PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

DEVIR DO CORAÇÃO DESPERTO

Eu ouvi a matéria em sonho, com o espírito roxo de ar desesperado, eu vi a morte alucinada como decapitação de sondas em meu estômago. Na era de tudo já era, eu esqueci o lago, eu fui néscio na hora do amor, um corrente acorrentado, vi a pirâmide do holocausto em Cuzco, dos astecas vi o sacrifício, Tenochtitlán rimava com Vietnã em meu delírio. Na capa de morte nua eu sentia um arroto na nuvem e o cerne das especulações com a filosofia dando frêmitos em avessos de poesia, nada veria mais que ritmo intempéries a nota fria do karma condor na nódoa do deva que subia, o demônio azul era Totem, uma fúria e um avatar na senda soada ao término da sessão, Freud indagava o tema inóspito do quadro, ele não entendia a maçã, ele me propôs um jogo de xadrez, eu falava de celibato e de fumar maconha em Katmandu, amarrar os bagos, deixar a barba e os cabelos crescerem, Freud não entendia, nunca entenderia. Eu olhei outra vez a fórmula, nela botava elencos infinitos de comédia, Moliére com tonalidade de Artaud, Chaplin numa luta de antevisões, na noite via Hitchcock, a flor do abismo, Grace Kelly, a faca do suspense, o homem ERA  a sua própria mãe, um festim diabólico em vertigem, não cantaria na chuva com Gene Kelly por muito tempo, Pavlov veio com a sua máquina de fazer zumbis, não era a estrada que importava, mas o homem em seu motor previsível, tudo que estava fora da fórmula (deles) era anomalia, e não havia soluções ad hoc, só um prato de acordes dissonantes, a dissonância era térmica, a febre de convulsão, eu via o amor e fogo, fogo do Gólgota, via Jonas, via Elias sabendo do céu, eu entendia de cretinos amando suas sombras, eu via as sombras encantadas da dor de eternidade convalescente, donde se tem verso de Keats, verso de Byron, afogamento de Percy Shelley, o barco embriagado, passei impassível por rios risíveis, entornei a cerveja no túmulo de um alcoólatra, eu perdi o rumo, não perdi, perdi, não perdi, descobri, chorei, lamentei, não lamentei, lamentei, não lamentei, eu gritei, eu fui sedado, fui atenazado, um bom arrazoado, um doesto, uma compaixão, uma brutalidade, um doberman, não, dois rotveillers, não, dois dobermans, não, a placa de contramão, não, a flor mística, isso não é amor, é um dinossauro, que século de mãos! Nunca terei a minha mão, a domesticidade, um pão com café, você é linda, eu era tu és meu, eu sou tua és minha, não, eu quero quero pássaro, terror, comédia, eu som e fúria, aloprados, leão-marinho, tubarões, baleias, eu quase fui atropelado por uma moto depois de ser quase assassinado, depois nada, eu tinha dores, ninguém se importava, eu tinha dores, eu era o nada, não era nada, toma uma injeção de adrenalina que passa, passa nada, eles passarão, eu passeata. Nota de novo, não há nada no horizonte, veja só, um poeta e sua consorte, que sorte, olha a paisagem, não é nada, nada há nesta terra de ninguém, não somos a grande inteligência, não somos inteligentes, não temos o controle do universo, um asteroide e tudo acaba, um asterisco e tudo é risco, eu morro, você também, eu corro, você não, você dorme, a vigília é para poucos, não há soco na noite dos ratos, há vinho e porrada, a paixão revoltada, não sou eu! A paixão jovem muda surda cega. Lota o show, eu chuto o ar, eu grito pelo ar, um velhinho me recolhe, eu estava indigente, diga agora qual é o teu sonho amor meu que és tua minha eu tu teu sou, não tem paisagem, tem estrada, vamos à estrada, não leva a nada, só diversão, só happinessssss ..... quantas lágrimas? quantas loucuras no caderno? Ore por Deus, ele não sabe o que faz. Não chore por mim nesta noite, eu sou alegre, ser alegre é melhor do que ser triste, veja o horizonte, não leva a nada, não tem nada, só diversão, happiness? Só doce, a vida é doce, vamos tomar heroína, vamos dançar hero, look! A moda da caverna, eu citava Platão numa rave, eu catapultava os sonhos de ecstasy, eu entendia todos, era a fuga, era centauro, era o dia amanhecendo, as gostosas não me davam mole, um cara caía de tanto esteroide e lança-perfume, hoje tenho o olho de shiva, charada, orbital, tudo na minha mente louca, eu tenho um chevrolet velho que já saiu pela noite linda, você é linda, no meu chevrolet pra ver de qual é, pra noite de sumo sacerdote do rock and roll, para ouvir Hendrix no volume máximo e totalmente caretas! Vamos por aí, não leva a nada, só diversão, happi ............. nesssssss ...... é verão, relaxa que tem tempo, somos ilusão, não leva a nada, vou ao Cairo cair em Goa, vou ver-ouvir trance a noite toda, a vida é doce, tem tempo que não nos falamos, a vida é doce, você é linda, não leva a nada, tudo eu gosto, notas musicais, livros de filosofia, Neruda e Lorca de um lado, João Cabral e Ferreira Gullar de outro. Ainda não tenho aquele disco do The Doors, Waiting for the sun? Strange Days? Eu gosto muito de Axis Bold as Love, Band of Gypsys é totalidade, Janis é soluço, Cream é LSD, eu espero o sol, vou pintar a lua de sol, o sol nascerá na lua e a terra é azul, não importa, não pega nada, não leva a nada, a vida é assim, caos, anarquia, poluída, eu quero o instante, tenho que estudar Budismo, passo por Thimpu, por Lhasa, desço ao Ganges, vou me banhar com Krishna, sabe-se lá o samadi, Bhagavad-Gita Mahabarata, avatares, tudo pelos ares. Quando o sol vier, diga amém, tudo passa passa vem volta corre desmaia morre vive grita silencia tudo é mais tudo é menos quanto mais menos assim passado presente e futuro se juntam no caleidoscópio, a luz entra no prisma, é o fim, é o começo, eterno retorno, devir, vejo Tantra, danço samba, dou cem mil voltas e venho de guerra longa, assim é a vida, poesia flui porque quer, Heráclito sabe de tudo, sou um rio dentro de uma bacia chamada universo.

