“uma poesia que tem muito em sublimidade, beleza e paixão”
AS OBRAS
Assim que a poesia de Percy Shelley veio à luz, ela sempre
foi alvo de opiniões conflitantes e muitas vezes opostas e de extremos, para o
bem e para o mal, com uma oscilação crítica como um pêndulo. E atualmente pende
para o lado negativo, de desfavorecimento de uma poesia acusada de puramente
musical e vazia de substância, o que vem dos detratores, sendo seus defensores
do argumento de que isso é uma mera incompreensão de alcance da poesia
shelleyana.
A visão alternativa
dele como poeta por excelência é ainda encontradiça. Uma das armadilhas comuns
da atualidade é a famigerada generalização, em que concepções estanques
simplificam o problema a favor de uma crítica puramente destrutiva. Embora haja
pontos que incidem sobre alguns traços distintivos de sua poesia, mesmo assim
tudo é feito na base de uma negligência. E neste ponto de destruição se esquece
a crítica atual de levantar uma poesia que tem muito em sublimidade, beleza e
paixão pelo bem, versos musicais sim, mas de pleno domínio de causa, e que tem
conteúdo, apesar da forma esteta.
São três os fundamentos principais em que a poesia de Shelley
pode ser vista com seu brilho. A eminência de Shelley pode se destacar em uma
compreensão de que, por exemplo, ele não foi excedido em sua idealidade, em sua
música e em sua importância. Em relação à idealidade, Shelley sempre teve um
senso de justiça social, apesar de bem nascido, pois foi contrário a todo tipo
de opressão e acreditava no ser humano.
Na sua relação intensa com a musicalidade poética, por sua
vez, a música de sua poesia, essa não pode ser refutada nem mesmo pelos seus
críticos mais destrutivos. Pode-se mesmo afirmar, sem embargo, que Shelley foi
o poeta inglês, deste conjunto de notáveis da poesia inglesa, que tenha usado
uma variedade de formas e medidas que veio a ter alcance maior do que todos
estes outros, pois na sua aliança inarredável com a música o poeta se conferiu
de uma habilidade que muitas vezes pode até mesmo ter antecipado o simbolismo,
mesmo no romantismo, no seu quesito sonoridade, Shelley foi o mais habilidoso
ao se utilizar destes recursos, é uma poesia rica de som, ainda mesmo em
traduções.
Quanto à importância, Shelley possuía aquela chama de paixão
intelectual que fazem os grandes poetas como ele, ele foi em relação ao seu
tempo um poeta do futuro, ele apontava para o porvir, com um temperamento de
renovador e mártir, esta chama que inundou a alma de todo grande poeta,
reunindo no mesmo trabalho de alma poética a grandeza especulativa e filosófica
e, como dito, uma fé na humanidade que se traduzia em um zelo humanitário num
grau original no qual se busca até hoje algo semelhante, e sem precedentes.
É creditado pela crítica geral de poesia que, de seus poemas,
o mais importante seja o “Prometeu libertado”. Mas sua poesia lírica também se
destaca com alcances verdadeiramente altos, com poemas como o do coro final de
Hellas ou a “Ode ao Vento Oeste”. Como dito, alguns detratores acusam a música
de Shelley como vazia, mas isso pode ser um problema da leitura, tanto no
sentido de interpretação de conteúdo como também, e não menos, no entendimento
do jogo poético e da versificação, de como a criatividade funciona quando se
fala e se lê poesia, como quando não se capta o que se contém na estrutura
elíptica das sentenças de Shelley e neste momento se escapa pelos dedos seu
sentido.
O coro final de Hellas, reminiscente de Isaías, lembra o
impacto profético da Écloga messiânica de Virgílio: desenvolve-a em parte e
alcança uma expressão que é sustentadamente firme – com o alcance e tirante a
épica. Yeats não parece ter sido alheio à influência desse coro; o que diz
muita coisa sobre a dimensão de Shelley na História. A “Ode ao Vento Oeste” é
de alcance lírico incomparável, representando um acme cuja grandeza evoca a de
Keats em suas grandes odes. O “Adonais” já é um poema diferente, uma elegia
funeral, destinada a reverenciar a memória de Keats, e foi construída costeando
Mosco e Bíon nos versos de partida.
