PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

AVENTURAS LOUCAS

“ele me contou uma versão inteira da segunda guerra como uma trama alucinatória”

Eu estava pensando numa pauta, logo em uma semana uma ideia fervilhou a minha cabeça, eu tive uma tia que já morreu que sofria de alucinações auditivas, conversava com Frank Sinatra e Marlon Brando, minha mãe dizia que as conversas eram bastante exaltadas.

Tive esta ideia, então, de pedir autorização a um Capes de frequentar por uma semana o confinamento disfarçado de interno em tratamento psiquiátrico. Queria anotar tudo e juntar, resumidamente, para esta pauta que escrevo agora.

Primeiro, tive que ter uma longa e extenuante conversa tentando persuadir o diretor de saúde de que eu, jornalista e antropólogo, ficasse por sete dias em meio aos internos e fazer esta pauta, depois de muito esforço, ganhei a autorização para me internar.

Fui então lotado em um quarto junto com dois outros internos, um deles me abordou pela manhã, depois do café coletivo, e disse que já tinha morrido há cinco anos e que vagava como uma alma penada para assustar os outros, ele me dizia que tinha morrido de tifo depois da segunda guerra mundial, numa batalha em Waterloo. Pelas minhas contas, sua alma penada vagava perdida em 1950, depois de ter morrido em 1945, e estamos em 2021.

No meio da tarde, um dos internos, que falava muito alto, e sacudia a cabeça num tipo de tique insuportável me perguntou sobre tudo, o que eu tinha estudado, quem eu era, do que eu gostava de comer, sobre a minha família, sobre se eu já tive casamentos e separações, se eu usava drogas, e mais umas centenas de perguntas que renderam a tarde toda.

Respondi tudo com alegria, e ele imitava as minhas respostas dizendo que também tinha feito aquelas coisas, só que em um efeito multiplicado, típico de um mitômano que não engana ninguém e que pensa que engana qualquer um.

Eu levei um bloquinho, e uma caneta escondida, levei uns livros para ler durante a internação, um deles era A Metamorfose de Kafka, que narrei para um dos internos que estava dormindo no meu quarto, eu falava de Gregor Samsa, e o interno começava a urrar, rastejar e dizer que também se sentia um inseto.

Este interno disse que no dia em que foi internado, ele falava uma língua que ninguém entendia, dizia que era inglês arcaico, e disse que tentou se jogar de uma ponte num rio que nem a Ofélia de Hamlet, e foi resgatado um dia depois, desacordado, sendo internado depois disso.

Já dava meia-noite, ligamos o ventilador, este interno começou a conversar com o ventilador, rezava um dialeto de arrependimento e redenção, uma ladainha insuportável, eu tentava dormir, fugi do quarto, tentei dormir em outro que tinha uma cama sobrando, lá pelas uma da manhã tomei um tarja preta e apaguei, sonhei no meio da madrugada com corridas de cavalos e corridas automobilísticas, tentei interpretar aqueles sonhos na manhã seguinte e não consegui.

Rodava no meio desta tarde que tinha um novo interno que era assassino, não levei a sério, e foi exatamente este interno que veio falar comigo, e logo disse que tinha gostado de mim e perguntou o que eu fazia ali, pois ele sacou que eu não era louco coisa nenhuma, que estava ali fazendo outra coisa.

Perguntei para ele na lata se ele tinha matado alguém, e ele me disse que tinha atropelado uma pessoa em cima de um cavalo, e que seu carro capotou, ele teve um surto depois de beber muito, desceu do carro, sacou uma faca, e deu facadas na vítima que já estava morta, aí foi que eu saquei o lance do sonho, saí de perto daquele cara, arrumei uma desculpa, e fui ler ao ar livre o meu livro sobre Biologia que eu queria estudar e entender melhor.

Depois voltei a conversar com a tal alma penada, ele me contou uma versão inteira da segunda guerra como uma trama alucinatória, suas histórias de suas batalhas tinham riquezas de detalhes, mas parecia um conto de Lovecraft aditivado com ácido lisérgico, este cara poderia ser um surrealista se tivesse tido juízo, mas era um interno que pensava que tinha morrido em 1945, ele morrera dentro de sua alma, e esta era a minha interpretação, e agora se refugiava em suas fantasias, não tinha mais vida.

Fui conversar no outro dia, novamente, com o suicida shakespereano, mas ele era uma pessoa tão lamuriosa e escurecida pelos próprios erros, o tempo todo dominado por uma arenga autoindulgente, que fui ler novamente o meu livro de Biologia, e fui ler sobre síntese proteica e mitocôndrias.

