PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 10 de setembro de 2016

P. B. SHELLEY E SEUS POEMAS DA ERA DO ROMANTISMO INGLÊS – PARTE IV

“uma poesia que tem muito em sublimidade, beleza e paixão”

AS OBRAS
Assim que a poesia de Percy Shelley veio à luz, ela sempre foi alvo de opiniões conflitantes e muitas vezes opostas e de extremos, para o bem e para o mal, com uma oscilação crítica como um pêndulo. E atualmente pende para o lado negativo, de desfavorecimento de uma poesia acusada de puramente musical e vazia de substância, o que vem dos detratores, sendo seus defensores do argumento de que isso é uma mera incompreensão de alcance da poesia shelleyana.
 A visão alternativa dele como poeta por excelência é ainda encontradiça. Uma das armadilhas comuns da atualidade é a famigerada generalização, em que concepções estanques simplificam o problema a favor de uma crítica puramente destrutiva. Embora haja pontos que incidem sobre alguns traços distintivos de sua poesia, mesmo assim tudo é feito na base de uma negligência. E neste ponto de destruição se esquece a crítica atual de levantar uma poesia que tem muito em sublimidade, beleza e paixão pelo bem, versos musicais sim, mas de pleno domínio de causa, e que tem conteúdo, apesar da forma esteta.
São três os fundamentos principais em que a poesia de Shelley pode ser vista com seu brilho. A eminência de Shelley pode se destacar em uma compreensão de que, por exemplo, ele não foi excedido em sua idealidade, em sua música e em sua importância. Em relação à idealidade, Shelley sempre teve um senso de justiça social, apesar de bem nascido, pois foi contrário a todo tipo de opressão e acreditava no ser humano.
Na sua relação intensa com a musicalidade poética, por sua vez, a música de sua poesia, essa não pode ser refutada nem mesmo pelos seus críticos mais destrutivos. Pode-se mesmo afirmar, sem embargo, que Shelley foi o poeta inglês, deste conjunto de notáveis da poesia inglesa, que tenha usado uma variedade de formas e medidas que veio a ter alcance maior do que todos estes outros, pois na sua aliança inarredável com a música o poeta se conferiu de uma habilidade que muitas vezes pode até mesmo ter antecipado o simbolismo, mesmo no romantismo, no seu quesito sonoridade, Shelley foi o mais habilidoso ao se utilizar destes recursos, é uma poesia rica de som, ainda mesmo em traduções.
Quanto à importância, Shelley possuía aquela chama de paixão intelectual que fazem os grandes poetas como ele, ele foi em relação ao seu tempo um poeta do futuro, ele apontava para o porvir, com um temperamento de renovador e mártir, esta chama que inundou a alma de todo grande poeta, reunindo no mesmo trabalho de alma poética a grandeza especulativa e filosófica e, como dito, uma fé na humanidade que se traduzia em um zelo humanitário num grau original no qual se busca até hoje algo semelhante, e sem precedentes.
É creditado pela crítica geral de poesia que, de seus poemas, o mais importante seja o “Prometeu libertado”. Mas sua poesia lírica também se destaca com alcances verdadeiramente altos, com poemas como o do coro final de Hellas ou a “Ode ao Vento Oeste”. Como dito, alguns detratores acusam a música de Shelley como vazia, mas isso pode ser um problema da leitura, tanto no sentido de interpretação de conteúdo como também, e não menos, no entendimento do jogo poético e da versificação, de como a criatividade funciona quando se fala e se lê poesia, como quando não se capta o que se contém na estrutura elíptica das sentenças de Shelley e neste momento se escapa pelos dedos seu sentido.
O coro final de Hellas, reminiscente de Isaías, lembra o impacto profético da Écloga messiânica de Virgílio: desenvolve-a em parte e alcança uma expressão que é sustentadamente firme – com o alcance e tirante a épica. Yeats não parece ter sido alheio à influência desse coro; o que diz muita coisa sobre a dimensão de Shelley na História. A “Ode ao Vento Oeste” é de alcance lírico incomparável, representando um acme cuja grandeza evoca a de Keats em suas grandes odes. O “Adonais” já é um poema diferente, uma elegia funeral, destinada a reverenciar a memória de Keats, e foi construída costeando Mosco e Bíon nos versos de partida.
O “Adonais” é de cepa simples, pois tem trinta e duas estâncias espenserianas que expressam não apenas a desolação do poeta com a morte de Adonais, mas a desolação de todas as forças naturais e imaginativas que ele fez belas em sua poesia. E as quinze estâncias seguintes reforçam a mesma piedade e tristeza, agora expressas pela Musa Urânia e por poetas irmãos, terminando com uma típica maldição shelleyana sobre o assassino (isto é, o crítico que atacou Keats), embora renunciando à vingança.
Nesse ponto (estância 38) descobre-se que a morte física não é realmente a extinção para os que são como Adonais, pois ele agora vive como parte da Natureza e também desse grande Espírito, a Beleza Intelectual, ou Amor, que eternamente modela todas as formas de vida a seus propósitos, tanto quanto possam sentir sua influência. E, é sempre bom lembrar, a única realidade última para Shelley era a Beleza Intelectual; a vida humana era real e duradoura apenas por se identificar com ela. Assim o poeta alcança um dos seus mais altos pontos de expressão no clímax de “Adonais”:
The One remains, the many change and pass;
Heaven`s light for ever shines. Earth`s shadows fly;
Life, like a dome of many-coloured glass,
Stains the white radiance of Eternity.
(O Um fica, os muitos vão-se; a luz é permanente
No Céu, na Terra as sombras passam brevemente;
A Vida, como um domo em vidro multicor,
Mancha da Eternidade o branco resplendor,)

