PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 13 de fevereiro de 2016

BERTOLT BRECHT, O POETA – PARTE II

Um recém-chegado à poesia recebe os conselhos de poetas eminentes, consagrados pela História, em meio da briga e da gargalhada, assim Brecht enumera sua ficha particular de poetas com ironia e metáfora em seu “poema de poetas”, isto é, o poema “visita aos poetas banidos”, pois na voz de Eurípides e Shakespeare, na hora representando o teatro, e que também são poetas, o trágico e o elisabetano, o mundo antigo é apresentado pela alma de Ovídio, e outros da dinastia Tang, chineses, obviamente, uma constelação dando conselhos ao desprevenido visitante que no poema não é identificado, mas que, na cara, é poeta, e que de uma das várias advertências, tem a mágica que todo poeta tenta fazer: “Escuta, sabem eles também os teus versos de cor?” pela voz de Dante. O poeta empalidece, pois sua voz poética agora flerta com o desterro, e na sua voz se ouve, ou seja, se ouve toda a constelação de poetas, pois do trabalho poético, o verso não só escreve, como deve, sobretudo, ler. Esta é uma das estórias da série de poesia de Brecht: “Poemas de Svendborg”.
A aventura continua com o socialismo do século XX, a revolução de outubro na Rússia comemora seus vinte anos neste poema de Brecht intitulado “O Grande Outubro”: que tem trechos ou versos como: “Desde então/O mundo tem sua esperança./O mineiro do País de Gales, o cule da Manchúria/E o operário da Pensilvânia que vive pior que um cão”, e mais estes: “Move-se a cada ano na Praça Vermelha/O infindável cortejo dos vencedores.” E a chave de prata que é também a coda, isto é, o início e o fim do poema: “Ó grande Outubro da classe trabalhadora!” Assim, fica patente a época do poema, sua marca é totalmente do século XX e carrega o terror e a esperança do século, aqui mais o termo esperança, pois é um poema de exaltação socialista, uma ideologia que viveu pela nova ordem mundial de justiça social, atualmente muito questionada pelo seu aspecto econômico e político, para além de sua doutrina social para os trabalhadores. Mas aqui temos Brecht vestindo as cores vermelhas do Outubro russo e soviético, Brecht viveu e pensou a esperança social que a Revolução de Outubro oferecia à época, e mesmo sendo fruto de um século particular, este que foi das duas grandes guerras e da guerra fria, não tenho por este poema a forma datada, pois de esperança  vive não só o socialista, mas todo que vive e gosta da vida, deixo aqui a impressão de que a ideologia carrega uma tríade de aspectos políticos, econômicos e sociais, o que neste poema comemorativo é evidente, mas a palavra esperança carrega uma cepa universal, para além disso tudo, refletindo o sonho humano de justiça.
E no último poema desta série temos o intitulado “Aos que vão nascer”, que nestes trechos (versos) temos mais uma vez a tal esperança social, desta vez sem o proselitismo evidente do poema anterior que citei, mas com as mesmas feições de justiça e reforma do mundo, aqui está: “As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque/tem!/Mas como posso comer e beber, se/Tiro o que como ao que tem fome/E meu copo d`água falta ao que tem sede?/E no entanto eu como e bebo.”  Pois temos em Brecht um poeta social e político, proselitista de uma ideologia muitas vezes, mas é bem humano em tudo o que escreve, na sua poesia e neste poema ele deixa sua impressão digital, seu teatro épico é a cabeça maior de seu trabalho, mas tudo é forrado no chão da poesia. “Aos que vão nascer” funciona também como uma carta náutica para os homens e mulheres do futuro, e nesta carta está sua esperança, o mundo do futuro, que muitos de nós sempre almejam como o lugar da fartura do que desejava e esperava, a esperança em Brecht aparece não só como posição política ou ideologia, neste poema para o futuro vemos muito mais de sua fome de justiça social, do que simplesmente uma comemoração socialista de um regime político como no poema do Outubro Vermelho. Antes de Brecht ser político ou ideólogo, Brecht quer um mundo melhor, e nisso a maioria de nós, homens e mulheres, se não somos loucos celerados, concordamos.