No fim da tarde, resolvi organizar as minhas anotações, e o louco que perguntava tudo começou a me infernizar, mas como tinha gostado de sua curiosidade, abri uma exceção e lhe contei mais histórias, e enfim disse que era cronista, jornalista, e então ele me contou as suas glórias como jornalista, um dos maiores de todos os tempos, e que tinha um jornal no qual ele era o diretor-chefe e redator, ele escrevia seus artigos e sempre se destacava no que fazia.

Depois, o chato suicida tentou me alugar novamente, eu já estava no meu último dia de internação, chamei o tal assassino para conversar com ele, o suicida lamurioso ficou com tanto medo que se borrou nas calças, e um dos membros da equipe médica chamou um enfermeiro para limpá-lo, o suicida, então, além de um chato de galochas, tinha medo de tudo, se cagava, logo concluí que tinha sido mimado a vida toda, e provavelmente nunca tinha feito nada por mérito próprio, culminando nesta ladainha de maria arrependida.

Saí pela manhã da internação, depois de uma última e divertida conversa com o mitômano curioso, eu falei sobre meu trabalho de jornalista, e ele me disse, mais uma vez, de seus prêmios diversos como articulista e repórter, me diverti com suas histórias criadas de sua imaginação, saí da internação, e agradeci o diretor de saúde, já tinha a minha pauta, o bloquinho de notas estava cheio.

Guilherme Thompson, cronista e outsider.

 

Guilherme Thompson é um cronista outsider, documentarista eventual, jornalista autodidata, nascido em 01/01/1974 na cidade do Rio de Janeiro, ganha a vida em jornais diversos, trabalha por demanda própria, vive nas ruas caçando pauta, meio como um antropólogo intuitivo, estuda literatura e filosofia por conta própria, gosta de se vestir com camisas de bandas de rock clássico.

 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/aventuras-loucas 

 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

MAR NOVO E O CRISTO CIGANO DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

“Em Mar Novo, de 1958, Sophia manifesta esta consciência da mudança e da permanência”

Sophia de Mello Breyner Andresen, a poeta portuguesa do mar e dos temas clássicos, funde em sua versão moderna de temas homéricos colididos com a poesia moderna, também, uma resposta que dialoga com as tradições poéticas que possuem uma expressão mais tipicamente poética, sem os experimentos comuns de vanguardas que tentam implodir a linguagem para deste terremoto criar um dialeto novo.

Um tipo de amor clássico, ligado a philia, entidade grega da Antiguidade, emerge nesta poesia de Sophia, de um amor gratuito, intransitivo, doado, ama-se o mar, a natureza, os nomes das coisas, as palavras, o ritmo do mundo, ama-se na visão de que a própria poesia é amar ou “viver a inteireza do possível”.

É neste possível que a poeta busca o elo perdido entre as palavras e as coisas. E o silêncio, tão visado pela autora, é pré-linguístico, anterior à mítica separação entre coisas e palavras. A poeta, por fim, é clássica, sem deixar de ser moderna.

Em Mar Novo, de 1958, Sophia manifesta esta consciência da mudança e da permanência, com este título que reforça o seu tema-valise ou tema-fetiche, como preferir, esta onipresença do mar em toda a sua poesia. O itinerário é descrito poema a poema, a cada livro, nesta luz que persegue as coisas do mundo, e que revela a tensão entre a continuidade e a transformação.

A edição única, reunindo No Tempo Dividido e Mar Novo, começou a partir de 1985, um reflexo de saber que Mar Novo prolonga os temas de No Tempo Dividido, sobretudo nesta confrontação com o tempo histórico, na tensão principal do presente.

Com Mar Novo, temos este sentido trágico da vida, neste sentimento da tragédia e que tem um certo mal-estar refletido em termos como desespero, náusea e absurdo, e que está ligado ao espírito do tempo dos fins dos anos 1940 e os anos 1950 em Portugal e outros países, neste vazio que tinha esta visão meio desamparada e desencantada das chamadas Filosofias da Existência ou Existencialismo.

O luto nos aparece no centro poético de Mar Novo, com poemas como “Canto Jondo”, e nas elegias “Meditação do duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal” e “O soldado morto”, temos ainda o poema “Náufrago”, e o poema sem título que começa com o primeiro verso que diz : “Aquele que partiu”. Em “Poema inspirado nos painéis que Júlio Resende desenhou para o monumento que devia ser construído em Sagres”, há um tipo de morte de Portugal.