Nesta brilhante imagem Shelley condensou quase todo o espírito dos Triunfos de Petrarca. Desde 1818 Shelley tinha admirado Petrarca como um dos maiores poetas. Em seus Triunfos a Eternidade é a única perfeição duradoura; a vida terrena, à luz da Eternidade, é um cortejo de sombras vãs. O diário de Mary de 7 de setembro de 1819 mostra Shelley lendo o triunfo da Morte de Petrarca em voz alta. Aqui Petrarca diz que a Morte é chamada assim apenas pelos desavisados e que Laura, morta, está realmente viva ao passo que seu amante vivo está em verdade morto. Tão completamente Shelley se apropriou dessa ideia que a expressou numa imagem sugerida pelo Macbeth de Shakespeare que ao mesmo tempo expressa o significado do poema de Petrarca e a própria crença de Shelley.
Peace, peace! he is not dead, he does not sleep –
He has awakened from the dream of life –
“Tis we, who, lost in stormy visions, keep
With phantoms na improfitable strife
And in mad trance strike with our spirit`s knife
Invulnerable nothings ...
(Calma, ele não morreu, ele não está dormindo,
Ele acordou da vida, simples sonho findo;
_ Nós, os perdidos em visão tempestuosa,
Mantemos com fantasmas luta desvaliosa,
E, com a faca do espírito, a louquear golpeamos
Invulneráveis nadas.)
E as três estâncias que encerram o Poema transmutam o desânimo pessoal do autor em algo como êxtase. Uma vez que suas próprias esperanças terrenas estavam mortas, por que hesitar em juntar-se a Adonais numa Vida eterna?
A verdadeira essência dessa Eternidade é a Beleza Intelectual, o Um que permanece fixo num universo de mudança e decadência. Na estância 54 Shelley exprime apaixonadamente tanto o poder da Beleza Intelectual como da maneira pela qual ela opera:
That Light whose smile kindles the Universe,
That Beauty in which all things work and move,
That Benediction which the eclipsing Curse
Of birth can quench not, that sustaining Love
Which through the web of being blindy wove
By man and beast and Earth and air and sea,
Burns bright or dim, as each are mirrors of
The fire for which all thirst; now beams on me,
Consuming the last clouds of cold mortality.
(Aquela Luz cujo sorriso o Mundo aclara,
A Beleza em que tudo opera e em que não para,
Aquela Bênção que a eclipsante Maldição
De nascer não estingue, aquele Amor-sustentação
Que na trama do ser teceu bem cegamente
Com homem a animal e terra e ar e mar
Arde obscuro ou brilhante: tudo é um espelhar
Do fogo, sede universal; em mim luzente,
As nuvens últimas do que é mortal ei-lo a apagar.)
O Epipsychidion, que é um poema de amor intelectual, tem início meio críptico, mas julga-se que a Lua nele referida seja Mary. De qualquer forma, o poema é dirigido a Emilia Viviani, com a qual Shelley imagina alguma fuga para a ilha do Egeu. E o excerto da fuga do poema, cujo título é um desafio, pode equivaler a “manual da alma” – ecoando o encheiridion, isto é, “manual” do século XVII.
O “Hino à Beleza Intelectual”, de composição anterior a todos os já considerados, expõe a descrença de Shelley quanto a comunicar-se com as almas dos mortos, e manifesta sua confiança na Beleza Intelectual, que é algo atemorizante. É um dos primeiros poemas de Shelley prenunciadores dos que ostentam sua plena capacidade de expressão.
“Ozimândias”, além de ser um poema em si mesmo bem realizado, tem outra característica, que é o arranjo não canônico de rimas. Seu esquema é ABAB/ACDC/ODE/FEF, o que era aventuroso e novo para o soneto. De sua “Ode ao Vento Oeste” diz-se também que deveria ser impressa, o que nem sempre acontece, como uma sequência de cinco sonetos de esquema rimático ABAB/CBCD/CDE/DEE.
