CASSIANO RICARDO :
BIOGRAFIA E PRIMEIRAS OBRAS
“Martim-Cererê, por sua vez, é o livro mais importante dessa
fase”
Cassiano Ricardo nasceu em 1895, cursou Direito, tendo ainda
aos doze anos fundado uma revista de nome “Íris”, e depois, a “Panóplia”, e
depois lançando a “Novíssima” e se iniciando no jornalismo profissional no
Correio Paulistano, fundando e dirigindo vários jornais durante a sua vida,
incluindo-se aí o Anhanguera e o A Manhã. Cassiano Ricardo, por fim, além de
poeta, foi também grande ensaísta, editor, historiador, estudou também temas
sociológicos, e foi membro da Academia Paulista e Brasileira de Letras.
Na sua estreia, com o livro "Dentro da Noite", em
1915, aos vinte anos, o poeta já nos apresenta uma poesia de versos
heterométricos, com versos sombrios e de clima pesado, que deixam para trás o
parnasianismo vigente. E mesmo que o poeta tenha sido treinado em seu estro
pela herança parnasiana, usando e ficando muito tempo preso nesta forma, ele
logo avançou para a poesia moderna que então surgiria no cenário da poesia
nacional, destacando-se agora seu livro de poesia “Vamos Caçar Papagaios”, que
já apontava para um de seus grandes trabalhos, que será o Martim Cererê, um
clássico do modernismo brasileiro que terá uma visão geral da história
nacional, misturando em seu bojo a mitologia nativa, a cultura cafeeira e a
nascente indústria. A prática poética de Cassiano Ricardo, portanto, passa,
falando do estro já moderno, pela influência que carrega toda a tradição
poética brasileira, que vai do extremo de D . Dinis e chega ao outro extremo
que será a poesia de Fernando Pessoa.
Cassiano Ricardo foi um poeta que, assim como grande parte de
sua geração, a primeira do Modernismo, recebeu influência inicial do simbolismo
e do parnasianismo, com livros como Dentro da noite (1915) e A frauta de Pã
(1917). Mas, mais para a frente, o poeta fez novas experiências que lhe fizeram
alcançar uma dicção das vanguardas poéticas mais recentes, o colocando dentro
da poesia moderna por inteiro, agora com livros de poesia como Vamos caçar
papagaios (1926) e Martim-Cererê (1928), com o poeta já nos dando a face de uma poesia nacionalista, com temas
gerais da brasilidade. Martim-Cererê, por sua vez, sendo o livro mais
importante dessa fase, recriando o périplo da descoberta e da colonização do
Brasil, com temas também da flora e a da fauna brasileira, da vida indígena, do
bandeirante, do imigrante, e o tema urbano da expansão de São Paulo também.
POEMAS :
DO LIVRO “DENTRO DA
NOITE” (1915)
IARA, A MULHER VERDE : O poema ganha esta cor natural do
verde, em canto de Iara, que nos
convida, e o poeta aqui canta o excesso da
terra brasileira, no que vem : “Neste país de coisas em excesso/o sol me
agride, o azul passa da conta./No entanto, os poucos beijos que te peço/o teu
amor futuro me desconta.”. E o país em sua cor extrema, tem a natureza que se
excede, e o assombro de um amor natural se espalha neste poema bem leve e suave
: “No país do excessivo, és muito pouca./Vê a borboleta jovem, como esvoaça./Vê
como nos convida a manhã louca!/Por que seres assim, se tudo é assombro,/se a
própria nuvem branca – e com que graça –/só falta vir pousar em nosso ombro?”.
DO LIVRO “A FRAUTA DE
PÔ (1917)
VIAGEM PERDIDA : O poema tem um tom utópico de uma
terra longínqua, evocando lugares míticos de uma era de ouro ou de uma ilha
qualquer e perfeita, no que segue : “Há um longínquo país que às vezes
visitamos;/extasia-se o olhar que os recantos lhe sonde,/entre o suave frescor
dos seus verdes recamos/e a luxúria pagã que envolve cada fronte .../Essa é a
pátria encantada e longe, que sonhamos/conquistar, algum dia, ao mistério que a
esconde.”. O poema, no entanto, inverte as expectativas, e o lugar utópico
agora é este lume infeliz em que a esperança lutará em vão diante de frutos
verdes, é um fim de mundo da viagem perdida que dá titulo ao poema, no que
segue : “Vós, que andais a sonhar, pela existência em fora,/esquecei, no
passado, as ilusões sepultas,/ide a esse fim de mundo onde a Esperança
mora./Ide, mas não proveis dos frutos que colherdes,/nesse reino infeliz, de
esmeraldas ocultas,/nesse estranho pomar que só dá frutos verdes ...”.
