PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 31 de março de 2018

SOBRE DOWNLOADS NA INTERNET

"Não temos como regular a internet de forma rígida”

A questão da pirataria digital, se é que se trata tão somente de pirataria, ganhou corpo e ficou na ordem do dia quando se estabeleceu a tentativa polêmica do Congresso dos EUA de coibir tais práticas com dois projetos de lei anti-pirataria chamados pelos acrônimos SOPA e PIPA.
O SOPA (Stop Online Piracy Act) com tradução livre por “Pare com a pirataria on-line” e o PIPA (Protect IP Act) que é o ato para proteção da propriedade intelectual, acabaram sendo arquivados pelo Congresso americano, o que se deveu às manifestações ou interrupções de serviços de sites importantes como Google e Wikipedia (este que ficara 24 horas fora do ar), e após protestos de centenas de sites, sendo então decidido por alguns parlamentares a retirada de apoio a essas propostas.
O SOPA é um projeto de lei com regras mais rígidas contra a pirataria digital nos EUA. Ele prevê o bloqueio no país, por meio de sites de busca, por exemplo, a determinado site acusado de infringir direitos autorais. Logo após o SOPA, o fundador do Megaupload, Kim “Dotcom” Schmitz, foi preso em sua mansão na Nova Zelândia, e o site foi fechado pelo FBI. Logo, outros sites similares também fecharam as portas ou excluíram arquivos que pudessem infringir direitos autorais. E o pior, algumas pessoas foram presas por download ilegal.
Outro projeto mais ambicioso, o ACTA (Anti-Counterfeiting Trade Agreement), acordo internacional que promete limitar a internet, quer implementar propostas semelhantes às do SOPA e PIPA no mundo inteiro, e alguns países já aderiram a este projeto. O foco do ACTA não é só a internet e a pirataria digital, pois cobre também a pirataria física, e estipula regras duras sobre direitos autorais.
Aqui no Brasil temos a APCM (Associação Antipirataria de Cinema e Música), criada em meados de 2007, que foi responsável pelo fechamento da maior comunidade de compartilhamento de músicas do extinto Orkut, a Discografias, comunidade esta que representou uma "era de ouro" de downloads e uploads, da qual eu tive o prazer de participar. Outras comunidades foram criadas após este ataque da APCM, mas nunca com o sucesso da finada Discografias, restando agora o Google como fonte de links para downloads.
Bom, voltando ao SOPA, a proposta era ter penas de 5 anos de prisão para os condenados por compartilhar conteúdo pirata por 10 ou mais vezes ao longo de 6 meses. Sites como Google e Facebook, por exemplo, também poderiam ser punidos pela acusação de “permitir ou facilitar” a pirataria. Ferramentas de busca como o Google teriam que remover dos resultados das pesquisas endereços que compartilhem conteúdo pirata. O SOPA tinha apoio de emissoras de TV, gravadoras de músicas, estúdios de cinema e editoras de livros, como, por exemplo, Disney, Universal, Paramount, Sony e Warner Bros.
Contra o projeto estavam empresas de tecnologia como Google, Facebook, Wikipedia, Craiglist, WordPress, entre outros. Estes eram contra os projetos de lei SOPA e PIPA, alegando que, caso aprovados, eles teriam menos liberdade da internet e dariam poderes excessivos para quem quisesse tirar endereços do ar, prejudicando o funcionamento da web em todo o mundo.
Por fim, a Casa Branca também se manifestou contra os projetos, afirmando que eles podem atentar contra a liberdade de expressão na internet. A Casa Branca afirmou em mensagem publicada em seu blog que “os projetos de lei reduzem a liberdade de expressão, ampliam os riscos de segurança na computação ou solapam o dinamismo e inovação da internet global”.
O fato é que desde que surgiram os programas P2P (ponto a ponto, computador a computador) como Napster, AudioGalaxy, Soulseek, eMule e os arquivos Torrent, que facilitavam a troca de arquivos de músicas e filmes, além dos sites em que você podia tanto armazenar conteúdo quanto fazer download, como o extinto Megaupload, além de Fileserve, 4shared, Rapidshare, Filesonic, Mediafire, dentre outros, começou esta briga entre grandes corporações ou empresas, e esta nova forma de compartilhamento de conteúdo que, diziam, infringiam regras de direitos autorais.
Mas, numa perspectiva histórica, esta briga se parece muito de quando surgiram os hoje obsoletos VHS (que poderia ameaçar a indústria do cinema, diziam) e as famigeradas fitas cassete (que, por sua vez, poderiam ameaçar a indústria da música). E hoje é uma repetição dos mesmos problemas e dilemas que, na verdade, não são verdadeiros. Uma vez que é a indústria cinematográfica ou fonográfica que têm que se adaptar aos novos tempos, pois, assim como o VHS ou as fitas cassetes não destruíram a indústria da música ou do cinema, também não acredito que o MP3 e os arquivos gratuitos de filmes vão ameaçar tais indústrias. Sendo uma saída alternativa para o dilema os serviços de streaming, que garantem alguns direitos ao autor.
Novas soluções aparecem para resolver esta briga entre a indústria cultural corporativa e a propagação de arquivos gratuitos na internet, que são os downloads pagos e o arquivamento em nuvem, além do streaming como citei. Vejo aqui novas modalidades que estão adaptadas ao mundo contemporâneo e que podem conviver, sem muita dificuldade, com a indústria cultural tradicional.
Não temos como regular a internet de forma rígida, mas sim colocar marcos mínimos de regulação que equilibrem a relação de forças entre tradição e inovação, direitos autorais e liberdade, pois não há como ter um controle absoluto sobre a internet, já que, ao invés de combatermos ingloriamente os downloads, deveríamos sim, combater o verdadeiro problema desta anarquia dentro da internet, que são os sites de pedofilia, neonazistas ou de conteúdo racista ou preconceituoso, aí sim teremos um mundo civilizado de fato e teremos a chance de ver também, não um marco regulatório rígido sobre a internet, mas antes de tudo um marco civilizatório da internet para o mundo real e físico.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/38190/14/sobre-downloads-ma-internet


