PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

VIVÊNCIA DA PELÍCULA

Brota de minha pequena máquina de calcular
o balbuciar do gerente de banco,
um pulsar se mediatiza nos contornos
desta redoma fútil dos compromissos.
Atrás dos vínculos familiares
um olor estranho se vira em fumaça,
eu tenho que ir a galope, como um anacoreta
que vive de brisa e insetos,
contar os causos de meus investimentos,
os dólares aziagos que sobram
do mormaço, eu vejo, e, no entanto,
tenho refugos entre os dentes,
e uma fome que tilinta metal e morte.
Arre! Que este relógio, marcando o tédio
com T e rima de farol, me pegue na
hora certa diante do espelho,
ou me pegue no lusco-fusco
da manhã mais auroral do santo dharma,
ou me eleve com ácidos e soros
diante da luz visionária de agendas
presidenciais, de ministérios sucintos
como o albor que se insinua no meu rosto
que vinca os veios com certezas pétreas
na mão invisível das lutas que sofri,
por estar é certo, eu sou poeta que
vivencia neste mormaço de brisa
as pazes visionárias do anacoreta,
eu pego minha carteira, acerto os ponteiros
de meu relógio, busco, ainda, e trôpego,
as marcas que deixei na parede, eu escuto,
ainda pasmo, as notícias que tocam em FM,
como na película de Costa-Gavras,
um míssil me entope as veias,
e me entorpeço com bombas seculares,
me enalteço com livros na lida diária,
pois eu sou metediço em assuntos de política,
e rateio os dólares com poucos idiotas,
não vou por aí como um andarilho,
tenho, por certo, que na hora certa
o expurgo delimita a área de atuação
dos trabalhos realizados, das metas
salvíficas e selváticas dos futuros incertos
que desenham o sino da liberdade,
no tráfego de Copacabana tenho que
amargar um gole de cerveja, e os notáveis
da sociedade me vêm com a angústia existencial
que nem na floresta mais densa
se apazigua, pois que decido, de chofre,
tocar guitarra como um ventríloquo
que vê astúcia em seu teatro de bonecos,
e na andança lírica os risos serão
mais bentos, mais cálidos os dramas
que o bruxo da sala de estar
elenca, nos seus arcanos,
com a foto que delineia meu sorriso,
pois em meu cálculo final
estava a morte sentida com frio,
e minha tour pelo mundo cão
fotografava a taça de vinho
para uma postagem virtual.

28/10/2016 Gustavo Bastos

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

JOHN KEATS, UM DOS EXPOENTES DO ROMANTISMO INGLÊS – PARTE III

“a excelência de toda arte está em sua intensidade”

