Um trabalho profundo de antropologia estava sendo feito pelo
pesquisador Matheus, ele tinha a ajuda de outro antropólogo Paulo, os dois já
tinham passado pelo Acre, numa história de estudar a religião da barquinha, no
entanto, o Amazonas mais isolado era uma nova frente em que tais pesquisadores
queriam se embrenhar. A decisão foi pelo rio Içana, numa nova inserção sobre os
Baniwa, índios que habitavam na fronteira do Brasil com a Colômbia e Venezuela,
perto dos Curipacos da Colômbia e do Alto Içana, em aldeias localizadas tanto às
margens do Rio Içana e como em seus afluentes, os rios Cuiari, Aiairi e Cubate.
Matheus já tinha trabalhado uma vez com os Baniwa, um pouco
em relação à história deles com as missões salesianas, e o fato de no final de
1940, Sophia Muller, uma missionária evangélica norte-americana, ter feito a Missão
Novas Tribos, iniciando a evangelização dos curipacos na Colômbia, e tendo
estendido tal missão aos Baniwas do Brasil, no que Matheus, mesmo com a
resistência de alguns índios da tribo, conseguiu ganhar a confiança do pajé de
nome Axíwa, e que tinha no xamanismo, também, toda a fonte mítica da tribo,
tendo Matheus feito um trabalho antropológico de duas frentes, uma sobre os
brancos e suas inserções na tribo, como na evangelização, como outra na parte
em que ele colocou uma interpretação cultural segundo seu método de alteridade
na questão mitológica nas entrevistas com Axíwa, e que agora, junto com Paulo,
recém-formado, ele teria um possível aprofundamento, desta vez numa tentativa
de levantar, pelos mitos e lendas, um possível conteúdo espiritual da tribo, e
de como isto foi preservado junto com o movimento de evangelização, se houve
algo de hibridação entre a religião dos brancos com a tradição autóctone dos
Baniwas.
O primeiro trabalho de Matheus tinha resultado num livro
acadêmico de título “Evangelho e Mitos nos Baniwas” que, nesta nova viagem, ele
queria entender mais do conteúdo das lendas, até sobre símbolos comuns entre a
mitologia universal, tais como o boitatá, a Iara e lendas sobre o navio
fantasma, no que Matheus ficou sabendo que também havia um ufólogo
entrevistando os índios sobre bolas de luz ou prateadas, as quais apareciam nas
margens do rio Içana, segundo relatos dos próprios índios, e que não tinham
explicações lógicas para tais aparições. No que ufólogos interpretavam como
Ufos, e Matheus, que tinha ainda um certo ceticismo sobre as várias lendas, viu
que teria de mudar de postura neste segundo trabalho, e talvez até levar
literalmente os relatos dos índios, como a verdade dos fatos, e não mais lendas
mitológicas. Embora seu ceticismo fosse mais forte que seu trabalho
antropológico, no que seria um modo usual seu de tratar todas as questões,
inclusive as metafísicas.
Ele e Paulo tinham, além do trabalho antropológico, a
intenção de experimentar as substâncias psicoativas usadas pelos índios no
xamanismo, que eram o paricá e o caapi, para enxergar o “invisível” e os
relatos de criação do cosmos da tradição xamânica, no que teriam, portanto,
material farto como uma via principal de entrada “concreta” na mitologia local,
além do aspecto psíquico em perspectiva antropológica da experiência mística
com o paricá e o caapi, que era exatamente a fonte preservada dos Baniwas em
relação aos processos de evangelização, que tinham convertido uma grande parte
dos índios, seja no catolicismo dos salesianos como no evangelismo da
missionária Sophia, mas que não fizeram cessar, em absoluto, os rituais da
tradição xamânica, pois era justamente com o pajé e o xamã que tais rituais
eram conservados, assim como nas danças pudali dos ciclos sazonais e frutíferos.
Matheus e Paulo então ligam para o ufólogo que já estava
hospedado na tribo, e recebem informações sintéticas sobre o que iriam ver na
viagem até o rio Içana, de que havia, segundo o ufólogo, vários relatos
lendários que iriam deixar os dois antropólogos de cabelo em pé, e que tudo era
a mais pura verdade, no que Matheus, ainda com certo ceticismo, encarou aquilo
tudo como credulidade de um especialista de uma pseudociência bem crédula para
ele como era a ufologia. Matheus logo pensou que teria que apenas “suportar” as
mistificações do ufólogo, sem bem saber em que realidade ele logo entraria sem
muito bem estar consciente disso.