O LIVRO DISCUSSÃO DE JORGE LUIS BORGES – PARTE II

“a amplitude de um texto canônico não sofre com a ação livre de um tradutor”

A DURAÇÃO DO INFERNO

Jorge Luis Borges se confronta aqui com um dogma que lhe é incômodo, e creio ser um dos argumentos mais contra-intuitivos e perturbadores tanto do dogma católico do inferno, como da ideia geral que se tem de castigo infinito. O campo especulativo aqui tem um entrave filosófico diante de uma intenção religiosa dogmática que ignora o fim e o processo como algo provisório. Quando Borges nos diz, abrindo seu texto : “Especulação que vem se tornando cansativa com o passar dos anos, essa do Inferno.” Aqui ele já acusa a ideia de inferno incessante como algo tanto enfadonho como exaustivo, isto é, se cansa de pensar sobre ou imaginá-lo, este inferno em que o castigo é perene, burlando qualquer conceito mais verossímil de justiça divina.
E Borges então ainda nos lembra, e isto com a ideia crítica embutida que ele logo explicará, que já havia um inferno físico, as fogueiras eclesiásticas do Santo Ofício, aqui, este sim, um tormento temporal, e que Borges logo nos diz ser “uma metáfora do imortal e da dor perfeita sem destruição que conhecerão para sempre os herdeiros da ira divina”.
Nem Dante, segundo Borges, segue tal entusiasmo por uma ideia tão cruel, e então o autor Borges se depara com um dogma que se desgasta, e temos então o episódio irônico, já no século XIX, de um poeta como Baudelaire, que trata tal dogma com ironia, fazendo do inferno o seu ideal, simulando uma adoração do castigo, mas que no contexto do poeta francês é somente mais um sintoma da decadência de tal dogma diante da realidade e da ideia de justiça divina, mais uma vez.
E Borges então nos esclarece, dizendo : “a noção de inferno não é privativa da Igreja católica (...) seja o inferno um dado da religião natural ou apenas da religião revelada, o certo é que para mim nenhum outro assunto da teologia tem igual fascinação e poder”. Borges então desfaz a ilusão do senso comum de uma ideia primária de fogo, espetos e tenazes, imagem desgastada por escritores e autores, e que carrega também o conceito precípuo de “lugar de castigo eterno para os maus”. E o que vira objeto de conflito e contestação, tanto por parte de Borges, como de vários outros, é a ideia de eternidade da pena.
Borges, então, levanta o argumento do teólogo evangélico Rothe, em 1869, de que “eternizar o castigo é eternizar o Mal”. Pois se tem uma ideia mais cara contra o que seja o inferno como castigo eterno, que é a ideia mais clara de uma teologia que sabe que a criação do mundo é obra de amor, e a predestinação entra nesta ideia como o destino universal da glória.
Por fim, aqui se conclui a posição borgiana diante de tal inferno : “Creio que no nosso impenetrável destino, em que regem infâmias como a dor física, todas as coisas extravagantes são possíveis, até mesmo a perpetuidade de um Inferno, porém acredito também que é uma irreligiosidade crer nele”.

