PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

T.S.ELIOT E SEU EAST COKER, O PRINCÍPIO E O FIM

   Se encerra agora o ciclo de T.S.Eliot, segunda inserção no caderno de poesia e uma resenha, desta vez com o fechamento da obra eliotiana, com uma das partes de seu poema Four Quartets ou Quatro Quartetos de 1943.
   East Coker é uma aldeia no Condado de Somerset, Inglaterra, ficando a 32 quilômetros do litoral da Mancha. E conta com a inversão da máxima de Maria Stuart, rainha da Escócia de 1542 a 1567, isto é: “Em meu fim está meu princípio.” Para a abertura do poema de Eliot com: “Em meu princípio está meu fim.”
   O pensamento de Eclesiastes da Bíblia ecoa no poema, o tempo entra na questão existencial com o peso do mundo, o mundo que é este tempo e o grande segredo da sabedoria desta passagem de princípio e fim, quando se diz que “tudo tem seu tempo determinado, e há um tempo para todo propósito debaixo do céu.” Fechando com chave de ouro na inversão total da abertura do poema com: “Em meu fim está meu princípio.”

EAST COKER (PARTE II DOS QUATRO QUARTETOS)
I
Em meu princípio está meu fim. Umas após outras
As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas,
Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar
Irrompe um campo aberto, uma usina ou um atalho.
Velhas pedras para novas construções, velhos lenhos para
novas chamas,
Velhas chamas em cinzas convertidas, e cinzas sobre a terra
semeadas,
Terra agora feita carne, pele e fezes,
Ossos de homens e bestas, trigais e folhas.
As casas vivem e morrem: há um tempo para construir
E um tempo para viver e conceber
E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças
E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre
E sacudir as tapeçarias em farrapos tecidas com a silente
legenda.

Em meu princípio está meu fim. Agora a luz declina
Sobre o campo aberto, abandonado, a recôndita vereda
Cerrada pelos ramos, sombra na tarde,
Ali, onde te encolhes junto ao barranco enquanto passa um
caminhão,
E a recôndita vereda insiste
Rumo à aldeia, ao aquecimento elétrico
Hipnotizada. Na tépida neblina, a luz abafada
É absorvida, irrefratada, pela rocha grisalha.
As dálias dormem no silêncio vazio.
Aguarda a coruja prematura.

A este campo aberto
Se não vieres muito perto, se muito perto não vieres,
À meia-noite de verão, poderás ouvir a música
Da tíbia flauta e do tambor pequenino
E vê-los a dançar em derredor do fogo
Homem e mulher ajuntados
Bailando na dança que celebra o matrimônio,
Esse dino e commodo sacramento.
Dous e dous, necessaria comunhãao,
Huus aos outros enleados pollo braço ou polla mãao,
Na dança que anumçia a comcordia. Girando e girando ao
redor do fogo
Saltando por entre as chamas, ou reunidos em círculos,
Rusticamente solenes ou em rústico alvoroço
Erguendo os pesados pés que rudes sapatos calçam
Pés de terra, pés de barro, suspensos em campestre alegria,
Alegria dos que há muito repousam sob a terra
Nutrindo o trigo. Mantendo o ritmo
Mantendo o ritmo em sua dança
Como em suas vidas nas estações da vida
O tempo das estações e das constelações
O tempo da ordenha e o tempo da colheita
O tempo da cópula entre homem e mulher
E o das bestas. Pés para cima, pés para baixo.
Comendo e bebendo. Bosta e morte.

Desponta a aurora, e um novo dia
Para o silêncio e o calor se apresta. O vento da aurora
Desliza e ondula no maralto. Estou aqui,
Ou ali, ou mais além. Em meu princípio.

II

Que anda fazendo novembro tardio
Com tanto frêmito primaveril
E criaturas do inflamado estio
E anêmonas que sob os pés se agitam
E malva-rosas que o infinito miram
Vermelho derramado sobre cinza
E essas rosas tardias que ainda viçam
Cheias da neve dos primeiros dias?
Trovão que os astros pelo espaço arrastam
A simular vanguardas triunfais
Dispostas para embates constelados
O Escorpião combate contra o Sol
Até que o Sol e a Lua se tresmalham
Choram cometas e voam Leônidas
Caçadores de abismos e planuras
Dentro de um vórtice que arrojará
O mundo àquele fogo arrasador
Cujas centelhas se antecipam ao gelo
Que na calota polar ainda flameja.