O “Adonais” é de cepa simples, pois tem trinta e duas
estâncias espenserianas que expressam não apenas a desolação do poeta com a
morte de Adonais, mas a desolação de todas as forças naturais e imaginativas
que ele fez belas em sua poesia. E as quinze estâncias seguintes reforçam a
mesma piedade e tristeza, agora expressas pela Musa Urânia e por poetas irmãos,
terminando com uma típica maldição shelleyana sobre o assassino (isto é, o
crítico que atacou Keats), embora renunciando à vingança.
Nesse ponto (estância 38) descobre-se que a morte física não
é realmente a extinção para os que são como Adonais, pois ele agora vive como
parte da Natureza e também desse grande Espírito, a Beleza Intelectual, ou
Amor, que eternamente modela todas as formas de vida a seus propósitos, tanto
quanto possam sentir sua influência. E, é sempre bom lembrar, a única realidade
última para Shelley era a Beleza Intelectual; a vida humana era real e
duradoura apenas por se identificar com ela. Assim o poeta alcança um dos seus
mais altos pontos de expressão no clímax de “Adonais”:
The One remains, the many change and pass;
Heaven`s light for ever shines. Earth`s shadows fly;
Life, like a dome of many-coloured glass,
Stains the white radiance of Eternity.
(O Um fica, os muitos vão-se; a luz é permanente
No Céu, na Terra as sombras passam brevemente;
A Vida, como um domo em vidro multicor,
Mancha da Eternidade o branco resplendor,)
Nesta brilhante imagem Shelley condensou quase todo o
espírito dos Triunfos de Petrarca. Desde 1818 Shelley tinha admirado Petrarca
como um dos maiores poetas. Em seus Triunfos a Eternidade é a única perfeição
duradoura; a vida terrena, à luz da Eternidade, é um cortejo de sombras vãs. O
diário de Mary de 7 de setembro de 1819 mostra Shelley lendo o triunfo da Morte
de Petrarca em voz alta. Aqui Petrarca diz que a Morte é chamada assim apenas
pelos desavisados e que Laura, morta, está realmente viva ao passo que seu
amante vivo está em verdade morto. Tão completamente Shelley se apropriou dessa
ideia que a expressou numa imagem sugerida pelo Macbeth de Shakespeare que ao mesmo
tempo expressa o significado do poema de Petrarca e a própria crença de Shelley.
Peace, peace! he is not dead, he does not sleep –
He has awakened from the dream of life –
“Tis we, who, lost in stormy visions, keep
With phantoms na improfitable strife
And in mad trance strike with our spirit`s knife
Invulnerable nothings ...
(Calma, ele não morreu, ele não está dormindo,
Ele acordou da vida, simples sonho findo;
_ Nós, os perdidos em visão tempestuosa,
Mantemos com fantasmas luta desvaliosa,
E, com a faca do espírito, a louquear golpeamos
Invulneráveis nadas.)
E as três estâncias que encerram o Poema transmutam o
desânimo pessoal do autor em algo como êxtase. Uma vez que suas próprias
esperanças terrenas estavam mortas, por que hesitar em juntar-se a Adonais numa
Vida eterna?
A verdadeira essência dessa Eternidade é a Beleza
Intelectual, o Um que permanece fixo num universo de mudança e decadência. Na
estância 54 Shelley exprime apaixonadamente tanto o poder da Beleza Intelectual
como da maneira pela qual ela opera:
That Light whose smile kindles the Universe,
That Beauty in which all things work and move,
That Benediction which the eclipsing Curse
Of birth can quench not, that sustaining Love
Which through the web of being blindy wove
By man and beast and Earth and air and sea,
Burns bright or dim, as each are mirrors of
The fire for which all thirst; now beams on me,
Consuming the last clouds of cold mortality.
(Aquela Luz cujo sorriso o Mundo aclara,
A Beleza em que tudo opera e em que não para,
Aquela Bênção que a eclipsante Maldição
De nascer não estingue, aquele Amor-sustentação
Que na trama do ser teceu bem cegamente
Com homem a animal e terra e ar e mar
Arde obscuro ou brilhante: tudo é um espelhar
Do fogo, sede universal; em mim luzente,
As nuvens últimas do que é mortal ei-lo a apagar.)
