“o Bardo Thödol é um livro sumamente budista.”
INTRODUÇÃO
O Bardo Thödol, intitulado mais apropriadamente por seu organizador, W.Y.Evans-Wentz, O livro tibetano dos mortos, pertence a uma categoria de escritos que não se resumem a um estudo específico do Budismo Mahayana, mas contém elementos que respondem com eficiência a questionamentos que perpassam o próprio fenômeno humano e seu possível sentido, com um conteúdo humanista e que carrega uma compreensão profunda dos segredos da psique humana, proporcionando ao leitor comum um meio de ampliar seus conhecimentos da vida.
Ao contrário de O livro egípcio dos mortos, por exemplo, que nos induz a sempre falar demais ou muito pouco, o Bardo Thödol nos oferece uma filosofia inteligível, direcionada aos seres humanos, mais do que a deuses, contendo uma filosofia que é, por outro lado, para além de um guia espiritual do pós-morte, a quintessência da crítica psicológica budista. Pois este livro não é um cerimonial fúnebre, mas um conjunto de instruções para os mortos, um guia através dos cambiantes fenômenos do reino do Bardo, esse estado de existência que continua por 49 dias após a morte até a próxima reencarnação.
Segundo observação do Dr.Evans-Wentz, o Bardo Thödol é um processo de iniciação cujo propósito é o de restaurar na alma a divindade que ela perdeu ao nascer, pois o livro descreve um caminho de iniciação em sentido inverso, a qual, diversamente das expectativas escatológicas do Cristianismo, prepara a alma para uma descida à existência física. Esse tratado é, então, um guia tão detalhado sobre as aparentes modificações na condição do morto, que o leitor poderá, ao fim de sua jornada de leitura, se perguntar se esses lamas tibetanos não teriam, por fim, apreendido algo da quarta dimensão e levantado o véu de um dos maiores segredos da vida.
A INTERPRETAÇÃO JUNGUIANA
Primeiro, cabe destacar a divisão do livro: O Bardo Thödol ou O livro tibetano dos mortos pretende ser um guia para os mortos durante o seu período de existência no Bardo, descrita simbolicamente como um estado intermediário, de 49 dias de duração, entre a morte e o renascimento. Por conseguinte, o texto está dividido em três partes.
A primeira, chamada Chikhai Bardo, que descreve acontecimentos psíquicos no momento da morte, a segunda parte, por sua vez, que é o Chönyid Bardo, que trata dos estados de sonho que começam imediatamente após a morte, o que também pode ser compreendido como a fase a que chamamos de “ilusões kármicas”, e a terceira parte que, por fim, é o Sidpa Bardo, que se refere ao surgimento do impulso de nascimento e aos acontecimentos pré-natais.
Tudo passa, portanto, na visão budista mahayana, como um grande processo que envolve, de um lado, a suprema compreensão e a iluminação, podendo proporcionar a libertação, e de outro lado, o começo das “ilusões”, tais que são os caminhos que conduzem finalmente à reencarnação, com as luzes iluminadoras ficando opacas e as visões do Bardo mais aterradoras.
Essa descida, para o Budismo Mahayana, é a tradução do afastamento da consciência do morto da verdade libertadora, numa aproximação, portanto, do renascimento físico. Logo, o propósito principal de O livro tibetano dos mortos é uma instrução para fixar a atenção do homem morto no sentido de distanciá-lo das etapas sucessivas de engano e confusão do Bardo, para levá-lo à libertação, assim como o livro também é um conjunto de explicações da natureza das visões do Bardo.
Neste livro, por sua vez, não só as chamadas divindades “iradas”, mas também as “pacíficas”, são concebidas como projeções do mundo ilusório de sangsara, que é também o conjunto de ilusões da psique humana. Por conseguinte, quando o Budismo Mahayana (assim como outras denominações budistas) insistem no ponto de que a mente humana é vazio ou vacuidade, no seu estado original e iluminado, temos que o chamado estado de autorrealização ou libertação, também conhecido como Nirvana, é, para o Mahayana, o estado de Dharmakaya de iluminação perfeita.
Para Jung, isto significa que, numa expressão de linguagem ocidental, que o fundamento criativo de toda postulação metafísica é a consciência, isto enquanto manifestação invisível, intangível, da alma. A Vacuidade ou Vazio seria, portanto, o estado transcendente que suplanta toda asserção e toda predicação.
