Lourenço Mutarelli, escritor brasileiro contemporâneo, não começou sua carreira no ramo da literatura, mas sim como quadrinista, chegando a trabalhar com Maurício de Souza. Depois, já na década de 80, tentou publicar suas estórias em quadrinhos sem muito sucesso, pois a estranheza do que ele fazia não foi muito compreendida no início, mas Mutarelli se tornou, com o tempo, reconhecido, mesmo que num nível "underground", o que também caracterizaria seus romances, e é disso que vou falar aqui, mais especificamente de O Cheiro do Ralo, que foi uma obra muito bem sucedida e que ganhou até uma versão no cinema com a direção de Heitor Dhalia e tendo o consagrado ator Selton Mello como protagonista, o qual encarnou o narrador e personagem principal do livro de Mutarelli, e que no filme recebe o nome de Lourenço em homenagem ao escritor de O Cheiro do Ralo, personagem e narrador que, no livro, na verdade não tem nome.
O tom urbanoide em um misto de escrita descompromissada e niilista, numa forma que parece tosca, mas que cria o efeito desejado de um mundo niilista, niilismo que vem junto com o narrador e personagem principal, sobretudo no amor e na sua ideia de que "não gostava de ninguém", reflete na frieza de seu trabalho, onde a especulação de valores de quinquilharias vira um jogo que vai permear todo o romance, numa narração reta, limpa e sem preciosismos, ou seja, numa narração simples e nenhum pouco afetada.
Mutarelli mostra um mundo da cidade, um mundo de solidão e de pessoas desesperadas, desespero que acaba por bater à porta do narrador no seu trabalho de compras e vendas de objetos usados na sua loja, o niilismo percorre todo este clima urbano que culmina na total falta de vínculos do personagem e narrador, ausência de sentimentos que vai nortear a sua relação com as pessoas no romance, principalmente com aquelas que vão à sua loja tentar vender alguma coisa, o que vai da manipulação ao senso de objetividade fria entre os valores dos produtos, tudo se torna um jogo frio em que a vantagem está na maioria das vezes com o narrador. E a narrativa de Mutarelli neste romance é fragmentada, orações coordenadas em sua maioria, uma narrativa que lembra uma fala de cortes, sem compromisso com a "garnde literatura", e é o que faz deste romance um livro de fácil leitura e que reflete muito bem todo o vazio contemporâneo, como se vê nas noites em que o narrador liga a sua TV e zapeia os canais em busca do nada, em busca de satisfação para o tédio urbano e para a sua solidão em uma cidade de fantasmas.
E os fantasmas vão povoar a loja, uma sucessão de pessoas que vão à loja do narrador, e a justificativa do título O Cheiro do Ralo, que é o cheiro de merda que sai do ralo do banheiro da loja do narrador, cheiro que será uma espécie de enigma que vai levar o narrador a uma especulação de sua condição, cheiro do ralo que é o cheiro dele, como dirá um homem que lhe tenta vender um violino. Ou a sua obsessão com a bunda de uma garçonete numa lanchonete, que ele só frequenta para ver esta bunda, e ele reflete profundamente sobre esta bunda, come seu hamburger e traz um livro, a garçonete pergunta qual é o livro, isso se repete algumas vezes em alguns dias, a garçonete diz que lê a revista dos Astros, o narrador começa a fazer livres associações, numa trama que começa a se tornar psicológica, mas sem psicologismos, apenas em termo especulativo, o narrador associa a bunda com o ralo, o narrador liga a sua obsessão pela bunda da garçonete com a sua obrigação de comer hamburgeres só para ver esta bunda. Ele então tem que ir ao banheiro fazer suas necessidades, o cheiro do ralo está lá, cheiro de merda, cheiro da sua merda, o narrador diz ao encanador que vai lá ver o ralo que este é o portal do inferno, não há saída, o destino do narrador está entre a bunda da garçonete e o cheiro do ralo.
Mutarelli propõe o enigma do cheiro do ralo, o narrador está vinculado ao cheiro do ralo, o narrador está obcecado pela bunda da garçonete, então é o que se entende do narrador, seus vínculos são estes, não há sentimento, a garçonete quer sair com ele, ela o faria ver a bunda sem pedir nada em troca, o narrador oferece dinheiro para ver a bunda, a garçonete se irrita, depois tudo se resolve, ele vê a bunda. A alegoria da visão no livro está muito bem retratada, o narrador carrega um olho, ele leva este olho para ver várias coisas, ele mente que é o olho de seu pai que morreu na Segunda Guerra. Agora o clímax está em jogo, e o jogo fica perigoso, o narrador terá um fim trágico. Uma mulher feia que tinha sido despida por consequência do narrador em sua loja, volta e lhe dá tiros. Ele termina a sua narrativa. Rosebud, a bunda. "Beijaria a bunda, como se fosse a única" ele diz. A tragédia, talvez seja este o sentido do niilismo, o cheiro de merda, o ralo é só o portal do inferno, o narrador morre, está tudo acabado. "A vida é dura" (Frase repetida no livro).
"A bunda era o contraponto do ralo. Esse ralo eu mesmo dei vida. Esse ralo é para onde projetei o escuro que sou. Esse ralo é o que lhe emprestei. O ralo e a bunda, dois extremos. Dois buracos extremos. Um leva ao interno do ser, outro ao interno do mundo." (O Cheiro do Ralo, página 170, Editora Companhia das Letras, Lourenço Mutarelli)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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