Brota de minha pequena máquina de calcular
o balbuciar do gerente de banco,
um pulsar se mediatiza nos contornos
desta redoma fútil dos compromissos.
Atrás dos vínculos familiares
um olor estranho se vira em fumaça,
eu tenho que ir a galope, como um anacoreta
que vive de brisa e insetos,
contar os causos de meus investimentos,
os dólares aziagos que sobram
do mormaço, eu vejo, e, no entanto,
tenho refugos entre os dentes,
e uma fome que tilinta metal e morte.
Arre! Que este relógio, marcando o tédio
com T e rima de farol, me pegue na
hora certa diante do espelho,
ou me pegue no lusco-fusco
da manhã mais auroral do santo dharma,
ou me eleve com ácidos e soros
diante da luz visionária de agendas
presidenciais, de ministérios sucintos
como o albor que se insinua no meu rosto
que vinca os veios com certezas pétreas
na mão invisível das lutas que sofri,
por estar é certo, eu sou poeta que
vivencia neste mormaço de brisa
as pazes visionárias do anacoreta,
eu pego minha carteira, acerto os ponteiros
de meu relógio, busco, ainda, e trôpego,
as marcas que deixei na parede, eu escuto,
ainda pasmo, as notícias que tocam em FM,
como na película de Costa-Gavras,
um míssil me entope as veias,
e me entorpeço com bombas seculares,
me enalteço com livros na lida diária,
pois eu sou metediço em assuntos de política,
e rateio os dólares com poucos idiotas,
não vou por aí como um andarilho,
tenho, por certo, que na hora certa
o expurgo delimita a área de atuação
dos trabalhos realizados, das metas
salvíficas e selváticas dos futuros incertos
que desenham o sino da liberdade,
no tráfego de Copacabana tenho que
amargar um gole de cerveja, e os notáveis
da sociedade me vêm com a angústia existencial
que nem na floresta mais densa
se apazigua, pois que decido, de chofre,
tocar guitarra como um ventríloquo
que vê astúcia em seu teatro de bonecos,
e na andança lírica os risos serão
mais bentos, mais cálidos os dramas
que o bruxo da sala de estar
elenca, nos seus arcanos,
com a foto que delineia meu sorriso,
pois em meu cálculo final
estava a morte sentida com frio,
e minha tour pelo mundo cão
fotografava a taça de vinho
para uma postagem virtual.
28/10/2016 Gustavo Bastos
sexta-feira, 28 de outubro de 2016
segunda-feira, 24 de outubro de 2016
JOHN KEATS, UM DOS EXPOENTES DO ROMANTISMO INGLÊS – PARTE III
“a excelência de toda arte está em sua intensidade”
A CONCEPÇÃO DE KEATS SOBRE
A SUA POESIA
Um dos conceitos que John Keats descreve em suas cartas é o
de intensidade. Em 21 de dezembro de 1817 escrevia a George e Georgiana que “a
excelência de toda arte está em sua intensidade, capaz de fazer o desagradável
(‘all desagreeables’) evaporar do estreito contato com Beleza e Verdade”. Algumas
partes da teoria poética de Keats, além da equação beleza-verdade e do
princípio da intensidade, está também o da “capacidade negativa” (negative
capability), exposto em carta de 22 de dezembro de 1817: “Várias coisas se
encaixam em minha mente, e de repente me ocorreu que qualidade contribuía para
formar um homem realizado, especialmente em literatura, e que Shakespeare
possuía tão desmesuradamente – quero dizer, a capacidade negativa, isto é,
quando um homem é capaz de manter-se em incertezas, mistérios, dúvidas, sem
nenhuma impaciente procura do fato e da razão. (...) Num grande poeta o senso
de beleza sobrepuja qualquer outra consideração, ou antes oblitera toda
consideração.”
Keats, assim, queria a sensação, e talvez o inefável, em vez
da solução racional, adotada por outros poetas. E outro conceito é o de esvaziamento
da personalidade para ocupar o objeto de que o poeta estiver cuidando, o que
equivale, mais simplesmente, a uma postura dramática. Lê-se em carta de 27 de
outubro de 1818, a Woddhouse: “Quanto à personalidade poética em si (quero
dizer essa espécie à qual pertenço, se sou alguma coisa; essa espécie diversa
do sublime wordsworthiano ou egotístico ...), ela não é ela própria – ela não
tem eu – é tudo e é nada – não tem personalidade – aprecia a luz e a sombra –
vive, seja ela má ou boa, alta ou baixa, rica ou pobre, vil ou nobre – tem
deleite igual ao conceber um Iago ou uma Imogênia. O que choca o filósofo
virtuoso deleita o poeta camaleão. (...) O poeta é o mais impoético de tudo o
que existe, porque não tem identidade, continuamente adentra e enche outro
corpo. O sol, a lua, o mar e os homens e mulheres, que são criaturas de
impulso, são poéticos e têm um atributo imutável; o poeta não tem nenhum,
nenhuma identidade. É certamente a mais impoética de todas as criaturas de
Deus.”
Nesse mesmo ano, mas antes (em fevereiro), Keats afirmara a
Taylor, em carta, que seguia três axiomas em sua poesia: “1 – achava que a
poesia deveria surpreender por um fino excesso, e não pela simplicidade;
deveria atingir o leitor como expressão de seus próprios e mais altos
pensamentos e parecer quase uma lembrança; 2 – seus traços de beleza não
deveriam ser incompletos, deixando assim o leitor sem respiração, em vez de
satisfeito. O nascimento, o progresso, o ocaso das imagens deveriam, como o
sol, vir-lhe naturalmente, brilhar sobre ela e pôr-se calmamente, embora com
esplendor, deixando-o no fausto do crepúsculo; 3 – se a poesia não viesse
naturalmente como as folhas à árvore, seria melhor não vir absolutamente.” Aqui
está alguns dos conceitos nos quais Keats se orientava, não esgotando, no
entanto, as possibilidades na qual realizou a sua poesia.