COMPREENDENDO O LIVRO TIBETANO DOS MORTOS
O Bardo Thödoltrata, de um modo único, o ciclo completo da existência sangsárica (isto é, fenomenal) que intervém entre o nascimento e a morte, sendo também a antiga doutrina do karma e do renascimento aceita como as mais essenciais leis que afetam a vida humana.
Por outro lado, há um cisma entre os Budismo do Norte e do Sul que, por sua vez, se refere ao fato de que o Budismo do Norte (donde provém o Budismo Mahayana, intérprete do Bardo Thödol) tem no simbolismo um conteúdo vital, o que é condenado pelos budistas da escola do Sul (donde provém , por exemplo, o Budismo Theravada) por haver reivindicado a custódia de uma doutrina esotérica, transmitida, em grande parte, oralmente por reconhecidos iniciados, geração após geração e na linhagem direta de Buda, assim como pelos ensinamentos, que estão no, por exemplo, Saddharma-Pandarika, que registram doutrinas que não estão de acordo com os Tripitaka, que é nada mais que o Cânone Páli seguido pelos budistas do Sul.
Os lamas afirmam que o Tripitaka (“Três Pitakas ou Cestos da Lei”) são, segundo postula o Budismo do Sul, a palavra (Doutrina) registrada pelos Antigos, isto é, pelos Theravadas, e que os lamas do Norte dizem ser incompletos, pois não fornecem muito dos ensinamentos iogues de Buda, e que estes saberes foram, por sua vez, transmitidos esotericamente até os dias atuais. O que o Cânone Páli recusa, pois afirma que Buda não conservou nenhuma doutrina secretamente.
Por outro lado, se seguirmos a orientação do Budismo do Norte, não há problemas em referendar que um Budismo esotérico não deve necessariamente discordar ou conflitar com o Budismo exotérico, mas ser antes uma complementação deste. Porém, ao contrário do Budismo do Sul, os lamas do Norte reafirmam a evidência inegável de que há, como o Bardo Thödol parece sugerir, um corpo não-registrado das escrituras, de ensinamentos budistas transmitidos oralmente, que são realmente um complemento do Budismo canônico.
ENSINAMENTOS DE SABEDORIA
Na tradução do Bardo Thödol, envolto em linguagem simbólica, encontramos doutrinas ocultas fundamentais que aqui traduzidos podem ser denominados Ensinamentos de Sabedoria, os quais, essencialmente doutrinas Mahayana, podem ser vislumbradas pelo seguinte esquema:
O Vazio – Em todos os sistemas tibetanos de yoga, a realização do Vazio (em sânscrito: Shunyata) é a grande meta: realizá-lo é alcançar o não-condicionadoDharmakaya ou “Divino Corpo da Verdade”, que é o estado primordial da não-criação, a celestial Consciência Total bódhica – o estado de Buda. A realização do Vazio também é a meta dos theravadistas.
Os Três Corpos – O Dharmakaya é o mais alto dos Três Corpos (em sânscrito: Trikaya) de Buda e de todos os Budas e seres que possuem Iluminação Perfeita. Os outros dois corpos são o Sambhogakaya ou "Divino Corpo do Dom Perfeito” e o Nirmanakaya ou “Divino Corpo de Encarnação”. E, uma vez que todos os conceitos humanos são inadequados para descrever o Sem-qualidade, temos que usar metáforas que podem ser tais como: o Dharmakaya pode ser simbolizado como um oceano infinito, calmo e sem uma onda, de onde surgem nuvens brumosas e arco-íris, que simbolizam o Sambhogakaya, e as nuvens aureoladas na glória do arco-íris condensam-se e caem como chuva, simbolizando o Nirmanakaya.
O Dharmakaya é o Bodhi primordial, a verdadeira experiência, livre do erro. E, por sua vez, nele residem tanto o Sangsara como o Nirvana. Em outras palavras, o Dharmakaya é literalmente o “Corpo da Lei”, Sabedoria Essencial (Bodhi) não-modificada, o Sambhogakaya é o “Corpo da Compensação” ou “Corpo Adornado”, que encarna, como nos Cinco Dhyani Budas, a Sabedoria Refletida ou Modificada. Já o Nirmanakaya, “Corpo Mutável” ou “Corpo Transformado”, encarna, como nos Budas Humanos, a Sabedoria Prática ou Encarnada.
