PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 30 de maio de 2014

PEITO ABERTO

Donde vai a dança qual lança?
As pernas já mancas,
tuas ancas!

Ai, de peito aberto ao coração atlético!
Vulgata, nota absorta de batida forte,
fúria sinfônica dos mistérios gozosos.

Donde vais santa de carne ao choro de mim?
Por corpo como bandeira,
finquei dentes no chão
de tuas mãos,
massacre e vitória
sob o claustro
dos meus olhos.

Oh, corpanzil em febre, morte astuta!
Donde quando se vai por como?
Sei não sei por tudo
que tenho certo,
das asas ao colo do peito,
uma mesma senda,
coração ao meio.

29/05/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

DA LÍNGUA DA NOITE

Ponho-me ao poente,
pelo frio dizia a porta:
"me deixe entreaberta, o olho meio opaco."

Feri meu linho, feri meu dorso.
A porta de minha cabeça tonteia,
as janelas estalam o frio de fora,
e a chuva, vulcânica,
chora aos cântaros.

Depois do crepúsculo:
a funda funda noite
                parto ao horizonte escuro
                        do norte ao fim
corro esporro de lado ao lado que passa
                porta janela
                do sol
                      que já
                              se foi

O poema se estica de tal maneira!
Como corpo elástico
               o braço se estende se ergue
               o sol já findo
                    e a boca da noite
                                          ainda nascente

Pelo rubor das flores, vai finda
minha risonha lua minguante.

29/05/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

ESPANTO DO CANTO

Os corpos, ermos espantos,
da vala à veia o sem estar livre,
qual fuga de prisão.

Vai, do hospício ao ventre torto,
poema e riso e a fartura do silêncio,
poema fino no frio da noite fatídica.

Os dias, fontes de corpos,
vai de alma ao canto espúrio,
qual flor ametista no campo,
como um poeta no folguedo
de noite malsã.

Poema-estrela:
eu conto a constelação
como ursa, unicórnio
e astrologia,
eu conto o canto da estrela
na desrazão
da astronomia.

27/05/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

MÃOS DE POETA

Na dança dos meus ombros,
como a sombra dançarina,
vai alma e lâmpada,
crisântemo de minha espada,
contra-forte dos dias ríspidos.

Na boca a meta suprema:
gritar atávico dos sinos gritantes,
soluço em flor de meu canto andante.

Veios da escultura sob a mão lúcida,
eu entre os poros da pele que nem corpo.

Meus maxilares:
dentição fúnebre,
corpo de boca
ao mundo
deglutido,
mastigado,
cuspido.

27/05/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

domingo, 25 de maio de 2014

KEROUAC: SATORI EM PARIS

"Esta obra serve como o retrato de um dos capítulos finais da aventura literária e de vida de Jack Kerouac"