DO LIVRO “VAMOS CAÇAR
PAPAGAIOS” (1926)
MANHÃ DE CAÇA : O caçador aqui aparece como o poeta
que narra seu périplo pela mata, descreve com bastante arte o protesto da
floresta, um cipoal de penas e gritos, um comício, uma assembleia florestal, em
que o caçador se espanta mas atira, no que segue : “Mal entrava eu no mato/era
um delírio. Os papagaios/se reuniam em bando, protestando./Como em verde
comício.” (...) “Araras, canindés, maitacas/mais ensurdecedoras que
matracas,/reunidas em bando,/também gritavam, me acusando./Mas por que tanto
horror? Por que, de súbito,/tanto medo insensato?/Como se eu não soubesse,/com
absoluta certeza, que era o mato/contra a minha maueza.”. Os donos da floresta
continuam esta algazarra, protestam contra o intruso, no que segue : “eram os
donos do país selvagem/e confuso,/lavravam seu protesto contra o
intruso,/gritando, gritando.” (...) “Conferenciavam, graves, os
tucanos./Saltavam rãs e gafanhotos,/junto a meus pés, a meus sapatos rotos./O
caapora acendia o fogo do cachimbo./A mãe-d`água – se é que a mãe-d`água existe
–/saltava como louca, a face oculta/em
seu cabelo verde – se é verdade/que o seu cabelo é verde./Como se eu não
soubesse que no mato/tudo é cabelo verde, é susto, é graça,/é surpresa, é
protesto/(quando não é a solidão selvagem).” : A cor verde predomina e a
floresta com seus bichos e suas lendas aparecem aos borbotões neste poema
ecológico em que o caçador é confrontado e interpelado por uma natureza viva e
atuante, no que segue : “E eu apontava o cano da espingarda/e bumba! um
papagaio verde-gaio/caía ao solo e os outros, com assombro,/se reuniam em bando,
gritando.” (...) “E – último eco – uma voz, enroscada/Num cipoal em flor, numa
barba-de-bode,/ficava protestando:/não pode!/não pode!”. O poema encerra com
esta natureza viva e falante, que protesta contra o caçador, aqui como a voz
presente do poeta que dá estes versos.
A CIDADE DOS SAPOS : O poema aqui funciona como uma
paródia ou um paralelo ao famoso poema de Manuel Bandeira, ou ainda busca
inspiração neste outro poeta modernista, mas aqui tendo a pretensão de
demonstrar um novo grupo de sapos, não mais os parnasianos de Bandeira, mas uma
nova classe de sapos falantes, no que temos : “Os sapos que eu conheço/no
bairro onde resido,/gritam, desde o começo/da noite, ao meu ouvido./Gritam a
noite inteira;/porém, são mais humanos,/sob um certo sentido,/que os de Manuel
Bandeira./Pois não são parnasianos/e nem tomam parte/em discussões sobre
arte./São, todos, operários/e dão-se a ofícios vários.”. Temos os sapos
operários, eis que aparece o sapo que é ferreiro, no que segue : “Um deles é
ferreiro.” (...) “A julgar pelo ruído/que sai dos seus martelos/só o sapo
ferreiro/já construiu no charco/uns duzentos castelos.”. E o poema tem também o
sapo que é carpinteiro, no que segue : “Este outro, carpinteiro,/sapo de alma
canora,/em plena noite escura,/conserta a fechadura/do palácio onde mora.”. E
temos também um sapo que é pedreiro, no que segue : “Aquele outro é
pedreiro./Mais que pedreiro herói./Tudo o que ele constrói/a água da enchente
arrasa ...”. E temos, enfim, os moradores do brejo, intanha viúva, sapo-pipa, e
um sapo que é filósofo, com sua chatice indagadora habitual, que Cassiano
Ricardo retrata com um humor sutil, no que temos : “Mas há outros, que invejo,/moradores do
