PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 11 de fevereiro de 2017

O NAVIO FANTASMA

Um trabalho profundo de antropologia estava sendo feito pelo pesquisador Matheus, ele tinha a ajuda de outro antropólogo Paulo, os dois já tinham passado pelo Acre, numa história de estudar a religião da barquinha, no entanto, o Amazonas mais isolado era uma nova frente em que tais pesquisadores queriam se embrenhar. A decisão foi pelo rio Içana, numa nova inserção sobre os Baniwa, índios que habitavam na fronteira do Brasil com a Colômbia e Venezuela, perto dos Curipacos da Colômbia e do Alto Içana, em aldeias localizadas tanto às margens do Rio Içana e como em seus afluentes, os rios Cuiari, Aiairi e Cubate.
Matheus já tinha trabalhado uma vez com os Baniwa, um pouco em relação à história deles com as missões salesianas, e o fato de no final de 1940, Sophia Muller, uma missionária evangélica norte-americana, ter feito a Missão Novas Tribos, iniciando a evangelização dos curipacos na Colômbia, e tendo estendido tal missão aos Baniwas do Brasil, no que Matheus, mesmo com a resistência de alguns índios da tribo, conseguiu ganhar a confiança do pajé de nome Axíwa, e que tinha no xamanismo, também, toda a fonte mítica da tribo, tendo Matheus feito um trabalho antropológico de duas frentes, uma sobre os brancos e suas inserções na tribo, como na evangelização, como outra na parte em que ele colocou uma interpretação cultural segundo seu método de alteridade na questão mitológica nas entrevistas com Axíwa, e que agora, junto com Paulo, recém-formado, ele teria um possível aprofundamento, desta vez numa tentativa de levantar, pelos mitos e lendas, um possível conteúdo espiritual da tribo, e de como isto foi preservado junto com o movimento de evangelização, se houve algo de hibridação entre a religião dos brancos com a tradição autóctone dos Baniwas.
O primeiro trabalho de Matheus tinha resultado num livro acadêmico de título “Evangelho e Mitos nos Baniwas” que, nesta nova viagem, ele queria entender mais do conteúdo das lendas, até sobre símbolos comuns entre a mitologia universal, tais como o boitatá, a Iara e lendas sobre o navio fantasma, no que Matheus ficou sabendo que também havia um ufólogo entrevistando os índios sobre bolas de luz ou prateadas, as quais apareciam nas margens do rio Içana, segundo relatos dos próprios índios, e que não tinham explicações lógicas para tais aparições. No que ufólogos interpretavam como Ufos, e Matheus, que tinha ainda um certo ceticismo sobre as várias lendas, viu que teria de mudar de postura neste segundo trabalho, e talvez até levar literalmente os relatos dos índios, como a verdade dos fatos, e não mais lendas mitológicas. Embora seu ceticismo fosse mais forte que seu trabalho antropológico, no que seria um modo usual seu de tratar todas as questões, inclusive as metafísicas.
Ele e Paulo tinham, além do trabalho antropológico, a intenção de experimentar as substâncias psicoativas usadas pelos índios no xamanismo, que eram o paricá e o caapi, para enxergar o “invisível” e os relatos de criação do cosmos da tradição xamânica, no que teriam, portanto, material farto como uma via principal de entrada “concreta” na mitologia local, além do aspecto psíquico em perspectiva antropológica da experiência mística com o paricá e o caapi, que era exatamente a fonte preservada dos Baniwas em relação aos processos de evangelização, que tinham convertido uma grande parte dos índios, seja no catolicismo dos salesianos como no evangelismo da missionária Sophia, mas que não fizeram cessar, em absoluto, os rituais da tradição xamânica, pois era justamente com o pajé e o xamã que tais rituais eram conservados, assim como nas danças pudali dos ciclos sazonais e frutíferos.
Matheus e Paulo então ligam para o ufólogo que já estava hospedado na tribo, e recebem informações sintéticas sobre o que iriam ver na viagem até o rio Içana, de que havia, segundo o ufólogo, vários relatos lendários que iriam deixar os dois antropólogos de cabelo em pé, e que tudo era a mais pura verdade, no que Matheus, ainda com certo ceticismo, encarou aquilo tudo como credulidade de um especialista de uma pseudociência bem crédula para ele como era a ufologia. Matheus logo pensou que teria que apenas “suportar” as mistificações do ufólogo, sem bem saber em que realidade ele logo entraria sem muito bem estar consciente disso.
Matheus e Paulo fazem o check-in em Congonhas, voam com escalas até Manaus no estado do Amazonas, durante a viagem os dois conversam sobre o livro de Matheus sobre os Baniwas, e sobre a curiosidade em relação ao xamanismo, que eles sabiam que, desta vez, por conseguinte, eles teriam que entrar de cabeça nos rituais tomando as substâncias psicoativas para fundamentar todo o trabalho planejado. E a expectativa de Paulo sobre isso era enorme, pois já tinha tomado ayahuasca. O avião vai, com escalas, até Manaus, de lá os dois tomam um ônibus que os leva próximo ao rio Içana, de lá eles combinam e pegam uma carona no carro alugado pelo tal ufólogo, que se chamava Fábio, e que durante a viagem por estradas de chão derrama suas estórias de Ufo, no que Matheus sorri com canto de boca, o ufólogo fala dos chupa-chupa da Operação Prato, e mais quinquilharias da ufologia mística, enquanto Matheus e Paulo seguram o riso, mas então, perto do Içana, começa uma discussão acalorada, uma interpelação sistemática de Matheus, que encarava cada sílaba de Fábio como pura mistificação de uma imaginação febril, quase dá briga, mas Matheus depois de tanto interpelar Fábio, percebe que ele era necessário, terrivelmente necessário para o seu novo estudo nos Baniwa.
Fábio, quando chega às margens do Içana, já perto das ocas aonde ficava a tribo Baniwa, tira do bolso um baseado apertado e acende, no que Matheus tira a conclusão de que Fábio era mesmo um pirado que queria ver tudo o que quisesse, sem critério nenhum, Matheus pensou estar entrando numa cilada, Paulo deu uns tragos no baseado, Matheus não fumava, mas tinha trazido consigo umas garrafas de bebida destilada, entre estas uma caninha da roça no que deu três shots para ouvir com mais condescendência e interesse as estórias loucas do ufólogo maconheiro. Parecia mais aquela cena do Jack Nicholson em Easy Rider, estórias de Ufo alimentadas pela fumaça de um baseado.
Matheus decide ligar um gravador com autorização de Fábio, no que o antropólogo faria em seu novo trabalho acadêmico como uma citação de lendas e mitos contadas por brancos e índios, uma miscelânea que consistiria em um híbrido de folclore com teses ufológicas, sob o viés cético-científico, tal crendice da antropologia, esta de ser uma ciência, de ter um método, de ser fundamentada, sem bem saber o que um antropólogo faz com o seu paradoxo incontornável da alteridade, no que vemos que Matheus era um crente de seu método, relativizando loucamente com alteridade e ao fim com o puro ceticismo seu relato que era uma salada étnica e de perspectivas sonhadoras que ele logo confrontaria com o xamanismo.
Matheus bebe a sua caninha da roça sozinho, Paulo curte uma onda leve de cinco tragos de baseado, Fábio acende mais um baseado e diz que os três teriam que acampar ali na beira do rio antes de chegar à tribo, pois já anoitecia, no que Fábio passa a noite até uma da manhã fumando maconha, e Matheus com a logorreia típica de um alcoolista entusiasmado com a própria inteligência, fazendo pouco caso do que Fábio dizia com o tom melódico de língua amortecida de um fumador de maconha inveterado. E Paulo mudo por não mais controlar os próprios pensamentos.