Ainda na doutrina dos Três Corpos, temos que o Budismo Tântrico associa o Dharmakaya ao Buda Primordial Samanta-Bhadra, Aquele Que Não Tem Princípio Nem Fim, a Fonte de Toda Verdade, o Pai Todo-bondoso da Fé Lamaísta. E nesse reino superior de Buda ainda temos, segundo o Lamaísmo, Vajra-Dhara (que em tibetano é Rdorje-Chang), o “Detentor do Dorje (ou Raio), o “Expositor Divino da Doutrina Mística Chamada VajraYana ou Mantra-Yana, e também o Buda Amitabha, o Buda da Luz Ilimitada, Aquele Que é a Fonte da Vida Eterna. No Sambhogakaya estão colocados os Cinco Dhyani Budas (ou Budas de Meditação), os Herukas do Loto e as Divindades Pacíficas e Iradas, todos os quais aparecerão nas visões do Bardo. Com o Nirmanakaya está associado Padma-Sambhava que, sendo o primeiro mestre no Tibete a expor o Bardo Thödol, é o Grande Guru de todos os devotos que seguem os ensinamentos Bardo. Assim sendo, o Trikaya simboliza a Trindade Esotérica do Budismo superior da Escola do Norte, sendo a Trindade Exotérica, como na Escola do Sul, o Buda, o Dharma (ou Escrituras) e o Sangha (ou Clero).
O BARDO OU ESTADO PÓS-MORTE
A partir do momento da morte e por mais três ou quatro dias, o Conhecedor, como é chamado o princípio de consciência, no caso do falecido ser um homem comum (não-iniciado), acredita-se estar num estado de sono ou de transe, e inconsciente, via de regra, de fato de ter-se separado do corpo no plano humano. Esse período é o do Primeiro Bardo que é chamado de Chikhai Bardo ou “Estado de Transição do Momento da Morte”, e aí surge a Clara Luz, e então, o percipiente, não a reconhecendo e não conseguindo se manter no estado transcendental da mente não-modificada, percebe-a karmicamente obscurecida.
No Segundo Bardo, o Conhecedor toma consciência de que morreu, este é o Chonyid Bardo ou “Estado de Transição da Vivência ou Vislumbre da Realidade”, que se funde, então, ao Terceiro Bardo, o Sidpa Bardo ou “Estado de Transição ou da busca do Renascimento” que termina quando o princípio de consciência adquire o renascimento no mundo humano ou em algum outro ou ainda num dos reinos do paraíso.
Como o Bardo Thödol postula, prudentemente, que as visões do Bardo provêm do próprio conteúdo mental do sujeito ou Conhecedor, sempre karmicamente produzidas, temos que o Bardo Thödol parece estar baseado em dados verificáveis das experiências humanas, fisiológicas e psicológicas, e então este livro vê o problema do estado de pós-morte como um problema puramente psicofísico. Portanto, as visões de deuses ou demônios, céus ou infernos, não são nada mais que originárias de formas-pensamento kármicas e que são peças alucinatórias que constituem a personalidade do percipiente, sendo, por conseguinte, um produto impermanente nascido da sede de existência e da vontade de viver e crer.
O Bardo Thödol, então, é tão contundente em seus postulados que deixa o leitor com a exata impressão de que toda visão, sem qualquer exceção, em que aparecem entes espirituais, deuses ou demônios, paraísos ou lugares de tormento e purgação, no Bardo ou em qualquer outro plano semelhante de sonho ou êxtase, é puramente ilusória, pois se fundamenta exatamente nos fenômenos sangsáricos.
O objetivo precípuo, portanto, do Bardo Thödol, é provocar o despertar do Sonhador para a Realidade, livre da obscuridade das ilusões kármicas ou sangsáricas, num estado celestial ou nirvânico, para além de todos os paraísos fenomenais, céus, infernos, purgatórios ou mundos de encarnação. Neste sentido, o Bardo Thödolé um livro sumamente budista.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/26476/17/o-livro-tibetano-dos-mortos