brejo :/Uma intanha viúva,/os olhos fora da órbita,/pensa que o luar é chuva”
(...) “Um sapo-pipa, bruxo,/que não para em casa,/vive comendo brasa;/pensa que
come estrela/e tem o céu no bucho./Outro sapo é filósofo :/quem será que me
pôs/na lama, tão de rastros/sem ficar com a mão suja?/quem será que criou/o
perfume das rosas?/quem no céu espalhou/o ouro aceso dos astros?/Fulgem rosas
lunares/na água morta dos campos./É a cidade dos sapos/que acende os seus
lampiões/verdes de pirilampos .../Hoje tem espetáculo!/gritam todos os
sapos./Hoje tem coisa boa!”. O retrato geral que o poeta faz neste poema é o de
uma cidade dos sapos, no que segue, agora como película : “Ou então é o
cinema/do brejo que funciona,/exibindo um desenho/animado de Disney:/“Um sapo
se suicida/por causa de uma estrela.”/E, no salão do espaço,/onde a neblina
grossa/se desfaz em farrapos/ouve-se, a todo instante,/a algazarra dos sapos,”.
E o paradoxo que vai e não vai, vem com o sapo-boi do famigerado foi-não foi
herdado do poema de Bandeira, no que segue : “E ronca o sapo-boi/tocando o
“foi-não-foi”./No outro dia, porém,/quando chega a alvorada,/loura, de olhar
cerúleo :/- por que tanto barulho?/que aconteceu? que foi?/Vai-se ver; não foi
nada.” (...) “Ó pobre sapo-boi,/foi Deus que assim te fez?/foi Deus que assim
te quis?/ao menos, uma vez,/responde : foi? não foi?/Pobre mundo infeliz/que
diz e se desdiz/tocando o “foi, não foi”,/ininterruptamente./E a gente pede bis
.../Deus não tem dó da gente.”. E o paradoxo não se interrompe, pois Deus não
tem pena de ninguém, ao que se fecha a coda dura e direta.
DO LIVRO
“MARTIM-CERERÊ” (1928)
O GIGANTE N. 3 : O poema retrata aqui as bandeiras, a
entrada vigorosa de Fernão Dias no mato denso do Brasil profundo, no que temos
: “E aquela serra que resplandecia/Na Noite Verde do Sertão, lá longe,/e ia
mudando, sempre de lugar?/Quem, onde, quando e como a encontraria?/Fernão Dias
Pais Leme, outro Gigante,/- este o número três – a irá buscar./E as léguas
todas vieram recebê-lo,/mal ele entrou no mato, com o seu povo.” (...) “esmagou
a cabeça às léguas todas/que o cercavam, em bárbaro atropelo,/sob as botas de
couro, e lá se foi,/atrás da “serra que resplandecia”/sem saber onde e quando a
encontraria./Mas a distância lhe passou à frente/chamando por mais léguas,”
(...) “Ele, porém, se desenleou das léguas”. O poema segue em léguas e o
desafio da fronteira nova de exploração bandeirante com seus obstáculos, no que
temos : “Mas a distância lhe correu à frente/pedindo novas léguas, outras
léguas,” (...) “mas tudo em vão! que os maiores obstáculos/lhe seriam
graciosos, e mesquinhos./Ele ia governar as esmeraldas,/poeta do mato, abridor
de caminhos,”. O caminho se abre, o bandeirante das esmeraldas, na tempestade
de gente, a febre de um novo mundo, e que Cassiano Ricardo retrata como tropa
de poetas, no que temos : “Que era assim mesmo, cada bandeirante./Uma brutal
tempestade de gente” (...) “Tropa de poetas, entre os quais seguia/algum Orfeu
caboclo, lira em punho.” (...) “Cada légua possuía uma cabeça/de montanha e,
como cauda, um rio./Parecia uma cobra mitológica/fulgindo sob a escama d`água
espessa/e com a cauda enrolada na cabeça.”. Eis que o poema encerra com estro
perfeito a rotina e ação permanente dos bandeirantes e o desafio natural desta
empreitada.