Aquela ideia do entretenimento do pensamento pode ganhar roupagem patética quando o indivíduo está num transe inútil em que nada se diz, se balbucia, contrastando com a viagem alcoólica de seu colega Matheus, com o ego de um bebedor que sabe tudo o que diz. A noite é de contrastes, o ceticismo e alcoolismo de Matheus, a credulidade e fumaça de Fábio, e o terceiro, Paulo, alheio à tudo que cai num sono profundo com roncos estridentes. A discussão entre Matheus e Fábio é infrutífera, um fla-flu de convicções fanáticas para extremos opostos, mas nada que comprometesse o trabalho de ambos, pois estavam no mesmo lugar geográfico e de trabalho, não tinham tempo a perder, e sabiam que as discussões seriam apenas verbais, sem mais digressões de uma violência maior.
De manhã Matheus acorda primeiro, seis horas, com a ressaca de caninha, pesando como um elefante, sete horas levanta Fábio, os dois esperam até dez da manhã para então acordarem Paulo, que parecia que estava hibernando, no que Matheus joga um balde água gelada de rio na cabeça e no corpo de Paulo, o qual acorda e demora meia hora para se orientar. Os três seguem de carro até a aldeia, são recebidos pelo cacique que ostentava seu nome índio Buraki e seu pseudônimo branco de Augusto, meio como o imperador romano, numa versão tropical ou equatorial. Augusto tinha português fluente, ia muito ao meio urbano negociar com políticos medidas que favorecessem os Baniwa, e apresentou-lhes o xamã, sucessor de Axíwa, que havia morrido há seis meses, de nome Patchuía, no que são surpreendidos por um hippie que passava por ali, aprendendo artesanato com os índios, colares com geometrias espetaculares, e que diz aos três brancos que de noite o xamã ministraria ayahuasca para um ritual xamânico, e que eles teriam que participar para ficar hospedados numa oca central com fogueira que aqueceria a madrugada gelada do ar úmido da floresta equatorial, sempre com chuva ao anoitecer, o que mantinha a temperatura amena.
O hippie se chamava Otávio, vivia como um nômade, com pouco dinheiro, andando pelo Brasil já há vinte anos, depois de ter sido expulso de casa por estar em más companhias, o que ele disse que era o “pessoal do ácido”, há muito tempo atrás. Agora ele só tomava ayahuasca e tomou ojeriza de bebida alcoólica e tabaco, e comia muito pouco, sempre frutas e legumes, não comia mais carne e frango, só peixe que ele aprendeu a pescar em suas peregrinações sem destino, no que levava sempre consigo suas peças de artesanato e seu violão, para o qual comprava cordas sempre que ia à cidade, e tocava de tudo, compunha algumas músicas, mas não queria ter banda e nem gravar nada, tinha escolhido o desprendimento absoluto numa mistura de ayahuasca com rudimentos de filosofia budista e taoísta, tinha apenas dois livros, o Tao Te King e uma biografia de Buda, no mais estudava seu violão por conta própria e disse aos três brancos que ali era o doutorado do artesanato, principalmente na cestaria de arumã, e dali ele ganharia mais um pouco de grana em seguida.
Então, logo o xamã novo disse que o caapi só funcionava com o paricá, e que para começar o ritual ele era o único autorizado a inalar o paricá puro pelo nariz com o uso de um tubo, no que o faz e entra em transe. O caapi também poderia ser associado com o São Pedro, no que o hippie Otávio tinha ganhado recentemente um cacto desta espécie de um grupo de hippies seus amigos que estavam acampados fora da aldeia, e disse aos três brancos que depois o visitassem lá para ter uma experiência mais impactante de tais propriedades espirituais do xamanismo hippie itself.
O xamã Pacthuía logo começa a relatar em arauaque suas visões para seus assistentes, “conversa com espíritos da floresta”, dizia o tradutor, que era o próprio Otávio, que tinha aprendido um pouco do dialeto, pois estava lá pela quinta vez em três anos. O relato é freneticamente anotado pela assistência, e Matheus é autorizado pelo xamã a fazer a sua tradução para os brancos em seu trabalho acadêmico, no que o antropólogo pensava se seria uma reedição atualizada de seu livro anterior ou um livro novo, mas que decidiria tudo depois de tomar a ayahuasca, pois até então nunca tinha experimentado chás alucinógenos, sintéticos em pílulas e muito menos enteógenos, teve uma rápida passagem pela maconha, mas era um alcoolista padrão, embora controlado, pois trabalhava muito e sem parar, ainda mais no meio acadêmico que lhe exigia cada vez mais.
O xamã com seu rapé faz um relato, Otávio pega um caderno e faz a tradução para Matheus, dá um relato de vinte páginas, e que Matheus encarou como pura mitologia, embora sua intenção fosse, de algum modo, se abrir e relatar aqueles mitos sem juízo de valor, apesar de ser um resistente mórbido de ideias metafísicas. Mas ainda havia a cerimônia de introdução dos brancos visitantes ao mundo invisível, e que a porta se abriria independentemente das crenças subjetivas e pretensamente objetivas dos participantes, no que o xamã advertiu Matheus de uma maneira que parecia que o xamã lhe houvesse surpreendido seus pensamentos e convicções, no que finalmente o antropólogo baixou a guarda para procurar uma experiência autêntica e não mitológica com a ayahuasca, ele sabia que teria que fazer uma suspensão de seu juízo depois do pito sutil do xamã.
E começa a mistura e cocção do caapi com o paricá, o hippie dizia em segredo que o São Pedro ficaria escondido para depois, uma vez que respeitava religiosamente tudo o que o xamã lhe dizia, dominando cada vez mais o arauaque. Os três, Matheus, Paulo e Fábio, fazem então a ingestão da cocção, o tempo logo ficaria relativo, mas em horas seriam duas horas de profundo transe, nada passaria pela tela mental sem a percepção onisciente do xamã que daria o tempo todo as instruções. Otávio já tinha lido a tradução do rapé, e ali era mais uma vez as descrições psicodélicas de um espírito felino despertados por um nariz dilatado pelo rapé, a mitologia espiritual era concreta em visões, e misturava tradição oral com experiência mística direta e empírica.
Matheus começa a ter suas visões, que são de teor leve, Paulo começa a vomitar depois de duas horas, Fábio parece estar entretido com uma paisagem de bem-aventurança, Otávio consegue controlar aquelas visões que já lhe eram familiares e fundamentadas pelo seu estudo do arauaque e mitos baniwa. Matheus logo começa a pedir orientações ao xamã, que lhe diz que os espíritos da montanha e da floresta eram seus antepassados, parentes do século anterior, seu tronco familiar era vasto como a terra, e o passamento de alguns foi tortuoso em função de uma futura bem-aventurança que aguardava no meio do caminho de aprendizado.
Matheus recebe algumas censuras do xamã que lhe dizia que “tal irreverência” afastaria sua parentela de bem-aventurados trocados por entidades ctônicas que ele tinha prejudicado em tempos anteriores dos quais ele não tinha sequer ideia. O xamã orienta então a Matheus mais uma vez se desarmar, não achar nada daquilo engraçado e se concentrar no que as plantas de poder estavam lhe dizendo e que ele só via como um grande teatro, um passatempo qualquer. Paulo, a esta altura, estava mais uma vez desorientado, vomitando o mundo inteiro e seus rancores mórbidos que ele nutria desde tempos, Otávio sorria como um bebê, pois “já sabia de tudo”, e Fábio era um ser místico repleto de felicidade sobrenatural.
As horas passam, e as ondas senoidais se acalmam, a paisagem é convidativa, o xamã dizia então que era para se deitarem e verem tudo de uma forma harmoniosa como é o mundo invisível daquela cerimônia, nada de questões, tudo se havia lhes respondido, o universo não era mais um mistério, a porta estava aberta e a chave era seleta para cada um. Matheus então dá uma vomitada e dorme. Otávio deixa tudo como está, explicadinho como gato escaldado de tudo, Fábio dá tchauzinho feliz à sua sessão de bem-aventurança e também dorme, Paulo não passa bem, mas consegue dormir. O xamã encerra os trabalhos satisfeito, apenas com um certo receio de Matheus, mas nada grave. Todos ali agora eram bem-vindos, a paisagem e o segredo da alma não eram mistérios para o xamã, o racional e o mito eram híbridos de uma mesma existência, e o destino universal estava nos olhos, o mundo feliz do futuro espiritual, o mundo do bem depois das tonitruantes armadilhas terrenas.
