“Em Mar Novo, de 1958, Sophia manifesta esta consciência da mudança e da permanência”
Sophia de Mello Breyner Andresen, a poeta portuguesa do mar e
dos temas clássicos, funde em sua versão moderna de temas homéricos colididos
com a poesia moderna, também, uma resposta que dialoga com as tradições
poéticas que possuem uma expressão mais tipicamente poética, sem os
experimentos comuns de vanguardas que tentam implodir a linguagem para deste
terremoto criar um dialeto novo.
Um tipo de amor clássico, ligado a philia, entidade grega da
Antiguidade, emerge nesta poesia de Sophia, de um amor gratuito, intransitivo,
doado, ama-se o mar, a natureza, os nomes das coisas, as palavras, o ritmo do mundo,
ama-se na visão de que a própria poesia é amar ou “viver a inteireza do
possível”.
É neste possível que a poeta busca o elo perdido entre as
palavras e as coisas. E o silêncio, tão visado pela autora, é pré-linguístico,
anterior à mítica separação entre coisas e palavras. A poeta, por fim, é
clássica, sem deixar de ser moderna.
Em Mar Novo, de 1958, Sophia manifesta esta consciência da
mudança e da permanência, com este título que reforça o seu tema-valise ou
tema-fetiche, como preferir, esta onipresença do mar em toda a sua poesia. O
itinerário é descrito poema a poema, a cada livro, nesta luz que persegue as
coisas do mundo, e que revela a tensão entre a continuidade e a transformação.
A edição única, reunindo No Tempo Dividido e Mar Novo,
começou a partir de 1985, um reflexo de saber que Mar Novo prolonga os temas de
No Tempo Dividido, sobretudo nesta confrontação com o tempo histórico, na
tensão principal do presente.
Com Mar Novo, temos este sentido trágico da vida, neste
sentimento da tragédia e que tem um certo mal-estar refletido em termos como
desespero, náusea e absurdo, e que está ligado ao espírito do tempo dos fins
dos anos 1940 e os anos 1950 em Portugal e outros países, neste vazio que tinha
esta visão meio desamparada e desencantada das chamadas Filosofias da Existência
ou Existencialismo.
O luto nos aparece no centro poético de Mar Novo, com poemas
como “Canto Jondo”, e nas elegias “Meditação do duque de Gandia sobre a morte
de Isabel de Portugal” e “O soldado morto”, temos ainda o poema “Náufrago”, e o
poema sem título que começa com o primeiro verso que diz : “Aquele que partiu”.
Em “Poema inspirado nos painéis que Júlio Resende desenhou para o monumento que
devia ser construído em Sagres”, há um tipo de morte de Portugal.
Em O Cristo Cigano, livro de 1961, conta-se uma lenda que a
poeta Sophia ouviu do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, os dois se
conheceram em 1958, em Sevilha, onde morava o poeta e diplomata, o livro é um
conjunto de poemas em sequência narrativa, e que reconstitui a lenda sevilhana
que conta a história do escultor Francisco Antonio Ruiz Gijón.
A lenda conta a sua busca insana de uma imagem ideal de
Cristo expirante sob uma encomenda que o escultor recebera em 1682, para uma
capela, ao ponto do artista esfaquear um cigano para tentar reproduzir
fielmente a imagem agônica de Cristo, este cigano de nome Cachorro, foi
reconhecido na escultura pela população, que chamou a obra de arte de Cristo
Cachorro, que pode ser vista na basílica do Cristo de la Expiración, ou
simplesmente igreja do Cachorro, em Triana, bairro de Sevilha.
Este livro é um caso à parte na obra de Sophia, com formas
incomuns na obra de Sophia, como a redondilha, com versos curtos e medidos, e
também por um universo temático que não compõe o resto da obra da poeta.