Quanto ao coro do v.197 de Hellas, esclarece Shelley, em nota:
“As noções populares do cristianismo são representadas neste coro como verdadeiras em sua relação com o culto que substituíram, e aquele que segundo todas probabilidade elas substituirão, sem considerar seus méritos numa relação mais universal. A primeira instância contrasta a imortalidade dos seres viventes e pensantes que habitam os planetas, e para usar uma frase comum e inadequada “vestem-se com a matéria”, com a transitoriedade das manifestações mais nobres do mundo externo. Os versos finais indicam um estado progressivo de existência mais ou menos exaltada, segundo o grau de perfeição que cada inteligência distinta pode ter atingido.”
Dos versos “A uma cotovia” – um dos mais famosos de Shelley – afirma-se que poucas vezes na vida do poeta um símbolo de alegria poderia ter sido mais bem-vindo para ele. “Desde a primeira linha do poema a cotovia é tal símbolo: ‘Pássaro nunca foste’. Ele é de um poeta, um poeta feliz que o mundo ouvirá.”
Os outros poemas apresentam cada um seu interesse específico. Podemos citar o “Hino a Pã” e o “Hino a Apolo”, o primeiro embalador, o segundo majestoso, o excerto do “Prometeu libertado”, com seu final prenunciador do simbolismo, poemas de interesse biográfico, como o escrito em depressão, perto de Nápoles, e outros que aproveitam intensamente as plantas, como “A pergunta”, ou que falam nas injustiças do mundo.
EPIPSYCHIDION:
O poema abre como uma mensagem: “Emília,/Um navio flutua agora na enseada,/Um vento paira sobre os montes, na cumeada;/Há um caminho no pavimento azul do céu,/Quilha nenhuma este caminho antes venceu;” e segue ao convite: “Velejarás comigo, irmã do coração?/O nosso barco é um albatroz, e o ninho seu/É um éden do oriente que empurpureceu;/Pousemo-lhe entre as asas, quando Noite e Dia/Prosseguem voo, e a Tempestade, e a Calmaria,/Nossos ministros, sobre o mar ilimitado/Pisam o calcanhar um do outro, sem cuidado./Bem debaixo do céu da Jônia unia ilha vela,/Qual resto de naufrágio do Paraíso bela;/E porque as enseadas sejam más e não seguras,/Conheceria a solidão e suas agruras,/Não fosse um povo pastoril dali nativo,/Que do ar elísio e resplendente e de ouro vivo/Respira o último espírito da áurea idade,/Simples mas animado; audaz e sem maldade./A azul Egeu circunda esse lar de eleição,”. Aqui o poeta tem já seu lugar de eleição, na velha Hélade de todos os sonhos, de todos os poetas e filósofos, lugar natural, de ventos elísios, uma ilha do paraíso, um idílio, de um povo que respira o último espírito da áurea idade, oh, a nostalgia da idade de ouro, o mar, em que se conheceria a solidão e suas agruras, sentimento de solitude, no entanto, que leva Emília em suas quilhas, ou ainda poderia ser Mary, o poeta dirige-se como carta, e tal roteiro é náutico, em direção a uma ilha, um paraíso perdido, onde mora o auge da civilização, e segue o poema: “Todo o lugar povoa-se de doces ares;/O ambiente leve e claro de que a ilha é mansão” (...) “E uma ilha entre Céu, Mar, Terra, Ar embalada/E num sossego luminoso projetada;/Luzente como o Éden Lúcifer a errar,/Lavada pelo Oceano azul do jovem ar./Murcha ou escassez – é uma favorecida terra –/A Pestilência, o Terremoto, mesmo a Guerra/Não pousam em seus píncaros, abutres cegos,/Velejam para longe em seus fatais navegos.” É um lugar de fuga, que é a universal fuga da dor e do sofrimento, em que se embeleza de mar toda a nostalgia do mundo perfeito.

