"os cigarros fazem parte da paisagem, e o jogo do destino é o vício. Cartas de tarô."
Esta resenha encerra minha série sobre os livros de Lourenço Mutarelli (por enquanto). Falei do livro A arte de produzir efeito sem causa, na resenha anterior, e fecho o raciocínio, aqui agora, com mais um livro, desta vez, sobre o lançamento de 2009, pela Companhia das Letras, do romance O Natimorto.
Lourenço Mutarelli parece flertar sempre com um processo de loucura em seus personagens (protagonistas), é ele ali, mas também não é só seu duplo, é uma experiência de ficção, antes de tudo. Na resenha anterior, também se falou num processo de surto psicótico, este mais literal. Desta vez, o romance O Natimorto, também tem algo de loucura, mas é menos literal do que a estória que se passa com o protagonista de A arte de produzir efeito sem causa. No romance O Natimorto, o protagonista é um bipolar, ele é agente de talentos, e começa sua trajetória ao receber uma cantora lírica para encaminhá-la a um maestro.
O protagonista recebe a alcunha, no romance, de O Agente, e a cantora passa a ser chamada de A Voz. O romance vai alternar entre uma estrutura semiteatral com diálogos dinâmicos, e outra semipoética, no decorrer, com linguagem aparentemente versificada, num neoconcreto do desespero, a obsessão do Agente pela associação entre imagens de advertências presentes no lado de trás das embalagens de cigarros e as cartas (arcanos) do tarô.
O Agente busca A Voz na rodoviária, compra um maço de cigarros Cowboys Light, atrás do maço: Estampado, o Natimorto. O Agente, logo, vai colocar A Voz dentro de um plano excêntrico, começando por sua dissertação da relação entre as imagens dos cigarros, avisos, e os arcanos do tarô que, diga-se de passagem, também são tipos de advertências. Teoria: as imagens dos cigarros possuem oito arcanos, as cartas do tarô, vinte e dois, contando com a carta sem número e a carta sem nome. A carta sem nome é a Morte, a sem número, O Louco.
Depois de um jantar na casa do Agente, em que a esposa do mesmo lhes serve uma carne queimada, numa crise de ciúmes, o Agente leva A Voz a um hotel, aonde ela ficaria hospedada, e acaba que O Agente insiste e convence A Voz de que ele ficaria lá com ela. Ele diz que não é broxa, como diz sua esposa, mas um assexuado. O Maestro, por sua vez, aparece como referência apenas, ele é o cara que come a esposa do Agente, segundo o mesmo. Logo, o Agente já sabe que A Voz, que irá fazer um teste com O Maestro, para ver se é aprovada para cantar em recitais, seria mais uma conquista sexual do Maestro, no que ele não se engana, num dos trechos finais deste romance de Mutarelli.
O Agente faz a proposta: ele tem economias suficientes para pagar o quarto de hotel em que ambos estão (O Agente e A Voz) por cinco a seis anos. Ele propõe à Voz que os dois fiquem ali dentro, que ambos não saíssem mais dali. A Voz quer um meio-termo, não pode comprometer a sua carreira de cantora lírica. O Agente quer ficar no cantinho do quarto. O meio-termo de A Voz também se relaciona com o sexo, ela não é assexuada, como O Agente. Haveria de ter um acordo, mesmo que no começo A Voz não acreditasse muito a sério que a proposta do Agente era de fato verdadeira. De qualquer modo, ficou acordado de que A Voz poderia sair dali, enquanto que O Agente ficaria no quarto, enfurnado fumando cigarros, e fazendo livres associações entre as imagens dos cigarros, e as cartas do tarô.
O Agente fica obcecado pela imagem nova de um maço: a lemniscata (o símbolo do infinito, que é representado por um oito deitado). A imagem a que se faz referência é de um homem acendendo um cigarro no outro. Era o vício, para A Voz. Mas era a lemniscata, para O Agente. O ciclo contínuo era o significado da imagem do maço. O Agente faz especulação avançada, e que é nada mais que passar da conjectura à livre associação, e, no extremo, passar da livre associação ao delírio puro e simples.
Os paralelos entre as imagens dos cigarros e as do tarô, feitas pelo Agente, se referem ao tarô de Marselha, de Grimaud. Dizem que o tarô seria um livro, o único, que escapou das bibliotecas egípcias incendiadas. A teoria de Court Gébelin, um pastor francês que viveu no século XVIII, que estudou o tarô, dizia que os ciganos seriam originários dos egípcios que se dispersaram pela Europa e, dessa forma, disseminaram o costume de ler a sorte nas cartas.