O PAI DO SOL : Borba Gato entra aqui como o que
caça e decepa o Pai do Sol, e eis que tudo vira ouro, o mito aqui é magia, e
Cassiano Ricardo descreve este ato mágico em que tudo vira ouro, no que temos :
“Mas um dia Borba Gato/que possuía vários títulos/já – o de Caçador de Onça,/o
de Vigia da Terra,/mais o de Chefe da tribo/dos bororos, e ainda outros,/dos
quais a tuba da fama/nunca lhe passou recibo,/andando por um caminho/encontrou
o Pai do Sol./Lá estava o tal, olhos de ouro,/sentado em meio ao Sertão.” (...)
“vibra no ar enorme foice,/rápida, em trinta relâmpagos,/e decepa-lhe a
cabeça./E o Pai do Sol, degolado,/ainda escorrendo fogo,/é posto, logo, aos
pedaços,/em longos cargueiros de ouro.” (...) “Faísca do Pai do Sol/é o fogão
onde o quitute/se faz em panelas de ouro./Nos córregos, ou nas catas,/nas
grupiaras, ou nas minas,/os escravos suam ouro .../El-Rey, de novo, lá
longe,/passa óleo pelo corpo,/deita-se ao chão e levanta-se/todo rabiscado de
ouro./E nomeia Borba Gato/para general do Mato./Na igreja do Sabará/Um Cristo
nu chora ouro ...”. Borba Gato fica poderoso, e o milagre do ouro é o poema
inteiro em estro dourado.
MOÇA TOMANDO CAFÉ : O ciclo do café é retratado neste
poema circular em que seu começo é seu fim, começa com a moça bonita e feliz
tomando café, e o poeta Cassiano Ricardo descreve então o caminho de ida e
vinda do café na sua produção e como chega à mesa, no que temos : “Num salão de
Paris/a linda moça, de olhar gris,/toma café./Moça feliz./Mas a moça não sabe,
por quem é,/que há um mar azul, antes da sua xícara de café;/e que há um navio
longo antes do mar azul .../E que antes do navio longo há uma terra do sul;/e
antes da terra um porto, em contínuo vaivém,” (...) “E antes da serra está o
relógio da estação .../Tudo ofegante como um coração/que está sempre chegando,
e palpitando assim./E antes dessa estação se estende o cafezal./E antes do
cafezal está o homem, por fim,/que derrubou sozinho a floresta brutal./O homem
sujo de terra, o lavrador/que dorme rico, a plantação branca de flor,/e acorda
pobre no outro dia ...” (...) “Quedê o sertão daqui?/lavrador derrubou./Quedê o
lavrador?/está plantando café./Quedê o café?/Moça bebeu./Mas a moça, onde
está?/está em Paris./Moça feliz.”. O poema descreve este périplo do café com
perfeição e a última estrofe é como um arremate ou resumo do poema todo, com um
humor leve e regional que o poeta nos dá como coda na imagem suave da moça
feliz.
POEMAS :
DO LIVRO “DENTRO DA
NOITE” (1915)
IARA, A MULHER VERDE
Neste país de coisas em excesso
o sol me agride, o azul passa da conta.
No entanto, os poucos beijos que te peço
o teu amor futuro me desconta.
De tanto céu tenho a cabeça tonta.
O meu jornal é todo em verde impresso.
Só tu, a quem já um pássaro amedronta,
te fechas no mais íntimo recesso ...
No país do excessivo, és muito pouca.
Vê a borboleta jovem, como esvoaça.
Vê como nos convida a manhã louca!
Por que seres assim, se tudo é assombro,
se a própria nuvem branca – e com que graça –
só falta vir pousar em nosso ombro?
DO LIVRO “A FRAUTA DE
PÔ (1917)
VIAGEM PERDIDA
Há um longínquo país que às vezes visitamos;
extasia-se o olhar que os recantos lhe sonde,
entre o suave frescor dos seus verdes recamos
e a luxúria pagã que envolve cada fronte ...
Essa é a pátria encantada e longe, que sonhamos
conquistar, algum dia, ao mistério que a esconde.