A CONCEPÇÃO DE KEATS SOBRE A SUA POESIA
Um dos conceitos que John Keats descreve em suas cartas é o de intensidade. Em 21 de dezembro de 1817 escrevia a George e Georgiana que “a excelência de toda arte está em sua intensidade, capaz de fazer o desagradável (‘all desagreeables’) evaporar do estreito contato com Beleza e Verdade”. Algumas partes da teoria poética de Keats, além da equação beleza-verdade e do princípio da intensidade, está também o da “capacidade negativa” (negative capability), exposto em carta de 22 de dezembro de 1817: “Várias coisas se encaixam em minha mente, e de repente me ocorreu que qualidade contribuía para formar um homem realizado, especialmente em literatura, e que Shakespeare possuía tão desmesuradamente – quero dizer, a capacidade negativa, isto é, quando um homem é capaz de manter-se em incertezas, mistérios, dúvidas, sem nenhuma impaciente procura do fato e da razão. (...) Num grande poeta o senso de beleza sobrepuja qualquer outra consideração, ou antes oblitera toda consideração.”
Keats, assim, queria a sensação, e talvez o inefável, em vez da solução racional, adotada por outros poetas. E outro conceito é o de esvaziamento da personalidade para ocupar o objeto de que o poeta estiver cuidando, o que equivale, mais simplesmente, a uma postura dramática. Lê-se em carta de 27 de outubro de 1818, a Woddhouse: “Quanto à personalidade poética em si (quero dizer essa espécie à qual pertenço, se sou alguma coisa; essa espécie diversa do sublime wordsworthiano ou egotístico ...), ela não é ela própria – ela não tem eu – é tudo e é nada – não tem personalidade – aprecia a luz e a sombra – vive, seja ela má ou boa, alta ou baixa, rica ou pobre, vil ou nobre – tem deleite igual ao conceber um Iago ou uma Imogênia. O que choca o filósofo virtuoso deleita o poeta camaleão. (...) O poeta é o mais impoético de tudo o que existe, porque não tem identidade, continuamente adentra e enche outro corpo. O sol, a lua, o mar e os homens e mulheres, que são criaturas de impulso, são poéticos e têm um atributo imutável; o poeta não tem nenhum, nenhuma identidade. É certamente a mais impoética de todas as criaturas de Deus.”
Nesse mesmo ano, mas antes (em fevereiro), Keats afirmara a Taylor, em carta, que seguia três axiomas em sua poesia: “1 – achava que a poesia deveria surpreender por um fino excesso, e não pela simplicidade; deveria atingir o leitor como expressão de seus próprios e mais altos pensamentos e parecer quase uma lembrança; 2 – seus traços de beleza não deveriam ser incompletos, deixando assim o leitor sem respiração, em vez de satisfeito. O nascimento, o progresso, o ocaso das imagens deveriam, como o sol, vir-lhe naturalmente, brilhar sobre ela e pôr-se calmamente, embora com esplendor, deixando-o no fausto do crepúsculo; 3 – se a poesia não viesse naturalmente como as folhas à árvore, seria melhor não vir absolutamente.” Aqui está alguns dos conceitos nos quais Keats se orientava, não esgotando, no entanto, as possibilidades na qual realizou a sua poesia.
POEMAS:
HIPERÍON (III, 10-43): O poema, que aqui é um excerto, tem na lira do mito sua abertura: “Musa, toca a harpa délfica, piedoso, o dedo/E, vento algum do céu recusará espirar,/Como apoio, o gorjeio bom da flauta dórica;/Pois vede! É isso em honra ao pai de todo o verso.” E o poema segue, agora com os eflúvios do vinho: “Ferva na taça o vinho tinto, frio como/Um poço a borbulhar;”. E relembra, a seguir, as origens geográficas do mito de Apolo, numa relação entre sua origem e seus dons: “Ilha cardeal das Cíclades bem abrigadas,/Delos, alegra-te com as tuas oliveiras,/Choupos, palmeiras a sombrear as relvas, faias,/Onde o Zéfiro entoa o mais sonoro canto,”. E assim uma imagem de abandono emerge no poema, em que Apolo deixa Leto, sua mãe, e sua irmã gêmea, Ártemis, quando foi pelos lírios na sua perdição: “Uma vez mais ainda, Apolo é o tema de outro!/Quando o Titã do Sol permanecia fúlgido/Entre seus pares tristes, onde estava ele?/Juntas deixara Apolo sua mãe, a bela,/E a gêmea adormecidas no caramanchão,/E ao crepúsculo matinal entrara a andar/Às margens de um regato, junto dos salgueiros,/Pelos lírios do vale os passos afundando.”. E da fuga à dor é um salto que se dá, Apolo, mesmo assim, ainda tem seu arco de ouro, este que conhece a música e a harmonia, que é o símbolo da razão numa das vertentes do caminho filosófico, e que aqui se consuma em poesia, com a mitologia grega mais uma vez inspirando os poetas românticos, e aqui levando a escrita de John Keats para um ideal longínquo: “Pela ilha inteira/Refúgio não havia, nem caverna ao longe/Aonde não chegasse o murmurar das vagas,/Quase extinto, porém, nalguns recessos verdes./Ele ouviu, e chorou; as lágrimas brilhantes/Corriam devagar pelo seu arco de ouro.”
AO COMPULSAR, PELA PRIMEIRA VEZ, O HOMERO DE CHAPMAN: De uma leitura exaltada de uma tradução de Homero, John Keats produziu um poema para revelar a sua visão, poema que começa com a descrição da epopeia homérica: “Já por impérios de ouro eu muito viajara,/Diversos reinos vira – e quanto belo Estado!/Já muitas ilhas, a ocidente, eu circundara,/As quais em feudo Apolo aos bardos tinha doado./Eu já sabia que em país mais dilatado/Homero, o que pensava fundo, governara:” (...) “Cortez nem bem/O Pacífico havia divisado, além –/Seus homens a se olhar, supondo com aflição –/E ficou sem falar, num pico em Darien.”. Por entre os impérios e os diversos reinos, mais uma vez aparece Apolo, e Keats tenta apreender, nesta aventura, qual foi a visão de Homero, e que lhe dá assim qual era seu governo nestes traços míticos do poema épico, a fonte fiel da cultura grega antiga aqui ganha a versão de um poeta romântico, mais uma impressão de uma leitura do que uma aproximação de Homero, o poema aqui funciona como tanto for, assim, numa homenagem a Homero, mas que tem, de fato, sua orientação pela mitologia grega, aqui diversas vezes a inspiração dos poetas românticos.