Em O Cristo Cigano, livro de 1961, conta-se uma lenda que a poeta Sophia ouviu do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, os dois se conheceram em 1958, em Sevilha, onde morava o poeta e diplomata, o livro é um conjunto de poemas em sequência narrativa, e que reconstitui a lenda sevilhana que conta a história do escultor Francisco Antonio Ruiz Gijón.

A lenda conta a sua busca insana de uma imagem ideal de Cristo expirante sob uma encomenda que o escultor recebera em 1682, para uma capela, ao ponto do artista esfaquear um cigano para tentar reproduzir fielmente a imagem agônica de Cristo, este cigano de nome Cachorro, foi reconhecido na escultura pela população, que chamou a obra de arte de Cristo Cachorro, que pode ser vista na basílica do Cristo de la Expiración, ou simplesmente igreja do Cachorro, em Triana, bairro de Sevilha.

Este livro é um caso à parte na obra de Sophia, com formas incomuns na obra de Sophia, como a redondilha, com versos curtos e medidos, e também por um universo temático que não compõe o resto da obra da poeta.

POEMAS :

DE MAR NOVO

LIBERDADE : O poema aqui toma a imagem da praia, e na sensação das ondas tombando resgata algo que é seu, a sua liberdade, no que temos : “Aqui nesta praia onde/Não há nenhum vestígio de impureza,/Aqui onde há somente/Ondas tombando initerruptamente” (...) “Aqui o tempo apaixonadamente/Encontra a própria liberdade.”. O tempo e sua paixão, que é a sua liberdade, é o sentido deste tempo, o tempo do poema e da poeta Sophia.

A ANÉMONA DOS DIAS : Mais uma vez aqui aparece o mar e a liberdade, e uma forma de profanação, que é provocação, e a liberdade que tem seu dom mais caro,  a vitória, no que vem : “Aquele que profanou o mar/E que traiu o arco azul do tempo/Falou da sua vitória”. Sua liberdade tão grande, messiânica, no que temos : “Disse que tinha ultrapassado a lei/Falou da sua liberdade/Falou de si próprio como de um Messias”. E a poeta olha o que ficou no chão, a anêmona dos dias : “Porém eu vi no chão suja e calcada/A transparente anémona dos dias”.

NÁUFRAGO : A imagem deste náufrago, aqui na chave de prata do poema como um morto que oscila nas ondas, sem pupilas, como uma medusa que flutua aleatoriamente, no que vem : “Agora morto oscilas/Ao sabor das correntes/Com medusas em vez de pupilas.” O náufrago, morto, já não tem alma presente, sem coração e sem memória, ele se dilui : “Sem coração e sem memória/Em todas as presenças diluído.”. Este náufrago foi morar nos poemas : “Agora liberto moras/Na pausa branca dos poemas.” Este náufrago, jovem, que partiu, deixou, no entanto, a esperança, no que vem : “Aquele que partiu/Precedendo os próprios passos como um jovem morto/Deixou-nos a esperança.”. Este jovem tem a sorte de não ver a morte da verdade e a vitória do tempo, a poeta Sophia diz que ele já cumpriu sua jornada, segundo as suas próprias leis de pensamento, no que temos : “Intacta é a sua ausência/Como a estátua de um deus/Poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas./Ele não ficou para assistir/À morte da verdade e à vitória do tempo.” (...) “Que ao longe/Na mais longínqua praia/Onde só haja espuma sal e vento/Ele se perca tendo-se cumprido/Segundo a lei do seu próprio pensamento.” E seu nome cai num tipo de tabu, o limbo que sobra no poema : “E que ninguém repita o seu nome proibido.”

POEMA INSPIRADO NOS PAINÉIS QUE JÚLIO RESENDE DESENHOU PARA O MONUMENTO QUE DEVIA SER CONSTRUÍDO EM SAGRES : O poema se confronta na partida, e não sente a ausência, e o lusíada parte, no que temos : “I : Nenhuma ausência em ti cais da partida./Movimento ritual, surdo rumor de búzios,/Alegria de ir ver o êxtase do mar” (...) “Nenhuma ausência em ti cais da partida,/Impetuosa velas, plenitude do tempo,/Euforia desdobrando os seus gestos na hora luminosa/Do Lusíada que parte para o universo puro”. E a poeta pensa em seu regresso, seu corpo morto, quem irá pranteá-lo, no que vem : “II O regresso : Quem cantará vosso regresso morto/Que lágrimas, que grito, hão-de dizer/A desilusão e o peso em vosso corpo?” (...) “Portugal tão cansado de morrer/Ininterruptamente e devagar/Enquanto o vento vivo vem do mar”. A luta pergunta pela vitória, a poeta indaga, e o poema termina na abertura desta dúvida mortal : “Quem são os vencedores desta agonia?/Quem os senhores sombrios desta noite/Onde se perde morre e se desvia/A antiga linha clara e criadora/Do nosso rosto voltado para o dia?”.