Este era um meio de expor as coisas, mas não muito
satisfatório:
Um estudo perifrásico sob forma poética exaurida,
Que mesmo assim nos deixa em luta insuportável
Com palavras e significados. A poesia não importa.
Não era (para recomeçar) o que antecipadamente se
aguardava.
Que valor pode ter a calma tão longamente esperada,
Com tanto ardor desejada, a serenidade outonal
E a sabedoria da velhice? Teriam eles nos logrado
Ou lograram-se a si próprios, os mais velhos de fala comedida,
Que nos legaram apenas o recibo de uma fraude?
A serenidade não passa de um embrutecimento voluntário,
A sabedoria encerra apenas o conhecimento de segredos mortos
Inúteis na escuridão a que assomaram
Ou daquela de que seus olhos se esquivaram. Há, nos parece,
Em suma, apenas um limitado valor
No conhecimento que deriva da experiência.
O conhecimento impõe um modelo, e falsifica,
Porque o modelo é vário para cada instante,
E cada instante uma nova e penosa
Avaliação de tudo quanto fomos. Apenas não nos
decepcionaremos
Com tudo o que, decepcionado, já não causa mais dano.
Na metade, não apenas na metade do caminho
Mas ao longo de todo o caminho, numa floresta escura, num
carrascal,
À beira de um abismo, onde o pé jamais logra equilíbrio,
E ameaçados por monstros, luzes fantasmagóricas,
Na perigosa fímbria do encantamento. Que não me falem
Da sabedoria dos velhos, mas antes de seu delírio,
De seu medo do medo e do frenesi, do medo de serem
possuídos,
De pertencerem a outro, ou a outros, ou a Deus.
A única sabedoria a que podemos aspirar
É a sabedoria da humildade: a humildade é infinita.

Todas as casas submergiram no mar.

Todos os bailarinos submergiram na colina.

III

Ó escuro escuro escuro. Todos mergulham no escuro,
Nos vazios espaços interestelares, no vazio que o vazio inunda,
Capitães, banqueiros, eminentes homens de letras,
Generosos mecenas de arte, estadistas e governantes,
Ilustres funcionários públicos, presidentes de vários cômites,
Magnatas da indústria e pequenos empreiteiros, todos
mergulham no escuro,
E escuros o Sol e a Lua, o Almanaque de Gotha,
A Gazeta da Bolsa, o Anuário dos Diretores,
E frio o sentido e perdido o fundamento da ação,
E todos os seguimos no silente funeral,
Funeral de ninguém, pois a ninguém há que enterrar.

Eu disse à minh`alma, fica tranquila, e deixa baixar o escuro
sobre ti,
Pois que aí tudo será treva divina. Como num teatro,
As luzes se apagam para a troca de cenários
Com um côncavo ribombo de asas, com um movimento de
treva sobre treva,
E sabemos que as colinas e as árvores, o distante panorama
E a soberba fachada altiva estão sendo arrastados para longe
__ Ou quando, no metrô, um trem se demora entre duas
estações
E as conversas se animam e lentamente no vazio tombam
E vês por detrás de cada rosto aprofundar-se o vazio mental
Que semeia apenas o crescente terror de nada haver em que
pensar;
Ou quando, sob o éter, o pensamento é consciente, mas
consciente de nada __
Eu disse à minh`alma, fica tranquila, e espera sem esperança
Pois a esperança seria esperar pelo equívoco; contudo ainda há fé
Mas a fé, o amor e a esperança permanecem todos à espera.
Espera sem pensar, pois que pronta não estás para pensar:
Assim a treva em luz se tornará, e em dança há-de o repouso
se tornar.