HINO A PÃ (I, 232-306): O poema, um hino, tendo Pã como a divindade mitológica que inspira os versos, também funciona como uma descrição e uma exaltação, a verdade mítica que, na versão da poesia romântica, ganha então o sentido do próprio poema, e do estro romântico repetidas vezes, unindo o fenômeno da mitologia ao dos poetas românticos da época de Keats: “Ó tu, cujo amplo teto de palácio se ergue/Sobre rugosos troncos, a cobrir de sombra/Cicios eternos, o negror, a vida e morte/De flores invisíveis em pesada paz;” (...) “E sentas para ouvir, durante horas solenes,/A triste melodia dos caniços juntos/Em sítios desolados, onde com a umidade/A cicuta aflautada cresce a estranha altura;”. Os passos de Pã são seguidos, e o poema é este trajeto: “Ó tu, por cuja paz que abranda a alma, as rolas,/Pondo paixão na voz, arrulham entre os mirtos/Na hora em que vagueias ao cair da tarde”. E a flauta de Pã se harmoniza com a natureza, num idílio ao cair da tarde: “Ó tu, para quem correm sátiros e faunos,/Prontos para servir; quer para surpreender/A lebre que se agacha meio a dormitar;” (...) “- Por todos esses ecos em redor de ti,/Ó, escuta-nos, rei sátiro!”. E a riqueza da música ganha aqui sua descrição em versos, e o poder de Pã também é exaltado aqui: “Tu que estranho nos dás indefiníveis sons/Que vêm desfalecer no côncavo dos vales” (...) “sê a levedura/Que ao se expandir nesta massuda terra triste/Dá-lhe um etéreo toque: - um novo nascimento;/Persiste sendo um símbolo da imensidão;/Um firmamento refletido por um mar;”. O segredo da felicidade pode estar mais uma vez no mito, e aqui como Pã, o ideal da poesia romântica de Keats, assim também como de seus contemporâneos, deve ao mito grego muito de seu sentido e conteúdo, o romantismo está definitivamente inserido num resgate da Hélade antiga.
MEG MERRILLIES: De uma leitura esparsa Keats produziu mais um poema, aqui não mais uma tradução que o levou a exaltar Homero, mas de uma idealização rarefeita que veio de uma impressão própria de um romântico, a dama Meg aqui ganha todo o seu poder: “A velha Meg era cigana/E dos urzais tirava o seu sustento:/Por leito a parda grama da charneca,/A sua casa era o relento.”. Cigana Meg, que mora no relento, e segue Keats, com sua visão ideal: “Sozinha com a família numerosa,/Ela vivia folgazã.”. E a natureza entra aqui em forma poética, mais uma das descrições em versos de um personagem, temas comuns ao estro romântico, que quando não é um personagem mítico, fala de alguma figura histórica, mas sempre como um hino, um ideal, um resgate de algum valor perdido, ou ainda a homenagem que se dá bem em versos: “Toda manhã, de madressilva fresca/Sua grinalda ela fazia,/E à noite o teixo escuro lá do vale/Cantarolando ela tecia.”. E o poema finaliza com as virtudes de Meg, esta amazona valente, segundo Keats: “Como a Rainha Margaret a velha Meg/Era valente; alta qual amazona; a usar/Um velho cobertor vermelho como manto,/Um chapéu de palha ela trazia./Deus lhe dê paz aos ossos em algum lugar,/Que ela morreu faz quanto tempo, quanto!”. O poema romântico tem em Keats o mesmo sentido de seus contemporâneos: lembrar de um ideal mítico ou de uma virtude de um personagem histórico. A poesia romântica então não se trata só de uma poesia sobre o amor, mas até muito mais de revelar em poesia as potências do mito grego antigo.
POEMAS:
HIPERÍON (III, 10-43)
Musa, toca a harpa délfica, piedoso, o dedo
E, vento algum do céu recusará espirar,
Como apoio, o gorjeio bom da flauta dórica;
Pois vede! É isso em honra ao pai de todo o verso.
Faze afoguear-se tudo que tiver tom rubro;
Que a rosa, incandescendo forte, esquente a brisa,
E que as nuvens do anoitecer e da manhã
Em tosões voluptuosos pairem sobre os montes.
Ferva na taça o vinho tinto, frio como
Um poço a borbulhar; lábios sem sangue, as conchas,
Na areia ou no mar fundo, fiquem de escarlata,
Seja onde for nos labirintos seus; que a virgem
Core demais, qual se acolhesse um beijo ardente.
Ilha cardeal das Cíclades bem abrigadas,
Delos, alegra-te com as tuas oliveiras,
Choupos, palmeiras a sombrear as relvas, faias,
Onde o Zéfiro entoa o mais sonoro canto,
E o avelal, de que a sombra cobre os negros troncos:
Uma vez mais ainda, Apolo é o tema de outro!
Quando o Titã do Sol permanecia fúlgido
Entre seus pares tristes, onde estava ele?
Juntas deixara Apolo sua mãe, a bela,
E a gêmea adormecidas no caramanchão,
E ao crepúsculo matinal entrara a andar
Às margens de um regato, junto dos salgueiros,
Pelos lírios do vale os passos afundando.
Calara o rouxinol, algumas das estrelas
Tardavam pelos céus, e o tordo começara
A acalmar a garganta. Pela ilha inteira
Refúgio não havia, nem caverna ao longe
Aonde não chegasse o murmurar das vagas,
Quase extinto, porém, nalguns recessos verdes.
Ele ouviu, e chorou; as lágrimas brilhantes
Corriam devagar pelo seu arco de ouro.
(Este excerto do “Hiperíon”, que trata do primeiro passeio de Apolo, tem versos famosos.)
AO COMPULSAR, PELA PRIMEIRA VEZ, O HOMERO DE CHAPMAN
Já por impérios de ouro eu muito viajara,
Diversos reinos vira – e quanto belo Estado!
Já muitas ilhas, a ocidente, eu circundara,
As quais em feudo Apolo aos bardos tinha doado.
Eu já sabia que em país mais dilatado
Homero, o que pensava fundo, governara:
Porém seu límpido ar não tinha ainda aspirado,
Até que ouvi a voz de Chapman, brava e clara.
Como o que espreita o céu e colhe na visão
Algum novo planeta, assim fiquei então;