(DOS “POEMAS DE SVENDBORG”):

VISITA AOS POETAS BANIDOS

Quando penetrou em sonho
Na cabana dos poetas banidos, vizinha
À cabana dos mestres banidos (de onde
Ouviu briga e gargalhada), veio-lhe ao encontro
Ovídio, e disse-lhe a meia-voz:
“Melhor não sentares. Ainda não morreste. Quem sabe
Senão tu mesmo.” Porém, consolo nos olhos
Aproximou-se Po Chu-yi e disse sorridente: “O rigor
Fez por merecer todo aquele que uma só vez
               deu nome à injustiça.”
E seu amigo Tu-fu disse suave: “Compreendes, o
               desterro
Não é o lugar onde se desaprende o orgulho.” Mas,
               Mais terreno
Interpôs-se o maltrapilho Villon, e perguntou: “Quantas
Portas tem a casa onde moras?” E tomou-o Dante pelo
              braço
E levando-o para o lado murmurou: “Teus versos
Estão cheios de erros, amigo, considera
Quem está contra ti!” E Voltaire berrou de lá:
“Cuida dos tostões, senão te matam de fome!”
“E usa gracejos!” gritou Heine. “Não ajuda”,
Esbravejou Shakespeare, “quando veio Jacó
Também eu não pude mais escrever.” __ “Se houver
            processo
Toma um patife como advogado!”, aconselhou
           Eurípides
“Pois ele conhece os furos nas malhas da lei.” A
             gargalhada
Ainda soava, quando do canto mais escuro
Veio um grito: “Escuta, sabem eles também
Os teus versos de cor? E eles que sabem
Escaparão à perseguição?” __ “Estes são
Os esquecidos.”, disse Dante em voz baixa
“Foram-lhes destruídos não só os corpos, mas também
                as obras.”
A gargalhada cessou. Ninguém ousou olhar na direção.
               O recém-chegado
Empalideceu.

O GRANDE OUTUBRO

                                No vigésimo aniversário da
                                      Revolução de Outubro

Ó grande Outubro da classe trabalhadora!
Levantaram-se afinal os que estavam
Por tanto tempo curvados! Ó soldados, que afinal
Dirigiram os fuzis para a direção certa!
Os que lavravam o campo no início do ano
Não o fizeram para si mesmos. No verão
Curvaram-se mais ainda. Mesmo a colheita
Foi para os celeiros dos senhores. Mas o Outubro
Viu o pão já nas mãos certas!

Desde então
O mundo tem sua esperança.
O mineiro do País de Gales, o cule da Manchúria
E o operário da Pensilvânia que vive pior que um cão
E o alemão, meu irmão, que ainda
Inveja aquele: todos
Sabem, existe
Um Outubro.

O soldado da milícia espanhola
Vê por isso com menos preocupação
Os aviões dos fascistas
Que investem contra ele.

Mas em Moscou, a célebre capital
De todos os trabalhadores
Move-se a cada ano na Praça Vermelha
O infindável cortejo dos vencedores.
Levando os emblemas de suas fábricas
Imagens dos tratores, novelos de lãs das fábricas
                de tecidos
também feixes de espigas das indústrias de cereais.
Acima deles os aviões de combate
Que escurecem o céu, e à frente deles
Os seus regimentos e esquadrões de tanques.
Em largas faixas
Carregam as suas senhas e
Os retratos dos seus grandes mestres. Os panos
São transparentes, de modo que
Tudo isso é visível a um só tempo.
Pequenas, em mastros delgados
Agitam-se as altas bandeiras. Nas ruas mais distantes

Quando o cortejo para
Animam-se danças e jogos. Alegres
Vão os grupos em desfile, um ao lado do outro, alegres
Mas para todos os opressores
Uma ameaça.

Ó grande Outubro da classe trabalhadora!

AOS QUE VÃO NASCER

I

É verdade, eu vivo em tempos negros.
Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas
Indica insensibilidade. Aquele que ri
Apenas não recebeu ainda
A terrível notícia.

Que tempos são esses, em que
Falar de árvores é quase um crime
Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
Aquele que atravessa a rua tranquilo
Não está mais ao alcance de seus amigos
Necessitados?

Sim, ainda ganho meu sustento
Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço
Me dá direito a comer a fartar.
Por acaso fui poupado. (Se minha sorte acaba, estou
            Perdido.)
As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque
               tem!
Mas como posso comer e beber, se
Tiro o que como ao que tem fome
E meu copo d`água falta ao que tem sede?
E no entanto eu como e bebo.

