“Há em todo o cinema de Cassavetes uma excepcional liberdade
da câmera e da montagem”
INTRODUÇÃO
John Cassavetes é o
que pode ser considerado um dos mitos do cinema moderno, impressionando a
cinefilia europeia, foi um ator competente que se tornou diretor de filmes e
colocou a imagem da América no gosto da velha Europa, Cassavetes era a ponte
entre dois mundos, lutando constantemente contra a enorme máquina de dinheiro
de Hollywood, mantendo uma proximidade entre vida e obra de maneira incomum.
John Cassavetes
tinha em si uma enorme cultura, era um admirador de Bergman e Kurosawa, e seu
trajeto pelo cinema pode também ser entendido como um caminho para conciliar os
pólos opostos do espetáculo e da escrita, representados respectivamente por
Capra e Dreyer. Também era um homem do teatro, e muito de seu cinema deve muito
à sua experiência dentro do teatro.
DA FORMAÇÃO TEATRAL A
SHADOWS
O caminho no teatro
de Cassavetes foi importantíssimo, e já no cinema ele levou esta herança para
ser o autor de Shadows e de Husbands, ou o intérprete de O Bebê de Rosemary e
de Os Doze Condenados.
Seu caminho prévio
no teatro, entretanto, se deu num ambiente dominado pelo “Método”, herança de
Stanislavski. Estudando na Academia Americana de Arte Dramática de Nova York,
foi influenciado pelos ensinamentos do Actor`s Studio, e ao sair da escola em
1953, chegou a participar de algumas turnês teatrais e trabalhou um tempo na
Broadway, mas acabou se voltando para a televisão e o cinema, fazendo direção
de teatro somente nos anos 1980.
Quanto a Shadows,
filme emblemático de Cassavetes como diretor, podemos ver uma ideia do que se
passava num texto publicado por Louis Marcorelles em Cahiers du cinema, quando
do lançamento do filme na França (1961), tal que fazia uma analogia com Kazan e
Visconti e suas relações ambivalentes com o Actor`s Studio: “De certa forma,
Shadows prolonga os esforços de Lee Strasberg, de quem John Cassavetes foi
aluno. Hoje em dia, não se ignoram mais os métodos, dever-se-ia dizer o método,
preconizado pelo Actor´s Studio para se obter a identificação total do ator com
o personagem que ele deve encarnar. (...) Elia Kazan, que foi abusivamente
identificado com o Actor´s Studio, leva essa modelagem do ator aos limites da
paródia; estamos aí bem próximos da hipnose, como, por exemplo, ocorreu com
Carol Baker em Boneca de Carne. (...) A improvisação, em Kazan, nada tem a ver
com a de Shadows; ela não passa de uma trucagem suplementar, para criar
impacto. (...) Mesmo Visconti, apesar do que dizem, pouco tem a ver com Kazan.
Nunca se tem a impressão de que este último visa a “explorar” seus intérpretes
ou que força o realismo psicológico. Em Rocco e Seus Irmãos, por meio de um
trabalho minucioso de roupagem e gestos, ele faz de um ator modesto como Renato
Salvatori o extraordinário Simone, porém sem contorções, através de uma lenta
recriação do interior, que supõe não a intoxicação do ator pelo seu papel, mas
sua participação constante na elaboração progressiva do personagem, sua lenta
impregnação física e moral pelo modelo definido de uma vez por todas em
colaboração com o diretor. Desse ponto de vista, Shadows se aproximaria mais de
Visconti do que de Kazan.”
Ou seja, Shadows
deve muito ao teatro, sobretudo no trabalho dos atores. Sem fazer a mimética de
Visconti, o trabalho de Cassavetes coincide com ele na maneira de fazer os
atores entrarem em contato com sua própria força, suscitando o desejo do ator
no papel, numa associação direta do ator com a criação do personagem, num fim
que será a confusão do espectador entre ator e personagem.
O projeto de Shadows
está ligado ao workshop teatral que John Cassavetes criou em Nova York em 1956,
trabalho que era inicialmente destinado a atores semiprofissionais, e que, então,
se abriu para amadores vindos de toda parte. Cassavetes conta: “Tomamos a
decisão de escancarar nossas portas e deixar entrar todos aqueles que assim o
desejavam. E eles chegaram diretamente da rua, munidos apenas do desejo de
serem atores; poucos tinham alguma experiência; nunca tinham feito figuração,
ou, talvez mesmo, visto uma câmera.”
Mas, a improvisação,
que foi a base de Shadows, transformou algo que veio originalmente do teatro em
um verdadeiro trabalho de cineasta. E o trabalho restante de Cassavetes no
cinema, como ator ou diretor, se afasta de qualquer relação com o Actor´s
Studio. Como ator, por exemplo, ele faz um verdadeiro trabalho de composição,
longe das fronteiras psicologizantes do “Método”.
TEATRO E CINEMA
Cassavetes tinha uma
característica peculiar de instabilidade em seus trabalhos de teatro e cinema,
pois tanto seu cinema como seu trabalho cênico, tratava-se de algo
inclassificável. Seu trabalho não resgatava nem o teatro clássico americano,
mais acadêmico, nem o off-Broadway, isto é, o teatro marginal e independente.