Ou como quando – de água o olhar – Cortez nem bem
O Pacífico havia divisado, além –
Seus homens a se olhar, supondo com aflição –
E ficou sem falar, num pico em Darien.
(Neste soneto Keats atingiu pela primeira vez expressão própria. Escreveu-o certa manhã de out. de 1816, depois de ter varado a noite com Clarke a ler trechos de Homero que o fascinaram, na tradução de Chapman. Leigh Hunt publicou-o no mesmo ano, transcrevendo-o em artigo no Examiner. Os reinos de ouro, do V.1, são o Eldorado (e também provavelmente as folhas de ouro em relevo nas capas e lombadas dos livros, diz Barnard).)

HINO A PÃ (I, 232-306)
Ó tu, cujo amplo teto de palácio se ergue
Sobre rugosos troncos, a cobrir de sombra
Cicios eternos, o negror, a vida e morte
De flores invisíveis em pesada paz;
Que adoras ver as Hamadríades comporem
O cabelo desfeito, onde o avelal sombreia;
E sentas para ouvir, durante horas solenes,
A triste melodia dos caniços juntos
Em sítios desolados, onde com a umidade
A cicuta aflautada cresce a estranha altura;
Pensando em como te sentiste contrariado
E melancólico ao perder Sirinx, a bela,
- Pela fronte de leite de tua amada,
Pelos trêmulos meandros que ela percorreu,
Ouve-nos, grande Pã!

Ó tu, por cuja paz que abranda a alma, as rolas,
Pondo paixão na voz, arrulham entre os mirtos
Na hora em que vagueias ao cair da tarde
Pelos prados de sol, que os flancos delimitam
De teus reinos brejosos: tu a quem as figueiras
De largas folhas predestinam já os frutos
Maduros; as abelhas de amarelo cinto,
Seus favos de ouro; os campos das aldeias nossas,
Favas de bela flor e trigo com papoulas;
O pintarroxo a piar, filhotes que, ora em casca,
Cantarão para ti; os morangos rastejantes,
Seu frescor estival; ninfas de borboletas,
Suas asas perfeições – acerta-te depressa,
Pelo vento que agita o pinho da montanha,
Ó divino selvagem!

Ó tu, para quem correm sátiros e faunos,
Prontos para servir; quer para surpreender
A lebre que se agacha meio a dormitar;
Ou escalando precipícios escabrosos
Para salvar da goela da águia os cordeirinhos,
Ou para pôr de novo, com atração oculta,
Os pastores perdidos no caminho certo,
Ou para andar arfante em torno ao mar de espumas,
Ou para recolher as conchas mais bizarras
E, oculto, rias quando espiarem para fora;
Ou para que te encantem fantasiosos saltos
Quando elas se entrejogam na cabeça argênteas
Glandes de roble e as pardas pinhas dos abetos
- Por todos esses ecos em redor de ti,
Ó, escuta-nos, rei sátiro!

Tu que percebes o ruído das tesouras
Se um carneiro, a balir, de quando em quando vez
Juntar-se aos já tosqueados; tu, que a trompa soas,
Se os javalis, talando os tenros cereais,
Iram o caçador; que em torno à granja tocas
Para afastar a mangra e os danos do mau tempo;
Tu que estranho nos dás indefiníveis sons
Que vêm desfalecer no côncavo dos vales
E languem tristemente nos urzais estéreis;
Temível abridor das portas misteriosas
Que levam ao saber universal – contempla,
Grande filho de Dríope,
Tantos que vieram para realizar seus votos,
Com folhas sobre a testa!

Persiste sendo o abrigo não imaginável
De solitárias reflexões, como as que brincam
Com a compreensão até os próprios confins do céu
E põem então a mente vã; sê a levedura
Que ao se expandir nesta massuda terra triste
Dá-lhe um etéreo toque: - um novo nascimento;
Persiste sendo um símbolo da imensidão;
Um firmamento refletido por um mar;
Um elemento a encher o espaço intermediário;
Um ignoto – mas chega: humildes nós velamos
A fronte, erguendo as mãos; modestos inclinando-nos
E erguendo até aos céus um grito que os lacera,
Conjuram-te a ouvir o nosso humilde peã,
Sobre o monte Liceu!
(Quando em casa de Haydon o hino foi lido a Wordsworth, declarou este que se tratava de “a pretty piece of Paganism”; Keats, afirma-o Lorde Houghton, não gostou da observação, tomando-a como depreciativa. Shelley, que não aprecia muito o Endimião, achava contudo que este excerto era “a prova mais segura da excelência final” do poeta. Na verdade, o hino não é uma simples peça pagã, pois usa a figura mitológica a modo de pretexto para uma rica visão das coisas silvestres, sendo seu claro romantismo patente, por exemplo, na última estrofe. As atividades de Pã são vistas através dos poetas elisabetanos. Escreve Douglas Bush: “O deus-capro, divindade tutelar dos pastores, tem sido há muito alegorizado em vários graus, de Cristo à ‘Natureza Universal’ (Sandys); aqui ele se torna símbolo da imaginação romântica, do conhecimento supramortal”.)

MEG MERRILLIES
I
A velha Meg era cigana
E dos urzais tirava o seu sustento:
Por leito a parda grama da charneca,
A sua casa era o relento.
II
Suas maçãs eram amoras-pretas;
As suas passas, giesta em vagem;
Seu vinho, o orvalho da alva rosa brava,
Livro, do cemitério certa lajem.
III
Por irmãos tinha os montes escarpados,
Toda árvore de lárix por irmã:
Sozinha com a família numerosa,
Ela vivia folgazã.
IV
Muitas manhãs não tinha almoço,
E ao meio-dia nem jantar;
Em vez de ceia asperamente a Lua
Ela postava-se a fitar.
V
Toda manhã, de madressilva fresca
Sua grinalda ela fazia,
E à noite o teixo escuro lá do vale
Cantarolando ela tecia.
VI
E com seus dedos velhos, pardacentos,
Esteiras de caniço ela trançava,
E aos camponeses que encontrasse
Entre os arbustos, ela as dava.
VII
Como a Rainha Margaret a velha Meg
Era valente; alta qual amazona; a usar
Um velho cobertor vermelho como manto,
Um chapéu de palha ela trazia.
Deus lhe dê paz aos ossos em algum lugar,
Que ela morreu faz quanto tempo, quanto!
(Quando de sua viagem à Escócia, Keats e Brown estiveram na cena de Guy Mannering, de Scott. Keats nunca lera o romance, mas ficou muito impressionado com o tipo de Meg Merrillies, tal como lhe descrevera Brown. “Ele pareceu de imediato intuir a criação do romancista, e, parando de repente no caminho, num ponto onde havia profusão de madressilvas, rosas bravas e digitális, misturou-se com sarça e giesta que enchiam os espaços entre as rochas fragmentadas, exclamando: “Sem sombra de dúvida, neste lugar a velha Meg ferveu frequentemente seu caldeirão.” (Lorde Houghton). Em data de 2 de julho de 1818 enviou a balada a Fanny, sua irmã, e no dia seguinte a Tom.)
(Verso 9: Rainha Margaret: lendária e santa rainha da Escócia, esposa do rei Malcolm Canmore, a qual, ida da Inglaterra, reformou a Igreja céltica.)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31155/17/john-keats-um-dos-expoentes-do-romantismo-ingles-parte-3