POEMAS:
HIPERÍON (III, 10-43): O poema, que aqui é um excerto, tem
na lira do mito sua abertura: “Musa, toca a harpa délfica, piedoso, o dedo/E,
vento algum do céu recusará espirar,/Como apoio, o gorjeio bom da flauta
dórica;/Pois vede! É isso em honra ao pai de todo o verso.” E o poema segue,
agora com os eflúvios do vinho: “Ferva na taça o vinho tinto, frio como/Um poço
a borbulhar;”. E relembra, a seguir, as origens geográficas do mito de Apolo,
numa relação entre sua origem e seus dons: “Ilha cardeal das Cíclades bem
abrigadas,/Delos, alegra-te com as tuas oliveiras,/Choupos, palmeiras a
sombrear as relvas, faias,/Onde o Zéfiro entoa o mais sonoro canto,”. E assim
uma imagem de abandono emerge no poema, em que Apolo deixa Leto, sua mãe, e sua
irmã gêmea, Ártemis, quando foi pelos lírios na sua perdição: “Uma vez mais
ainda, Apolo é o tema de outro!/Quando o Titã do Sol permanecia fúlgido/Entre
seus pares tristes, onde estava ele?/Juntas deixara Apolo sua mãe, a bela,/E a
gêmea adormecidas no caramanchão,/E ao crepúsculo matinal entrara a andar/Às
margens de um regato, junto dos salgueiros,/Pelos lírios do vale os passos
afundando.”. E da fuga à dor é um salto que se dá, Apolo, mesmo assim, ainda
tem seu arco de ouro, este que conhece a música e a harmonia, que é o símbolo
da razão numa das vertentes do caminho filosófico, e que aqui se consuma em
poesia, com a mitologia grega mais uma vez inspirando os poetas românticos, e aqui
levando a escrita de John Keats para um ideal longínquo: “Pela ilha inteira/Refúgio
não havia, nem caverna ao longe/Aonde não chegasse o murmurar das vagas,/Quase
extinto, porém, nalguns recessos verdes./Ele ouviu, e chorou; as lágrimas
brilhantes/Corriam devagar pelo seu arco de ouro.”
AO COMPULSAR, PELA
PRIMEIRA VEZ, O HOMERO DE CHAPMAN: De uma leitura exaltada de uma tradução de Homero, John Keats
produziu um poema para revelar a sua visão, poema que começa com a descrição da
epopeia homérica: “Já por impérios de ouro eu muito viajara,/Diversos reinos
vira – e quanto belo Estado!/Já muitas ilhas, a ocidente, eu circundara,/As
quais em feudo Apolo aos bardos tinha doado./Eu já sabia que em país mais
dilatado/Homero, o que pensava fundo, governara:” (...) “Cortez nem bem/O
Pacífico havia divisado, além –/Seus homens a se olhar, supondo com aflição –/E
ficou sem falar, num pico em Darien.”. Por entre os impérios e os diversos
reinos, mais uma vez aparece Apolo, e Keats tenta apreender, nesta aventura,
qual foi a visão de Homero, e que lhe dá assim qual era seu governo nestes
traços míticos do poema épico, a fonte fiel da cultura grega antiga aqui ganha
a versão de um poeta romântico, mais uma impressão de uma leitura do que uma
aproximação de Homero, o poema aqui funciona como tanto for, assim, numa
homenagem a Homero, mas que tem, de fato, sua orientação pela mitologia grega,
aqui diversas vezes a inspiração dos poetas românticos.
HINO A PÃ (I, 232-306):
O poema, um hino,
tendo Pã como a divindade mitológica que inspira os versos, também funciona
como uma descrição e uma exaltação, a verdade mítica que, na versão da poesia
romântica, ganha então o sentido do próprio poema, e do estro romântico
repetidas vezes, unindo o fenômeno da mitologia ao dos poetas românticos da
época de Keats: “Ó tu, cujo amplo teto de palácio se ergue/Sobre rugosos
troncos, a cobrir de sombra/Cicios eternos, o negror, a vida e morte/De flores
invisíveis em pesada paz;” (...) “E sentas para ouvir, durante horas solenes,/A
triste melodia dos caniços juntos/Em sítios desolados, onde com a umidade/A
cicuta aflautada cresce a estranha altura;”. Os passos de Pã são seguidos, e o
poema é este trajeto: “Ó tu, por cuja paz que abranda a alma, as rolas,/Pondo
paixão na voz, arrulham entre os mirtos/Na hora em que vagueias ao cair da
tarde”. E a flauta de Pã se harmoniza com a natureza, num idílio ao cair da
tarde: “Ó tu, para quem correm sátiros e faunos,/Prontos para servir; quer para
surpreender/A lebre que se agacha meio a dormitar;” (...) “- Por todos esses
ecos em redor de ti,/Ó, escuta-nos, rei sátiro!”. E a riqueza da música ganha
aqui sua descrição em versos, e o poder de Pã também é exaltado aqui: “Tu que
estranho nos dás indefiníveis sons/Que vêm desfalecer no côncavo dos vales”
(...) “sê a levedura/Que ao se expandir nesta massuda terra triste/Dá-lhe um
etéreo toque: - um novo nascimento;/Persiste sendo um símbolo da imensidão;/Um
firmamento refletido por um mar;”. O segredo da felicidade pode estar mais uma
vez no mito, e aqui como Pã, o ideal da poesia romântica de Keats, assim também
como de seus contemporâneos, deve ao mito grego muito de seu sentido e
conteúdo, o romantismo está definitivamente inserido num resgate da Hélade
antiga.