Amanhece, Fábio está em uma rede, Paulo dorme em cima de palhas, Matheus acordou antes de o sol aparecer, suava frio, mas logo passou ao tomar papa de milho de um índio que também estava na oca. O plano de Matheus era fazer uma entrevista do cacique que tinha português fluente, envolvendo a vida de sua aldeia e a relação com os brancos, e também o seu diálogo constante com os políticos em derredor, no que Matheus, munido de seu gravador, chamou Paulo, que havia acordado de sonhos intranquilos, e Fábio só queria saber de uma tal viagem de balsa pelo Içana para ver bolas de prata, no que Matheus o escarnecia com soma de arrogância ao seu ceticismo padrão.
O dia seria então de entrevista pela manhã com o cacique, e depois um passeio de balsa, pois havia uma num posto policial ali perto, que era usada para rondas, mas poderia ser usada pela tribo e por pessoas autorizadas de acordo com as necessidades. O fato é que Fábio vivia às voltas com uma ideia estapafúrdia de fotografar e gravar em vídeo tais supostas sondas extraterrestres que, para Matheus, viviam era sim dentro da cabeça oca de Fábio, um mistificador profissional, mais um desses ufólogos alienados que têm como utopia e única razão de vida a prova cabal de vida inteligente alienígena, a mesma esperança vã, segundo o mesmo Matheus, que têm os espíritas por esta mesma prova experimental da vida após a morte.
No que Matheus pensou consigo que poderia fazer troça de Fábio durante a viagem de balsa, e com Paulo com um certo receio de que tudo o que Fábio dizia fosse real, e também se perturbando com as lendas do local, cobra-d`água, iara, boitatá e fontes inumeráveis da rica mitologia do local. Teria que ter um líder na balsa, e Matheus se autointitulou, o eldorado estaria na cabeça de Fábio, e para Matheus só seria uma sessão de comédia com Fábio de ator cômico involuntário. E Otávio com a ideia de dar São Pedro com caapi para os visitantes entre seus amigos hippies acampados e com uma cartela de ácido que somente Otávio não tomava por razões budistas e religiosas.
A entrevista com o cacique e mais dois representantes da tribo local dos baniwa rende bons frutos, três horas de gravação ininterruptas sobre o cotidiano local mais as precisas informações do passado mítico que, segundo Matheus, eram mais úteis do que o relato alucinado do xamã. E do que Matheus recolheu quase tudo seria aproveitado, ao contrário de suas reticências quanto ao assunto contato com o mundo invisível potencializado com alucinógenos, que mesmo com o próprio fazendo a experiência, esta não passava de luzinhas coloridas flutuando, borboletas azuis rarefeitas e vômito para o cético de plantão. Paulo, por outro lado, desde que havia tomado a cocção não se via mais em um corpo, tinha ideias paranoides até então discretas para os outros, mas que viriam à tona depois do São Pedro. Enfim, Matheus decide aproveitar o material do cacique e descartar a narrativa xamânica para o seu novo trabalho acadêmico. Fábio, bem-aventurado, logo teria a sua fortuna ufológica posta à prova, nada mais do que o sonho do contato intergaláctico, e sempre depois de um baseado em cone, como lhe apraz.
Otávio volta com a sua horda de hippies sem avisar aos outros, agora a balsa seria uma festa de hippies, dois antropólogos, um ufólogo e um índio como guia do Içana. Otávio fala com Fábio que logo após a balsa partir todos tomariam o São Pedro com o caapi, pois dali “levantariam voo”, ou seja, o que era algo normal e corriqueiro seria um desafio espiritual para o ceticismo de Matheus e uma implosão mental para Paulo, que se degradava sem ainda ninguém se dar conta. Fábio, por sua vez, entraria no transe de suas bolas de prata ou sondas drones ou seja lá o que for que ele dizia ser coisa dos nórdicos, no que Matheus responde com troça que não sabia que os alienígenas eram da “Noruega”.
A balsa sai pelo rio Içana, águas agitadas, correnteza forte, tempo aberto, ensolarado, a água batendo nas faces que povoavam a balsa, o índio que falava português orientando a navegação que ficara por conta de Matheus, Fábio ansioso por ver bolas sondas drones, Paulo suando frio sem sentir o próprio corpo, o grupo dos hippies confraternizando baseados enquanto bebem o São Pedro com caapi, e ali logo todos entram no transe da bebida potente, Otávio passa a comandar a balsa, já que Matheus passou a dizer que levitava, os hippies que viam telas ordenadas com números como numa máquina de calcular cósmica, Fábio vendo as suas sondas de estimação, o índio nem aí para nada, tomou como se fosse água, e Paulo, que já perdia o próprio corpo, entrou num redemoinho que o deixou tonto, ele dizia que havia um túnel de luz que o chamava, e depois uma voz de um ser do Içana que dizia que ele era agora um espírito livre e que nunca mais teria o seu corpo de volta, no que a paranoia de Paulo virou um tormento para os hippies que até então confraternizavam em um Woodstock particular no meio do rio.
Todos têm que segurar Paulo, pois o mesmo queria sair nadando pelo rio, no que todos sabiam que aquilo era nada que tentar morrer afogado, e a balsa vai passeando pelo Içana, a tarde avança, Otávio lidera a balsa, Matheus pensa que é um guerreiro em busca do eldorado, voa para todos os lados, tem asas, é um anjo total, seu ceticismo virara geleia, ele era agora o presidente da balsa em direção ao eldorado, seu viés antropológico agora virara uma viagem politizada em busca do que havia no fim do Içana, mas as horas passam, e no fim da tarde a balsa volta à aldeia, Paulo é encaminhado para se tratar com o xamã/pajé e melhora, Matheus teve apenas um surto momentâneo e percebe que o eldorado era o próprio efeito do São Pedro combinado com o caapi. Os hippies voltam ao acampamento com seus afazeres musicais e artesanais, Otávio também deixa a aldeia para ir com os hippies confraternizar, uma vez que percebe que tinha muita coisa errada com esses antropólogos e ufólogos e que não era mais problema dele cuidar daqueles negócios, só voltaria à aldeia depois que os brancos fossem embora, e sabia que logo os evangélicos iriam na semana seguinte para a aldeia e ele não suportava fanáticos bíblicos.
Anoitece, e as sondas que povoavam a cabeça de Fábio fazem visitas na beira do rio, o mesmo presencia o fenômeno e chama Matheus, que também vê tais bolas ou luzes de prata, e Fábio convence que tudo era real naquelas bandas, mesmo que não o fosse por outros meios usuais. Matheus hesita várias vezes, esfrega os olhos dezenas de vezes e corre para chamar Paulo, o cacique e o xamã, Paulo acha tudo muito normal, pois depois do São Pedro para ele era tudo normal, desde que não ficasse mais louco. Matheus vê tudo ali, eram sete bolas de prata dando voltas na beira do rio, na noite profunda e cheia de sons de bichos do Içana, uma das sondas se aproxima e depois se divide em duas menores que voam sobre a cabeça de Matheus, Fábio exulta, pega a sua câmera de vídeo e tenta gravar, mas as sondas se afastam com este gesto, e sete sondas sobem e viram quatorze que somem no ar numa fração de segundos.
Matheus se convence de que Fábio não era um místico, Paulo que agora achava tudo normal tenta acalmar Matheus que chorava, enquanto Fábio dizia impropérios por não ter conseguido registrar o evento. O xamã e o cacique estão normais e falam que aquilo era rotina ali, Matheus agora sorri e decide fazer uma nova entrevista com o xamã, desta vez sem alucinógenos, uma vez que ele sabia que seu trabalho havia ganhado um contorno que desafiava a sua própria formação, e que poderia ser algo bombástico no seu mundinho acadêmico, ele decide arriscar, com a prudência de não ser objeto da mesma troça que fez o tempo todo com Fábio até aparecer as tais sondas.