  




domingo, 23 de outubro de 2016

MÁXIMO GORKI, O PEQUENO BURGUÊS E O OPERÁRIO

“Gorki possui uma unidade de pensamento e uma linha constante na sua reflexão”

O EMBATE DE GORKI
Quando Máximo Gorki concluiu a sua peça “Pequenos Burgueses”, isto no fim de 1901, que foi a sua primeira incursão como autor teatral, Gorki consegue, neste ponto, estabelecer uma constante no que seria a sua obra literária e teatral, que era a reflexão sobre o tema das classes sociais. Mais especificamente, portanto, entre uma classe estável, porém esvaziada, segundo a interpretação que dará Gorki, que é traduzida no Ocidente por burguesia, mas que na Rússia soviética terá suas particularidades, sendo mais uma classe ou grupo social urbano, e o proletariado, este sendo idealizado na obra de Gorki.
Gorki muitas vezes, por ter esta visão ideal dos explorados, terá parte de sua obra ganhando um caráter esquemático, como se vê em seu romance “A mãe”. Mas, este embate se desdobrará por toda a sua obra, que é nada mais que um choque de classes que se traduzirá como a disputa entre cosmovisões antagônicas, uma representando o vício e outra a virtude, segundo a interpretação gorkiana, o que também será uma constante na visão política do marxismo, do leninismo, e no realismo soviético que surgirá na literatura e no teatro da primeira metade do século XX.
A obra de Gorki, portanto, será uma arena entre o ímpeto para a conquista de uma vida digna, de um lado, e a hipocrisia conformada da rotina, de outro. Com o texto de Gorki e sua montagem sendo palco de uma luta entre a estabilidade esvaziada  e o desejo de justiça, entre o que há de retrógrado e desumano, e um novo humanismo que terá o operário como fonte de exaltação. E, então, Gorki dará, desde os seus primeiros contos, até o seu último romance, "Vida de Klim Ságuin", a imagem e a tradução deste embate de classes. Sendo, em suas primeiras estórias, como a imagem dos vagabundos que buscam um meio de reação a uma situação social baseada numa falsa estabilidade que, em Gorki, é denunciada como o mundo da hipocrisia, de uma sujeição aparentemente normal, constituindo na obra de Gorki como uma luta contra uma vida fundada na mediocridade e na mesquinhez.
O TRABALHO DE EXPRESSÃO EM GORKI
Gorki então se dedicou, em sua obra, em descrever e analisar, com minúcia, quais eram as forças sociais de sua época, sobretudo no contexto russo, que era uma relação de forças que se traduzia como uma luta social por um mundo melhor, com condições para a dignidade da vida. E, como dito no texto anterior, com uma visão mais geral sobre a sua obra, Gorki por vezes, neste seu ímpeto por justiça social, como autor ele não se terá, inicialmente, a faculdade da contenção expressiva, e muitas vezes vociferará contra a injustiça, num texto arrebatado, exaltado, interrompendo a fluência narrativa. E isto, por sua vez, foi motivo de uma crítica negativa, sendo depois fonte de um esforço do autor para ajustar sua linguagem, para então retomar a fluência natural da existência, deixando mais civilizado nele o homem apaixonado, e com a sua veemência aparecendo num novo contexto mais adequado para a sua realização estética no teatro e na literatura.
E aqui temos o momento no qual Gorki deixa, na sequência de sua obra, as personagens num desenvolvimento por uma linha mais inerente à índole de cada um, abstendo o autor de ataques exaltados pelo que elas eram, e na busca mais autoconsciente da compreensão destes personagens em função de um dado contexto social. Com Gorki passando a alcançar um nível melhor de realização de seu trabalho como autor. Bastando, portanto, na visão geral do que foi a sua obra, uma comparação, por exemplo, entre o esquematismo de algumas das personagens de seu romance "A mãe", e a vida autêntica de seus vagabundos insolentes.
Neste sentido, o teatro passou a ter na obra do autor um novo tipo de disciplina, pois quando Gorki deixou as personagens falarem por si próprias, já num esforço de autodomínio, ele teve, mesmo em seu caráter panfletário, de um homem da gesticulação e do discurso apaixonado, ainda presente em algumas de suas personagens, sobretudo em seu trabalho teatral, uma forma que já não era mais a do autor de “Os veranistas” ou de “Os filhos do sol”, pois já se tratava de um autor obedecendo uma fluência narrativa natural, e não mais dos gestos abruptos. E, falando de sua habilidade de construir um indivíduo com poucos traços, centrando nisso o caráter discursivo das personagens, isto é, com elas se revelando com as suas próprias falas, que se torna então uma característica do trabalho de Gorki, podemos ver aí a influência salutar de Anton Tchekhov, fazendo Gorki encontrar a tonalidade de seu teatro autoral.
O PEQUENO BURGUÊS NA VERSÃO RUSSA
A atividade literária de Gorki foi marcada, então, pela luta contra o meio e o espírito pequeno burguês. Sendo necessário buscar, agora, o sentido desta classe na realidade social russa e sua tradução cultural, o que significa lembrar que ela vem da denominação mieschtchanin, palavra russa que se acomodou traduzir aqui no Ocidente como "pequeno burguês", mas que no contexto russo tem um sentido mais lato, sendo um tipo de homem que não pertencia nem à nobreza, nem ao campesinato, nem ao clero, isto é: era o habitante das cidades. De outro modo, o burguês enriquecido era designado por outros nomes, se referindo na maioria das vezes à sua ocupação profissional.