O Epipsychidion, que é um poema de amor intelectual, tem
início meio críptico, mas julga-se que a Lua nele referida seja Mary. De
qualquer forma, o poema é dirigido a Emilia Viviani, com a qual Shelley imagina
alguma fuga para a ilha do Egeu. E o excerto da fuga do poema, cujo título é um
desafio, pode equivaler a “manual da alma” – ecoando o encheiridion, isto é,
“manual” do século XVII.
O “Hino à Beleza Intelectual”, de composição anterior a todos
os já considerados, expõe a descrença de Shelley quanto a comunicar-se com as
almas dos mortos, e manifesta sua confiança na Beleza Intelectual, que é algo
atemorizante. É um dos primeiros poemas de Shelley prenunciadores dos que ostentam
sua plena capacidade de expressão.
“Ozimândias”, além de ser um poema em si mesmo bem realizado,
tem outra característica, que é o arranjo não canônico de rimas. Seu esquema é
ABAB/ACDC/ODE/FEF, o que era aventuroso e novo para o soneto. De sua “Ode ao
Vento Oeste” diz-se também que deveria ser impressa, o que nem sempre acontece,
como uma sequência de cinco sonetos de esquema rimático ABAB/CBCD/CDE/DEE.
Quanto ao coro do v.197 de Hellas, esclarece Shelley, em
nota:
“As noções populares do cristianismo são representadas neste
coro como verdadeiras em sua relação com o culto que substituíram, e aquele que
segundo todas probabilidade elas substituirão, sem considerar seus méritos numa
relação mais universal. A primeira instância contrasta a imortalidade dos seres
viventes e pensantes que habitam os planetas, e para usar uma frase comum e
inadequada “vestem-se com a matéria”, com a transitoriedade das manifestações
mais nobres do mundo externo. Os versos finais indicam um estado progressivo de
existência mais ou menos exaltada, segundo o grau de perfeição que cada
inteligência distinta pode ter atingido.”
Dos versos “A uma cotovia” – um dos mais famosos de Shelley –
afirma-se que poucas vezes na vida do poeta um símbolo de alegria poderia ter
sido mais bem-vindo para ele. “Desde a primeira linha do poema a cotovia é tal
símbolo: ‘Pássaro nunca foste’. Ele é de um poeta, um poeta feliz que o mundo
ouvirá.”
Os outros poemas apresentam cada um seu interesse específico.
Podemos citar o “Hino a Pã” e o “Hino a Apolo”, o primeiro embalador, o segundo
majestoso, o excerto do “Prometeu libertado”, com seu final prenunciador do
simbolismo, poemas de interesse biográfico, como o escrito em depressão, perto
de Nápoles, e outros que aproveitam intensamente as plantas, como “A pergunta”,
ou que falam nas injustiças do mundo.
EPIPSYCHIDION:
O poema abre como uma mensagem: “Emília,/Um navio flutua
agora na enseada,/Um vento paira sobre os montes, na cumeada;/Há um caminho no
pavimento azul do céu,/Quilha nenhuma este caminho antes venceu;” e segue ao
convite: “Velejarás comigo, irmã do coração?/O nosso barco é um albatroz, e o
ninho seu/É um éden do oriente que empurpureceu;/Pousemo-lhe entre as asas,
quando Noite e Dia/Prosseguem voo, e a Tempestade, e a Calmaria,/Nossos
ministros, sobre o mar ilimitado/Pisam o calcanhar um do outro, sem cuidado./Bem
debaixo do céu da Jônia unia ilha vela,/Qual resto de naufrágio do Paraíso
bela;/E porque as enseadas sejam más e não seguras,/Conheceria a solidão e suas
agruras,/Não fosse um povo pastoril dali nativo,/Que do ar elísio e
resplendente e de ouro vivo/Respira o último espírito da áurea idade,/Simples
mas animado; audaz e sem maldade./A azul Egeu circunda esse lar de eleição,”.