Matheus então, depois de seu estado de choque, decide ligar seu gravador e fazer uma longa entrevista com o xamã, e também decide dar prioridade ao aspecto mitológico das origens da tribo, da aldeia, de toda a trama psicológica que envolve o xamanismo, subvertendo todos os seus cânones de um antropólogo ateu, uma vez que se via numa bifurcação entre ceticismo e visões de sondas desconhecidas, Matheus caíra num limbo em que não via nem seus dogmas e nem seus escárnios, tudo se misturara num caldo indígena e ufológico em que a antropologia virara apenas um detalhe, a alteridade ia para o espaço, ele agora lidava com sonhos xamânicos e sondas interestelares de que Fábio lhe advertira diversas vezes e depois de colocá-lo como ator cômico, agora vivia seu melodrama de não saber mais de nada.
Canastrão posto à prova, agora ele teria que se retirar de sua sobriedade e virar uma persona que via ufos na beira do rio e ouvia relatos de xamã com o mesmo interesse de suas aulas de Clifford Gertz pensando que tudo era ciência acadêmica e não vida viva e direta na convivência com a diferença brutal de não ter mais método para o que via. A entrevista é longa e proveitosa, mas seu interesse se volta na última hora sobre as estórias do xamã sobre o navio fantasma, o que desta vez ele não recebe com escárnio mas com vivo interesse, uma vez que Matheus sabia que naquele universo ele teria que suspender seu juízo para não ser tomado por louco ou achar que estava louco. A loucura ali era a ordem do dia, nada era estranho ou tão estranho como as próprias coisas da vida, se vistas com atenção. O navio fantasma era o relato de um navio que sempre aparecia em noites de névoa no fundo do rio, com piratas gritando e assobiando alto, com uma bandeira preta, com luzes mortiças na proa, e uma vela vermelha, tudo que era relatado pelo xamã recebia a vivíssima atenção de Matheus neste momento, ele gravava tudo, e já pensava numa incursão com Fábio, Paulo e um índio para caçar o tal navio no meio da noite no fundo do rio, já que estava ficando louco, embarcaria de vez em aventuras sobrenaturais, sabia que era arriscado navegar de noite de balsa pelo Içana, mas tinha a esperança de que tudo correria bem com a orientação de um índio que conhecesse tanto o rio como as artimanhas comuns de tal navio fantasma.
Agora o cético escarnecedor virara o mais curioso de todos, desafiando crédulos até mesmo como o ufólogo Fábio, que agora não ouvia mais a sua gargalhada quando lhe falava de sondas nórdicas. Ao fim da entrevista o xamã dá alguns exemplos da cosmogonia da região, o mito começava com deidades ctônicas e terminava com seres alados e naves semelhantes aos vímanas hindus, e Matheus, bom estudioso de vários mitos, ouve tudo: “A cobra da verdade da terra era o deus primordial, brota a água e ela nada e vomita um rio, o infinito flui neste rio de que nasce Iara e seu séquito, todas as nereidas sobem e descem no ar, são as luzes vizinhas que alimentam o rio, a Iara faz seu canto, o boto aparece para levar as virgens, a cobra aparece na criação do mundo e depois se enrola no infinito, a energia vital da cobra está na coluna do espírito, felinos governam as plantas, entidades benéficas e maléficas povoam as florestas e as cachoeiras, o rio nunca seca, os anjos fazem o rio fluir novamente, a cobra da criação dorme em sono eterno, ao tomar as poções entro em contato com o espírito felino, que ruge e arranha símbolos, estes viram nossos objetos de trabalho, a vida da aldeia é regida por cantos sazonais, nos rituais de dança aparecem todos e incorporam nos médiuns, algo acontece com as faces dos incorporados, a dança é frenética e celebra a vida eterna, nossos espíritos felizes descem e sobem ao bel-prazer, o clima é de alegria, aqui na aldeia somos felizes, e conhecemos os segredos do mundo invisível que nos criou, tais como as luzes que descem e sobem nos céus”.
Matheus, depois do relato do xamã, fica obcecado com a ideia de flagrar o tal navio fantasma. Depois de muita insistência convence Fábio e Paulo a irem com ele e mais um índio como guia para sair de balsa pela noite adentro ao rio Içana para ver os tais espíritos. Fábio, que era crédulo até a medula, fica assustado com a súbita iluminação daquele cético de carteirinha, mas também munido de uma curiosidade mórbida por coisas sem explicação, decide que seria mais uma vez surpreendido pelas bolas de prata, e tendo ainda dúvidas sobre a realidade do navio fantasma, Paulo, cada vez mais alheio à tudo, segue a sua estratégia mental de achar tudo normal para não ficar louco. O índio, que já tinha visto o tal navio, tenta demover Matheus daquela ideia insana, em vão, eles embarcam no cair da noite, as visões seriam inumeráveis, o desfecho multifacetado de um cético que toma uma injeção de adrenalina e vai para o paraíso ou o inferno.
Em uma hora de viagem, Matheus veste novamente a persona de um navegante em busca do eldorado, desta vez com a cabeça nua, sem os hippies e o São Pedro com caapi. Duas horas de viagem, aparecem as bolas de prata, Fábio grita por ter esquecido sua câmera fotográfica e de filmar, fica pasmo por ter sido tão distraído, mas vê as sondas e consegue ver um homenzinho dentro de uma delas. O navio fantasma aparece em seguida, sob névoa, mas o índio decide navegar de volta à aldeia, Matheus tenta ver de novo o navio, mas ele já havia sumido na névoa, ele pensa que teria que sair na noite seguinte para fazer o mesmo trajeto, desta vez sem o índio, pois queria ir até o fim naquela história.
Na tarde seguinte o xamã convida Matheus, Paulo e Fábio para participar dos rituais de dança da tribo aonde o xamã dizia que seriam incorporados os espíritos do rio e da floresta, tudo acontece num festival dionisíaco, uma festa de Baco na floresta equatorial, Matheus conversa com uma dessas entidades que lhe diz: “Cuidado com os gênios do rio, estão todos de olho em você, não vá longe demais”. Mas Matheus encarnara a alma do aventureiro temerário e botara na cabeça que entraria no tal navio fantasma.
Logo depois, no anoitecer, a balsa sai pela segunda vez, desta vez com Matheus como líder da navegação, Paulo achando tudo normal só para não pirar, e Fábio desta vez com sua câmera fotográfica e de filmar em punho para as visões do rio. Na noite densa, repleta de névoa, chuva caindo, eles se deparam novamente com as bolas de prata, Fábio vê novamente um homenzinho dentro de uma das sondas, pega a sua câmera, mas ela estava inexplicavelmente travada, talvez pela tecnologia alienígena, um desses homenzinhos sai da nave e levita em direção da balsa, Fábio, o ufólogo, se apavora, Paulo acha tudo normal para não pirar, e Matheus, o líder da balsa, faz o movimento em direção da entidade e recebe uma comunicação telepática de que o antropólogo deveria voltar à aldeia antes que fosse tarde. Mas Matheus manda às favas o tal homenzinho, o mesmo que volta para a nave levitando e some, e o antropólogo cético agora se via embriagado como um aventureiro intrépido, o louco do eldorado que era um celerado que buscava o ouro que o navio fantasma escondia e lhe deixaria rico.
Era certo que Matheus já não se encontrava mais da posse de seu juízo, e Fábio, o crédulo, começava a ficar com medo de seu líder temerário, a balsa avança na madrugada e no rio, agora uma entidade negra com terno branco flutua sobre o rio, os três se apavoram com a visão e tentam voltar finalmente à aldeia, em vão, o navio fantasma cruza o caminho da balsa, os espectros dos piratas gargalham e gritam, Fábio se apavora mais ainda e grita que Matheus tinha que tirá-los dali, a balsa vara a correnteza violenta do rio, começa a chover forte, trovoadas sem parar, raios iluminam a cena toda, Fábio pula da balsa e sai nadando em direção da aldeia, mas se afoga e seu corpo nunca será encontrado, a balsa então vira e Paulo é levado por um redemoinho, com o seu cadáver aparecendo na beira do rio em frente à aldeia na manhã seguinte, Matheus sai nadando sem direção até encontrar uma praia, está acabado, exausto, a praia de rio está deserta, amanhece, ele deita e dorme, ainda vivo.