AS VERSÕES HOMÉRICAS

Temos uma certa relatividade em relação com a inferioridade das traduções, para Borges, uma superstição, mesmo que lhe tenha passado a questão da tradução de Quixote como algo que não destroça o texto original, ao contrário de um poema de Gôngora, temos também o fato de que a tradução não deve ser um fator negativo em relação com os textos originais, uma vez e até mesmo quando estes texto originais se perdem no tempo, como quando se fala de textos da Antiguidade como  nos exemplifica Borges com a Odisseia de Homero.
Ou seja, da relatividade da qualidade de tradução, passamos à constatação borgiana de que a amplitude de um texto canônico não sofre com a ação livre de um tradutor, pois já quando um leitor se volta para um clássico como é a Odisseia, já teremos ouvido sobre a obra tanto e de tal maneira, que sempre que alguém se volta para textos como a Odisseia de Homero ou mesmo trechos bíblicos, já se trata de uma segunda leitura.
E ficamos com o fenômeno de que a tradução, neste caso, não tem o que destruir, pois o cânone é indestrutível, e seu caráter de mensagem já foi passado, já está cristalizado na consciência histórica, e a tradução, qualquer que seja o estilo ou método desta, só dá seguimento a um texto que não tem mais como desaparecer, mesmo que seus originais antigos sejam completamente desconhecidos da leitura contemporânea.
A riqueza e amplitude da tradução estão aqui desde já garantidas, as relações de grandezas da obra são abertas e plenamente adaptáveis. Há várias versões da Odisseia de um lugar incógnito e universal da obra que, no entanto, não se desfez.

NOTA SOBRE WALT WHITMAN

A busca de um livro absoluto, um livro que funcione como um tal arquétipo platônico que reúna em si todos os livros foi um sonho e uma prática de muitos autores, no que partimos de um Apolônio de Rodes, por exemplo, passamos por Camões, as transmigrações pitagóricas da alma em Donne, e a grandeza de um Milton que se dá com as culpas e o Paraíso, todos em busca de grandeza, tomar a obra absoluta pelo que ela implica de clichê, uma enormidade que tenha toda a História e toda a mitologia contida dentro dela.
Apenas quando Gôngora subverteu este conceito de livro absoluto como aquele que comporta uma grandeza histórica ou civilizatória, temos então esta ruptura do autor que nos dá este livro absoluto tratando de coisas frívolas que é o Soledades. O extremo então chega à Mallarmé que vai além do trivial e nos dá uma poesia sobre negativos, sobre ausências. Aqui o poeta segue a ideia de que as artes tendem à música, esta arte em que a forma é o fundo.
Temos ainda casos como o de Yeats que, em certo momento da virada para o século vinte, tenta flertar com um tipo de memória geral ou genérica da humanidade, que antecipa de certo modo os ulteriores arquétipos de Jung. E ainda, de outro lado, atos fundantes do Homem passam pela engenharia de Finnegan’s Wake, com a simultaneidade desta obra em relação com épocas diferentes, obra de Joyce que encerra um trajeto imenso do autor. E ainda, por fim, na poesia, temos Pound e T.S.Eliot no manejo poético de anacronismos para a construção de uma poesia de expressão aparente de eternidade.
Mas, em se tratando de Whitman, em 1855, temos aqui, as palavras do poeta inglês Lascelles Abercrombie, que diz : “Whitman extraiu de sua nobre experiência essa figura vívida e pessoal que é uma das poucas coisa grandes da literatura moderna : a figura dele mesmo”.
E temos um autor, Whitman, que Borges compara com sua biografia e sua obra, como um Ulisses que conta grandes feitos, mas que na sua vida real nunca saíra de Ítaca. As biografias de Whitman então são sempre este contraste gritante entre o autor e a pessoa, e Borges então nos denuncia que existem dois Whitmans : “o amistoso e eloquente selvagem de Leaves of Grass e o pobre literato que o inventou”. Por fim, Borges então constata, quando se fala de poesia e de poetas, que : “Byron e Baudelaire dramatizaram, em volumes ilustres, suas desgraças; Whitman, a sua felicidade”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/38191/17/o-livro-discussao-de-jorge-luis-borges-parte-ii