10/12/2012 Libertação
(Gustavo Bastos)

domingo, 9 de dezembro de 2012

O CHEIRO DO RALO DE MUTARELLI

   Lourenço Mutarelli, escritor brasileiro contemporâneo, não começou sua carreira no ramo da literatura, mas sim como quadrinista, chegando a trabalhar com Maurício de Souza. Depois, já na década de 80, tentou publicar suas estórias em quadrinhos sem muito sucesso, pois a estranheza do que ele fazia não foi muito compreendida no início, mas Mutarelli se tornou, com o tempo, reconhecido, mesmo que num nível "underground", o que também caracterizaria seus romances, e é disso que vou falar aqui, mais especificamente de O Cheiro do Ralo, que foi uma obra muito bem sucedida e que ganhou até uma versão no cinema com a direção de Heitor Dhalia e tendo o consagrado ator Selton Mello como protagonista, o qual encarnou o narrador e personagem principal do livro de Mutarelli, e que no filme recebe o nome de Lourenço em homenagem ao escritor de O Cheiro do Ralo, personagem e narrador  que, no livro, na verdade não tem nome.
   O tom urbanoide em um misto de escrita descompromissada e niilista, numa forma que parece tosca, mas que cria o efeito desejado de um mundo niilista, niilismo que vem junto com o narrador e personagem principal, sobretudo no amor e na sua ideia de que "não gostava de ninguém", reflete na frieza de seu trabalho, onde a especulação de valores de quinquilharias vira um jogo que vai permear todo o romance, numa narração reta, limpa e sem preciosismos, ou seja, numa narração simples e nenhum pouco afetada.
   Mutarelli mostra um mundo da cidade, um mundo de solidão e de pessoas desesperadas, desespero que acaba por bater à porta do narrador no seu trabalho de compras e vendas de objetos usados na sua loja, o niilismo percorre todo este clima urbano que culmina na total falta de vínculos do personagem e narrador, ausência de sentimentos que vai nortear a sua relação com as pessoas no romance, principalmente com aquelas que vão à sua loja tentar vender alguma coisa, o que vai da manipulação ao senso de objetividade fria entre os valores dos produtos, tudo se torna um jogo frio em que a vantagem está na maioria das vezes com o narrador. E a narrativa de Mutarelli neste romance é fragmentada, orações coordenadas em sua maioria, uma narrativa que lembra uma fala de cortes, sem compromisso com a "garnde literatura", e é o que faz deste romance um livro de fácil leitura e que reflete muito bem todo o vazio contemporâneo, como se vê nas noites em que o narrador liga a sua TV e zapeia os canais em busca do nada, em busca de satisfação para o tédio urbano e para a sua solidão em uma cidade de fantasmas.
   E os fantasmas vão povoar a loja, uma sucessão de pessoas que vão à loja do narrador, e a justificativa do título O Cheiro do Ralo, que é o cheiro de merda que sai do ralo do banheiro da loja do narrador, cheiro que será uma espécie de enigma que vai levar o narrador a uma especulação de sua condição, cheiro do ralo que é o cheiro dele, como dirá um homem que lhe tenta vender um violino. Ou a sua obsessão com a bunda de uma garçonete numa lanchonete, que ele só frequenta para ver esta bunda, e ele reflete profundamente sobre esta bunda, come seu hamburger e traz um livro, a garçonete pergunta qual é o livro, isso se repete algumas vezes em alguns dias, a garçonete diz que lê a revista dos Astros, o narrador começa a fazer livres associações, numa trama que começa a se tornar psicológica, mas sem psicologismos, apenas em termo especulativo, o narrador associa a bunda com o ralo, o narrador liga a sua obsessão pela bunda da garçonete com a sua obrigação de comer hamburgeres só para ver esta bunda. Ele então tem que ir ao banheiro fazer suas necessidades, o cheiro do ralo está lá, cheiro de merda, cheiro da sua merda, o narrador diz ao encanador que vai lá ver o ralo que este é o portal do inferno, não há saída, o destino do narrador está entre a bunda da garçonete e o cheiro do ralo.
   Mutarelli propõe o enigma do cheiro do ralo, o narrador está vinculado ao cheiro do ralo, o narrador está obcecado pela bunda da garçonete, então é o que se entende do narrador, seus vínculos são estes, não há sentimento, a garçonete quer sair com ele, ela o faria ver a bunda sem pedir nada em troca, o narrador oferece dinheiro para ver a bunda, a garçonete se irrita, depois tudo se resolve, ele vê a bunda. A alegoria da visão no livro está muito bem retratada, o narrador carrega um olho, ele leva este olho para ver várias coisas, ele mente que é o olho de seu pai que morreu na Segunda Guerra. Agora o clímax está em jogo, e o jogo fica perigoso, o narrador terá um fim trágico. Uma mulher feia que tinha sido despida por consequência do narrador em sua loja, volta e lhe dá tiros. Ele termina a sua narrativa. Rosebud, a bunda. "Beijaria a bunda, como se fosse a única" ele diz. A tragédia, talvez seja este o sentido do niilismo, o cheiro de merda, o ralo é só o portal do inferno, o narrador morre, está tudo acabado. "A vida é dura" (Frase repetida no livro).
   "A bunda era o contraponto do ralo. Esse ralo eu mesmo dei vida. Esse ralo é para onde projetei o escuro que sou. Esse ralo é o que lhe emprestei. O ralo e a bunda, dois extremos. Dois buracos extremos. Um leva ao interno do ser, outro ao interno do mundo." (O Cheiro do Ralo, página 170, Editora Companhia das Letras, Lourenço Mutarelli)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