POEMAS :
DE MAR NOVO
LIBERDADE : O poema aqui toma a imagem da praia, e na sensação das ondas
tombando resgata algo que é seu, a sua liberdade, no que temos : “Aqui nesta
praia onde/Não há nenhum vestígio de impureza,/Aqui onde há somente/Ondas
tombando initerruptamente” (...) “Aqui o tempo apaixonadamente/Encontra a
própria liberdade.”. O tempo e sua paixão, que é a sua liberdade, é o sentido
deste tempo, o tempo do poema e da poeta Sophia.
A ANÉMONA DOS DIAS : Mais uma vez aqui aparece o mar e a liberdade, e uma forma
de profanação, que é provocação, e a liberdade que tem seu dom mais caro, a vitória, no que vem : “Aquele que profanou
o mar/E que traiu o arco azul do tempo/Falou da sua vitória”. Sua liberdade tão
grande, messiânica, no que temos : “Disse que tinha ultrapassado a lei/Falou da
sua liberdade/Falou de si próprio como de um Messias”. E a poeta olha o que
ficou no chão, a anêmona dos dias : “Porém eu vi no chão suja e calcada/A
transparente anémona dos dias”.
NÁUFRAGO : A imagem deste náufrago, aqui na chave de prata do poema como
um morto que oscila nas ondas, sem pupilas, como uma medusa que flutua
aleatoriamente, no que vem : “Agora morto oscilas/Ao sabor das correntes/Com
medusas em vez de pupilas.” O náufrago, morto, já não tem alma presente, sem
coração e sem memória, ele se dilui : “Sem coração e sem memória/Em todas as
presenças diluído.”. Este náufrago foi morar nos poemas : “Agora liberto
moras/Na pausa branca dos poemas.” Este náufrago, jovem, que partiu, deixou, no
entanto, a esperança, no que vem : “Aquele que partiu/Precedendo os próprios
passos como um jovem morto/Deixou-nos a esperança.”. Este jovem tem a sorte de
não ver a morte da verdade e a vitória do tempo, a poeta Sophia diz que ele já
cumpriu sua jornada, segundo as suas próprias leis de pensamento, no que temos
: “Intacta é a sua ausência/Como a estátua de um deus/Poupada pelos invasores
de uma cidade em ruínas./Ele não ficou para assistir/À morte da verdade e à
vitória do tempo.” (...) “Que ao longe/Na mais longínqua praia/Onde só haja
espuma sal e vento/Ele se perca tendo-se cumprido/Segundo a lei do seu próprio
pensamento.” E seu nome cai num tipo de tabu, o limbo que sobra no poema : “E
que ninguém repita o seu nome proibido.”
POEMA INSPIRADO NOS PAINÉIS QUE JÚLIO RESENDE DESENHOU PARA O
MONUMENTO QUE DEVIA SER CONSTRUÍDO EM SAGRES : O poema se confronta na partida, e
não sente a ausência, e o lusíada parte, no que temos : “I : Nenhuma ausência
em ti cais da partida./Movimento ritual, surdo rumor de búzios,/Alegria de ir
ver o êxtase do mar” (...) “Nenhuma ausência em ti cais da partida,/Impetuosa
velas, plenitude do tempo,/Euforia desdobrando os seus gestos na hora
luminosa/Do Lusíada que parte para o universo puro”. E a poeta pensa em seu
regresso, seu corpo morto, quem irá pranteá-lo, no que vem : “II O regresso :
Quem cantará vosso regresso morto/Que lágrimas, que grito, hão-de dizer/A
desilusão e o peso em vosso corpo?” (...) “Portugal tão cansado de
morrer/Ininterruptamente e devagar/Enquanto o vento vivo vem do mar”. A luta
pergunta pela vitória, a poeta indaga, e o poema termina na abertura desta
dúvida mortal : “Quem são os vencedores desta agonia?/Quem os senhores sombrios
desta noite/Onde se perde morre e se desvia/A antiga linha clara e criadora/Do
nosso rosto voltado para o dia?”.