Oásis que nos estende a sombra dos seus ramos
e ao grito do viandante estremece e responde ...
Vós, que andais a sonhar, pela existência em fora,
esquecei, no passado, as ilusões sepultas,
ide a esse fim de mundo onde a Esperança mora.
Ide, mas não proveis dos frutos que colherdes,
nesse reino infeliz, de esmeraldas ocultas,
nesse estranho pomar que só dá frutos verdes ...
DO LIVRO “VAMOS CAÇAR
PAPAGAIOS” (1926)
MANHÃ DE CAÇA
Mal entrava eu no mato
era um delírio. Os papagaios
se reuniam em bando, protestando.
Como em verde comício.
Por que tanto barulho? eu indagava
de mim mesmo, da minha malvadez.
Como se não soubesse
que era justo o protesto
dos papagaios ásperos, verde-gaios.
Araras, canindés, maitacas
mais ensurdecedoras que matracas,
reunidas em bando,
também gritavam, me acusando.
Mas por que tanto horror? Por que, de súbito,
tanto medo insensato?
Como se eu não soubesse,
com absoluta certeza, que era o mato
contra a minha maueza.
Maracanãs, tiribas, periquitos,
que eram asas aos gritos,
papagaios, enfim, de vários nomes
e de vária plumagem,
que eram os donos do país selvagem
e confuso,
lavravam seu protesto contra o intruso,
gritando, gritando.
Um morro de cabelo verde pixaim
começava a pensar.
Se encolhia a pensar numa coisa sem fim.
Por que pensar assim?
Como se eu não soubesse dos motivos
de tanta garra, de tanta algazarra.
Conferenciavam, graves, os tucanos.
Saltavam rãs e gafanhotos,
junto a meus pés, a meus sapatos rotos.
O caapora acendia o fogo do cachimbo.
A mãe-d`água – se é que a mãe-d`água existe –
saltava como louca, a
face oculta
em seu cabelo verde – se é verdade
que o seu cabelo é verde.
Como se eu não soubesse que no mato
tudo é cabelo verde, é susto, é graça,
é surpresa, é protesto
(quando não é a solidão selvagem).
Mas por que tanta atoarda?
E eu apontava o cano da espingarda
e bumba! um papagaio verde-gaio
caía ao solo e os outros, com assombro,
se reuniam em bando, gritando.
Uma chuva de garras e de bicos
despencava do céu sobre o meu ombro.
Os ecos proferiam, pelas grotas,
outros protestos, como se a distância
também caísse ao chão, de bruços,
com a boca cheia de soluços!
Mas pra quê tanto medo?
E – último eco – uma voz, enroscada
Num cipoal em flor, numa barba-de-bode,
ficava protestando:
não pode!
não pode!
A CIDADE DOS SAPOS
Os sapos que eu conheço
no bairro onde resido,
gritam, desde o começo
da noite, ao meu ouvido.
Gritam a noite inteira;
porém, são mais humanos,
sob um certo sentido,
que os de Manuel Bandeira.
Pois não são parnasianos
e nem tomam parte
em discussões sobre arte.
São, todos, operários
e dão-se a ofícios vários.
Neste ponto, os meus sapos
que também batem papos,
já diferem dos seus ...
pois são filhos de Deus.
Um deles é ferreiro.
E faz tanto barulho
com os demais, da sua
corporação, que chego,
em meu desassossego
e já por minha conta,
a crer que estará pronta
até ao clarear do dia
alguma Nova Iorque
mais aérea e maior
que a da fotografia.
A julgar pelo ruído
que sai dos seus martelos
só o sapo ferreiro
já construiu no charco
uns duzentos castelos.
Estrondeja a bigorna
e, então, sobe e flutua,
na noite grande a morna,
o alvo disco da lua.
Este outro, carpinteiro,
sapo de alma canora,
em plena noite escura,
conserta a fechadura
do palácio onde mora.
Vive serrando tábuas ...
Ó sapo carpinteiro,
serra as minhas mágoas?
Aquele outro é pedreiro.
Mais que pedreiro herói.
Tudo o que ele constrói
a água da enchente arrasa ...
