
capa também apresentava uma igreja em chamas e uma inserção menor de uma foto
da banda Emperor, trajando corpse paint, mantos com capuz e armas medievais. A
manchete estilo tabloide promete : “INCÊNDIO ... MORTE ... RITUAL SATÂNICO ...
A Verdade Feia do Black Metal”. Do lado de dentro, a matéria de cinco páginas
apresenta ao resto do mundo, com muito sensacionalismo, a versão norueguesa do
black metal.”
Numa entrevista dada por Bard Eithun, segue o relato sobre o
assassinato cometido por ele : “Eu estava na rua, eu tinha saído pra beber mas
eu não quis porque tinha muita gente, então eu estava voltando para casa. Esse
homem se aproximou de mim – ele estava obviamente bêbado e era obviamente um
veado. Ele queria falar comigo. (...) Aí ele me perguntou se a gente podia sair
dali e ir até o bosque. Aí eu aceitei, porque ali eu já tinha decidido que eu
queria matar ele. (...) Então a gente foi pra dentro do bosque, em um parque
grande onde aconteceu a abertura das Olímpiadas de Inverno. Eu costumava sempre
ter uma faca no meu bolso de trás. Era uma faca preta com uma empunhadura, do
tipo dobrável que trava.
Aí eu não lembro bem o que eu estava pensando, mas eu ao
menos sabia que se eu não fizesse agora, eu não teria outra oportunidade. Aí eu
saquei a faca, virei e esfaqueei ele. Ele estava andando atrás de mim, eu me
virei e enfiei a faca na barriga dele. Depois disso eu não lembro de muita
coisa, só que era como se eu estivesse olhando para todo o incidente por olhos
que estavam fora do meu corpo. Era como se eu estivesse olhando duas pessoas
brigando – e uma delas tinha uma faca, então era fácil matar a outra.
Eu estava furando a barriga dele e ele caiu de joelhos. Eu
comecei a enfiar a faca no pescoço e no rosto. Aí ele deitou e eu estava em
cima dele, dando facadas. Minha intenção era tirar toda a vida dele. Eu não
queria que ele conseguisse sobreviver e ir pro hospital e me denunciar. Era
mais fácil matar ele e ir embora e esperar que tudo desse certo.
Ele tentou me derrubar, mas não é fácil quando a outra pessoa
tem uma faca. Ele estava deitado e eu queria matar ele. Eu dei uma facada com
muita força nas costas, e atravessou a escápula. Eu tive que pisar nele pra
conseguir tirar, porque a faca estava presa entre os ossos. Foi provavelmente
aí que ele morreu. Depois disso eu quis caminhar, e eu caminhei um pouco, mas
aí ele fez uns barulhos. Eu pensei, “ele não está morto”, e voltei pra lá e
chutei a cabeça dele com meu coturno, várias vezes. Eu queria ter certeza que
ele estava morto. Depois disso eu fui embora.”
Aqui temos descritas mais algumas polêmicas sobre a cena
black metal norueguês, seu ingresso no mainstream devido sobretudo à entrevista
na Kerrang, e todo o contexto de demência ideológica que tentava justificar
ideias de vingança cultural, com o enfrentamento pseudo-político de ações
terroristas perpetradas por jovens que cultuavam um tipo de crueldade e
ostentavam o mal com uma mistura anódina de culto pagão para negar que estavam
cometendo crimes.
A cena teve muita repercussão pelo sensacionalismo da
imprensa, que logo colocou manchetes chamativas e fotos impactantes para
produzir o efeito desejado de polêmica e choque, o terror como um dos motores
mórbidos de parte de uma mídia que precisa estar fazendo o seu barulho usual
para poder ter sucesso, o que coloca a cena black metal norueguesa, tanto no
contexto da Bergens Tidende como da Kerrang, como um prato cheio para uma boa
vendagem e garantias de ibope. As revistas de rock, nestes casos, pareciam mais
ou tabloides ou páginas criminais compradas em bancas de quinta.
Toda a ostentação de Varg, que beirava a demência, tinha toda
uma vestimenta intelectualizada, com conhecimento histórico e mitológico, um
tipo de vestimenta que nunca oculta todo o equívoco fundamental de uma
ideologia nacionalista que tenta salvar a própria cultura através da
aniquilação, da vingança e do crime, o terrorismo como luta cultural semelhante
ao extremismo hediondo de jihads deformadas e anódinas, feitas para produzir
somente o caos e a morte.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/a-sangrenta-historia-do-metal-satanico-underground-parte-xi