Aqui o poeta tem já seu lugar de eleição, na velha Hélade de todos os sonhos,
de todos os poetas e filósofos, lugar natural, de ventos elísios, uma ilha do
paraíso, um idílio, de um povo que respira o último espírito da áurea idade,
oh, a nostalgia da idade de ouro, o mar, em que se conheceria a solidão e suas
agruras, sentimento de solitude, no entanto, que leva Emília em suas quilhas,
ou ainda poderia ser Mary, o poeta dirige-se como carta, e tal roteiro é
náutico, em direção a uma ilha, um paraíso perdido, onde mora o auge da
civilização, e segue o poema: “Todo o lugar povoa-se de doces ares;/O ambiente
leve e claro de que a ilha é mansão” (...) “E uma ilha entre Céu, Mar, Terra,
Ar embalada/E num sossego luminoso projetada;/Luzente como o Éden Lúcifer a
errar,/Lavada pelo Oceano azul do jovem ar./Murcha ou escassez – é uma
favorecida terra –/A Pestilência, o Terremoto, mesmo a Guerra/Não pousam em
seus píncaros, abutres cegos,/Velejam para longe em seus fatais navegos.” É um
lugar de fuga, que é a universal fuga da dor e do sofrimento, em que se
embeleza de mar toda a nostalgia do mundo perfeito.
ADONAIS: ELEGIA PELA
MORTE DE JOHN KEATS:
O poema, uma elegia, abre com versos de dor: “Choro por
Adonais! Choro, que ele morreu!/Chorai por Adonais! O pranto vosso e meu/Em sua
fronte não derreta a geada embora!/E tu – eleita dentre os anos, triste Hora,/Para
prantear tal perda – a tuas irmãs obscuras/Dize, e a melancolia tua lhes
ensina:/“Eu levei Adonais; até as eras futuras/O passado esquecerem, sua fama e
sina/Serão um eco – e luz – que à eternidade se destina!”” (...) “Onde eras,
forte Mãe, quando ele adormeceu/E a seta que nas trevas voa se embebeu/Em teu
filho? A infeliz Urânia onde ia estar/Quando Adonais morreu? Com seu vendado
olhar,/Lá no seu Éden, entre mais um Eco atento/Ela sentava; um destes, com paixão
no alento,/As melodias que se esvaem reanimou,/Com as quais, flores a rir de um
corpo macilento,/O vulto próximo da Morte outrora ele ocultou.” O poeta vê
Adonais em Keats, e na sua fusão de mitologia descobre em Urânia o centro
nervoso da dor pranteada, e na forma do mito, Shelley mais uma vez dá seu grito
lancinante: “Ele morreu, morreu! Chorai por Adonais!/Acorda, triste Mãe, acorda
e esvai-te em ais!” (...) “Oh, não sonhes que o Abismo, sendo-lhe amoroso,/Inda
o restaure para o ar vital, oh não;/De sua mudez nutre-se a Morte, e ri-nos da
aflição.” (...) “Morto o que era o mais jovem e querido teu!” (...) “Chorai por
Adonais! – As Ilusões douradas,/As agentes da ideia, de paixão aladas,/Eram os
seus rebanhos, que ele alimentava/Junto às águas do espírito, e lhes ensinava/O
amor que era sua música;” (...) “Ele não mais acordará, oh nunca mais!/Grita a
Miséria: “Acorda, mãe sem filho! Com ais/E pranto apaga, bem no fundo de teu
peito,/Um ferimento mais feroz que o nele feito.”/E os Sonhos todos que de
Urânia velam o olhar/E os Ecos todos que a irmã deles, a cantar,/Silenciara,
bramiram: “Ergue-te!” Ligeira/Saltou de seu repouso a Luz, Luz passageira,/Qual
Pensamento que a Memória, serpe, foi picar.” Eis a tortura da memória, Musa
Urânia e seus ais, e a morte inexorável, fato consumado, na qual o pranto não
ressuscita o pranteado, mas Shelley, neste poema, logo inverte o jogo, e dá
mais uma vez à existência, a sua fé intelectual, a fé na humanidade de um ateu:
“Calma, ele não morreu, ele não está dormindo,/Ele acordou da vida, simples
sonho findo;” (...) “Ele vive e vigila – a Morte é que morreu;/Não choreis
Adonais.” E professa a sua Beleza Intelectual: “Ele se uniu à Natureza: nesta é
ouvido/O que ele diz com melodia,” (...) “Vida e amor lutam nele, pelo que será/Sua
sina terrena: os mortos vivem lá/E andam no ar bravo e escuro como ventos de
clarão.” (...) “O Um fica, os muitos vão-se; a luz é permanente/No Céu, na
Terra as sombras passam brevemente;/A Vida, como um domo em vidro multicor,/Mancha
da Eternidade o branco resplendor,/Até que a Morte o pise e quebre.” (...) “Varando
o íntimo véu do céu mostra-se ardente/A alma de Adonais, como se fosse estrela,/E
esplende ao alto na morada onde os Eternos são.” A Eternidade aqui não tem
fundo místico ou espiritual, mas sim como imagem poética, como ideal
intelectual perseguido por Shelley e intuído na música natural do mundo.