Contos 11/02/2017 (feito em dois dias diferentes)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.




quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

ANARQUIA DA TELA

A tela, com arte bem esculpida,
trovoada era em sua medida,
espalha-se a tinta, corre a mão
pintando sobre a imagem,

de súbito, com o coração contrito,
o artista entra em transe,
convulsiona um poema,
e de tudo sabe quando o faz.

Um batalhão lhe abre as vistas,
e o corpo todo de baile
lhe dá a visão.

A tela, este ser consolidado de tudo,
arma o seu campo sob vasto estudo,
com o karma todo definido,
e alma em luta sobre o sangue.

Espalha-se o vermelho licor,
e os passos delineiam
as notas e a febre
que compõem
tal sistema,

o poeta, reto em sua fiança,
faz de seu sonho o temor do verso,
um raro senhor que cultiva
seus símbolos e sua anarquia.

08/02/2017 Gustavo Bastos

CENOGRAFIA

Com as retas de seus planos marmóreos
bebia a cicuta em sonho,
altiplano em veias, com o sangue caldo
de vida sobre o corpo, as entranhas miúdas
rompidas sob espada, e o céu da boca
furado à bala.

O corpo brônzeo das escadas ao chumbo
morria com os guerreiros do sol,
e os lares chorosos calcinavam na guerra
do ópio, este que o sonhador
quereria em sua peça de teatro,
um palco vivendo em vinho
sobre as taças, um guardião
que rosnava nas ruas e no pátio,
a batalha roçava os campos do infinito,
e os soldados rugiam à ordem capital
do último suspiro,

o canto do cisne, o território do mal,
tudo é o trono dos crimes arrolados
no processo de vinte mil páginas,
um sussurro ao juiz de câmara
aspergia o veneno do condenado,
e os planos abertos do enquadramento
eram dirigidos por um artista
de tabacaria, com os olhos vidrados
para tomar o mundo de assalto.

08/02/2017 Gustavo Bastos

DIGRESSÕES SUTIS

Paro e penso. As frases têm
escapado como luzes na ribalta.

Um, dois, três, quatro.
A astúcia tem este poder:
demonstração da hipótese,
daydream, farsa,
uma cara borrada no desenho,

paro e descanso de mim mesmo,

face número mil na capa da revista,
os dois felizes, os mil infelizes,
os meio-copo-cheio
e os copos estilhaçados,

eu-pateta com língua de fora,
uma foto antiga no travesseiro
escondida dos bisbilhoteiros,
marcada com coraçõezinhos,
um beijo na testa imaginária,
outro beijo na parede
de batom, a meretriz tinha
peitos sadios, brincava de
amolecê-los, depois de
endurecê-los, os mamilos
impressionistas, o olhar triste,
sem foco, vazio,
ontem li uma carta de suicídio,
és jovem, muito tempo ainda,

eu tento ser o doutor,
analisar os contornos
do conto autobiográfico
que o autor chama de poema,
como se isso importasse,
eu tenho fé em Papai Noel
e acendo velas para o coelhinho
de Alice na páscoa,

nada demais, um beijo sutil
nas partes, uma donzela no
fogo da paixão,
e meu canto obsessivo compulsivo
de querer fazer sinfonia
com cartas úmidas de choro,

perto, ali, com os ases do céu,
a estrela decaída foi um anjo
nos tempos da memória,
o anjo agora é gente,
e arregaça as mangas
para amortizar seu pescoço
a seu carrasco,
e ele o paga em poema
e autobiografia
em pedaços de sonho.

08/02/2017 Gustavo Bastos

AS FUNDAÇÕES DA MENTE

Sombras no rosto, me lembrei desta danação
quando cheguei no sétimo andar,
um andar solto, meio tonto,
me deliciava.

Coloquei os óculos, me deparei com a chuva
como um intermezzo para saudações noturnas,
a clava de sol nutria todo o espaço,

sorte e revés de ex-amante,
de brutamontes, de predador
sem mais os dentes,

um prontuário me dizia:
noite de insônia,
paralisia facial.

Oh, quem de andar em círculos
eu me debatia, eu e minha sombra,
eu e meu outro como fantasma,

por mais dentes, dizia eu,
e desmaiava.