ADONAIS: ELEGIA PELA MORTE DE JOHN KEATS:
O poema, uma elegia, abre com versos de dor: “Choro por Adonais! Choro, que ele morreu!/Chorai por Adonais! O pranto vosso e meu/Em sua fronte não derreta a geada embora!/E tu – eleita dentre os anos, triste Hora,/Para prantear tal perda – a tuas irmãs obscuras/Dize, e a melancolia tua lhes ensina:/“Eu levei Adonais; até as eras futuras/O passado esquecerem, sua fama e sina/Serão um eco – e luz – que à eternidade se destina!”” (...) “Onde eras, forte Mãe, quando ele adormeceu/E a seta que nas trevas voa se embebeu/Em teu filho? A infeliz Urânia onde ia estar/Quando Adonais morreu? Com seu vendado olhar,/Lá no seu Éden, entre mais um Eco atento/Ela sentava; um destes, com paixão no alento,/As melodias que se esvaem reanimou,/Com as quais, flores a rir de um corpo macilento,/O vulto próximo da Morte outrora ele ocultou.” O poeta vê Adonais em Keats, e na sua fusão de mitologia descobre em Urânia o centro nervoso da dor pranteada, e na forma do mito, Shelley mais uma vez dá seu grito lancinante: “Ele morreu, morreu! Chorai por Adonais!/Acorda, triste Mãe, acorda e esvai-te em ais!” (...) “Oh, não sonhes que o Abismo, sendo-lhe amoroso,/Inda o restaure para o ar vital, oh não;/De sua mudez nutre-se a Morte, e ri-nos da aflição.” (...) “Morto o que era o mais jovem e querido teu!” (...) “Chorai por Adonais! – As Ilusões douradas,/As agentes da ideia, de paixão aladas,/Eram os seus rebanhos, que ele alimentava/Junto às águas do espírito, e lhes ensinava/O amor que era sua música;” (...) “Ele não mais acordará, oh nunca mais!/Grita a Miséria: “Acorda, mãe sem filho! Com ais/E pranto apaga, bem no fundo de teu peito,/Um ferimento mais feroz que o nele feito.”/E os Sonhos todos que de Urânia velam o olhar/E os Ecos todos que a irmã deles, a cantar,/Silenciara, bramiram: “Ergue-te!” Ligeira/Saltou de seu repouso a Luz, Luz passageira,/Qual Pensamento que a Memória, serpe, foi picar.” Eis a tortura da memória, Musa Urânia e seus ais, e a morte inexorável, fato consumado, na qual o pranto não ressuscita o pranteado, mas Shelley, neste poema, logo inverte o jogo, e dá mais uma vez à existência, a sua fé intelectual, a fé na humanidade de um ateu: “Calma, ele não morreu, ele não está dormindo,/Ele acordou da vida, simples sonho findo;” (...) “Ele vive e vigila – a Morte é que morreu;/Não choreis Adonais.” E professa a sua Beleza Intelectual: “Ele se uniu à Natureza: nesta é ouvido/O que ele diz com melodia,” (...) “Vida e amor lutam nele, pelo que será/Sua sina terrena: os mortos vivem lá/E andam no ar bravo e escuro como ventos de clarão.” (...) “O Um fica, os muitos vão-se; a luz é permanente/No Céu, na Terra as sombras passam brevemente;/A Vida, como um domo em vidro multicor,/Mancha da Eternidade o branco resplendor,/Até que a Morte o pise e quebre.” (...) “Varando o íntimo véu do céu mostra-se ardente/A alma de Adonais, como se fosse estrela,/E esplende ao alto na morada onde os Eternos são.” A Eternidade aqui não tem fundo místico ou espiritual, mas sim como imagem poética, como ideal intelectual perseguido por Shelley e intuído na música natural do mundo.