E, no caso de todo o trabalho de Cassavetes, não faz muito sentido diferenciar
teatro e cinema. Daí que o teatro de Cassavetes era um “teatro de cinema”, sua
experiência como cineasta veio, então, alimentar sua experiência cênica, o que
nos leva a uma das afirmações do texto de que Cassavetes veio do teatro e foi
ao cinema. Ou seja, no fim das contas, foi o cinema de Cassavetes que deu uma
direção ao seu teatro, num segundo momento.
E uma das
recorrências do trabalho cênico e de cinema de Cassavetes que é a improvisação,
por exemplo, não pode ser levada ao pé da letra, não se trata de um método em
sentido estrito, pois a improvisação atua como efeito de um estado, de um
sentimento, de uma sensação.
Cassavetes traça um
caminho diverso, porém familiar, aos objetivos de Artaud em seu Théâtre et son
double, este que, por sua vez, travava uma verdadeira guerra contra a
enfeudação do teatro ao império da escrita, do texto autoral. Pois, em
Cassavetes, então, não se encontra, em sua obra, nenhum sinal do teatro
metafísico e alquímico, ou de uma ligação com os prestígios do Oriente.
Quando Artaud
escreve “quebrar a linguagem para tocar a vida é fazer ou desfazer o teatro”,
ou ainda, quando Artaud diz: “em vez de retornar a textos considerados
definitivos e sagrados, é preciso antes de mais nada romper a sujeição do
teatro ao texto e reencontrar a noção de uma espécie de linguagem única entre o
gesto e o pensamento”, aqui Artaud está ao lado do que Cassavetes faz em seu filme
Opening Night.
E, é bom frisar,
este caminho de Artaud, e de modo próprio em Cassavetes, tem o centro no ator,
toda a modulação se encontra no gesto, e este é o ator trabalhando a sua
enunciação não pela sacralidade do texto, mas pela preponderância física do ato
teatral. A vida em Cassavetes é o ator ou atriz, o teatro e o cinema,
improvisados nos caminhos da sensação, são ato, gesto, trabalho de atores mais
do que de autores.
Opening Night
representa o ponto-limite da experiência de ator no cinema de Cassavetes, um
ser que representa sempre com uma ou grande parte de sua energia vital. É uma concepção que se afasta tanto do
Actor´s Studio como do método Jouvet. Pois, no trabalho de Strasberg (Actor´s
Studio), é o personagem que vem alimentar o ator. Quanto ao método Jouvet, este
apela ao sentimento, mas que não passa de uma aptidão à abstração, uma maneira
de ascese ou de meditação.
Por sua vez, o tema
de Opening Night é a confusão entre ser e parecer, o ator numa prova de risco
absoluto. Trata-se de um espaço cênico de performance, levando os atores ao
limite. Mas, Cassavetes é amplo, pois do teatro verista e naturalista de
Opening Night, ele tem, em The Killing of a Chinese Bookie, por exemplo, algo
diverso como um teatro de artifício que é nada mais que uma boate de
strip-tease. E, por fim, Cassavetes sempre se caracterizou por uma teatralidade
inseparável de um cotidiano, este como sua experiência única que se torna um
dos motores mais ativos do seu cinema.
O MÉTODO DE CASSAVETES
Os filmes de John
Cassavetes são registros de um cineasta que usa um método de filmagem em
ruptura com a indústria hollywoodiana. Sendo Shadows, então, um marco na
história do cinema americano. Até no modo de financiamento, Shadows difere de
modo particular do cinema hollywoodiano, sendo um filme iniciado com dinheiro
do público. Shadows representa uma brecha no sistema, a hipótese de um cinema
radicalmente independente, libertado dos constrangimentos puramente econômicos
e dos códigos de narrativa em vigor, filmado com a câmera no ombro, em ruas e
apartamentos pequenos, sem atores profissionais.
E, um dos modos de
entender Cassavetes melhor, é citar suas três grandes influências: a televisão,
o neo-realismo italiano e o novo documentário americano. E, um dos principais
eixos do método de Cassavetes é sobretudo a cumplicidade ou até a identidade entre
produtor e diretor, a recusa de uma submissão restritiva à técnica, colocada a
serviço do filme e não o inverso, a proximidade
e privilégio do ator, a mistura de improviso e texto em função de uma narrativa
livre de códigos e clichês, para enfim, realizar uma montagem concebida como um
work in progress, em processo.
Vendo filmes como
Husbands e Minnie and Moskowitz, tem-se a impressão de que Cassavetes filmou
algo que não existia antes de aparecer na tela, pois seu cinema representa a perfeita
antítese da story-board. Cassavetes pertence a uma classe de filmadores que
inventam o seu espaço-tempo no momento da filmagem, em oposição a cineastas
como Lang ou Hitchcock, que subordinam um espaço já preestabelecido à sua
vontade de mestria. O instante fundamental do cinema de Cassavetes é, portanto,
o da filmagem. O risco é grande, para técnicos e atores, tudo num espaço de
atmosferas, longe de filmagens dramatizadas, em que palavras como “Ação” ou
“corte” perdem importância, e então a técnica jamais se torna um fetiche no
cinema de Cassavetes.