O Agente passa o tempo todo deitado, seu único contato com a realidade, neste momento, é com A Voz. A imagem do natimorto nos maços de cigarros é a imagem da Pureza. O Agente diz que o natimorto é um ser imaculado, viveu uma vida intrauterina e morreu sem se contaminar com o mundo, para o Agente, isso é sublime. A Voz pede ao Agente para esquecer "essa história de tentar antever a vida no maço de cigarro." Neste ponto, O Agente está deitado na cama há três dias, e lhe vem a imagem de uma pintura de Magritte: uma menina comendo um passarinho. Seria nesta imagem que se concluiria a missão do Agente, no desfecho em que se dá o romance há uma direta ligação entre o ponto de partida de Magritte, na cabeça do Agente, e sua conclusão maléfica, a mutação animal de seu delírio.
Tudo é o jogo do destino, o tarô. E, no quarto de hotel, O Agente tem, nisso, a realidade, onde tudo se explica em maços de cigarros. No romance, temos um desfile dos malefícios do cigarro; junto com as imagens, as frases de impacto. E, no romance, os arcanos de Grimaud dialogam, num símbolo, irmão dileto do delírio e da loucura, com as imagens interpretadas pelo Agente. O tarô de cigarros, sentido encerrado no romance, palavra doentia do fim do Agente em sua tela de Magritte. Obsessão. Na lemniscata se abriu a porta, em Magritte se fecha. O Agente cuidaria da Voz, e vice-versa. E o romance, na coda típica das estórias de Mutarelli, termina com uma sugestão. De Magriite, com a menina comendo um passarinho, se dá a ideia macabra do Agente, coda para a conclusão óbvia, mas sem terminá-la. Leiam o livro e descubram.
Lourenço Mutarelli tem na loucura sua temática recorrente, o protagonista sempre é um homem impregnado de niilismo. Em O cheiro do ralo, A arte de produzir efeito sem causa, e neste romance O Natimorto, o romance niilista e urbano de Mutarelli lida com o cotidiano. Mas, em seus romances, não se trata do cotidiano clichê, de um suposto realismo. Se trata de um método de escrita sui generis na forma, com boas sacadas e inovações, até no desenho de que se compõe suas estórias, e da sua brilhante transgressão do realismo, colocando o cotidiano dentro de uma trama psiquiátrica. O delírio sempre aparece dentro de um contexto prosaico de situações, linguagem cotidiana do delírio. Este é o paradoxo de Mutarelli: o cotidiano, o prosaico, até um tom naturalista, se mantêm, enquanto o realismo é transgredido sem ser de todo negado. O interior de seus protagonistas, dentro de um contexto urbano e rotineiro, ao passar do tempo, se engolem em tramas delirantes, que saem do prumo, e caem no símbolo e na magia.
Mutarelli maneja imagens, e não as tira de seu contexto habitual de situações comuns de pessoas mais que comuns. O incomum fica por conta da vida interior de seus protagonistas, uma coleção de Mutarellis mórbidos, mas não muito, eles ainda são personagens. E nem é forçoso determinar, numa sanha psicanalítica, personagem com autor, nem sempre isso é certo, ambos os sentidos, imagem ideal ou pervertida, são e não são o autor.
Mutarelli joga em forma de desenho, junta delírio, referências literárias, e os colocam num prosaísmo que, se não houvesse tanta simbologia, poderia passar por mais um romance sobre vidas comuns, depauperadas de niilismo. Este é o ponto: o niilismo, em Mutarelli, vira trama psiquiátrica, e culmina nos extremos da vida. Ou seja, as fronteiras cotidianas são quebradas, e isto, no próprio universo de suas situações previsíveis, a loucura é ali, o inaudito, e o sentido dos romances de Mutarelli.
O romance O Natimorto, de Lourenço Mutarelli, também foi adaptado ao cinema. O filme, Natimorto, foi lançado em 2011, com direção de Paulo Machline. O próprio Lourenço Mutarelli aparece no filme, como ator, no papel de O Agente. A Voz fica por conta de Simone Spoladore. E a esposa do Agente tem participação especial de Betty Gofman. Nazi, o músico que tocou no grupo de rock Ira!, é o narrador do filme. Recomendo a leitura do livro, e, logo depois, ver o filme. As duas obras são complementares, o romance tem uma carga simbólica maior, e o filme passa mais pelo delírio, os cigarros fazem parte da paisagem, e o jogo do destino é o vício. Cartas de tarô.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário:http://seculodiario.com.br/15865/14/o-natimorto-de-mutarelli