EPIPSYCHIDION
[Excerto]

Emília,
Um navio flutua agora na enseada,
Um vento paira sobre os montes, na cumeada;
Há um caminho no pavimento azul do céu,
Quilha nenhuma este caminho antes venceu;
Chocam alciões em torno às ilhas sem espuma;
O oceano abjurou os dolos que costuma;
Os marujos são livres, e arrojados são;
Velejarás comigo, irmã do coração?
O nosso barco é um albatroz, e o ninho seu
É um éden do oriente que empurpureceu;
Pousemo-lhe entre as asas, quando Noite e Dia
Prosseguem voo, e a Tempestade, e a Calmaria,
Nossos ministros, sobre o mar ilimitado
Pisam o calcanhar um do outro, sem cuidado.
Bem debaixo do céu da Jônia unia ilha vela,
Qual resto de naufrágio do Paraíso bela;
E porque as enseadas sejam más e não seguras,
Conheceria a solidão e suas agruras,
Não fosse um povo pastoril dali nativo,
Que do ar elísio e resplendente e de ouro vivo
Respira o último espírito da áurea idade,
Simples mas animado; audaz e sem maldade.
A azul Egeu circunda esse lar de eleição,
Com som sempre mudando, espumas e clarão,
Beijando a areia fina e as furnas a alvejar;
E os ventos todos pela praia a vaguear
Ondulam como as vagas que a ondular se agitam:
Faunos silvestres na floresta espessa habitam;
Muita lagoa existe e arroio e manancial
Tão claros como o diamante elemental
Ou o ar sereno da manhã; e muito além
Musgosas trilhas de cabras e gamos vêm
(Uma só vez por ano as seguem os pastores)
Dar em caramanchões, cavernas, corredores
Construídos com hera; os saltos d`água os alumiando
Com um som que nunca falha, vão acompanhando
Os rouxinóis ao meio-dia em seus cantares;
Todo o lugar povoa-se de doces ares;
O ambiente leve e claro de que a ilha é mansão
Pesa com o grave odor das flores de limão
Que paira, névoa cheia de chuva invisível
E cai nas pálpebras, qual sono perceptível;
Violetas e junquilhos dentre o musgo espreitam
E odor qual seta ou dardo em nossa mente deitam
Até quase esmaiardes com essa doce dor.
E cada movimento, e luz, e tom, e odor,
Com aquela grave música está em união
Que é uma alma dentro da alma – aparentando estão
Ecos de um sonho pré-natal, bem anterior. –
E uma ilha entre Céu, Mar, Terra, Ar embalada
E num sossego luminoso projetada;
Luzente como o Éden Lúcifer a errar,
Lavada pelo Oceano azul do jovem ar.
Murcha ou escassez – é uma favorecida terra –
A Pestilência, o Terremoto, mesmo a Guerra
Não pousam em seus píncaros, abutres cegos,
Velejam para longe em seus fatais navegos.
(Obs: o poema continua, e como é bem extenso, aqui está somente o seu começo como uma introdução)

ADONAIS: ELEGIA PELA MORTE DE JOHN KEATS

I
Choro por Adonais! Choro, que ele morreu!
Chorai por Adonais! O pranto vosso e meu
Em sua fronte não derreta a geada embora!
E tu – eleita dentre os anos, triste Hora,
Para prantear tal perda – a tuas irmãs obscuras
Dize, e a melancolia tua lhes ensina:
“Eu levei Adonais; até as eras futuras
O passado esquecerem, sua fama e sina
Serão um eco – e luz – que à eternidade se destina!”

II
Onde eras, forte Mãe, quando ele adormeceu
E a seta que nas trevas voa se embebeu
Em teu filho? A infeliz Urânia onde ia estar
Quando Adonais morreu? Com seu vendado olhar,
Lá no seu Éden, entre mais um Eco atento
Ela sentava; um destes, com paixão no alento,
As melodias que se esvaem reanimou,
Com as quais, flores a rir de um corpo macilento,
O vulto próximo da Morte outrora ele ocultou.

III
Ele morreu, morreu! Chorai por Adonais!
Acorda, triste Mãe, acorda e esvai-te em ais!
Mas para quê? Apaga em seu fervente leito
Teu pranto em fogo, e o coração a soar no peito
Um sono guarde igual ao dele, e silencioso;
Que ele se foi aonde vão sábio e formoso;
Oh, não sonhes que o Abismo, sendo-lhe amoroso,
Inda o restaure para o ar vital, oh não;
De sua mudez nutre-se a Morte, e ri-nos da aflição.