E o mieschtchanin, portanto, se puder fazer uma aproximação com a palavra ocidental “burguês”, ela tem referência mais a um estado estético, como o "gosto burguês", e tem ainda, e também, um sentido moral, sendo o mieschtchanin, moralmente, o homem mesquinho, que em Gorki será o inimigo de tudo o que é grande e belo. Por sua vez, não obstante estas particularidades, podemos ter na tradução do título em português da peça de Gorki como “Pequenos burgueses", uma justificativa plausível, pois traz em seu bojo este estado de espírito da mesquinhez, da falsa estabilidade e da hipocrisia, as quais Gorki tentará denunciar em suas peças, contos, romances, autobiografia e textos críticos.
ACEPÇÃO DA BURGUESIA NA OBRA GORKIANA
Mas, quanto ao tipo do burguês, teremos uma gama de sentidos específicos que vão aparecer no trabalho de Gorki sobre o que é esta figura, e isto tanto no contexto da realidade social russa, como também sendo um dos modos de se compreender a posição do autor no enfrentamento que ele dá a esta mesma realidade no conjunto da sua obra, revelando então novas acepções em que esta classe se dá no texto gorkiano. Como temos, por exemplo, na peça “Pequenos Burgueses”, quando o autor nos mostra uma de suas personagens, como o velho Bessemenov, que é apenas um dos elementos da realidade que o escritor demonstrou sob o nome e conceito de mieschtchanin.
Pois, quando Gorki faz a sua análise do burguês como indivíduo, no momento em que isto aparece nas suas personagens, o autor apresenta uma realidade bem mais complexa do que uma definição peremptória deste tipo de homem ou classe de homens, já que, por demanda da narrativa, Gorki passa a demonstrar este conjunto para além de um desenho determinístico, aparecendo o mieschtchanin também em tons cambiantes, numa riqueza de matizes que subvertem uma visão simplista ou de um contraste de branco e preto. E que ganha mais sentido quando Gorki aborda a marginalidade, por exemplo, inserindo este fenômeno no contexto burguês, com estes indivíduos da burguesia passando a ser reduzidos implacavelmente, como se fossem seres condenados a viver dentro de sua própria classe, numa redoma moral e de cosmovisões achatadas. O que se pode ver, por exemplo, no embate da personalidade central de "Fomá Gordiéiev", o primeiro romance de Gorki, no qual um indivíduo de caráter exuberante, repleto de vitalidade, é cerceado e mutilado num cenário mesquinho e limitado de uma cidade provinciana.
E a Tatiana de "Pequenos burgueses", por sua vez, é mais um exemplo do desperdício incalculável deste achatamento moral e de ideias que Gorki procura revelar, pois ela aparece na peça como a expressão de uma existência inutilizada pelas circunstâncias dadas e difíceis de serem superadas, por mais que alguém tente, e acaba sucumbindo na mediocridade. E Tatiana, então, se vê destruída por este meio burguês. Por sua vez, a reflexão gorkiana sobre os diferentes caminhos e destinos do indivíduo, dentro da classe burguesa, o coloca, também, diante de exemplos reais, como o do burguês que se revolta contra sua própria classe, como foi o caso de Sava Morozov e outros industriais russos que financiaram o movimento bolchevique, como ainda de Nicolai Schmidt, que era o dono da melhor fábrica de móveis finos de Moscou, e que acabou preso pela polícia política, por ocasião da revolta de dezembro de 1905, sob a acusação de conivência com os revolucionários, e que foi torturado barbaramente, o que levou Gorki a produzir um artigo indignado sobre o caso.
Nesta análise dos tipos ou indivíduos da burguesia, Gorki consegue, nesta busca, produzir um de seus romances mais vigorosos e impactantes, que foi o "O negócio dos Artamonov", que constitui numa espécie de saga de uma família de industriais, tendo o mesmo tema lhe inspirado a escrever a peça em que surge a sua personagem teatral mais poderosa: o velho burguês de "Iegor Bulitchóv e Outros", que é um homem sem caráter e de uma lucidez diabólica que, contudo, está cercado de uma malta de medíocres aproveitadores, donde seu apego existencial, por sua vez, que tem em si uma vitalidade que leva ao entendimento de sua morte como uma verdadeira tragédia. E, falando de sua trilogia autobiográfica, Gorki aqui também revela uma análise visceral e relevante, que vai fundo no que é o meio burguês, sendo esta trilogia, portanto, um documento importante e irrepreensível desta realidade social no contexto russo, um documento que ganha tanto o caráter literário da narrativa, como o caráter humano de uma vida, que é a do autor e sua história.
O CARÁTER MONOLÍTICO DO OPERÁRIO EM GORKI