Eu bem gostaria de ser sábio.
Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria:
Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve
Levar sem medo
E passar sem violência
Pagar o mal com o bem
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los
Isto é sábio.
Nada disso sei fazer:
É verdade, eu vivo em tempos negros.

II

À cidade cheguei em tempo de desordem
Quando reinava fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
E me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

As ruas de meu tempo conduziam ao pântano.
A linguagem denunciou-me ao carrasco.
Eu pouco podia fazer. Mas os que estavam por cima
Estariam melhor sem mim, disso tive esperança.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

As forças eram mínimas. A meta
Estava bem distante.
Era bem visível, embora para mim
Quase inatingível.
Assim passou o tempo
Que nesta terra me foi dado.

III

Vocês, que emergirão do dilúvio
Em que afundamos
Pensem
Quando falarem de nossas fraquezas
Também nos tempos negros
De que escaparam.
Andávamos então, trocando de países como de sandálias
Através das lutas de classes, desesperados
Quando havia só injustiça e nenhuma revolta.

Entretanto sabemos:
Também o ódio à baixeza
Deforma as feições.
Também a ira pela injustiça
Torna a voz rouca. Ah, e nós
Que queríamos preparar o chão para o amor
Não pudemos nós mesmos ser amigos.

Mas vocês, quando chegar o momento
Do homem ser parceiro do homem
Pensem em nós
Com simpatia.

(DO LIVRO : BRECHT – POEMAS – 1913-1956) – BERTOLT BRECHT – EDITORA BRASILIENSE – SELEÇÃO E TRADUÇÃO DE PAULO CESAR SOUZA

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário; http://seculodiario.com.br/27288/17/bertolt-brecht-o-poeta-parte-ii 







sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

ALICE NAS CIDADES

Pela cidade o músico de rua,
pela cidade o lixo espalhado,
pela cidade a porta do mundo.

Vagamos por aí, na cidade iluminada.
Nos perdemos por aí, na cidade escura.
Breu e luz, multidão e solidão.

Na cidade o rito de dança.
Na cidade o grito de esperança.

Metrópoles sem fim,
o horizonte dos postes,
esquinas, mercados,
pedestres, carros,
ônibus passando,
os muitos que vão e voltam,
os outros todos,
e a cidade toda,

como na película da cidade aberta
aos turistas,
como no cartão-postal
dos pontos de encontro,
como na fotografia
que descansa na mesa do poeta,

a cidade toda na rua,
e a janela vendo tudo.

Pela cidade toda a esperança.
Pela cidade toda a revolta.

Pela cidade todo o sorriso.
Pela cidade todo o protesto.

As ruas se abrem:
a cidade brilha de dia e de noite,
a cidade brinca de ter tudo
dentro dela,
a cidade é sortida de pesadelos
e sonhos,
a cidade se enfeita nas efemérides,
a cidade se suja na esbórnia,
a cidade é varrida,
a cidade é cheia,
a cidade é repleta,

todos na cidade
vão trabalhar,
todos na cidade
vão vadiar,

mendigos, putas, doutores,

a cidade é o canto
e o poema desde já!

PASSEIO EM PARIS

Um homem-bomba passeava
por Paris, suas sandálias
tinham espoletas,
suas mãos tinham
pólvora,
seu rosto transpirava
dinamite.

Um homem-bomba passeava
por Paris com medo da liberdade.
Um homem-bomba passeava
por Paris com ódio da igualdade.
Um homem-bomba passeava
por Paris com asco da fraternidade.

Sua ideologia é a do carrasco.
Sua política é a da decapitação.
Seu mundo é a iconoclastia.
Ele odeia cabeças e corações,
ele odeia pensar,
ele odeia sentir.

Um homem-bomba, destas fábricas
de fanáticos, passeava por Paris
com dinamite, pólvora e espoletas.

Um homem-bomba explodiu
ontem na Champs-Élysées,
deu na "breaking news",

e alguns eram Paris,
e alguns eram França,

e muitos lamentavam
o mundo e os mortos,
pois o homem-bomba
não deplorou,
explodiu e foi atrás
de seu rio de leite e mel,
num paraíso perdido,

e seu inferno era o de todos,
os que sorriam e agora choravam,
os que bebiam e agora gritavam,
os que dançavam e agora morreram.

12/02/2016 Gustavo Bastos