terça-feira, 27 de março de 2018

O MODERNISMO E A SEGUNDA GERAÇÃO COM AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT

“Com o Modernismo temos então um projeto de reformulação na criação literária”

O Modernismo é o nome do movimento de renovação cultural e literária no Brasil que se deu a partir da Semana de Arte Moderna, esta que foi realizada em fevereiro de 1922, em São Paulo, sob influência da vanguarda europeia, sobretudo o futurismo, este vindo dos ares de Paris.
Com o Modernismo temos então um projeto de reformulação na criação literária e no campo da arte como um todo, que vai romper com o exaurido Parnasianismo, velharia literária, a esta altura, que vinha carregada de erudição afetada e esteticismo tradicional exagerado.
Seguindo a nova mentalidade de vanguarda, os artistas e escritores brasileiros da década de 20 resolvem então realizar em São Paulo durante três dias, em fevereiro de 1922, sob a direção de Mário de Andrade, contando com figuras como Menotti del Picchia, Oswald de Andrade, Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, a hoje celebrada Semana de Arte Moderna. Movimento este que se expandiu e ganhou novos adeptos como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
Dentre vários movimentos decorrentes do Modernismo, temos um predomínio dos temas nacionais, como o Pau Brasil, e também uma veia espiritualista, na qual se destacam escritores como Jorge de Lima, Murilo Mendes e Tasso da Silveira.
E vemos também a eclosão, posteriormente, de uma segunda geração de escritores, a Geração de 1930, com figuras como Augusto Frederico Schmidt e Vinícius de Moraes que, por sua vez, se empenham a um retorno aos temas universais, com menos ímpeto nacionalista, mas mantendo, na forma, a poesia moderna e de vanguarda, mas que era, também, um tipo de poesia reflexiva, mais serena.

POEMAS :

MAR DESCONHECIDO (1942)

MAR DESCONHECIDO : O poeta aqui sente o mar dentro de si, e ele sente este volume que lhe faz ficar em prece, o poeta busca aqui a serenidade que ele julga por orações intraduzíveis, no que segue : “Sinto viver em mim um mar ignoto,/E ouço, nas horas calmas e serenas,/As águas que murmuram, como em prece,/Estranhas orações intraduzíveis.”. E o poeta segue, avante, no que ele agora então liga o mar com a música, em uma harmonia que lhe traz este poema que aqui ele nos dá, no que temos : “Sinto viver em mim um mar de sombras,/Mas tão rico de vida e de harmonias,/Que dele sei nascer a misteriosa/Música, que se espalha nos meus versos,/Essa música errante como os ventos,/Cujas asas no mar geram tormentas.”.

SONETO A CAMÕES : O soneto nos aparece aqui como a forma que é recuperada pela geração de Schmidt, depois de uma primeira onda de vanguarda modernista, e é aqui um soneto dedicado a Camões, um dos cânones da língua portuguesa, no que temos : “As tuas mágoas de amor, teus sentimentos/Diante das leis que regem nossas vidas,” (...) “As tuas dores de amar sem ser amado,/De procurar um bem que não se alcança,/E no canto clamar desesperado/Pelo que nunca vem quando se busca.” (...) “As tuas mágoas de amor, tuas fundas queixas,/Como uma fonte, ficarão chorando/Dentro da língua que tornaste eterna.”. As dores de amor, as desditas de um coração amante, e que flui como a língua eterna camoniana, o maior de todos na poesia tradicional portuguesa, pois.