O cheque voltou, abri os bolsos
e seus furos, eu que queria ser
um jornalista alternativo,
especialista em rock,
um apedeuta dos sons guturais.

E que noite titânica!
Espevitei meus dons infantes
como notório saber,
um doído campo de fotos,
instrumentos de corda e de sopro,
a sede infinda do conhecimento,

sombras se nutriam dos meus sonhos,
e eu era outro e um além ainda
como um grande polvo
de tentáculos ao mundo.

08/02/2017 Gustavo Bastos






domingo, 5 de fevereiro de 2017

ANDY WARHOL E A POP ART - PARTE I

“uma persona e um método de arte inteiramente novos que irritou, abalou e transformou o mundo da Arte”

ANDY WARHOL : A PRIMEIRA ESTRELA DA ARTE

Warhol é um dos artistas que tiveram o status de lenda ainda em vida. Raras vezes se escreveu e bisbilhotou tanto sobre alguém, como sobre ele. Se reuníssemos as páginas dos manuscritos dedicados à sua vida e obra, seria algo de uma extensão grandiosa. E quando Warhol aparecia em público, poderia dar a impressão de não ser deste mundo. É difícil estabelecer a verdade sobre a vida de Andy Warhol, como ele se chamou a si próprio, a partir do momento em que foi morar em Nova Iorque. Sua vida se tornara divulgada e obscura ao mesmo tempo, pois existia a contradição entre verdade e mentira, tudo isso numa dissimulação de fatos biográficos, como um tipo de método do que vem à luz e do que fica na sombra.
Warhol se formou como desenhista publicitário, mas desde o princípio se via como um artista, e seguindo tal mística criou uma persona e um método de arte inteiramente novos que irritou, abalou e transformou o mundo da Arte. No entanto, de certo modo, o seu método de fazer arte poderia ser comparado, guardadas as proporções e as características de época, como um tipo de gestão muito bem associada ao que se fazia no Renascimento e no Barroco. Por outro lado, Warhol era tido como uma pessoa muito reservada e mostrava-se particularmente lacônico para com os jornalistas. No entanto, nenhum artista da sua época deixou tantos testemunhos como ele: além de um grande número de entrevistas e aforismos, deixou dois livros autobiográficos. Porém ninguém sabe exatamente quem de fato escreveu os livros: se o próprio Warhol ou um dos seus inúmeros “ghostwriters”.
Apesar de não ter faltado praticamente a nenhum acontecimento público ao seu alcance, e raramente deixar passar uma “party”, gostava de se fazer representar por sósias. Um dia, precisamente quando Warhol festejava com “The Chelsea Girls” os seus primeiros êxitos comerciais de cineasta, a fraude veio à luz do dia: depois de ter feito algumas conferências em diversos “colleges” americanos, Warhol, cansado deste trabalho, confiou-o a Allen Midgette, que se fez passar por ele. Warhol, então, escondia-se muitas vezes por detrás de óculos escuros e peruca branca, e mal tinha acabado de se instalar em Nova Iorque, pintara-a já os cabelos em tons de loiro-palha.
Andy Warhol tinha uma admiração forte pelas estrelas do cinema e dos meios literários americanos mais em voga. Porém, em sua época, esta era a qual as próprias “superstars”, agora ameaçadas pelas “megastars”, viriam para superar e eliminar as vedetes da época heroica do cinema americano, que gozavam de uma fama sem limites. “Ser célebre durante um quarto de hora”, eis o lema de Warhol, que concretiza bem a mentalidade de uma época, que privilegia o efêmero.
Andy Warhol encarnava, na perfeição, o novo tipo de estrela. Ele era criador e ao mesmo tempo realizador e ator, e legou ao mundo o artista-vedete que, no universo artístico, sucedeu ao gênio. Hábil nos negócios e patrão de uma oficina de 18 empregados (“the boys and the girls”), soube comercializar sua criatividade e sua própria pessoa. “Para Andy Warhol, que se intitulava a si próprio ‘business-artist’, com dinheiro é que a arte é bela!” (Eva Windmöller). E um amigo de longa data e também mecenas convicto, Henry Geldzahler, elogiava o fascinante “amálgama de negócios e de arte” por parte do artista.
Sem a estilização consciente da sua personalidade como estrela desligada da realidade, teria tido muito mais dificuldades nos negócios. Em todas as estrelas, de todos os estilos e proveniências, e como se brilhasse algo de divino, que é nada mais que o efeito da projeção dos admiradores. “No ser superior, mítico (a estrela), projeta-se toda uma série de necessidades e desejos que na vida não podem ser realizados”, escreve o sociólogo e cineasta Edgar Morin, que deste modo enuncia o pressuposto sociopsicológico mais importante para o culto das estrelas no século XX.
Ninguém melhor do que Andy Warhol, o artista, percebem este mecanismo do culto das estrelas, como bem o demonstra o comportamento característico que adotava em público. Simultaneamente presente e ausente, dava a impressão de uma aparição encarnada. Henry Geldzahler vê nesta forma de comportamento a razão determinante do êxito fabuloso de Warhol. “Graças ao seu aspecto de “dumb blond”, a opinião pública associou-o rapidamente ao movimento pop. Neste país e no nosso século, só muito raramente os artistas são reconhecidos pelo homem da rua: Pablo Picasso, Dalí, Jackson Pollock – a lista é pequena.” Também Marilyn Monroe, o modelo mais popular de Andy Warhol foi considerada “dumb blond”.
No entanto, e contrariamente ao seu retratista, Marilyn Monroe estava sempre mais presente, apesar de, na realidade, só muito poucas pessoas terem chegado a vê-la. A sua temporalidade materializava-se no écran e foi apenas através deste que a atriz Marilyn Monroe se tornou a deusa do sexo. Em contrapartida, a estrela Andy Warhol não precisava do écran de cinema; ela servia-se dos media “documentários”. O que o filme de ficção tinha sido para os deuses de Hollywood – a começar por Mary Pickford, a primeira estrela a merecer, de fato, este nome, até James Stewart, Ingrid Bergman, Elizabeth Taylor e Marilyn Monroe, passando por Charles Chaplin, Greta Garbo, Marlene Dietrich, Mae West, Bette Davis, Clark Gable e Humphrey Bogart – era para Andy Warhol a imprensa popular, que trabalhava a partir da verdade aparente.
Warhol se aproveitava de um fenômeno de sua época e ainda vigente hoje da passagem do real ao fictício, facilitada e até mesmo organizada, nos anos 1960, pelo triunfo da televisão. Pois com a televisão se batiam as fronteiras entre o real e o imaginário. A “máquina de ficção” que era a televisão, aparentemente um instrumento para documentar, demonstrava, pela primeira vez, o seu poder, o de criar uma nova realidade, embora ficcional, paradoxal.
Andy Warhol elegeu Marilyn Monroe para modelo da sua arte, já depois de ela já ter morrido, e a morte tinha selado a sua existência supraterrestre. Juntamente com Humphrey Bogart, Marilyn Monroe era sem dúvida a única estrela de cinema, cuja fama póstuma havia ultrapassado, de longe, a popularidade que tivera em vida. E Andy Warhol contribuiu, sem dúvida, para este fenômeno. É difícil dizer o que é que lhe despertou a atenção para a atriz mais “sexy” do cinema – naquela época, o trono da deusa do sexo estava ainda reservado a Rita Hayworth e só foi atribuído a Marilyn Monroe muito depois de sua morte.

