PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 7 de dezembro de 2014

DIÁRIO DE UM JORNALISTA BÊBADO

“Hunter S. Thompson será uma criatura do gonzo, e ainda mais, seu único exemplar.”

   Hunter Stockton Thompson foi um jornalista e escritor norte-americano que ficou conhecido como o criador do que veio a ser chamado de Jornalismo Gonzo. Tal denominação representou um estilo de escrita e reportagem que era uma espécie nova de New Journalism, o novo fator gonzo que misturava autor e personagem, ficção e não-ficção.
   Hunter S. Thompson tinha uma escrita extravagante, e sua vida foi uma junção entre o trabalho jornalístico do estilo reportagem, com a contracultura e o consumo de drogas, como um escritor filho da geração beat e do New Journalism norte-americano que, colocando estas duas formas literárias em comunicação, foi o primeiro e último representante do Jornalismo Gonzo. Hunter S. Thompson nasceu em 1937, e veio a se suicidar com um tiro de espingarda na cabeça em 20 de fevereiro de 2005. O ator Johnny Depp era seu fã mais ilustre, tendo estrelado a excelente versão para o cinema de Medo e Delírio em Las Vegas em 1998, e o fraco Rum Diary de 2011, filme que vem do livro “Rum: Diário de um Jornalista Bêbado”, tema desta resenha junto com a definição de Jornalismo Gonzo.
   Fruto ficcional de um período real, isto é, a estadia de Hunter S. Thompson em San Juan, Porto Rico, por volta de 1960, para escrever ao jornal El Sportivo, o livro “Rum: Diário de Um Jornalista Bêbado” é uma narrativa na qual aparece o alterego de Hunter de nome Paul Kemp. Tal técnica de narrativa será a mesma de “Medo e Delírio em Las Vegas”, aonde o alterego de Thompson, por sua vez, era Raoul Duke.
   A narrativa gonzo, que mistura, no mesmo texto, ficção e realidade, teria um componente mais real em “Hell`s Angels”, que foi o primeiro trabalho literário e de reportagem de Hunter S. Thompson, e que, em “Medo e Delírio em Las Vegas” e “Rum: Diário de um Jornalista Bêbado” terão a ficção e nomes fictícios de personagens como uma diferença e uma inovação da narrativa em relação ao “Hell`s Angels”.
   Hunter S. Thompson se tornará de fato gonzo, ou seja, sui generis, com esta prática narrativa de uma metáfora real, isto é, colocando a ficção a serviço de um trabalho real de reportagem. Tal técnica nova será algo que terá um sentido sutilmente diverso da carga realista da narrativa do New Journalism dos EUA, que tinha, por sua vez, feras como: Tom Wolfe, Truman Capote, Norman Mailer, dentre outros. Agora, no Gonzo, a carga realista vira fábula, e mesmo que Hunter S. Thompson se comporte como um verdadeiro repórter em narrativas como Medo e Delírio e Rum, o que transparece em seu trabalho é uma ênfase ficcional maior do que em seu Hell`s Angels ou no trabalho de seus colegas do New Journalism.
   Portanto, já entendendo “Rum: Diário de Um Jornalista Bêbado” mais como uma ficção do que como uma reportagem, e fazendo a equivalência aqui com a narrativa de “Medo e Delírio em Las Vegas”, o verdadeiro Jornalismo Gonzo aparece mais definido do que com o trabalho pioneiro de Hunter com os motociclistas dos Hell`s Angels, e que será diferente da safra nobre do New Journalism dos EUA.
   Temos nesta estória de “Rum: Diário de Um Jornalista Bêbado”, que se passa em Porto Rico, o estilo de humor que vai determinar Hunter S. Thompson como repórter de ficção, mesmo que, contudo, o elemento autobiográfico seja forte em sua narrativa, uma vez que os protagonistas de seus livros Medo e Delírio e Rum, Raoul Duke e Paul Kemp, respectivamente, não sejam personagens fictícios, mas o próprio escritor-repórter em sua persona literária.