CONHECESTE AS HORAS ... : O poema se debruça sobre a amada e lamenta o infortúnio, as horas amargas que cita o poema, em que se deu uma luta sem consolo, no que temos : “Conheceste as horas amargas e monótonas,/Conheceste o amor infeliz e sem glória,/Conheceste a luta sem consolo,/E a pobreza velou sempre teu sono./Teu corpo frágil sofreu um dia duramente,/E sentiste o mundo insensível e perdido/Para a tua inocente ambição./O pouco com que sonhaste esteve longe./Sempre longe de ti, ó triste amada.”. E o poema tem um esgar de luz, talvez um consolo inútil, que traz ao poeta a doçura do olhar, ou ainda a voz e o afago que conforta a alma amante deste poeta que cita as horas diante da fragilidade, no que segue : “No entanto, o teu olhar é bom e simples,/E a tua voz, meu amor, é clara e doce,/E o afago de tuas mãos é inocente e feliz!”.

ELEGIA : A elegia, sempre ligada ao luto e à morte, nos dá esta beleza que canta o poeta, fascinado, no que temos : “Tua beleza incendiará os navios no mar./Tua beleza incendiará as florestas./Tua beleza tem um gosto de morte./Tua beleza tem uma tristeza de aurora.”. O gosto de morte e a tristeza da aurora, eis que o poeta segue no seu gesto de idolatria de sua figura amorosa, no que segue : “Tua beleza é uma beleza de rainha./Dos teus gestos simples, da tua incrível pobreza,/É que nasce essa graça/Que te envolve e é o teu mistério.” (..) “Nasceste para o amor :/E os teus olhos não conhecerão as alegrias,/E os teus olhos conhecerão as lágrimas sem consolo.”. E o poeta então faz a junção desta beleza que ele canta com o mistério, no que temos :  “De ti é que nasce esse sopro misterioso/Que faz estremecer as rosas/E arrepia as águas quietas dos lagos./Incendiarei florestas, incendiarei os navios no mar,/Para que a tua beleza se revele/Na noite, transfigurada!”. A beleza na noite, transfigurada, que incendeia os navios do mar, é um fenômeno que agita o poeta, ele que se rende ao poder estético que ele nos mostra neste poema.

FONTE INVISÍVEL (1949)

MARINHA : O poeta vê o navio e o mar, e o trajeto ele desenha neste poema, que vem : “Vi teu navio passar./Era um triste cargueiro/Tisnando/O mar azul.” (...) “Vi teu navio passar./Partias, grisalho e incerto/Com as tuas lembranças/De namoradas, de ruas antigas/De tranças e serenatas./Partias, grisalho e triste./Decerto choravas no tombadilho./Choravas a cidade/E a mocidade inútil./E choravas no mar/Que semeavas de lágrimas.”. O mar e o poeta que registra com tristeza uma lembrança já grisalha, de namoradas e de ruas antigas, o fardo na nostalgia que sucumbe o poeta neste fim em que semeadas são as lágrimas. 

O BÊBADO NA ESTRADA : O poema vem com este canto em homenagem a um bêbado, este que compõe com a noite o poema de Schmidt como uma apologia do álcool e deste bêbado que é tanto um pedaço de voz na noite, como também este que se exalta pela noite boêmia, no que temos : “Um bêbado está cantando na estrada/A voz do bêbado vem de longe,/Lá de baixo da estrada molhada.” (...) “Foi a noite que exaltou o bêbado,/Ele é um pedaço de voz dentro da noite.” (...) “É um bêbado que está clamando, é um profeta no deserto/É um náufrago na estrada, no mar, no caminho./É um bêbado que está exaltado pela noite.”. Náufrago, profeta, o bêbado ganha matizes quase santificados pelo poeta, que aqui nos dá o poema, no que segue : “E procura se libertar do terror e do mistério/É um bêbado gritando/Pensará que está cantando?” (...) “É um perseguido pelos cães,/Mas a sua voz é um milagre./E bêbado na estrada úmida/E perseguido pelos cães/Ele povoa o mundo noturno de terror, de gravidade e do/sentimento da morte./É um bêbado na estrada.”. A imagem de um bêbado na noite, de um bêbado na estrada, perseguido pelos cães e pela morte, no mundo noturno de terror, o poeta canta este ébrio neste poema que é puro álcool.