Vai fazer minha casa,
Lá longe, um bate-sola
fabrica o azul sapato
com que Nossa Senhora
virá do céu, num barco
de lua, só pra vê-lo,
sem se sujar no charco.
Mas há outros, que invejo,
moradores do brejo :
Uma intanha viúva,
os olhos fora da órbita,
pensa que o luar é chuva
e sem compreendê-lo
no espetáculo cósmico,
abre o seu guarda-chuva
branco de cogumelo.
Um sapo-pipa, bruxo,
que não para em casa,
vive comendo brasa ;
pensa que come estrela
e tem o céu no bucho.
Outro sapo é filósofo :
quem será que me pôs
na lama, tão de rastros
sem ficar com a mão suja?
quem será que criou
o perfume das rosas?
quem no céu espalhou
o ouro aceso dos astros?
Fulgem rosas lunares
na água morta dos campos.
É a cidade dos sapos
que acende os seus lampiões
verdes de pirilampos ...
Hoje tem espetáculo!
gritam todos os sapos.
Hoje tem coisa boa!
clamam os bate- papos
em ruidosa assembleia :
e a algazarra plebeia
por todo o brejo ecoa.
Quando dissermos três,
jacaré, você pule.
E dizem um ... dizem dois ...
é desta vez! dizem três,
tchecumbum na lagoa.
Ou então é o cinema
do brejo que funciona,
exibindo um desenho
animado de Disney:
“Um sapo se suicida
por causa de uma estrela.”
E, no salão do espaço,
onde a neblina grossa
se desfaz em farrapos
ouve-se, a todo instante,
a algazarra dos sapos,
o tremendo barulho
da infernal assistência;
as rãs batendo palmas,
quá-quá-quá de marrecos,
muito bem, bis-bis-bis,
ecos aos petelecos,
um diz, outro desdiz.
E ronca o sapo-boi
tocando o “foi-não-foi”.
No outro dia, porém,
quando chega a alvorada,
loura, de olhar cerúleo :
- por que tanto barulho?
que aconteceu? que foi?
Vai-se ver; não foi nada.
E tudo continua
no mesmo pé, na mesma
luta desesperada.
Eu suo : você sua ...
tudo por quê? por nada.
Ó pobre sapo-boi,
foi Deus que assim te fez?
foi Deus que assim te quis?
ao menos, uma vez,
responde : foi? não foi?
Pobre mundo infeliz
que diz e se desdiz
tocando o “foi, não foi”,
ininterruptamente.
E a gente pede bis ...
Deus não tem dó da gente.
DO LIVRO
“MARTIM-CERERÊ” (1928)
O GIGANTE N. 3
E aquela serra que resplandecia
Na Noite Verde do Sertão, lá longe,
e ia mudando, sempre de lugar?
Quem, onde, quando e como a encontraria?
Fernão Dias Pais Leme, outro Gigante,
- este o número três – a irá buscar.
E as léguas todas vieram recebê-lo,
mal ele entrou no mato, com o seu povo.
E enrolaram-se, todas, em novelo
ferocíssimo em redor de suas botas.
Mas ele, achando graça na distância,
esmagou a cabeça às léguas todas
que o cercavam, em bárbaro atropelo,
sob as botas de couro, e lá se foi,
atrás da “serra que resplandecia”
sem saber onde e quando a encontraria.
Mas a distância lhe passou à frente
chamando por mais léguas, que outras léguas
lhe viessem! e outras mais, e ainda outras,
pra se enrolar nas botas do Gigante
e acorrentá-lo ao chão, e enrodilhá-lo
na cauda louca de algum redemoinho
e afundá-lo no lodo dos pauis.
Ele, porém, se desenleou das léguas
como um deus mágico que se desenleasse
de um polvo azul, de cem braços azuis!
Mas a distância lhe correu à frente
pedindo novas léguas, outras léguas,
ainda em maior número, e mais rápidas,
pra se enrolar nos pés do bandeirante
e assim detê-lo através do sertão
mas tudo em vão! que os maiores obstáculos
lhe seriam graciosos, e mesquinhos.
Ele ia governar as esmeraldas,
poeta do mato, abridor de caminhos,
e amarraria os braços ao sertão
com o amarilho vermelho das estradas.