MEG MERRILLIES: De uma leitura esparsa Keats
produziu mais um poema, aqui não mais uma tradução que o levou a exaltar
Homero, mas de uma idealização rarefeita que veio de uma impressão própria de
um romântico, a dama Meg aqui ganha todo o seu poder: “A velha Meg era cigana/E
dos urzais tirava o seu sustento:/Por leito a parda grama da charneca,/A sua
casa era o relento.”. Cigana Meg, que mora no relento, e segue Keats, com sua
visão ideal: “Sozinha com a família numerosa,/Ela vivia folgazã.”. E a natureza
entra aqui em forma poética, mais uma das descrições em versos de um
personagem, temas comuns ao estro romântico, que quando não é um personagem
mítico, fala de alguma figura histórica, mas sempre como um hino, um ideal, um
resgate de algum valor perdido, ou ainda a homenagem que se dá bem em versos: “Toda
manhã, de madressilva fresca/Sua grinalda ela fazia,/E à noite o teixo escuro
lá do vale/Cantarolando ela tecia.”. E o poema finaliza com as virtudes de Meg,
esta amazona valente, segundo Keats: “Como a Rainha Margaret a velha Meg/Era
valente; alta qual amazona; a usar/Um velho cobertor vermelho como manto,/Um
chapéu de palha ela trazia./Deus lhe dê paz aos ossos em algum lugar,/Que ela
morreu faz quanto tempo, quanto!”. O poema romântico tem em Keats o mesmo
sentido de seus contemporâneos: lembrar de um ideal mítico ou de uma virtude de
um personagem histórico. A poesia romântica então não se trata só de uma poesia
sobre o amor, mas até muito mais de revelar em poesia as potências do mito
grego antigo.
POEMAS:
HIPERÍON (III, 10-43)
Musa, toca a harpa délfica, piedoso, o dedo
E, vento algum do céu recusará espirar,
Como apoio, o gorjeio bom da flauta dórica;
Pois vede! É isso em honra ao pai de todo o verso.
Faze afoguear-se tudo que tiver tom rubro;
Que a rosa, incandescendo forte, esquente a brisa,
E que as nuvens do anoitecer e da manhã
Em tosões voluptuosos pairem sobre os montes.
Ferva na taça o vinho tinto, frio como
Um poço a borbulhar; lábios sem sangue, as conchas,
Na areia ou no mar fundo, fiquem de escarlata,
Seja onde for nos labirintos seus; que a virgem
Core demais, qual se acolhesse um beijo ardente.
Ilha cardeal das Cíclades bem abrigadas,
Delos, alegra-te com as tuas oliveiras,
Choupos, palmeiras a sombrear as relvas, faias,
Onde o Zéfiro entoa o mais sonoro canto,
E o avelal, de que a sombra cobre os negros troncos:
Uma vez mais ainda, Apolo é o tema de outro!
Quando o Titã do Sol permanecia fúlgido
Entre seus pares tristes, onde estava ele?
Juntas deixara Apolo sua mãe, a bela,
E a gêmea adormecidas no caramanchão,
E ao crepúsculo matinal entrara a andar
Às margens de um regato, junto dos salgueiros,
Pelos lírios do vale os passos afundando.
Calara o rouxinol, algumas das estrelas
Tardavam pelos céus, e o tordo começara
A acalmar a garganta. Pela ilha inteira
Refúgio não havia, nem caverna ao longe
Aonde não chegasse o murmurar das vagas,
Quase extinto, porém, nalguns recessos verdes.
Ele ouviu, e chorou; as lágrimas brilhantes
Corriam devagar pelo seu arco de ouro.
(Este excerto do “Hiperíon”, que trata do primeiro passeio de
Apolo, tem versos famosos.)
AO COMPULSAR, PELA
PRIMEIRA VEZ, O HOMERO DE CHAPMAN
Já por impérios de ouro eu muito viajara,
Diversos reinos vira – e quanto belo Estado!
Já muitas ilhas, a ocidente, eu circundara,
As quais em feudo Apolo aos bardos tinha doado.
Eu já sabia que em país mais dilatado
Homero, o que pensava fundo, governara:
Porém seu límpido ar não tinha ainda aspirado,
Até que ouvi a voz de Chapman, brava e clara.
Como o que espreita o céu e colhe na visão
Algum novo planeta, assim fiquei então;
Ou como quando – de água o olhar – Cortez nem bem
O Pacífico havia divisado, além –
Seus homens a se olhar, supondo com aflição –
E ficou sem falar, num pico em Darien.
(Neste soneto Keats atingiu pela primeira vez expressão
própria. Escreveu-o certa manhã de out. de 1816, depois de ter varado a noite
com Clarke a ler trechos de Homero que o fascinaram, na tradução de Chapman.
Leigh Hunt publicou-o no mesmo ano, transcrevendo-o em artigo no Examiner. Os
reinos de ouro, do V.1, são o Eldorado (e também provavelmente as folhas de
ouro em relevo nas capas e lombadas dos livros, diz Barnard).)