HOMERO : O poema em homenagem a Homero, este poeta mítico, mito em vida e codificador do mito grego, é aqui retratado pelo poeta Schmidt, no que temos : “Poeta maior da raça peregrina,/Como teu canto é vivo e prodigioso,/Que o vento antigo treme e vibra ainda,/No veleiro que a Ulisses conduzia,/Pelos mares ilustres celebrados!”. E segue o poema que diz do mar a fonte de inspiração de Homero. O mar que a tantos poetas é fortuna e tormenta, no que segue : “Foi o mar que aos teus cantos deu o alento/E a veemência de forças indomáveis,/Que flutuam no tempo, eternamente./Foi o mar, que chamaste de infecundo/Que soprou nos teus versos essa flama/E essa palpitação de juventude!”.

POEMAS :

MAR DESCONHECIDO (1942)

MAR DESCONHECIDO

Sinto viver em mim um mar ignoto,
E ouço, nas horas calmas e serenas,
As águas que murmuram, como em prece,
Estranhas orações intraduzíveis.

Ouço, também, do mar desconhecido,
Nos instantes inquietos e terríveis,
Dos ventos o guaiar desesperado
E os soluços das ondas agoniadas.

Sinto viver em mim um mar de sombras,
Mas tão rico de vida e de harmonias,
Que dele sei nascer a misteriosa

Música, que se espalha nos meus versos,
Essa música errante como os ventos,
Cujas asas no mar geram tormentas.

SONETO A CAMÕES

As tuas mágoas de amor, teus sentimentos
Diante das leis que regem nossas vidas,
Desses fados que dão e logo tiram,
E a que estamos escravos e sujeitos.

As tuas dores de amar sem ser amado,
De procurar um bem que não se alcança,
E no canto clamar desesperado
Pelo que nunca vem quando se busca.

Poeta de enamoradas impossíveis,
E que num negro amor desalteraste
Essa sede de amar dura e terrível,

As tuas mágoas de amor, tuas fundas queixas,
Como uma fonte, ficarão chorando
Dentro da língua que tornaste eterna.

CONHECESTE AS HORAS ...

Conheceste as horas amargas e monótonas,
Conheceste o amor infeliz e sem glória,
Conheceste a luta sem consolo,
E a pobreza velou sempre teu sono.

Teu corpo frágil sofreu um dia duramente,
E sentiste o mundo insensível e perdido
Para a tua inocente ambição.
O pouco com que sonhaste esteve longe.

Sempre longe de ti, ó triste amada.
A tua infância foi desprotegida e humilde,
E, moça, conheceste as mais secretas amarguras.

No entanto, o teu olhar é bom e simples,
E a tua voz, meu amor, é clara e doce,
E o afago de tuas mãos é inocente e feliz!

ELEGIA

Tua beleza incendiará os navios no mar.
Tua beleza incendiará as florestas.
Tua beleza tem um gosto de morte.
Tua beleza tem uma tristeza de aurora.

Tua beleza é uma beleza de escrava.
Nasceste para as grandes horas de glória,
E o teu corpo nos levará ao desespero.

Tua beleza é uma beleza de rainha.
Dos teus gestos simples, da tua incrível pobreza,
É que nasce essa graça
Que te envolve e é o teu mistério.

Tua beleza incendiará florestas e navios.
Nasceste para a glória e para as tristes experiências,
Ó flor de águas geladas,
Lírio dos frios vales,
Estrêla Vésper.

Nasceste para o amor :
E os teus olhos não conhecerão as alegrias,
E os teus olhos conhecerão as lágrimas sem consolo.
Tua beleza é uma luz sobre corpos nus,
É a luz da aurora sobre um corpo frio,

De ti é que nasce esse sopro misterioso
Que faz estremecer as rosas
E arrepia as águas quietas dos lagos.

Incendiarei florestas, incendiarei os navios no mar,
Para que a tua beleza se revele
Na noite, transfigurada!

FONTE INVISÍVEL (1949)

MARINHA

Vi teu navio passar.
Era um triste cargueiro
Tisnando
O mar azul.

Vi teu navio passar.
Era um velho navio, humilde
No esplendor do mar azul
E do céu.

Vi teu navio passar.
Partias, grisalho e incerto
Com as tuas lembranças
De namoradas, de ruas antigas
De tranças e serenatas.

Partias, grisalho e triste.
Decerto choravas no tombadilho.
Choravas a cidade
E a mocidade inútil.

E choravas no mar
Que semeavas de lágrimas.