AS ESCOLHAS ARTÍSTICAS DE ANDY WARHOL

Vista à luz dos nossos dias, a escolha a favor de Marilyn ilustra a perspicácia infalível de Warhol para os caprichos da moda do seu tempo. Certamente que o “sex appeal” excitante da atriz não foi fator determinante. Terá sido, porventura, a lenda que ela teceu à sua volta? O historiador de cinema, Enno Patalas, escreveu a propósito de Marilyn Monroe: “Ela talhou, por medida, uma lenda sobre a sua juventude, segunda a qual os pais lhe batiam com correias de couro, foi violada aos seis anos por um ‘amigo’ da família e, mais tarde, maltratada por pais adotivos sem coração – uma história que foi logo desmentida pela jornalista Ezra Goodman, mas que se ajustava tão bem à personagem, que, apesar de tudo, se gostava de acreditar nela.”
Elvis Presley e Elizabeth Taylor foram os outros ídolos a quem Andy Warhol dedicou inúmeras telas e séries de quadros, embora em menores proporções do que a Marilyn Monroe. Não obstante as diferenças, estas estrelas têm um ponto comum: personificam perfeitamente a história do sucesso à americana. Norma Jean Baker, aliás Marilyn Monroe, de criança explorada – a acreditar na sua lenda – a “sex symbol” adulado; Elvis Presley de camionista, que cantava por amadorismo, ao ídolo histericamente idolatrado por toda uma geração, e Elizabeth Taylor de boneca do cinema a uma das estrelas mundiais mais bem pagas de Hollywood.
Depois, todas estas vedetas estão rodeadas de uma aura de tragédia – Marilyn tentou desesperadamente, mas em vão, escapar ao clichê de “sex symbol”; Presley entrava com frequência em depressões e Liz Taylor tinha constantemente problemas de saúde. Não seria de admirar que Andy Warhol se tivesse identificado, pelo menos em parte, com estas estrelas. O culto do sucesso é o laço que une o povo dos Estados Unidos da América. Andy Warhol pretendia ser um dos seus pontífices.
De início, trabalha como desenhador profissional de publicidade, cria anúncios para revistas de moda, tais como “Glamour”, “Vogue” e “Harper`s Bazaar” e abrevia o nome para Andy Warhol. Muda várias vezes de apartamento e de atelier e procura arranjar amigos. O sucesso veio relativamente depressa. O sonho americano de uma ascensão irresistível concretizou-se mais rapidamente do que esperava.
Evidentemente que a maneira como concretizou esta ascensão, deu lugar a imensas anedotas. O crítico de arte, Calvin Tomkins, conta que Tina Fredericks, então “art-director” da “Glamour”, contribuiu grandemente para isso. Ela teria ficado entusiasmada com os desenhos de Warhol, mas não fez qualquer utilização deles. “Ela disse-lhe que os desenhos eram bons, mas que, naquele momento, a “Glamour” só precisava de desenhos de sapatos. No dia seguinte, Andy voltou com cinquenta desenhos de sapatos no seu saco de papel castanho (...) Jamais alguém tinha desenhado sapatos como Andy.”
Muitos veem nos desenhos dos sapatos um motivo que se repete nos seus trabalhos até o início dos anos 1960, o capítulo mais importante da fase comercial da sua obra, em certa medida, a época Warhol antes de Warhol. Tomkins elogia a sua sutileza, estilo Henri de Toulose-Lautrec, e admira o seu rigor empírico. “Cada fivela estava no lugar certo.” A série dos Golden Shoes, criações livres, dedicadas a estrelas do cinema, como, por exemplo, Mae West, Judy Garland, Zsa Zsa Gabor, Julie Andrews, James Dean e Elvis Presley, ou a escritores, como Truman Capote e ao travesti Christine Jorgensen, e que, em certa medida, personificavam estas celebridades, teve grande êxito. Em 1956, uma exposição na Madison Avenue apresentava o álbum dos Golden Shoes, e que era um terreno fértil para os magos da psicologia.
O rasto do artista Andy Warhol, queixava-se Rainer Croner, perde-se num emaranhado de anedotas e de histórias. Conscientemente, os críticos de Arte tinham rodeado a vida e a obra de Warhol de uma ligeira mistificação, burilado a sua personalidade de artista ao jeito da sociedade de consumo, a fim de banalizar aquilo que a sua arte tem de único. Mas, em muitos casos, é o próprio Andy Warhol a origem das anedotas e histórias que gravitam em torno da sua pessoa. Havia boas razões para isto, pois só a bisbilhotice, versão profana dos mitos antigos, cria uma estrela. “Ele nunca perdeu de vista o seu verdadeiro objetivo: ser um artista e, embora nunca o tenha dito, uma estrela” – este, o resumo de Henry Geldzahler, o amigo de longa data.

(Baseado no livro Andy Warhol de Klaus Honnef, editora Taschen) 

Link recomendado: https://www.youtube.com/watch?v=OGLvxlnTMaU (Vídeo: Música de David Bowie: “Andy Warhol”).

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/32678/17/andy-warhol-e-a-pop-art-parte-1



BOCAGE – O DELÍRIO AMOROSO E OUTROS POEMAS – PARTE I

“Bocage era um homem do seu tempo e também à frente do seu tempo.”

BOCAGE:

Bocage foi um poeta que viveu entre duas fronteiras literárias que, deste modo, representavam exatamente a transição que a literatura de sua época vivia. Bocage era um poeta que estava entre suas anedotas sujas e criações obscenas, alternando com poemas de rara sensibilidade, que eram confissões amorosas e sofrimentos de sua vivência. Na questão literária em si, Bocage estava situado entre as regras rígidas de um Arcadismo decadente, que eram a poesia e literatura de um mundo racional, concreto e organizado, e a liberdade de um Romantismo ascendente, com uma nova poesia e literatura que se abria a um individualismo subjetivo e que vinha como renovação do cânone arcadista. Portanto, podemos dizer que Bocage era um homem do seu tempo e também à frente do seu tempo.
O século XVIII, por sua vez, era um momento histórico marcado por movimentos sociais da classe burguesa que havia surgido com a Revolução Industrial, e que politicamente estava em oposição ao absolutismo real, e que tem como culminância a Revolução Francesa, que vai representar, por seu turno, a queda da aristocracia e o estabelecimento do pensamento liberal, que tinha um caráter iluminista e que carregava em si uma ideologia calcada na livre iniciativa e na livre concorrência.
Nesse contexto, portanto, as expressões literárias e artísticas em geral vão refletir um mundo em transição entre a antiga ideologia da classe aristocrática e o novo pensamento burguês. O século XVIII é, então, o século do Arcadismo, mas é, também, já na virada para o século XIX, o da ascensão e consolidação do Romantismo junto ao público europeu. É em tal contexto histórico que Bocage se situa, uma vez que ele nasceu em 15 de setembro de 1765.
Aos dezesseis anos, Bocage é já militar em sua cidade natal, Setúbal, mas vai para Lisboa em 1783, ao alistar-se no corpo da Marinha Real. Mas tal carreira que poderia ter sido promissora é trocada por uma vida dissipada em botequins, lugar da boêmia por onde circulam fidalgos e frades, e toda uma gama de gente de vida fácil e amores incontáveis, e é neste tipo de vida que Bocage dá à luz poemas sensíveis, alternando com suas improvisações satíricas e obscenas.
De seus amores, um se destaca, pois é por amor a Gertrude que, em 1786, Bocage parte para a Índia, com passagem pelo Rio de Janeiro, passa dois anos em Goa, que é um período de grande decepção no que o poeta considerou a pior das terras, com uma profunda saudade de Portugal, e com um ciúme louco de Gertrude, no que vive a sua predestinação sentimental e trágica de acordo com o modelo camoniano, o qual toma para si.  
Em 1789 é promovido a tenente de infantaria, vai para Damão, depois parte para Macau, quando conhece, com sua saudade de Portugal, entre as torturas da ausência de Gertrude, a miséria. Em 1790, com 25 anos, Bocage consegue regressar a Lisboa, onde a predestinação camoniana se confirma: encontra Gertrude casada com o seu irmão mais velho. Então o poeta mergulha na vida boêmia e desregrada, entre botequins e tertúlias.
É neste contexto de vida que Bocage então ingressa na Academia Literária Nova Arcádia, com encontros nos salões da casa do conde Pombeiro. E é aí que Bocage passa a fazer sátiras que mira primeiro seu presidente, depois, os seus pares mais notáveis, no que se constitui como uma implacável guerra verbal, repleta de insultos, e com a obscenidade como guia e inspiração.