Que era assim mesmo, cada bandeirante.
Uma brutal tempestade de gente
que, por onde passava, ia deixando
seu longo rastro de cidades brancas,
azuis ou tristes, pretas ou douradas.
Tropa de poetas, entre os quais seguia
algum Orfeu caboclo, lira em punho.
Com os seus trabucos, que iam carregados
muito mais de poesia que de chumbo;
e seus baús de boi, abarrotados
mais de esperanças que de mantimentos.
E quanta vez, já em pleno labirinto
do sertão bruto, em ásperas refregas,
não lhe querem furtar as esmeraldas
que ele nem sabe se achará ou não
por um sertão de quatrocentas léguas!
Cada légua possuía uma cabeça
de montanha e, como cauda, um rio.
Parecia uma cobra mitológica
fulgindo sob a escama d`água espessa
e com a cauda enrolada na cabeça.
O PAI DO SOL
Mas um dia Borba Gato
que possuía vários títulos
já – o de Caçador de Onça,
o de Vigia da Terra,
mais o de Chefe da tribo
dos bororos, e ainda outros,
dos quais a tuba da fama
nunca lhe passou recibo,
andando por um caminho
encontrou o Pai do Sol.
Lá estava o tal, olhos de ouro,
sentado em meio ao Sertão.
Tendo cinco labaredas
de alegria em cada mão.
“Você está aqui, seu malandro ...”
E como um novo Jasão
na conquista ao Tosão de Ouro,
já perto, chega não chega,
pá ante pá, devagarzinho,
por um vão da árvore espessa,
vibra no ar enorme foice,
rápida, em trinta relâmpagos,
e decepa-lhe a cabeça.
E o Pai do Sol, degolado,
ainda escorrendo fogo,
é posto, logo, aos pedaços,
em longos cargueiros de ouro.
No rio da Noite Verde
levando-lhe pés e braços,
deslizam canoas de ouro.
Um caçador, mais a oeste,
caçou veado a chumbo de ouro.
O vestido azul da santa
amanheceu, por milagre,
já bordados a fios de ouro ...
A Rita da nação benguela
tem agora um colar de ouro.
Faísca do Pai do Sol
é o fogão onde o quitute
se faz em panelas de ouro.
Nos córregos, ou nas catas,
nas grupiaras, ou nas minas,
os escravos suam ouro ...
El-Rey, de novo, lá longe,
passa óleo pelo corpo,
deita-se ao chão e levanta-se
todo rabiscado de ouro.
E nomeia Borba Gato
para general do Mato.
Na igreja do Sabará
Um Cristo nu chora ouro ...
MOÇA TOMANDO CAFÉ
Num salão de Paris
a linda moça, de olhar gris,
toma café.
Moça feliz.
Mas a moça não sabe, por quem é,
que há um mar azul, antes da sua xícara de café;
e que há um navio longo antes do mar azul ...
E que antes do navio longo há uma terra do sul;
e antes da terra um porto, em contínuo vaivém,
com guindastes roncando na boca do trem
e botando letreiros nas costas do mar ...
E antes do porto um trem madrugador
sobe-desce da serra a gritar, sem parar,
nas carretilhas que zunem de dor ...
E antes da serra está o relógio da estação ...
Tudo ofegante como um coração
que está sempre chegando, e palpitando assim.
E antes dessa estação se estende o cafezal.
E antes do cafezal está o homem, por fim,
que derrubou sozinho a floresta brutal.
O homem sujo de terra, a lavrador
que dorme rico, a plantação branca de flor,
e acorda pobre no outro dia ... (não faz mal)
com a geada negra que queimou o cafezal.
A riqueza é uma noiva, que fazer?
que promete e que falta sem querer ...
Chega a vestir-se assim, enfeitada de flor,
na noite branca que é o seu véu nupcial,
e a conduz loucamente para o céu
arrancando-a das mãos do lavrador.
Quedê o sertão daqui?
lavrador derrubou.
Quedê o lavrador?
está plantando café.
Quedê o café?
Moça bebeu.
Mas a moça, onde está?
está em Paris.
Moça feliz.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36844/17/cassiano-ricardo-biografia-e-primeiras-obras