Diante da complexidade dada ao sujeito burguês na obra de Gorki, é de difícil compreensão o momento e a construção que se dá nesta mesma obra do homem e conjunto de homens da classe operária, pois ele aparece, muitas vezes, numa matiz monocromática e num tom monocórdio, numa abordagem amiúde idealizada, sem senso crítico. Tal fenômeno leva Gorki, como autor, embora muito celebrado como o fundador da literatura proletária, a um tipo do operário que surge unidimensional, sempre repleto de virtudes e portador da vida social verdadeira, sem defeitos, imaculado. É o que fica patente, por exemplo, no romance "A mãe", uma limitação que é apontada, inclusive, por críticos literários marxistas, tal como Lunatchárski, e com tal tendência gorkiana se consolidando, de modo mais evidente ainda, no seu teatro. Para Gorki, portanto, o operário é um ser quase ideal, enquanto o burguês, por sua vez, é um ser oscilante, com altos e baixos, instável e contraditório. Tal fato já aparece, de algum modo, no personagem Nil, de "Pequenos burgueses", e se tornará mais evidente em "Os inimigos", no que se dá um desenho cênico idealizado e proselitista do princípio marxista da luta de classes.
O ASPECTO INTELECTUAL DO BURGUÊS EM GORKI
Em Gorki temos diferentes tipos psicológicos do burguês que aparecem em sua obra, que pode ser, por exemplo, a do burguês liberal, o qual busca amainar o rigor da exploração do capital, mantendo, no entanto, a separação entre as classes sociais diferentes, e que resulta sempre em fracasso, pois o abismo que o capitalismo sempre abre não tem, por sua vez, intenção de patrocinar reformadores sociais, isso sem falar na ideia de revolução proletária, o que hoje é visto, num senso crítico empiricamente verificado, tanto da derrocada soviética, de um lado, como do crime ambiental do consumo e do capital, de outro, em abismos históricos e novos abismos sem solução, no momento. Ou seja, o burguês liberal, o qual tenta amenizar tal abismo, ainda se vê, contudo, limitado pelos próprios meios em que as relações sociais se estabelecem, e nas quais as classes sociais, mesmo com tentativas de mobilidade, também alimentam um espírito de corpo que se comportam como estanques. Parece que, no fim, todos têm consciência das condições dadas, e os que são proprietários não vão mudar, e os de baixo, por sua vez, não poderão se movimentar para além de um certo limite.
Gorki, por sua vez, quando se volta para a situação do intelectual na sociedade burguesa, ainda estará longe, por exemplo, da ideia gramsciana de intelectual orgânico, pois a perspectiva soviética que irá logo eclodir terá fonte marxista e fundamentação leninista. Porém, Gorki ainda se refere ao intelectual burguês, e que é um tipo de preocupação do autor que aparecerá desde seus primeiros escritos, o que leva Tchekhov, em carta dirigida a Gorki, a dizer: “Na descrição que você faz de pessoas da intelligentsia, sente-se uma tensão, uma espécie de circunspecção, o que não se deve ao fato de os ter observado pouco; não, você os conhece, mas não sabe seguramente por que lado os abordar".
Tal observação de Tchekhov tem um certo fundamento, se for levado em conta escritos tal como o romance "Várienka Oliéssova", tendo, no entanto, na sequência da obra gorkiana, já depois da morte de Tchekhov, uma evolução da análise dos tipos intelectuais, o que será, portanto, um clímax para o trabalho de Gorki, embora ainda houvesse outros momentos em que a caricatura fosse também um modo de abordagem de Gorki, mais alimentada pelo rancor social do autor ou suas idiossincrasias, mesmo que Gorki tenha tido, no seu contato com o meio intelectual russo, um conhecimento direto e vasto da evolução das ideias e dos movimentos culturais, e do contexto de vitalidade que muitas vezes envolviam a realidade social russa.
O OPERÁRIO E O BURGUÊS, A VONTADE E A RAZÃO
Na sequência, por exemplo, numa nota ao conto "O vigia", Gorki escreveu: "A sensação alarmante do afastamento espiritual da intelligentsia, como princípio racional, em relação à espontaneidade do popular, perseguiu-me toda a vida com alguma insistência. Em meu trabalho literário, abordei mais de uma vez esse tema, e ele suscitou contos como "Meu companheiro de estrada" e outros. Pouco a pouco, esta sensação transformou-se num pressentimento de catástrofe. Encerrado, em 1905, na Fortaleza de S. Pedro e S. Paulo, tentei desenvolver o mesmo tema na peça fracassada "Os filhos do sol". Se a separação entre a vontade e a razão representa um difícil drama na existência do indivíduo, na vida do povo esta separação constitui uma tragédia".
"A separação entre a vontade e a razão", por sua vez, seguindo aqui a percepção gorkiana, pode ser exemplificada no personagem Piotr de "Pequenos burgueses", quando o próprio Gorki escreve: "Piotr deseja viver sossegado, sem obrigações com as pessoas, mas sente que viver assim é indigno do homem, procura uma justificação para si mesmo, não a encontra e se irrita". Por outro lado, Piotr pode representar um tipo de elo entre o intelectual que ainda pode se revoltar e o outro lado dos pequenos burgueses, que são conformados, embora eficientes em sua condição.
A POLÊMICA LITERÁRIA DE GORKI