Murmúrio de águas velozes e relâmpagos de inverno.
O irrevelado tomilho selvagem e os morangos silvestres.
O riso no jardim, êxtase repetido pelo eco
Jamais perdido, mas que reclama e persegue a agonia
Da morte e do nascimento.
Dirás que estou a repetir
Alguma coisa que antes já dissera. Tornarei a dizê-lo.
Tornarei a dizê-lo? Para chegares até lá,
Para chegares onde estás, para saíres de onde não estás,
Deves seguir por um caminho em que o êxtase não medra.
Para chegares ao que não sabes
Deves seguir por um caminho que é o caminho da ignorância.
Para possuíres o que não possuis
Deves seguir pelo caminho do despojamento.
Para chegares ao que não és
Deves cruzar pelo caminho em que não és.
E o que não sabes é apenas o que sabes
E o que possuis é o que não possuis
E onde estás é onde não estás.

IV

Encurva a lâmina o cirurgião ferido
E com ela interroga a parte lesionada;
Sob as ensanguentadas mãos, sentimos
A compaixão cortante de seu nobre ofício
Esclarecendo o enigma da equação febril.

Nossa única saúde é a doença
Se obedecemos à enfermeira agonizante
Cujo incansável zelo não visa agradar-nos,
Mas recordar-nos que, como o de Adão,
Nosso mal, para curar, precisa antes piorar.

O mundo inteiro só nos vale de hopsital,
Último bem do milionário arruinado,
E onde, se tudo andar direito, poderemos
Morrer do absoluto e paternal cuidado
Que a cada instante nos ampara e tiraniza.

Faísca perna acima um calafrio.
A febre zumbe nos canais do cérebro.
Para aquecer-me, devo gelar e tremer
Entre os álgidos fogos purgatoriais
Cujas flamas são rosas, e a fumaça sarça.

Nossa bebida é apenas sangue gotejante,
Nosso único alimento carne ensanguentada:
Contudo, alegrar-nos pensar que somos
Sadios, carne e sangue elementares – contudo,
Uma outra vez chamamos santa à Sexta-Feira.

V

Assim, eis-me aqui na metade do caminho, e vinte anos se
passaram
__ Vinte anos a rigor esperdiçados, os anos de l`entre deux
guerres __
Tentando aprender como empregar as palavras, e cada
tentativa
É sempre um novo começar, e uma divisa espécie de fracasso
Pois apenas se aprendeu a escolher o melhor das palavras
Para o que não há mais a dizer, ou o meio pelo qual
É um novo começo, uma rápida incursão ao inarticulado
Com equipamento imprestável e em contínuo aprodecer
Na desordem geral da imprecisão dos sentimentos.
Indisciplinadas esquadrilhas da emoção. E o que há por
conquistar,
Por força e submissão, já foi descoberto
Uma, ou duas, ou várias vezes, por homens com quem não se
pode
Pretender rivalizar __ mas não se trata de competição __
E sim de uma luta para recuperar o que se perdeu __ e agora em
condições
Que não parecem favoráveis. Mas talvez nem ganho nem
perda.
Para nós, há somente tentativa. O resto não é de nossa conta.

Lar é de onde se vem. À medida que envelhecemos
O mundo se torna mais estranho, mais intrincada essa questão
De distinguir mortos e vivos. Não o intenso momento
Isolado, sem antes e depois,
Mas toda uma vida ardendo a cada instante
E não a vida de um homem apenas
Mas a de antigas pedras que não podem ser decifradas.
Há um tempo para anoitecer à luz de lâmpadas
(Anoitecer com o álbum de fotografias).
O amor apenas a si próprio tangencia
Quando agora e aqui não mais importam.
Os velhos devem ser exploradores,
Aqui ou ali, não interessa
Devemos estar imóveis e contudo mover-nos
Rumo à outra intensidade
A uma união mais ampla, uma comunhão mais profunda
Através da escura frieza e da vazia desolação,
O grito da vaga, o grito do vento, as águas infinitas
Da procelária e do delfim. Em meu fim está meu princípio.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário:http://seculodiario.com.br/25146/17/tseliot-e-seu-east-coker-o-principio-e-o-fim