HINO A PÃ (I, 232-306)
Ó tu, cujo amplo teto de palácio se ergue
Sobre rugosos troncos, a cobrir de sombra
Cicios eternos, o negror, a vida e morte
De flores invisíveis em pesada paz;
Que adoras ver as Hamadríades comporem
O cabelo desfeito, onde o avelal sombreia;
E sentas para ouvir, durante horas solenes,
A triste melodia dos caniços juntos
Em sítios desolados, onde com a umidade
A cicuta aflautada cresce a estranha altura;
Pensando em como te sentiste contrariado
E melancólico ao perder Sirinx, a bela,
- Pela fronte de leite de tua amada,
Pelos trêmulos meandros que ela percorreu,
Ouve-nos, grande Pã!
Ó tu, por cuja paz que abranda a alma, as rolas,
Pondo paixão na voz, arrulham entre os mirtos
Na hora em que vagueias ao cair da tarde
Pelos prados de sol, que os flancos delimitam
De teus reinos brejosos: tu a quem as figueiras
De largas folhas predestinam já os frutos
Maduros; as abelhas de amarelo cinto,
Seus favos de ouro; os campos das aldeias nossas,
Favas de bela flor e trigo com papoulas;
O pintarroxo a piar, filhotes que, ora em casca,
Cantarão para ti; os morangos rastejantes,
Seu frescor estival; ninfas de borboletas,
Suas asas perfeições – acerta-te depressa,
Pelo vento que agita o pinho da montanha,
Ó divino selvagem!
Ó tu, para quem correm sátiros e faunos,
Prontos para servir; quer para surpreender
A lebre que se agacha meio a dormitar;
Ou escalando precipícios escabrosos
Para salvar da goela da águia os cordeirinhos,
Ou para pôr de novo, com atração oculta,
Os pastores perdidos no caminho certo,
Ou para andar arfante em torno ao mar de espumas,
Ou para recolher as conchas mais bizarras
E, oculto, rias quando espiarem para fora;
Ou para que te encantem fantasiosos saltos
Quando elas se entrejogam na cabeça argênteas
Glandes de roble e as pardas pinhas dos abetos
- Por todos esses ecos em redor de ti,
Ó, escuta-nos, rei sátiro!
Tu que percebes o ruído das tesouras
Se um carneiro, a balir, de quando em quando vez
Juntar-se aos já tosqueados; tu, que a trompa soas,
Se os javalis, talando os tenros cereais,
Iram o caçador; que em torno à granja tocas
Para afastar a mangra e os danos do mau tempo;
Tu que estranho nos dás indefiníveis sons
Que vêm desfalecer no côncavo dos vales
E languem tristemente nos urzais estéreis;
Temível abridor das portas misteriosas
Que levam ao saber universal – contempla,
Grande filho de Dríope,
Tantos que vieram para realizar seus votos,
Com folhas sobre a testa!
Persiste sendo o abrigo não imaginável
De solitárias reflexões, como as que brincam
Com a compreensão até os próprios confins do céu
E põem então a mente vã; sê a levedura
Que ao se expandir nesta massuda terra triste
Dá-lhe um etéreo toque: - um novo nascimento;
Persiste sendo um símbolo da imensidão;
Um firmamento refletido por um mar;
Um elemento a encher o espaço intermediário;
Um ignoto – mas chega: humildes nós velamos
A fronte, erguendo as mãos; modestos inclinando-nos
E erguendo até aos céus um grito que os lacera,
Conjuram-te a ouvir o nosso humilde peã,
Sobre o monte Liceu!
(Quando em casa de Haydon o hino foi lido a Wordsworth,
declarou este que se tratava de “a pretty piece of Paganism”; Keats, afirma-o
Lorde Houghton, não gostou da observação, tomando-a como depreciativa. Shelley,
que não aprecia muito o Endimião, achava contudo que este excerto era “a prova
mais segura da excelência final” do poeta. Na verdade, o hino não é uma simples
peça pagã, pois usa a figura mitológica a modo de pretexto para uma rica visão
das coisas silvestres, sendo seu claro romantismo patente, por exemplo, na
última estrofe. As atividades de Pã são vistas através dos poetas elisabetanos.
Escreve Douglas Bush: “O deus-capro, divindade tutelar dos pastores, tem sido
há muito alegorizado em vários graus, de Cristo à ‘Natureza Universal’
(Sandys); aqui ele se torna símbolo da imaginação romântica, do conhecimento
supramortal”.)
MEG MERRILLIES
I
A velha Meg era cigana
E dos urzais tirava o seu sustento:
Por leito a parda grama da charneca,
A sua casa era o relento.
II
Suas maçãs eram amoras-pretas;
As suas passas, giesta em vagem;
Seu vinho, o orvalho da alva rosa brava,
Livro, do cemitério certa lajem.
III
Por irmãos tinha os montes escarpados,
Toda árvore de lárix por irmã:
Sozinha com a família numerosa,
Ela vivia folgazã.
IV
Muitas manhãs não tinha almoço,
E ao meio-dia nem jantar;
Em vez de ceia asperamente a Lua
Ela postava-se a fitar.
V
Toda manhã, de madressilva fresca
Sua grinalda ela fazia,
E à noite o teixo escuro lá do vale
Cantarolando ela tecia.
VI
E com seus dedos velhos, pardacentos,
Esteiras de caniço ela trançava,
E aos camponeses que encontrasse
Entre os arbustos, ela as dava.
VII
Como a Rainha Margaret a velha Meg
Era valente; alta qual amazona; a usar
Um velho cobertor vermelho como manto,
Um chapéu de palha ela trazia.
Deus lhe dê paz aos ossos em algum lugar,
Que ela morreu faz quanto tempo, quanto!