   
  
   Link da Século Diário: http://www.seculodiario.com.br/exibir.php?id=3909&secao=14

HINO DA SALVAÇÃO

O banquete sobrou de uma via esquecida,
era tempo em discórdia com flor azulada,
febre manchada pelo tempo malquisto,
pelo tempo manchado o poema escrito.

Os dias passaram na pena armada,
na flauta do drama dos comediógrafos,
na conquista do nada em fundo celeste,
com ardis de comarca pela lei furtada,
e os sinos vingaram o leme
com sal de sol em minha arfada,
lua negra de dor desalmada,
plêiade ofuscada em mar de esmeralda.

O mar estava alto,
como um contralto,
como um lago,
como um rio amargo.

O mar revirou suas ondas
em meu corpo dócil,
a sutileza da noite abriu
os sete livros que diriam
estupefatos o segredo da alma,
uma alma de topázio
com frio e gotas de álcool,
uma embriaguez sonâmbula
com poeta e sangue
em flor de berilo
com finos toques
da turquesa azul,
com labor detalhista
de uma ode poeirenta.

Os sinais eram evidentes:
Morte. Loucura. Salvação.

Os sinais eram evidentes:
poema escrito, nascido,
suicidado vivo,
vivo como o sol depois do inferno,
vivo com luz de brio
nas ancas ondulantes
de outro corpo fêmea
que vingou o verso
no hino renascido.

03/12/2012 Libertação
(Gustavo Bastos)

VÉU NOTURNO

A carne misteriosa olhou a chama,
levou eras de dor e anarquia,
como miasma na flor romantizada.

Eu lembrei o sino vertical
das hostes enevoadas,
com mel de vinho em frio rúbido,
com fel liberto de corpo fustigado.

O anel balançava com flor de bruma,
um rimou com outro em veste muda,
um dançou com o outro em vinho de surra.

O céu alimentou o sonho redivivo
com harmonias celestiais como
anjos empenhando suas espadas,
com livros caindo das estantes
de uma dor eterna e fria,
com longitudes sem fim
do vestíbulo de uma caça matada.

A flor extraordinária dos campos hostis
nasceu como refugo de fome atormentada,
eu lia em seu crepúsculo um temor
de vigor emanado,
qual cão que ladrava
na noite que gritava
com o sal tonitruoso
dos corpos em risos
de canção embriagada.

O leme de tal nau despirocada
era terror se avizinhando
dos poetas de acinte ao sistema bruto,
com voz brutalizada e corpo seviciado
se conformava a força de um cometa,
de suas dores avultadas
saíam gramaturas e máquina azeitada,
de seus torpedos de alegria
uma ode espantada
com o sol rúbido
qual sangue de proscênio,
um sangue inoculado
nas trevas de comédia
com sorrisos e choros
deglutidos como um som único
de corpo luxurioso,
de fragor lúbrico
com estalos e gemidos
na ideia precípua
dos castelos em versos
que a alma ditou
no esmero da pena
qual luta já vencida.

Eu olhei a estrela de véu e grinalda,
e não era febre de poeta,
era a cor do poema
como luzidia poesia.

03/12/2012 Libertação
(Gustavo Bastos)