   Ou seja, Hunter S. Thompson tem o alterego como persona literária, e a garantia de realidade de sua narrativa está, então, ligada a sua característica de jornalista e repórter, e não como escritor. Isto significa que Hunter S. Thompson atua numa dupla face de compreensão, pois ele fala autobiograficamente enquanto repórter, e atua em ficção e invenção como escritor.
   Este jogo duplo é o que vai dar no estilo do Jornalismo Gonzo que, através disso, será uma literatura de repórter, com uma romantização ou uma ficcionalização de algo que vem de um trabalho real, de uma escritura biográfica, e que tem no jornalismo de Hunter S. Thompson o certificado de que o gonzo é o narrador que está na estória, e então, biograficamente, a narrativa passa de estória ou ficção para reportagem e trabalho de registro. A ficção gonzo é um realismo jornalístico na medida em que aparece como persona o caráter biográfico, que é, na sua origem real, produto de um trabalho de repórter, algo que só fica mais evidente em Hell`s Angels, e que, em Medo e Delírio e Rum ganha o selo gonzo como narrativa mista de autor que faz autobiografia e jornalismo como ficção e literatura.
    Falando, agora, do livro “Rum: Diário De Um Jornalista Bêbado”, Hunter S. Thompson aparece, nesta narrativa, com o alterego ou persona Paul Kemp. Algo biográfico vira ficção, e a estadia de Paul Kemp em San Juan é a estória sobre as aventuras de um jornalista norte-americano em Porto Rico, país vinculado aos EUA, mas que faz parte de uma cultura diferente da que se tem no norte.
   Paul Kemp narra em Rum esta impressão dele como jornalista numa terra estrangeira, com condições materiais diversas da qual ele estava acostumado nos EUA. Paul Kemp chega ao local para trabalhar no San Juan Daily News, jornal fundado por um ex-comunista que chegara da Flórida de nome Lotterman. Paul Kemp descreve o ambiente de trabalho do jornal como algo caótico, pois era composto por um grupo de aventureiros comandados por Lotterman, numa espécie de vida alternativa, na qual o trabalho era mesclado com loucuras alcoólicas, e a rotina ficava entre o cumprimento do dever e a malandragem de profissionais que tinham uma queda profunda pela esbórnia.
   Paul Kemp também se incluía neste universo em que o jornalismo ganhava, com a narrativa de Hunter S. Thompson, seu conteúdo gonzo, sua forma e estilo de literatura que eram, também, estilo de vida. O jornalismo aparece como o meio de vida, e a literatura como resultado de uma vivência que tinha na veia de repórter a face na qual Paul Kemp é o elemento que narra a loucura que coloca o San Juan Daily News como uma ilha profissional que tem na contracultura os seus operários, e que, na folga, exercem a vocação de bêbados, aonde o desleixo, numa terra estrangeira, coloca tudo como novidade, juntando esta liberdade com eventuais compromissos de repórter. A vida de jornalista gonzo é a que, com a narrativa de Hunter S. Thompson, se torna um  estilo de vida e de trabalho numa mesma chave de compreensão: Paul Kemp é um trabalhador competente no meio de uma loucura tropical.
   Porto Rico era um fim de mundo, e a equipe do Daily News era formada, principalmente, por uma ralé itinerante de temperamento imprevisível. O que Paul Kemp narra é uma vida errante, vida que era uma reunião de doidões numa terra estrangeira, e que, incrivelmente, formava um grupo de jornalistas, e se tratava, ainda, do mundo do trabalho, apesar de tudo. Tal mundo profissional alternativo era um dos temas desta narrativa, e que representava uma profissão de personagens nômades, em que a liberdade aparece como um conceito de vida andarilha, de algo que é um estilo errante de trabalho e de vivência, liberdade que é resultado praticamente de uma vida de freelancer.