(Quando de sua viagem à Escócia, Keats e Brown estiveram na
cena de Guy Mannering, de Scott. Keats nunca lera o romance, mas ficou muito
impressionado com o tipo de Meg Merrillies, tal como lhe descrevera Brown. “Ele
pareceu de imediato intuir a criação do romancista, e, parando de repente no
caminho, num ponto onde havia profusão de madressilvas, rosas bravas e
digitális, misturou-se com sarça e giesta que enchiam os espaços entre as
rochas fragmentadas, exclamando: “Sem sombra de dúvida, neste lugar a velha Meg
ferveu frequentemente seu caldeirão.” (Lorde Houghton). Em data de 2 de julho
de 1818 enviou a balada a Fanny, sua irmã, e no dia seguinte a Tom.)
(Verso 9: Rainha Margaret: lendária e santa rainha da
Escócia, esposa do rei Malcolm Canmore, a qual, ida da Inglaterra, reformou a
Igreja céltica.)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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domingo, 23 de outubro de 2016
MÁXIMO GORKI, O PEQUENO BURGUÊS E O OPERÁRIO
“Gorki possui uma unidade de pensamento e uma linha constante
na sua reflexão”
O EMBATE DE GORKI
Quando Máximo Gorki concluiu a sua peça “Pequenos Burgueses”,
isto no fim de 1901, que foi a sua primeira incursão como autor teatral, Gorki consegue,
neste ponto, estabelecer uma constante no que seria a sua obra literária e
teatral, que era a reflexão sobre o tema das classes sociais. Mais
especificamente, portanto, entre uma classe estável, porém esvaziada, segundo a
interpretação que dará Gorki, que é traduzida no Ocidente por burguesia, mas
que na Rússia soviética terá suas particularidades, sendo mais uma classe ou
grupo social urbano, e o proletariado, este sendo idealizado na obra de Gorki.
Gorki muitas vezes, por ter esta visão ideal dos explorados, terá
parte de sua obra ganhando um caráter esquemático, como se vê em seu romance “A
mãe”. Mas, este embate se desdobrará por toda a sua obra, que é nada mais que
um choque de classes que se traduzirá como a disputa entre cosmovisões
antagônicas, uma representando o vício e outra a virtude, segundo a
interpretação gorkiana, o que também será uma constante na visão política do
marxismo, do leninismo, e no realismo soviético que surgirá na literatura e no
teatro da primeira metade do século XX.
A obra de Gorki, portanto, será uma arena entre o ímpeto para
a conquista de uma vida digna, de um lado, e a hipocrisia conformada da rotina,
de outro. Com o texto de Gorki e sua montagem sendo palco de uma luta entre a
estabilidade esvaziada e o desejo de
justiça, entre o que há de retrógrado e desumano, e um novo humanismo que terá
o operário como fonte de exaltação. E, então, Gorki dará, desde os seus primeiros
contos, até o seu último romance, "Vida de Klim Ságuin", a imagem e a
tradução deste embate de classes. Sendo, em suas primeiras estórias, como a
imagem dos vagabundos que buscam um meio de reação a uma situação social
baseada numa falsa estabilidade que, em Gorki, é denunciada como o mundo da
hipocrisia, de uma sujeição aparentemente normal, constituindo na obra de Gorki
como uma luta contra uma vida fundada na mediocridade e na mesquinhez.
O TRABALHO DE EXPRESSÃO
EM GORKI
Gorki então se dedicou, em sua obra, em descrever e analisar,
com minúcia, quais eram as forças sociais de sua época, sobretudo no contexto
russo, que era uma relação de forças que se traduzia como uma luta social por
um mundo melhor, com condições para a dignidade da vida. E, como dito no texto
anterior, com uma visão mais geral sobre a sua obra, Gorki por vezes, neste seu
ímpeto por justiça social, como autor ele não se terá, inicialmente, a
faculdade da contenção expressiva, e muitas vezes vociferará contra a
injustiça, num texto arrebatado, exaltado, interrompendo a fluência narrativa.
E isto, por sua vez, foi motivo de uma crítica negativa, sendo depois fonte de
um esforço do autor para ajustar sua linguagem, para então retomar a fluência natural
da existência, deixando mais civilizado nele o homem apaixonado, e com a sua veemência
aparecendo num novo contexto mais adequado para a sua realização estética no
teatro e na literatura.
E aqui temos o momento no qual Gorki deixa, na sequência de
sua obra, as personagens num desenvolvimento por uma linha mais inerente à
índole de cada um, abstendo o autor de ataques exaltados pelo que elas eram, e na
busca mais autoconsciente da compreensão destes personagens em função de um dado
contexto social. Com Gorki passando a alcançar um nível melhor de realização de
seu trabalho como autor. Bastando, portanto, na visão geral do que foi a sua
obra, uma comparação, por exemplo, entre o esquematismo de algumas das
personagens de seu romance "A mãe", e a vida autêntica de seus
vagabundos insolentes.
Neste sentido, o teatro passou a ter na obra do autor um novo
tipo de disciplina, pois quando Gorki deixou as personagens falarem por si próprias,
já num esforço de autodomínio, ele teve, mesmo em seu caráter panfletário, de
um homem da gesticulação e do discurso apaixonado, ainda presente em algumas de
suas personagens, sobretudo em seu trabalho teatral, uma forma que já não era
mais a do autor de “Os veranistas” ou de “Os filhos do sol”, pois já se tratava
de um autor obedecendo uma fluência narrativa natural, e não mais dos gestos
abruptos. E, falando de sua habilidade de construir um indivíduo com poucos
traços, centrando nisso o caráter discursivo das personagens, isto é, com elas
se revelando com as suas próprias falas, que se torna então uma característica
do trabalho de Gorki, podemos ver aí a influência salutar de Anton Tchekhov,
fazendo Gorki encontrar a tonalidade de seu teatro autoral.