NOCTURNO DA GRAÇA : O poema tenta captar o bosque em meio à cidade alheia, no
que vem : “Há um rumor de bosque no pequeno jardim/Um rumor de bosque no canto
dos cedros/Sob o íman azul da lua cheia/O rio cheio de escamas brilha./Negra
cheia de luzes brilha a cidade alheia.” E a cidade brilha, no entanto, e todas
as ruas e detalhes que surgem, no que temos : “Brilha a cidade dos anúncios
luminosos/Com espiritismo bares cinemas” (...) “Com seus bairros de becos e de
escadas/De candeeiros tristes e nostálgicas/Mulheres lavando a loiça em frente
das janelas”. A poeta tenta vislumbrar alguma imagem de paz, talvez na cidade
antiga, num convento, mas a cidade alheia brilha, e a poeta, ao fim, neste
esforço se volta para o silêncio dos astros, em seu enigma, no que temos : “De
igreja em igreja batem a hora dos sinos/E uma paz de convento ali perdura/Como
se a antiga cidade se erguesse das ruínas” (...) “Mas a cidade alheia
brilha/Numa noite insone/De luzes fluorescentes/Numa noite cega surda
presa/Onde soluça uma queixa cortada.” (...) “Sozinha estou contra a cidade
alheia./Comigo/Sobre o cais sobre o bordel e sobre a rua/Límpido e aceso/O
silêncio dos astros continua.”
O CRISTO CIGANO
A PALAVRA FACA : A palavra faca aqui evoca o amigo da poeta e também poeta,
João Cabral de Melo Neto, no que temos : “A palavra faca/De uso universal/A
tornou tão aguda/O poeta João Cabral/Que agora ela aparece/Azul e afiada/No
gume do poema/Atravessando a história/Por João Cabral contada.” E a faca tão
bem contada por João Cabral em sua poesia, é aqui pela poeta Sophia lembrada.
I – O ESCULTOR E A TARDE : O trabalho do escultor é retratado aqui em uma tarde,
no que temos : “No meio da tarde/Um homem caminha:/Tudo em suas mãos/Se
multiplica e brilha.” (...) “O tempo onde ele mora/É completo e denso/Semelhante
ao fruto/Interiormente aceso.”. O escultor caminha, e seu destino espera, ele
vai, no que temos : “No meio da tarde/O escultor caminha :/Por trás de uma
porta/Que se abre sozinha/O destino espera.” (...) “E depois a porta/Se fecha
gemendo/Sobre a Primavera.”
IV – O ENCONTRO : Aqui a poeta retrata o cigano, na tarde, sozinho, no que vem
: “Redonda era a tarde” (...) “Na margem do rio/Alguém se despia.” (...)
“Sozinho o cigano/Sozinho na tarde/Na margem do rio” (...) “Seu corpo surgia”
(...) “Semelhante à lua/E semelhante ao brilho/De uma faca nua.” (...) “Redonda
era a tarde.”. Na margem do rio e o brilho de seu corpo, como uma faca nua.
VIII – CANÇÃO DE MATAR : O poema se divide, como que cortado por uma faca, em
seu amor, no que temos : “Do dia nada sei” (...) “O teu amor em mim/Está como o
gume/De uma faca nua/Ele me atravessa/E atravessa os dias/Ele me divide” (...)
“Tudo o que em mim vive/Traz dentro uma faca/O teu amor em mim/Que por dentro
me corta” (...) “O teu amor em mim/De tudo me separa” (...) “Do dia nada sei/E
a própria noite azul/Me fecha a sua porta” (...) “Do dia nada sei/Com uma faca
limpa/Me libertarei.”. A liberdade, ao fim, do dia que a poeta não sabe o que
é, como uma faca limpa, no entanto, ela está livre.
XI : FINAL : E este poema que finaliza o périplo do escultor, com sua
nota que encerra a sua jornada, no que temos : “Assim termina a lenda/Daquele
escultor :/Nem pedra nem planta/Nem jardim nem flor/Foram seu modelo.” Sevilha/Lisboa, 1959
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/mar-novo-e-cristo-cigano-de-sopgia-de-mello-breyner-andresen
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