Por sua vez, na abordagem que Gorki realiza em sua obra sobre o burguês, o autor parte de problemas de um indivíduo, e neste ponto de partida tem como chegada final a reflexão geral sobre os problemas de todo um povo, o que na indignação diante do caráter verdadeiro do que venha a ser este "pequeno burguês", Gorki passa a ver estes traços de espírito também nas manifestações clássicas do gênio russo, lugar controverso, e tanto, que muitos ainda não haviam procurado tais características aonde Gorki tentou enxergar o problema. Tal mira gorkiana que se voltava numa direção que era nada mais que a polêmica suprema levantada pelo autor em relação a cânones russos como Dostoiévski e Tolstói, no que Gorki produz um escândalo no mundo intelectual russo ao atestar num ensaio a presença do espírito pequeno burguês nas obras clássicas destes autores, entidades até então imaculadas da cultura literária russa.
Gorki estava, paradoxalmente, fascinado pela obra de Dostoiévski e Tolstói, e faz daí um rasgo crítico incendiário, pois ele percebia a hora própria que surgia na cultura e política russas de uma ruptura radical, que era nada mais que a hora certa dos melhores homens russos buscarem um meio de luta contra a opressão que fustigava um povo inteiro, pois que, na interpretação de Gorki destes cânones, eles pregavam o conformismo e a resignação, numa adequação ao estado de coisas vigente e a um ethos cultural até então estável e calcado em tradições. Para Gorki, portanto, se tratava de uma revolução política e também literária, com o realismo soviético estando prestes a emergir desta nova luta pelo povo, e que era um novo movimento de afirmação que Gorki intuía, uma nova força de revolta e desafio, que era nada mais que o intento de combater e derrubar tudo o que era mesquinho e sufocante, numa direção de vitalidade e de ideais sociais renovados.
Gorki, por conseguinte, passa a afirmar o amor, mas também a necessidade do ódio. Na peça "Os bárbaros", Lídia diz, referindo-se a uma das personificações gorkianas do espírito pequeno burguês: "Como isto é simples! Ele trocou a filha por um pouco de prata ordinária. E querem obrigar-nos a ter pena dessa gente, amá-la até ... isto agrada a vocês? Há de adiantar-lhes a comiseração? E pode-se acaso amá-los?". Também no famoso monólogo de Sátin, na peça "No fundo" (apresentada no Brasil com o título de "Ralé"), a personagem diz: "É preciso respeitar o homem! Não ter pena dele ... não o rebaixar com a comiseração ...". Para Gorki, portanto, nada pode haver de mais contrário à dignidade humana que a aceitação passiva do sofrimento ou a sua glorificação. A partir deste ponto, Gorki vai de encontro à exaltação dostoievskiana do sofrimento, às suas teorias sobre a aceitação do castigo como necessidade, que representa o clímax do teatro de Gorki, que é o combate contra a visão na qual a expressão do espírito de "pequeno burguês" tenta santificar o sofrimento, no qual o homem do povo se vê abatido pela perfídia, pela mesquinhez e pela hipocrisia.
 AS DUAS VERDADES
A reflexão de Gorki sobre o pequeno burguês, portanto, se dá também numa reflexão mais geral sobre a condição humana, e que levanta questões e conceitos como a verdade e a justiça. Assim, quando Tatiana, em "Pequenos burgueses", se dirige contra as verdades do velho Bessemenov, ela tenta  mostrar que existem duas verdades, ou seja, a verdade do mundo dos opressores, que é estável e conformado, buscando sempre e amiúde conservar-se como tal, e a outra verdade, a dos que se sentem oprimidos pela primeira verdade, daqueles que não conseguem mais enquadrar-se nela, e neste ponto Tatiana é a porta-voz de uma das principais ideias de Gorki.
A preocupação com a verdade, portanto, se torna uma linha constante no teatro de Gorki, como também em toda a sua obra. Deste modo, por exemplo, no monólogo famoso de "No fundo", Sátin afirma: "O homem - eis a verdade!". E na mesma peça, Luká mostra a inutilidade de uma procura de certas verdades, que podem ser nocivas e sufocantes. Em "Os veranistas", por sua vez, Riúmin retruca a outra personagem, a qual falava da necessidade de se ser sincero com as crianças, e de não esconder delas a verdade: "Ora, isto é arriscado! A verdade é rude e fria, e nela está sempre escondido o veneno sutil do ceticismo". E adiante, num sentido mais geral: "Sou contra esses desnudamentos, essas tolas tentativas de arrancar da vida as belas vestes da poesia. É preciso enfeitar a vida!". Por sua vez, a personagem Protassov, em "Os filhos do sol", encontra uma maneira menos comum de abordar o mesmo tema: "Os velhos têm raramente razão ... A verdade está sempre com o recém-nascido".
CONCLUSÃO
Também outros argumentos relacionados com o tema do pequeno burguês podem ser encontrados tanto no teatro como na ficção ou nos escritos críticos e polêmicos de Gorki, no que, em sua obra, há um verdadeiro entrelaçamento entre o que dizem algumas de suas personagens teatrais e os seus tipos de ficção e o pensamento verdadeiro do autor. Portanto, tanto como autor de artigos e ensaios, como também autor de teatro e de ficção, Gorki possui uma unidade de pensamento e uma linha constante na sua reflexão. E até mesmo na sua transição entre uma manifestação exaltada e panfletária, para uma forma mais disciplinada de expressão, sempre é o mesmo autor com seu caráter de certo modo imutável, na luta social do operário contra o pequeno burguês, no manifesto estético e biográfico de um autor politizado e com sensibilidade humanista.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31153/17/maximo-gorki-o-pequeno-burgues-e-o-operario