   Paul Kemp será um dos caras de confiança de Lotterman no jornal, uma vez que havia, neste tipo de trabalho, pessoas que não tinham a competência de Kemp. Nesta aventura por Porto Rico, um dos eixos centrais desta narrativa do Rum será o triângulo Yeamon, Chenault e Kemp. Yeamon era namorado da bonita moça Chenault, e Paul Kemp, embora próximo de Yeamon, terá uma atração física por Chenault. E toda a narrativa de “Rum: Diário De Um Jornalista Bêbado” será, dentre os trabalhos de repórter de Paul Kemp, uma miríade de situações que envolverão a lei, a polícia, o jornalismo, e o romance circunstancial de Kemp e Chenault, aonde Yeamon terá papel decisivo, uma vez que no andamento da narrativa, Yeamon, mesmo sendo o namorado de Chenault, com os acontecimentos, este se afastará de Chenault, e Kemp, meio sem querer, apesar de sua atração pela moça, ficará praticamente responsável por Chenault no fim da narrativa, tudo isto depois de um episódio surreal envolvendo ela, o qual deixo aos leitores de Hunter S. Thompson a descoberta.
   “Rum: Diário De Um Jornalista Bêbado” será, então, o Jornalismo Gonzo que, nesta narrativa, terá o estilo de reportagem com ficção de Hunter S. Thompson, assim como em “Medo e Delírio em Las Vegas”, sua obra maior, e que em Rum, pela voz de Paul Kemp, neste livro, documento gonzo, peça de jornalismo, será, por conseguinte, literatura do período de contracultura. Aventura amorosa, retrato de um jornal no meio do fim do mundo, junção de personagens errantes, caóticos, delirantes, e que, junto com o narrador, serão parte de uma cultura de trabalho e empreendimentos que preservarão a ideia de liberdade, já que, nesta narrativa, ninguém leva uma vida formal.
   Paul Kemp, por fim, que é o próprio Hunter S. Thompson, colocará o sentido do que é o Jornalismo Gonzo, ou seja, um estilo de vida que usa a narrativa literária como modelo de jornalismo alternativo, e que é uma criação nova que tem Hunter S. Thompson como grande criador e personagem único.
   O Gonzo, intitulado jornalismo, é a literatura que corrobora a tendência norte-americana do New Journalism com o elemento de contracultura hippie do mundo das drogas e do álcool, da herança da geração beat, e que, com o trabalho de Hunter S. Thompson, cristaliza a ficção como trabalho de repórter, profissão deste escritor gonzo que é o autor de si mesmo, e o personagem de uma história real. O Jornalismo Gonzo é a autobiografia de Hunter S. Thompson como reportagem e literatura.
   Hunter S. Thompson, que desenvolve seu trabalho literário desde “Hell`s Angels”, exercício que tem seu ápice em “Medo e Delírio em Las Vegas”, tem agora, falando de “Rum: Diário De Um Jornalista Bêbado”, isto que se chama gonzo. A relação do conceito de Gonzo será, então, uma junção de mais três conceitos: contracultura, literatura e jornalismo.
   O Gonzo, como conceito ou ideia, virá em sua nomeação com a pré-definição de jornalismo e, acompanhando o New Journalism norte-americano, será o jornalismo de reportagem. Ou seja, tanto a origem do New Journalism como do Jornalismo Gonzo estará na figura mítica também do jornalismo formal: o repórter. No jornalismo, mais do que o âncora ou o redator, a grande centralidade da informação estará na figura do repórter, pois é nele que se realiza o documento, a peça da informação, na sua origem. E aqui, falando do conceito de Gonzo, que tem seu sentido primário como jornalismo, e como especificidade o trabalho de reportagem, ganha, com sua amplitude documental feita por Hunter S. Thompson, suas duas outras conceituações que são as ideias de literatura e de contracultura.
   O Jornalismo Gonzo, que se origina da reportagem, vira peça literária. Gonzo que será o reflexo de uma filosofia ou estilo de vida, a chamada contracultura. Gonzo que será uma manifestação de protesto envolvendo a arte em geral, e que terá um sentido político de emancipação da tradição, e de crítica da cultura desta mesma tradição, criando um movimento de ruptura com a vida nos moldes vigentes da existência institucionalizada, se realizando, junto com o conceito de contracultura, o que poderemos chamar de a liberdade criativa de uma nova geração. Esta que surgiu no fim da década de 1960, sob influência da literatura beat. O Jornalismo Gonzo será o produto, então, de uma mistura entre New Journalism e geração beat. Hunter S. Thompson será uma criatura do gonzo, e ainda mais, seu único exemplar.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/20236/14/diario-de-um-jornalista-bebado