NOCTURNO DA GRAÇA : O poema tenta captar o bosque em meio à cidade alheia, no que vem : “Há um rumor de bosque no pequeno jardim/Um rumor de bosque no canto dos cedros/Sob o íman azul da lua cheia/O rio cheio de escamas brilha./Negra cheia de luzes brilha a cidade alheia.” E a cidade brilha, no entanto, e todas as ruas e detalhes que surgem, no que temos : “Brilha a cidade dos anúncios luminosos/Com espiritismo bares cinemas” (...) “Com seus bairros de becos e de escadas/De candeeiros tristes e nostálgicas/Mulheres lavando a loiça em frente das janelas”. A poeta tenta vislumbrar alguma imagem de paz, talvez na cidade antiga, num convento, mas a cidade alheia brilha, e a poeta, ao fim, neste esforço se volta para o silêncio dos astros, em seu enigma, no que temos : “De igreja em igreja batem a hora dos sinos/E uma paz de convento ali perdura/Como se a antiga cidade se erguesse das ruínas” (...) “Mas a cidade alheia brilha/Numa noite insone/De luzes fluorescentes/Numa noite cega surda presa/Onde soluça uma queixa cortada.” (...) “Sozinha estou contra a cidade alheia./Comigo/Sobre o cais sobre o bordel e sobre a rua/Límpido e aceso/O silêncio dos astros continua.”

O CRISTO CIGANO

A PALAVRA FACA : A palavra faca aqui evoca o amigo da poeta e também poeta, João Cabral de Melo Neto, no que temos : “A palavra faca/De uso universal/A tornou tão aguda/O poeta João Cabral/Que agora ela aparece/Azul e afiada/No gume do poema/Atravessando a história/Por João Cabral contada.” E a faca tão bem contada por João Cabral em sua poesia, é aqui pela poeta Sophia lembrada.

I – O ESCULTOR E A TARDE : O trabalho do escultor é retratado aqui em uma tarde, no que temos : “No meio da tarde/Um homem caminha:/Tudo em suas mãos/Se multiplica e brilha.” (...) “O tempo onde ele mora/É completo e denso/Semelhante ao fruto/Interiormente aceso.”. O escultor caminha, e seu destino espera, ele vai, no que temos : “No meio da tarde/O escultor caminha :/Por trás de uma porta/Que se abre sozinha/O destino espera.” (...) “E depois a porta/Se fecha gemendo/Sobre a Primavera.”

IV – O ENCONTRO : Aqui a poeta retrata o cigano, na tarde, sozinho, no que vem : “Redonda era a tarde” (...) “Na margem do rio/Alguém se despia.” (...) “Sozinho o cigano/Sozinho na tarde/Na margem do rio” (...) “Seu corpo surgia” (...) “Semelhante à lua/E semelhante ao brilho/De uma faca nua.” (...) “Redonda era a tarde.”. Na margem do rio e o brilho de seu corpo, como uma faca nua.

VIII – CANÇÃO DE MATAR : O poema se divide, como que cortado por uma faca, em seu amor, no que temos : “Do dia nada sei” (...) “O teu amor em mim/Está como o gume/De uma faca nua/Ele me atravessa/E atravessa os dias/Ele me divide” (...) “Tudo o que em mim vive/Traz dentro uma faca/O teu amor em mim/Que por dentro me corta” (...) “O teu amor em mim/De tudo me separa” (...) “Do dia nada sei/E a própria noite azul/Me fecha a sua porta” (...) “Do dia nada sei/Com uma faca limpa/Me libertarei.”. A liberdade, ao fim, do dia que a poeta não sabe o que é, como uma faca limpa, no entanto, ela está livre.

XI : FINAL : E este poema que finaliza o périplo do escultor, com sua nota que encerra a sua jornada, no que temos : “Assim termina a lenda/Daquele escultor :/Nem pedra nem planta/Nem jardim nem flor/Foram seu modelo.”   Sevilha/Lisboa, 1959

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/mar-novo-e-cristo-cigano-de-sopgia-de-mello-breyner-andresen