IV
Tu, a mais harmoniosa das que choram, chora!
Urânia, ele morreu! Volta a chorar agora,
Ele, o monarca de uma raça imorredoura,
Cego e ancião, quando o brio que sua pátria doura,
O clero, o escravo, o destruidor da liberdade,
Pisaram-na, zombando com ritual odiado
De cio e sangue; o vórtice da morte, ousado,
Buscou; mas seu Espírito de claridade
Reina inda na terra; o terceiro pela luz gerado.

(trechos seguintes, em resumo):
VI
Morto o que era o mais jovem e querido teu!
IX
Chorai por Adonais! – As Ilusões douradas,
As agentes da ideia, de paixão aladas,
Eram os seus rebanhos, que ele alimentava
Junto às águas do espírito, e lhes ensinava
O amor que era sua música;
XV
Entre as montanhas senta-se Eco desnorteada
E nutre a dor com a rima de Adonais,
XVI
Louca de mágoa, a Primavera derrubou
Os seus botões, pensando ser Outono,
(...)
Jacinto a Febo caro assim não veio a ser
Nem Narciso a si próprio, como tu, Adonais,
XXII
Ele não mais acordará, oh nunca mais!
Grita a Miséria: “Acorda, mãe sem filho! Com ais
E pranto apaga, bem no fundo de teu peito,
Um ferimento mais feroz que o nele feito.”
E os Sonhos todos que de Urânia velam o olhar
E os Ecos todos que a irmã deles, a cantar,
Silenciara, bramiram: “Ergue-te!” Ligeira
Saltou de seu repouso a Luz, Luz passageira,
Qual Pensamento que a Memória, serpe, foi picar.

XXXIX
Calma, ele não morreu, ele não está dormindo,
Ele acordou da vida, simples sonho findo;
_ Nós, os perdidos em visão tempestuosa,
Mantemos com fantasmas luta desvaliosa,
E, com a faca do espírito, a louquear golpeamos
Invulneráveis nadas.

XLI
Ele vive e vigila – a Morte é que morreu;
Não choreis Adonais.

XLII
Ele se uniu à Natureza: nesta é ouvido
O que ele diz com melodia,

XLIV
Vida e amor lutam nele, pelo que será
Sua sina terrena: os mortos vivem lá
E andam no ar bravo e escuro como ventos de clarão.

LII
O Um fica, os muitos vão-se; a luz é permanente
No Céu, na Terra as sombras passam brevemente;
A Vida, como um domo em vidro multicor,
Mancha da Eternidade o branco resplendor,
Até que a Morte o pise e quebre.

LIV
Aquela Luz cujo sorriso o Mundo aclara,
A Beleza em que tudo opera e em que não para,
Aquela Bênção que a eclipsante Maldição
De nascer não estingue, aquele Amor-sustentação
Que na trama do ser teceu bem cegamente
Com homem a animal e terra e ar e mar
Arde obscuro ou brilhante: tudo é um espelhar
Do fogo, sede universal; em mim luzente,
As nuvens últimas do que é mortal ei-lo a apagar.

LV
(obs: final do poema)
Varando o íntimo véu do céu mostra-se ardente
A alma de Adonais, como se fosse estrela,
E esplende ao alto na morada onde os Eternos são.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/30515/17/pb-shelley-e-seus-poemas-da-era-do-romantismo-ingles-parte-iv






quarta-feira, 7 de setembro de 2016

SABER O AMOR

Anoiteço por me poetizar.
Com um sinal na carne
de que sofri.
Com um fino trato do coração
acusando que amei.

Não me trate aos malditos insultos,
aquele que não sabe amar
bem aprende a odiar,
pois deste carvão lhe faz
o desdém.

As impuras ilusões do voo,
ah, estas gaivotas!
Como pulam a orquestra
e rondam os abutres,
como amam aos que
odeiam!

07/09/2016 (Gustavo Bastos)

VANGUARDA NOTURNA

Assim me revelo, nas noites de vanguarda,
com a espada atravessada na garganta,
emito notas dissonantes de meu
pedal astuto.

Assim me detenho, com passos largos e imprevisíveis,
com as minhas rubricas e signos
tonteando as balas.

Na vida de vanguarda, como um mercador
que anota as cintilações das estrelas,
o que navega desperto sobre
o mar da fortuna.

Assim o sonho estoura a champanhe,
bebe o vinho.
Assim o sonho vem
e se derrama.

Assim me revelo, poesia fausta
com olhos de ilusão,
nas noites de vanguarda
do meu coração.

07/09/2016 (Gustavo Bastos)