A direção deste
cineasta privilegia sempre a busca do ambiente ou do ritmo da cena, e a câmera
é essencialmente livre em Cassavetes, e sempre privilegiando o ator mais que o
próprio diretor. Há em todo o cinema de Cassavetes uma excepcional liberdade da
câmera e da montagem, e uma parte do movimento é definida pelo gesto dos atores,
completando-se num movimento interno que Cassavetes procura apreender por todos
os meios, incluindo também o gestual da câmera e na montagem, e tudo isso
associado, implicando um pensamento, uma percepção global e específica de todo
o espaço-tempo. É bom notar que a câmera de Cassavetes raramente é fixa,
buscando febrilmente os rostos, os corpos. Corresponde, como no action-painting
de Pollock, à constituição de um espaço do tocar mais do que do ver, a visão é
subordinada ao tato.
CINEMA E PINTURA
Por sua vez, existem
duas grandes maneiras de ser pintor no cinema. Uma, bem artificial, consiste em
reter imagens da pintura, e reproduzi-las fielmente na película. É o método de
um Cocteau, assim como dos maneiristas como Carax, mas é também o método de
Pasolini ou de Tarkovski. A outra maneira é encarar a pintura numa relação
interna ao cinema, isto é, na atitude do cineasta ao filmar, no próprio gesto
estético. É o método de Pialat ou de Antonioni, de Bresson ou do próprio
Cassavetes.
Há no ambiente dos
filmes de Cassavetes algo de introdução ao gestual e ao imundo, destituindo a
obra de seu estatuto de puro ícone. O antagonismo entre abstração geométrica
(Mondrian) e abstração lírica (Pollock) corresponde a uma oposição jamais
declarada entre Cassavetes aos adeptos do maneirismo. Os filmes mais pessoais
de Cassavetes, por sua vez, não provocam no espectador um devaneio ou uma
referência a um estado poético no sentido usual. Ao contrário, são grandes
ondas de percepção violenta, sensações de abismo, que tocam o corpo antes do
espírito.
O ÁLCOOL COMO FERMENTO
Contemporâneo da aventura psicodélica, o cinema de Cassavetes
está ligado às grandes experiências literárias de grande liberação, como nas
obras de Malcolm Lowry ou da beat generation. Mas havia uma diferença entre os
beats e Cassavetes. Os primeiros eram mais adeptos da maconha e do LSD, e
Cassavetes tinha muito como temática o álcool. Há uma diferença fundamental de
sensibilidade entre as drogas psicodélicas e o álcool, pois as primeiras,
vegetais ou químicas, afetam o espírito, desenvolvem a imaginação, levam o
indivíduo a um estado de sonho desperto, destacado do real, um mundo que flutua
e plana. E o álcool, ao contrário, tem para Cassavetes algo de terreno, ligado
ao chão e ao corpo, num desregramento dos sentidos oposto ao do visionário
rimbaudiano.
Esta visão do álcool
de Cassavetes é bem diferente, por exemplo, da de Malcolm Lowry, pois neste o
álcool já aparece na experiência de um alcoólatra, ou seja, captando seus
efeitos alucinatórios e deformantes, próximo de um delirium tremens permanente.
Neste ponto, Cassavetes se identifica com romancistas como Chandler e Hammett,
para quem beber é o caminho mais curto para se atingir a lucidez essencial,
aonde aparecem personagens parecidos com o do romance noir, em que estes são
profundamente lúcidos mesmo na mais aguda embriaguez.
CONCLUSÃO
Cassavetes, em seu
cinema, por fim, é um dos corajosos diretores que fizeram da independência
criativa e artística um pilar do próprio trabalho. Este teatrólogo e cineasta
fazia algo que nascia tanto da experiência coletiva com seus técnicos e atores,
como dos movimentos de sua intuição, numa câmera livre de tomadas intensas e
corpos embriagados respirando defronte à ação da filmagem. Cassavetes é tão
ousado como a geração de cineastas americanos da década de 1970, e foi algo sui
generis, no entanto, neste cenário de batalha entre indústria hollywoodiana,
dos grandes estúdios, e a liberdade tão cara aos criadores de mundos que são os
artistas mais tenazes na sua vontade de voz própria, e Cassavetes foi um
desses, filmou com liberdade tudo o que quis.
Cassavetes é o
cineasta que rompeu com Hollywood numa operação de engajamento e persistência
que o levou a fazer atos heroicos como Shadows, e levar à frente uma
filmografia e obra de independência, e que hoje é influência sobre uma pequena parte
das mentes criativas do cinema, apesar do predomínio já decadente dos
blockbusters de franquias febris que se multiplicam como coelhos nas melhores
salas de cinema do mundo.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/24303/17/cassavetes-colocou-a-imagem-da-america-no-gosto-da-velha-europa