EPIPSYCHIDION
[Excerto]
Emília,
Um navio flutua agora na enseada,
Um vento paira sobre os montes, na cumeada;
Há um caminho no pavimento azul do céu,
Quilha nenhuma este caminho antes venceu;
Chocam alciões em torno às ilhas sem espuma;
O oceano abjurou os dolos que costuma;
Os marujos são livres, e arrojados são;
Velejarás comigo, irmã do coração?
O nosso barco é um albatroz, e o ninho seu
É um éden do oriente que empurpureceu;
Pousemo-lhe entre as asas, quando Noite e Dia
Prosseguem voo, e a Tempestade, e a Calmaria,
Nossos ministros, sobre o mar ilimitado
Pisam o calcanhar um do outro, sem cuidado.
Bem debaixo do céu da Jônia unia ilha vela,
Qual resto de naufrágio do Paraíso bela;
E porque as enseadas sejam más e não seguras,
Conheceria a solidão e suas agruras,
Não fosse um povo pastoril dali nativo,
Que do ar elísio e resplendente e de ouro vivo
Respira o último espírito da áurea idade,
Simples mas animado; audaz e sem maldade.
A azul Egeu circunda esse lar de eleição,
Com som sempre mudando, espumas e clarão,
Beijando a areia fina e as furnas a alvejar;
E os ventos todos pela praia a vaguear
Ondulam como as vagas que a ondular se agitam:
Faunos silvestres na floresta espessa habitam;
Muita lagoa existe e arroio e manancial
Tão claros como o diamante elemental
Ou o ar sereno da manhã; e muito além
Musgosas trilhas de cabras e gamos vêm
(Uma só vez por ano as seguem os pastores)
Dar em caramanchões, cavernas, corredores
Construídos com hera; os saltos d`água os alumiando
Com um som que nunca falha, vão acompanhando
Os rouxinóis ao meio-dia em seus cantares;
Todo o lugar povoa-se de doces ares;
O ambiente leve e claro de que a ilha é mansão
Pesa com o grave odor das flores de limão
Que paira, névoa cheia de chuva invisível
E cai nas pálpebras, qual sono perceptível;
Violetas e junquilhos dentre o musgo espreitam
E odor qual seta ou dardo em nossa mente deitam
Até quase esmaiardes com essa doce dor.
E cada movimento, e luz, e tom, e odor,
Com aquela grave música está em união
Que é uma alma dentro da alma – aparentando estão
Ecos de um sonho pré-natal, bem anterior. –
E uma ilha entre Céu, Mar, Terra, Ar embalada
E num sossego luminoso projetada;
Luzente como o Éden Lúcifer a errar,
Lavada pelo Oceano azul do jovem ar.
Murcha ou escassez – é uma favorecida terra –
A Pestilência, o Terremoto, mesmo a Guerra
Não pousam em seus píncaros, abutres cegos,
Velejam para longe em seus fatais navegos.
(Obs: o poema continua, e como é bem extenso, aqui está
somente o seu começo como uma introdução)
ADONAIS: ELEGIA PELA
MORTE DE JOHN KEATS
I
Choro por Adonais! Choro, que ele morreu!
Chorai por Adonais! O pranto vosso e meu
Em sua fronte não derreta a geada embora!
E tu – eleita dentre os anos, triste Hora,
Para prantear tal perda – a tuas irmãs obscuras
Dize, e a melancolia tua lhes ensina:
“Eu levei Adonais; até as eras futuras
O passado esquecerem, sua fama e sina
Serão um eco – e luz – que à eternidade se destina!”