POEMAS:

O AUTOR AOS SEUS VERSOS: O poema começa em tom melancólico, um choro lamentoso irrompe: “Chorosos versos meus desentoados,/Sem arte, sem beleza, e sem brandura,/Urdidos pela mão da Desventura,”. A ausência ou falta ou vazio, e o poema que então edita a palavra “sem” seguidamente, continua: “não busqueis, desesperados,/No mudo esquecimento a sepultura;/Se os ditosos vos lerem sem ternura,/Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:”. Ao fim, fica uma promessa do futuro deste poema e poeta, a ternura indicada aqui numa inversão da leitura, aos ditosos que o desdenharão e aos desgraçados que buscarão neste poeta o último alento.
DESCREVENDO OS ENCANTOS DE MARÍLIA: O poema descreve tal encanto numa abertura que já diz à sua musa, num tom encantatório que logo vira mitologia: “Marília, se em teus olhos atentara,”. E o poema continua: “Ao vil mundo outra vez o onipotente,/O fulminante Júpiter baixara:/Se o deus, que assanha as Fúrias, te avistara/As mãos de neve, o colo transparente,/Suspirando por ti, do caos ardente/Surgira à luz do dia, e te roubara:”. Desperta Júpiter e a força descomunal tenta irromper, o poema afunda em alma, e o sacrifício do poeta se expande em canto universal, de terra, mar e firmamento: “se a força igualasse o pensamento,/Oh alma da minh`alma, eu te of´recera/Com ela a terra, o mar, o firmamento.”.
FEITO NA PRISÃO: O poema encarcerado, tem seu doído canto num tom noturno, escuro, como o fim do mundo: “Não sinto me arrojasse o duro fado/Nesta abóbada feia, horrenda, escura,/Nesta dos vivos negra sepultura,/Onde a luz nunca entrou do Sol dourado:”. E o sentimento está completamente deslocado, o mundo errado, ou melhor, o mundo repleto de erro e infortúnio, onde está o caos e a inversão de tudo: “bem sei que a frágil criatura/Raramente é feliz no mundo errado:”. E a sorte terrível dá o nome, zombaria por fim: “Só sinto que Marília rigorosa/Entre os braços de Aônio reclinada/Zombe da minha sorte lastimosa.”.
A CAMÕES, COMPARANDO COM OS DELE OS SEUS PRÓPRIOS INFORTÚNIOS: O predestinado camoniano canta a seu rei poeta e lhe dá a homenagem: “Camões, grande Camões, quão semelhante/Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!”. Aqui se compartilha um destino igual: “Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,/Também carpindo estou, saudoso amante:/Ludíbrio, como tu, da sorte dura/Meu fim demando ao céu, pela certeza/De que só terei paz na sepultura:”. Para quem vive desgraçadamente, afunda em boêmia e se dissipa nos botequins, a sepultura, a morte, medo geral, para o poeta aqui representa livramento e uma paz do fim de si mesmo.
A RAZÃO DOMINADA PELA FORMOSURA: O poema joga contra a Razão, e tenta resgatar a lei de Amor, já quase perdida, o desmonte da razão total terá na loucura do poeta um contraponto inútil, uma vez que é a luta da fraqueza (o poeta) contra a força (a ordem pretensamente racional do mundo): “Importuna Razão, não me persigas;/Cesse a ríspida voz que em vão murmura;/Se a lei de Amor, se a força da ternura/Nem domas, nem contrastas, nem mitigas:”. E o poema segue: “Deixa-me apreciar minha loucura,”. Resta ao poeta um refúgio de abismo, a loucura simples, e o delírio de amor tem como fuga uma loucura mortal, a alma poética se afunda em abismo, carpir, delirar e morrer por Marília, em vão os conselhos de mudar de ideia: “É teu fim, teu projeto encher de pejo/Esta alma” (...) “Queres que fuja de Marília bela,/Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo/É carpir, delirar, morrer por ela.”.

POEMAS:

O AUTOR AOS SEUS VERSOS

Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania:

Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco.

DESCREVENDO OS ENCANTOS DE MARÍLIA

Marília, se em teus olhos atentara,
Do estelífero sólio reluzente
Ao vil mundo outra vez o onipotente,
O fulminante Júpiter baixara:

Se o deus, que assanha as Fúrias, te avistara
As mãos de neve, o colo transparente,
Suspirando por ti, do caos ardente
Surgira à luz do dia, e te roubara:

Se a ver-te de mais perto o sol descera,
No áureo carro veloz dando-te assento
Até da esquiva Dafne se esquecera:

E se a força igualasse o pensamento,
Oh alma da minh`alma, eu te of´recera
Com ela a terra, o mar, o firmamento.

FEITO NA PRISÃO

Não sinto me arrojasse o duro fado
Nesta abóbada feia, horrenda, escura,
Nesta dos vivos negra sepultura,
Onde a luz nunca entrou do Sol dourado:

Não me consterna o ver-me traspassado
Com mil golpes cruéis da desventura,
Porque bem sei que a frágil criatura
Raramente é feliz no mundo errado:

Não choro a liberdade, que enleada
Tenho em férreas prisões, e a paz ditosa,
Que voou da minh`alma atribulada:

Só sinto que Marília rigorosa
Entre os braços de Aônio reclinada
Zombe da minha sorte lastimosa.

A CAMÕES, COMPARANDO COM OS DELE OS SEUS PRÓPRIOS INFORTÚNIOS

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludíbrio, como tu, da sorte dura
Meu fim demando ao céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és ... Mas, oh tristeza! ...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza.

A RAZÃO DOMINADA PELA FORMOSURA

Importuna Razão, não me persigas;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura;
Se a lei de Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas:

Se acusas os mortais, e os não abrigas,
Se (conhecendo o mal) não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura,
Importuna Razão, não me persigas.

É teu fim, teu projeto encher de pejo
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo:

Queres que fuja de Marília bela,
Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/32673/17/bocage-o-delirio-amoroso-e-outros-poemas-parte-1