O BÊBADO NA ESTRADA

Um bêbado está cantando na estrada
A voz do bêbado vem de longe,
Lá de baixo da estrada molhada.

A voz do bêbado vem da noite úmida,
Vem da estrada que as chuvas da tarde ensoparam.
Foi a noite que exaltou o bêbado,
Ele é um pedaço de voz dentro da noite.
É uma voz exaltada clamando,
É alguma coisa de exaltado
Dentro da noite.

É um bêbado, longe, é um bêbado
Que está na estrada
Como um sapo,
Como um pedaço de voz dependurada numa cerca.
É um bêbado que está clamando, é um profeta no deserto
É um náufrago na estrada, no mar, no caminho.
É um bêbado que está exaltado pela noite.
É um furioso entre as furiosas forças invisíveis.
É uma voz gritando contra as árvores,
É uma voz que se levanta da lama,
E procura se libertar do terror e do mistério
É um bêbado gritando
Pensará que está cantando?
É um bêbado na noite,
É um homem na noite,
É uma alma no mundo,
É um bicho misterioso que fala,
É um participante do mistério.

É um homem esse bêbado,
É um ser que se levantará bêbado,
Ao som das trombetas
E virá exaltado,
E virá cambaleando,
E virá clamando,
Pelo grande caminho.
É um ser, é um bêbado na noite.
É um perseguido pelos cães,
Mas a sua voz é um milagre.

E bêbado na estrada úmida
E perseguido pelos cães
Ele povoa o mundo noturno de terror, de gravidade e do
sentimento da morte.

É um bêbado na estrada.

HOMERO

Poeta maior da raça peregrina,
Como teu canto é vivo e prodigioso,
Que o vento antigo treme e vibra ainda,
No veleiro que a Ulisses conduzia,

Pelos mares ilustres celebrados!
Poeta da Aurora de rosados dedos,
Que Aurora nasce da tua voz tão fresca
Como as águas à luz do claro dia!

Foi o mar que aos teus cantos deu o alento
E a veemência de forças indomáveis,
Que flutuam no tempo, eternamente.

Foi o mar, que chamaste de infecundo
Que soprou nos teus versos essa flama
E essa palpitação de juventude!

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/38128/17/o-modernismo-e-a-segunda-geracao-com-augusto-frederico-schmidt

  


domingo, 25 de março de 2018

TRABALHO BRAÇAL

Me leve ao departamento
de chefia, está marcada
a reunião e a pauta é densa,

serve o café e a pasta de projetos
já deve estar arrumada,

um tiro de canhão acorda
até o sétimo céu,
a nuvem em que dormia
o sonho acorda no susto,

com a cara lavada e assustada
segue o nobre operário,
com seu quite de primeiros socorros,
com seu caderno de anotações
prestes a ser destruído
por um acidente de trabalho,

ah, o café estava quente,
e havia em meio aos papéis
do velho trabalhador
um risco enorme
em que se planejava
aposentadoria compulsória.

25/03/2018 Gustavo Bastos

FÊNIX

No limite do entendimento
temos o curto-circuito,

esta percepção seca dos afazeres
e do cotidiano, um remédio
diário para os nervos,
e o humor em frangalhos,

outra é a energia que se quer,
um canto otimista,
minutos de auto-ajuda,
o que fazer para uma tarde
produtiva,

oh, que o sinal permanece fechado
é o detalhe da alma em luto,
pois que num quadrante novo
poderá a esperança ressuscitar,
como uma fênix depois
de um sono mortal.

25/03/2018 Gustavo Bastos

A EDUCAÇÃO DA ALMA

Como esta fase do saber fundamentado
me tornou um sapiente?
Não. Este assunto de conhecer para
ser sábio não funciona, e nem mesmo
uma educação moral me torna
um bom caráter.

Ah, mas não existe trabalho suficiente
para a nossa formação,
algo de infantil permanecerá
no resto do dia,

somos um tanto tolos,
quase ingênuos,
se faz poemas
de amor como
marcas do coração,

e o saber bem fundado,
este saber do cuidado de si
e do amor pelo outro,
este dom é um presente
divino,

não se faz a santidade
apenas por cultura,
nem sabedoria por educação,
o termo livresco caiu em desuso,
e nossos deveres e direitos
convivem no caos e na injustiça.

25/03/2018 Gustavo Bastos