   Jack Kerouac nasceu em uma família franco-canadense. Ele se tornou um dos mais importantes expoentes da geração beat norte-americana. Seus principais romances são On the Road, Visões de Cody, Os Vagabundos Iluminados e Os Subterrâneos. Um de seus últimos escritos é o livro Satori em Paris, que vou tematizar aqui.
   Neste livro Satori em Paris, Kerouac empreende uma busca pelos seus antepassados franceses. Ele parte para uma viagem à Europa, sobretudo a França, e com o objetivo de chegar às origens dos Kerouac na Bretanha. Satori em Paris acaba por se tornar uma obra literária que é um híbrido de diário de viagem e autobiografia, além de ser também algo estilisticamente definido como realidade romanceada, o que se pode ver em outras obras de Jack Kerouac, como por exemplo na bem-sucedida obra On the Road.
   Satori em Paris foi publicado em 1966. Autobiografia alucinada de um escritor que viveu o mundo beat. Escritor que foi representante desta geração que prenunciou, na literatura, o que viria: a geração hippie e a expansão da consciência com as drogas (quando ainda estas substâncias faziam parte de uma busca espiritual e de uma ideologia libertária, e não o flerte com a morte que é sua realidade concreta depois dos baques que esta mesma geração hippie sofreu, sobretudo na overdose de músicos famosos).
   Satori em Paris, então, é o relato de um escritor em busca de suas origens familiares, e como está no título, satori é a iluminação espiritual de cunho budista, o nirvana como extinção da chama da vida, que é a libertação do ciclo prisional das reencarnações. Satori é a busca empreendida pela origem espiritual, pela essência divina.
   O misticismo oriental, neste livro de Kerouac, se dá como o satori que se torna, para este escritor, uma busca pela genealogia familiar. O escritor Kerouac quer o satori, tem a iluminação, sua viagem não é em vão, ele experimenta o êxtase, e não abre mão do álcoole nem de sua busca pelas bibliotecas por obras de origem, que é a trama da genealogia, da iluminação espiritual (satori), da viagem e do diário desta experiência.
   O romance real, que é misto de relato, ficção e autobiografia, se consuma então nisso: literatura de vida, satori, genealogia familiar e encontro literário de um escritor com sua essência. A retomada de seu próprio sangue, a Bretanha como mito de origem, o satori como essência espiritual recuperada.
   Satori em Paris junta a aventura de um escritor com o sentido espiritual da origem de seus antepassados. E este satori, por sua vez,  também tem algo de atávico, é o ser iluminado que conhece sua própria verdade. A literatura, neste caso, deixa de ser apenas ficção, e se torna uma busca que vira autobiografia e reconstrução de uma identidade. Kerouac, nesta busca, encontra a si mesmo, seja na sua família, seja na sua alma, e a literatura é só o resultado útil desta viagem em busca de si mesmo.
   Satori, iluminação súbita, é o sentido que acompanha Kerouac pelas ruas de Paris e da Bretanha no seu reconhecimento através dos nativos que encontra nesta jornada de identidade e descobertas. Satori em Paris que se faz como viagem de turismo de Kerouac que é, em suma, pesquisa de sua origem familiar, e que, como satori, também é a descoberta de si na iluminação do espírito. Kerouac é o protagonista e narrador desta sua própria história, e que se torna ainda mais autêntica, pois não é apenas uma viagem por lugares geográficos, mas por situações espirituais que misturam a embriaguez do álcool com as conversas de um homem de Quebec (Kerouac) e bretões que são a fundação de sua língua.
   Kerouac também passa por uma experiência linguística nesta busca, o francês falado é entendido, Kerouac consegue se fazer entender pelos nativos, e a busca se torna concreta na Bretanha, segundo o próprio: "Fui à França e à Bretanha apenas para olhar esse meu velho nome que tem cerca de trezentos anos e jamais mudou em todo esse tempo, pois quem mudaria um nome que significa simplesmente Casa (Ker), No Campo (Ouac)."
   Satori em Paris, estilisticamente falando, é uma obra literária fragmentada. Isso é reflexo do método de Jack Kerouac de escrita: a prosa espontânea. O modo em que se dá o relato de viagem neste livro de Kerouac é resultado, também, de experiências literárias anteriores, o que vem direto de seu sucesso com On the Road, em que se consagrou a prosa espontânea de álcool e jazz, de frenesi literário que tem como estilo o fluxo de consciência e a fragmentação, o que pode ser visto em outros expoentes da geração beat como William Burroughs ou na poesia  de Allen Ginsberg.
   O modo de escrita de Kerouac, usando da prosa espontânea, vai ao encontro do misticismo budista em forma literária, a busca da literatura de Jack Kerouac passa pela estrada rumo ao Oeste em On the Road, e no fim desta busca de frenesi literário se consuma com Satori em Paris que é o sumo budista e essencial de todo o trajeto deste escritor beat.
   Satori em Paris é um grand finale para a obra de Jack Kerouac, o que, então, é um movimento invertido: Kerouac finaliza a sua vida e a sua literatura com  a busca de seu começo, quer dizer, no fim de seu caminho, de sua "estrada", com Satori em Paris, Kerouac empreende o lema do poeta T.S. Elliot: "no meu fim está meu começo".
   Kerouac chega nos seus próprios estertores com o fito de encontrar e descobrir sua essência sanguínea e espiritual. Sua genealogia, sua viagem, é nada mais que a descoberta de si mesmo na sua origem familiar e na sua essência espiritual, o que, por sinal, são uma e mesma coisa: Satori aqui se transmuta de iluminação espiritual e se torna a própria busca desta viagem.
   A genealogia familiar de Kerouac é sua essência e iluminação espiritual. Ou seja, saber de onde veio os Kerouac, para este escritor, também é um dos modos do satori, a iluminação é uma descoberta, e saber sua própria origem também é descobrir sua essência espiritual. Tal busca e descoberta lança luz sobre tudo o que fez a vida de Kerouac ser esta em que ele está: um escritor bêbado na Bretanha perguntando por seus antepassados e tendo um episódio de êxtase dentro deste trajeto sanguíneo e geográfico.
   Por fim, o que se descobre é que, seja em Paris ou na Bretanha, a aventura de Jack Kerouac como satori é uma das mais radicais deste escritor, até mais do que o mito da estrada do rumo ao Oeste americano que foi visto em On the Road, pois, em Satori em Paris, já se trata de um escritor maduro, alcoolizado, seu frenesi de juventude está agora na ressaca, e perto de seu canto do cisne (Kerouac morreria em poucos anos). Sua alma de escritor descobre o fim pelo seu começo: e o satori se torna este sentido originário, para além da mística búdica, se tornando a viagem da literatura como autoconhecimento, que em On the Road era a estrada, e em Satori em Paris são os antepassados familiares de Jack Kerouac.
   Jack Kerouac finaliza uma de suas últimas obras, e se coloca como um dos grandes da literatura norte-americana. Satori em Paris, junto com Visões de Cody, Os Vagabundos Iluminados e On the Road, são as obras que retratam a escrita e a experiência literária e de vida de Jack Kerouac, e tais obras também servem, principalmente, como retrato que mistura ficção e realidade, explicando uma geração que desafiou os padrões e foi muito bem batizada de geração beat.
   Jack Kerouac, por sinal, talvez seja um dos maiores desta geração, senão o maior deles, mesmo entre dois outros gigantes como Wlliam Burroughs e Allen Ginsberg. Kerouac faz em sua literatura o relato de um escritor, de um viajante e de uma geração. Satori em Paris, por sua vez, é um desses documentos importantes que Jack Kerouac nos deixou. Esta obra serve como o retrato de um dos capítulos finais da aventura literária e de vida de Jack Kerouac, e que é a sua iluminação espiritual em forma de romance autobiográfico.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/17046/14/kerouac-isatori-em-parisi