O PEQUENO BURGUÊS NA
VERSÃO RUSSA
A atividade literária de Gorki foi marcada, então, pela luta
contra o meio e o espírito pequeno burguês. Sendo necessário buscar, agora, o
sentido desta classe na realidade social russa e sua tradução cultural, o que
significa lembrar que ela vem da denominação mieschtchanin, palavra russa que
se acomodou traduzir aqui no Ocidente como "pequeno burguês", mas que
no contexto russo tem um sentido mais lato, sendo um tipo de homem que não
pertencia nem à nobreza, nem ao campesinato, nem ao clero, isto é: era o
habitante das cidades. De outro modo, o burguês enriquecido era designado por
outros nomes, se referindo na maioria das vezes à sua ocupação profissional.
E o mieschtchanin, portanto, se puder fazer uma aproximação
com a palavra ocidental “burguês”, ela tem referência mais a um estado
estético, como o "gosto burguês", e tem ainda, e também, um sentido
moral, sendo o mieschtchanin, moralmente, o homem mesquinho, que em Gorki será
o inimigo de tudo o que é grande e belo. Por sua vez, não obstante estas
particularidades, podemos ter na tradução do título em português da peça de
Gorki como “Pequenos burgueses", uma justificativa plausível, pois traz em
seu bojo este estado de espírito da mesquinhez, da falsa estabilidade e da
hipocrisia, as quais Gorki tentará denunciar em suas peças, contos, romances,
autobiografia e textos críticos.
ACEPÇÃO DA BURGUESIA NA
OBRA GORKIANA
Mas, quanto ao tipo do burguês, teremos uma gama de sentidos
específicos que vão aparecer no trabalho de Gorki sobre o que é esta figura, e
isto tanto no contexto da realidade social russa, como também sendo um dos
modos de se compreender a posição do autor no enfrentamento que ele dá a esta
mesma realidade no conjunto da sua obra, revelando então novas acepções em que
esta classe se dá no texto gorkiano. Como temos, por exemplo, na peça “Pequenos
Burgueses”, quando o autor nos mostra uma de suas personagens, como o velho
Bessemenov, que é apenas um dos elementos da realidade que o escritor demonstrou
sob o nome e conceito de mieschtchanin.
Pois, quando Gorki faz a sua análise do burguês como
indivíduo, no momento em que isto aparece nas suas personagens, o autor apresenta
uma realidade bem mais complexa do que uma definição peremptória deste tipo de
homem ou classe de homens, já que, por demanda da narrativa, Gorki passa a
demonstrar este conjunto para além de um desenho determinístico, aparecendo o
mieschtchanin também em tons cambiantes, numa riqueza de matizes que subvertem
uma visão simplista ou de um contraste de branco e preto. E que ganha mais
sentido quando Gorki aborda a marginalidade, por exemplo, inserindo este
fenômeno no contexto burguês, com estes indivíduos da burguesia passando a ser
reduzidos implacavelmente, como se fossem seres condenados a viver dentro de
sua própria classe, numa redoma moral e de cosmovisões achatadas. O que se pode
ver, por exemplo, no embate da personalidade central de "Fomá
Gordiéiev", o primeiro romance de Gorki, no qual um indivíduo de caráter exuberante,
repleto de vitalidade, é cerceado e mutilado num cenário mesquinho e limitado de
uma cidade provinciana.
E a Tatiana de "Pequenos burgueses", por sua vez, é
mais um exemplo do desperdício incalculável deste achatamento moral e de ideias
que Gorki procura revelar, pois ela aparece na peça como a expressão de uma
existência inutilizada pelas circunstâncias dadas e difíceis de serem
superadas, por mais que alguém tente, e acaba sucumbindo na mediocridade. E
Tatiana, então, se vê destruída por este meio burguês. Por sua vez, a reflexão
gorkiana sobre os diferentes caminhos e destinos do indivíduo, dentro da classe
burguesa, o coloca, também, diante de exemplos reais, como o do burguês que se
revolta contra sua própria classe, como foi o caso de Sava Morozov e outros
industriais russos que financiaram o movimento bolchevique, como ainda de Nicolai
Schmidt, que era o dono da melhor fábrica de móveis finos de Moscou, e que
acabou preso pela polícia política, por ocasião da revolta de dezembro de 1905,
sob a acusação de conivência com os revolucionários, e que foi torturado
barbaramente, o que levou Gorki a produzir um artigo indignado sobre o caso.
Nesta análise dos tipos ou indivíduos da burguesia, Gorki
consegue, nesta busca, produzir um de seus romances mais vigorosos e
impactantes, que foi o "O negócio dos Artamonov", que constitui numa
espécie de saga de uma família de industriais, tendo o mesmo tema lhe inspirado
a escrever a peça em que surge a sua personagem teatral mais poderosa: o velho
burguês de "Iegor Bulitchóv e Outros", que é um homem sem caráter e
de uma lucidez diabólica que, contudo, está cercado de uma malta de medíocres
aproveitadores, donde seu apego existencial, por sua vez, que tem em si uma
vitalidade que leva ao entendimento de sua morte como uma verdadeira tragédia.
E, falando de sua trilogia autobiográfica, Gorki aqui também revela uma análise
visceral e relevante, que vai fundo no que é o meio burguês, sendo esta
trilogia, portanto, um documento importante e irrepreensível desta realidade
social no contexto russo, um documento que ganha tanto o caráter literário da
narrativa, como o caráter humano de uma vida, que é a do autor e sua história.