II
Onde eras, forte Mãe, quando ele adormeceu
E a seta que nas trevas voa se embebeu
Em teu filho? A infeliz Urânia onde ia estar
Quando Adonais morreu? Com seu vendado olhar,
Lá no seu Éden, entre mais um Eco atento
Ela sentava; um destes, com paixão no alento,
As melodias que se esvaem reanimou,
Com as quais, flores a rir de um corpo macilento,
O vulto próximo da Morte outrora ele ocultou.
III
Ele morreu, morreu! Chorai por Adonais!
Acorda, triste Mãe, acorda e esvai-te em ais!
Mas para quê? Apaga em seu fervente leito
Teu pranto em fogo, e o coração a soar no peito
Um sono guarde igual ao dele, e silencioso;
Que ele se foi aonde vão sábio e formoso;
Oh, não sonhes que o Abismo, sendo-lhe amoroso,
Inda o restaure para o ar vital, oh não;
De sua mudez nutre-se a Morte, e ri-nos da aflição.
IV
Tu, a mais harmoniosa das que choram, chora!
Urânia, ele morreu! Volta a chorar agora,
Ele, o monarca de uma raça imorredoura,
Cego e ancião, quando o brio que sua pátria doura,
O clero, o escravo, o destruidor da liberdade,
Pisaram-na, zombando com ritual odiado
De cio e sangue; o vórtice da morte, ousado,
Buscou; mas seu Espírito de claridade
Reina inda na terra; o terceiro pela luz gerado.
(trechos seguintes, em resumo):
VI
Morto o que era o mais jovem e querido teu!
IX
Chorai por Adonais! – As Ilusões douradas,
As agentes da ideia, de paixão aladas,
Eram os seus rebanhos, que ele alimentava
Junto às águas do espírito, e lhes ensinava
O amor que era sua música;
XV
Entre as montanhas senta-se Eco desnorteada
E nutre a dor com a rima de Adonais,
XVI
Louca de mágoa, a Primavera derrubou
Os seus botões, pensando ser Outono,
(...)
Jacinto a Febo caro assim não veio a ser
Nem Narciso a si próprio, como tu, Adonais,
XXII
Ele não mais acordará, oh nunca mais!
Grita a Miséria: “Acorda, mãe sem filho! Com ais
E pranto apaga, bem no fundo de teu peito,
Um ferimento mais feroz que o nele feito.”
E os Sonhos todos que de Urânia velam o olhar
E os Ecos todos que a irmã deles, a cantar,
Silenciara, bramiram: “Ergue-te!” Ligeira
Saltou de seu repouso a Luz, Luz passageira,
Qual Pensamento que a Memória, serpe, foi picar.
XXXIX
Calma, ele não morreu, ele não está dormindo,
Ele acordou da vida, simples sonho findo;
_ Nós, os perdidos em visão tempestuosa,
Mantemos com fantasmas luta desvaliosa,
E, com a faca do espírito, a louquear golpeamos
Invulneráveis nadas.
XLI
Ele vive e vigila – a Morte é que morreu;
Não choreis Adonais.
XLII
Ele se uniu à Natureza: nesta é ouvido
O que ele diz com melodia,
XLIV
Vida e amor lutam nele, pelo que será
Sua sina terrena: os mortos vivem lá
E andam no ar bravo e escuro como ventos de clarão.
LII
O Um fica, os muitos vão-se; a luz é permanente
No Céu, na Terra as sombras passam brevemente;
A Vida, como um domo em vidro multicor,
Mancha da Eternidade o branco resplendor,
Até que a Morte o pise e quebre.
LIV
Aquela Luz cujo sorriso o Mundo aclara,
A Beleza em que tudo opera e em que não para,
Aquela Bênção que a eclipsante Maldição
De nascer não estingue, aquele Amor-sustentação
Que na trama do ser teceu bem cegamente
Com homem a animal e terra e ar e mar
Arde obscuro ou brilhante: tudo é um espelhar
Do fogo, sede universal; em mim luzente,
As nuvens últimas do que é mortal ei-lo a apagar.
LV
(obs: final do poema)
Varando o íntimo véu do céu mostra-se ardente
A alma de Adonais, como se fosse estrela,
E esplende ao alto na morada onde os Eternos são.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/30515/17/pb-shelley-e-seus-poemas-da-era-do-romantismo-ingles-parte-iv