PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 26 de julho de 2018

ESPERANDO GODOT


“Temos o nosso salvador da pátria nos extremos da política”

Aqui vai o clown, emoções do palco, com uma flor na lapela, à espera do inominável, do inaudito, vai ao encontro que resiste no nunca ser. Clownesco, segue seu rumo, com uma gag engasgada em seu chapéu coco, espera o dia propício, a viagem ideal, o mundo benquisto dos dramas felizes de uma peça de paraíso e dança, a ópera canta e faz recital, os poetas cantam e fazem seu périplo pela cidade que está insone.
Eu retenho minhas palavras mais pronunciadas, ataco e defendo feito um sísifo que escorrega em seus planos, qual este clown que por Godot clama, e novamente perde seu tempo numa gag infinita, pois seu relógio parou no tempo infenso ao progresso, de um tempo monocórdio, leitmotiv, fixação, monomania, obsessão, ele, o clown, que de suas graças inumeráveis dá uma sapatada em seu escada no segundo ato, o circo se fecha, Godot não vem, no entanto.
Sobe novamente a cortina, o clown se faz em meneios afetados para seu novo número, seus sapatos sem cadarços, e seu escada perdido como uma folha ao vento, Godot vira uma ideia, seu reinado não é deste mundo, o clown com todo riso se dá também ao choro, como o palhaço triste do circo tradicional, aqui, contudo, não tem a trapezista que ele sonhou, só um grande deserto com folhas secas, com cactos e galhos de amendoeiras ressequidos, só um mártir resistiria ao pão ázimo e endurecido servido por um serviçal tão desamparado quanto este clown e seu patético escada.
O progresso, como dito, por aqui nunca deu as caras, o clown é um ser antigo, ancestral, analógico, que tem em Godot um rasgo de luz que tudo pode mudar, como este clown, existem outros, qual um sebastianismo que joga com a ideia escatológica do dia do juízo, ou do retorno do rei etíope, ou das inúmeras canções mitológicas que se fundam por todo este mundo que agoniza lutando contra a finitude, que é como a penúria indesejada do mito grego, a morte, pois aqui Godot é um imortal e uma dádiva desta esperança em meio ao deserto que clama.
O clown se porta novamente agora em sua gag de sísifo com o seu chapéu coco que cai e levanta, qual um moebius que vai e volta com uma percepção anfibológica que furta a razão e nos apresenta a loucura da vida de um palhaço triste, que está diante da misericórdia de um Godot que disse que vinha. Ou o dito clown teria ouvido esta voz ou imaginado talvez este Godot que nunca existiu, mito e não figura histórica, vai saber.
O sebastianismo no teatro se daria mais a autos como o de Gil Vicente, mas aqui com Godot, temos uma gag becketiana como alegoria do tempo perdido, a angústia fundamental do ser desesperado, aqui o clown poderia ser um mártir do semi-árido, ou ainda um devoto de Padre Cícero aos pés do monte, ou o pagador de promessas com sua cruz diante de uma escadaria, ou por fim o retirante ou o refugiado perdido numa balsa pelo infindo mediterrâneo, com Godot morando do outro lado do mar ou do rio.
Temos o nosso salvador da pátria nos extremos da política, Godot é um misto de messias com deus ex machina que tudo pode, Godot é a máquina viva que toma a dianteira quando o bom senso do clown vira delírio e sua gag com o chapéu coco se repete ad infinitum num jogo maníaco e polarizado.
Às favas com os escrúpulos, Godot tem o clown na mão, este clown infortunado que pede água e pão e tem na sua crendice seu Godot, seu Sebastião, como um grande pacto em que o milagre acontece, e todos são salvos pela mão sobrenatural deste que nos foi enviado, sendo o clown seu mais fervoroso fiel.
Godot é um vazio. Não existe. O clown sai do transe, foi um sonho, não tem oásis e nem jardim das delícias, o mundo é uma devastação, o mundo é uma provação, o mundo é um vale de lágrimas, a dor conduz os homens, o mundo feliz foi um rasgo delirante, um sonho numa noite de verão.
O feitiço que dominava o clown não foi um êxtase, foi um surto, o domínio do fato é o mundo em que o pouco que existe já some na poeira das estrelas, e a vida é imperfeita, e pior, não tem pena de ninguém, Godot muito menos, pois para um bom cético já escaldado, para este, então, Godot não existe.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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