O CARÁTER MONOLÍTICO DO
OPERÁRIO EM GORKI
Diante da complexidade dada ao sujeito burguês na obra de
Gorki, é de difícil compreensão o momento e a construção que se dá nesta mesma
obra do homem e conjunto de homens da classe operária, pois ele aparece, muitas
vezes, numa matiz monocromática e num tom monocórdio, numa abordagem amiúde
idealizada, sem senso crítico. Tal fenômeno leva Gorki, como autor, embora
muito celebrado como o fundador da literatura proletária, a um tipo do operário
que surge unidimensional, sempre repleto de virtudes e portador da vida social
verdadeira, sem defeitos, imaculado. É o que fica patente, por exemplo, no
romance "A mãe", uma limitação que é apontada, inclusive, por críticos
literários marxistas, tal como Lunatchárski, e com tal tendência gorkiana se
consolidando, de modo mais evidente ainda, no seu teatro. Para Gorki, portanto,
o operário é um ser quase ideal, enquanto o burguês, por sua vez, é um ser
oscilante, com altos e baixos, instável e contraditório. Tal fato já aparece,
de algum modo, no personagem Nil, de "Pequenos burgueses", e se
tornará mais evidente em "Os inimigos", no que se dá um desenho
cênico idealizado e proselitista do princípio marxista da luta de classes.
O ASPECTO INTELECTUAL
DO BURGUÊS EM GORKI
Em Gorki temos diferentes tipos psicológicos do burguês que
aparecem em sua obra, que pode ser, por exemplo, a do burguês liberal, o qual busca
amainar o rigor da exploração do capital, mantendo, no entanto, a separação
entre as classes sociais diferentes, e que resulta sempre em fracasso, pois o
abismo que o capitalismo sempre abre não tem, por sua vez, intenção de
patrocinar reformadores sociais, isso sem falar na ideia de revolução
proletária, o que hoje é visto, num senso crítico empiricamente verificado,
tanto da derrocada soviética, de um lado, como do crime ambiental do consumo e
do capital, de outro, em abismos históricos e novos abismos sem solução, no
momento. Ou seja, o burguês liberal, o qual tenta amenizar tal abismo, ainda se
vê, contudo, limitado pelos próprios meios em que as relações sociais se
estabelecem, e nas quais as classes sociais, mesmo com tentativas de
mobilidade, também alimentam um espírito de corpo que se comportam como
estanques. Parece que, no fim, todos têm consciência das condições dadas, e os
que são proprietários não vão mudar, e os de baixo, por sua vez, não poderão se
movimentar para além de um certo limite.
Gorki, por sua vez, quando se volta para a situação do
intelectual na sociedade burguesa, ainda estará longe, por exemplo, da ideia
gramsciana de intelectual orgânico, pois a perspectiva soviética que irá logo
eclodir terá fonte marxista e fundamentação leninista. Porém, Gorki ainda se
refere ao intelectual burguês, e que é um tipo de preocupação do autor que
aparecerá desde seus primeiros escritos, o que leva Tchekhov, em carta dirigida
a Gorki, a dizer: “Na descrição que você faz de pessoas da intelligentsia,
sente-se uma tensão, uma espécie de circunspecção, o que não se deve ao fato de
os ter observado pouco; não, você os conhece, mas não sabe seguramente por que
lado os abordar".
Tal observação de Tchekhov tem um certo fundamento, se for
levado em conta escritos tal como o romance "Várienka Oliéssova", tendo,
no entanto, na sequência da obra gorkiana, já depois da morte de Tchekhov, uma
evolução da análise dos tipos intelectuais, o que será, portanto, um clímax
para o trabalho de Gorki, embora ainda houvesse outros momentos em que a
caricatura fosse também um modo de abordagem de Gorki, mais alimentada pelo
rancor social do autor ou suas idiossincrasias, mesmo que Gorki tenha tido, no
seu contato com o meio intelectual russo, um conhecimento direto e vasto da
evolução das ideias e dos movimentos culturais, e do contexto de vitalidade que
muitas vezes envolviam a realidade social russa.
O OPERÁRIO E O BURGUÊS,
A VONTADE E A RAZÃO
Na sequência, por exemplo, numa nota ao conto "O
vigia", Gorki escreveu: "A sensação alarmante do afastamento
espiritual da intelligentsia, como princípio racional, em relação à
espontaneidade do popular, perseguiu-me toda a vida com alguma insistência. Em
meu trabalho literário, abordei mais de uma vez esse tema, e ele suscitou contos
como "Meu companheiro de estrada" e outros. Pouco a pouco, esta
sensação transformou-se num pressentimento de catástrofe. Encerrado, em 1905,
na Fortaleza de S. Pedro e S. Paulo, tentei desenvolver o mesmo tema na peça
fracassada "Os filhos do sol". Se a separação entre a vontade e a
razão representa um difícil drama na existência do indivíduo, na vida do povo
esta separação constitui uma tragédia".
"A separação entre a vontade e a razão", por sua
vez, seguindo aqui a percepção gorkiana, pode ser exemplificada no personagem
Piotr de "Pequenos burgueses", quando o próprio Gorki escreve:
"Piotr deseja viver sossegado, sem obrigações com as pessoas, mas sente
que viver assim é indigno do homem, procura uma justificação para si mesmo, não
a encontra e se irrita". Por outro lado, Piotr pode representar um tipo de
elo entre o intelectual que ainda pode se revoltar e o outro lado dos pequenos
burgueses, que são conformados, embora eficientes em sua condição.
A POLÊMICA LITERÁRIA DE
GORKI
Por sua vez, na abordagem que Gorki realiza em sua obra sobre
o burguês, o autor parte de problemas de um indivíduo, e neste ponto de partida
tem como chegada final a reflexão geral sobre os problemas de todo um povo, o
que na indignação diante do caráter verdadeiro do que venha a ser este
"pequeno burguês", Gorki passa a ver estes traços de espírito também
nas manifestações clássicas do gênio russo, lugar controverso, e tanto, que
muitos ainda não haviam procurado tais características aonde Gorki tentou enxergar
o problema. Tal mira gorkiana que se voltava numa direção que era nada mais que
a polêmica suprema levantada pelo autor em relação a cânones russos como
Dostoiévski e Tolstói, no que Gorki produz um escândalo no mundo intelectual
russo ao atestar num ensaio a presença do espírito pequeno burguês nas obras
clássicas destes autores, entidades até então imaculadas da cultura literária
russa.
Gorki estava, paradoxalmente, fascinado pela obra de
Dostoiévski e Tolstói, e faz daí um rasgo crítico incendiário, pois ele
percebia a hora própria que surgia na cultura e política russas de uma ruptura
radical, que era nada mais que a hora certa dos melhores homens russos buscarem
um meio de luta contra a opressão que fustigava um povo inteiro, pois que, na
interpretação de Gorki destes cânones, eles pregavam o conformismo e a resignação,
numa adequação ao estado de coisas vigente e a um ethos cultural até então
estável e calcado em tradições. Para Gorki, portanto, se tratava de uma
revolução política e também literária, com o realismo soviético estando prestes
a emergir desta nova luta pelo povo, e que era um novo movimento de afirmação
que Gorki intuía, uma nova força de revolta e desafio, que era nada mais que o
intento de combater e derrubar tudo o que era mesquinho e sufocante, numa
direção de vitalidade e de ideais sociais renovados.
Gorki, por conseguinte, passa a afirmar o amor, mas também a
necessidade do ódio. Na peça "Os bárbaros", Lídia diz, referindo-se a
uma das personificações gorkianas do espírito pequeno burguês: "Como isto
é simples! Ele trocou a filha por um pouco de prata ordinária. E querem
obrigar-nos a ter pena dessa gente, amá-la até ... isto agrada a vocês? Há de
adiantar-lhes a comiseração? E pode-se acaso amá-los?". Também no famoso
monólogo de Sátin, na peça "No fundo" (apresentada no Brasil com o
título de "Ralé"), a personagem diz: "É preciso respeitar o
homem! Não ter pena dele ... não o rebaixar com a comiseração ...". Para
Gorki, portanto, nada pode haver de mais contrário à dignidade humana que a
aceitação passiva do sofrimento ou a sua glorificação. A partir deste ponto,
Gorki vai de encontro à exaltação dostoievskiana do sofrimento, às suas teorias
sobre a aceitação do castigo como necessidade, que representa o clímax do
teatro de Gorki, que é o combate contra a visão na qual a expressão do espírito
de "pequeno burguês" tenta santificar o sofrimento, no qual o homem
do povo se vê abatido pela perfídia, pela mesquinhez e pela hipocrisia.
AS DUAS VERDADES
A reflexão de Gorki sobre o pequeno burguês, portanto, se dá
também numa reflexão mais geral sobre a condição humana, e que levanta questões
e conceitos como a verdade e a justiça. Assim, quando Tatiana, em
"Pequenos burgueses", se dirige contra as verdades do velho Bessemenov,
ela tenta mostrar que existem duas
verdades, ou seja, a verdade do mundo dos opressores, que é estável e conformado,
buscando sempre e amiúde conservar-se como tal, e a outra verdade, a dos que se
sentem oprimidos pela primeira verdade, daqueles que não conseguem mais
enquadrar-se nela, e neste ponto Tatiana é a porta-voz de uma das principais
ideias de Gorki.
A preocupação com a verdade, portanto, se torna uma linha constante
no teatro de Gorki, como também em toda a sua obra. Deste modo, por exemplo, no
monólogo famoso de "No fundo", Sátin afirma: "O homem - eis a
verdade!". E na mesma peça, Luká mostra a inutilidade de uma procura de
certas verdades, que podem ser nocivas e sufocantes. Em "Os
veranistas", por sua vez, Riúmin retruca a outra personagem, a qual falava
da necessidade de se ser sincero com as crianças, e de não esconder delas a
verdade: "Ora, isto é arriscado! A verdade é rude e fria, e nela está
sempre escondido o veneno sutil do ceticismo". E adiante, num sentido mais
geral: "Sou contra esses desnudamentos, essas tolas tentativas de arrancar
da vida as belas vestes da poesia. É preciso enfeitar a vida!". Por sua
vez, a personagem Protassov, em "Os filhos do sol", encontra uma maneira
menos comum de abordar o mesmo tema: "Os velhos têm raramente razão ... A
verdade está sempre com o recém-nascido".
CONCLUSÃO
Também outros argumentos relacionados com o tema do pequeno
burguês podem ser encontrados tanto no teatro como na ficção ou nos escritos
críticos e polêmicos de Gorki, no que, em sua obra, há um verdadeiro
entrelaçamento entre o que dizem algumas de suas personagens teatrais e os seus
tipos de ficção e o pensamento verdadeiro do autor. Portanto, tanto como autor
de artigos e ensaios, como também autor de teatro e de ficção, Gorki possui uma
unidade de pensamento e uma linha constante na sua reflexão. E até mesmo na sua
transição entre uma manifestação exaltada e panfletária, para uma forma mais
disciplinada de expressão, sempre é o mesmo autor com seu caráter de certo modo
imutável, na luta social do operário contra o pequeno burguês, no manifesto
estético e biográfico de um autor politizado e com sensibilidade humanista.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31153/17/maximo-gorki-o-pequeno-burgues-e-o-operario
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