Matheus e Paulo fazem o check-in em Congonhas, voam com
escalas até Manaus no estado do Amazonas, durante a viagem os dois conversam
sobre o livro de Matheus sobre os Baniwas, e sobre a curiosidade em relação ao
xamanismo, que eles sabiam que, desta vez, por conseguinte, eles teriam que
entrar de cabeça nos rituais tomando as substâncias psicoativas para
fundamentar todo o trabalho planejado. E a expectativa de Paulo sobre isso era
enorme, pois já tinha tomado ayahuasca. O avião vai, com escalas, até Manaus,
de lá os dois tomam um ônibus que os leva próximo ao rio Içana, de lá eles
combinam e pegam uma carona no carro alugado pelo tal ufólogo, que se chamava
Fábio, e que durante a viagem por estradas de chão derrama suas estórias de
Ufo, no que Matheus sorri com canto de boca, o ufólogo fala dos chupa-chupa da
Operação Prato, e mais quinquilharias da ufologia mística, enquanto Matheus e
Paulo seguram o riso, mas então, perto do Içana, começa uma discussão
acalorada, uma interpelação sistemática de Matheus, que encarava cada sílaba de
Fábio como pura mistificação de uma imaginação febril, quase dá briga, mas
Matheus depois de tanto interpelar Fábio, percebe que ele era necessário,
terrivelmente necessário para o seu novo estudo nos Baniwa.
Fábio, quando chega às margens do Içana, já perto das ocas
aonde ficava a tribo Baniwa, tira do bolso um baseado apertado e acende, no que
Matheus tira a conclusão de que Fábio era mesmo um pirado que queria ver tudo o
que quisesse, sem critério nenhum, Matheus pensou estar entrando numa cilada,
Paulo deu uns tragos no baseado, Matheus não fumava, mas tinha trazido consigo
umas garrafas de bebida destilada, entre estas uma caninha da roça no que deu
três shots para ouvir com mais condescendência e interesse as estórias loucas
do ufólogo maconheiro. Parecia mais aquela cena do Jack Nicholson em Easy Rider,
estórias de Ufo alimentadas pela fumaça de um baseado.
Matheus decide ligar um gravador com autorização de Fábio, no
que o antropólogo faria em seu novo trabalho acadêmico como uma citação de
lendas e mitos contadas por brancos e índios, uma miscelânea que consistiria em
um híbrido de folclore com teses ufológicas, sob o viés cético-científico, tal
crendice da antropologia, esta de ser uma ciência, de ter um método, de ser
fundamentada, sem bem saber o que um antropólogo faz com o seu paradoxo
incontornável da alteridade, no que vemos que Matheus era um crente de seu
método, relativizando loucamente com alteridade e ao fim com o puro ceticismo
seu relato que era uma salada étnica e de perspectivas sonhadoras que ele logo
confrontaria com o xamanismo.
Matheus bebe a sua caninha da roça sozinho, Paulo curte uma
onda leve de cinco tragos de baseado, Fábio acende mais um baseado e diz que os
três teriam que acampar ali na beira do rio antes de chegar à tribo, pois já
anoitecia, no que Fábio passa a noite até uma da manhã fumando maconha, e
Matheus com a logorreia típica de um alcoolista entusiasmado com a própria
inteligência, fazendo pouco caso do que Fábio dizia com o tom melódico de
língua amortecida de um fumador de maconha inveterado. E Paulo mudo por não
mais controlar os próprios pensamentos.
Aquela ideia do entretenimento do pensamento pode ganhar
roupagem patética quando o indivíduo está num transe inútil em que nada se diz,
se balbucia, contrastando com a viagem alcoólica de seu colega Matheus, com o
ego de um bebedor que sabe tudo o que diz. A noite é de contrastes, o ceticismo
e alcoolismo de Matheus, a credulidade e fumaça de Fábio, e o terceiro, Paulo,
alheio à tudo que cai num sono profundo com roncos estridentes. A discussão
entre Matheus e Fábio é infrutífera, um fla-flu de convicções fanáticas para
extremos opostos, mas nada que comprometesse o trabalho de ambos, pois estavam
no mesmo lugar geográfico e de trabalho, não tinham tempo a perder, e sabiam
que as discussões seriam apenas verbais, sem mais digressões de uma violência
maior.
De manhã Matheus acorda primeiro, seis horas, com a ressaca
de caninha, pesando como um elefante, sete horas levanta Fábio, os dois esperam
até dez da manhã para então acordarem Paulo, que parecia que estava hibernando,
no que Matheus joga um balde água gelada de rio na cabeça e no corpo de Paulo,
o qual acorda e demora meia hora para se orientar. Os três seguem de carro até
a aldeia, são recebidos pelo cacique que ostentava seu nome índio Buraki e seu
pseudônimo branco de Augusto, meio como o imperador romano, numa versão
tropical ou equatorial. Augusto tinha português fluente, ia muito ao meio
urbano negociar com políticos medidas que favorecessem os Baniwa, e
apresentou-lhes o xamã, sucessor de Axíwa, que havia morrido há seis meses, de
nome Patchuía, no que são surpreendidos por um hippie que passava por ali,
aprendendo artesanato com os índios, colares com geometrias espetaculares, e
que diz aos três brancos que de noite o xamã ministraria ayahuasca para um
ritual xamânico, e que eles teriam que participar para ficar hospedados numa
oca central com fogueira que aqueceria a madrugada gelada do ar úmido da
floresta equatorial, sempre com chuva ao anoitecer, o que mantinha a
temperatura amena.
O hippie se chamava Otávio, vivia como um nômade, com pouco
dinheiro, andando pelo Brasil já há vinte anos, depois de ter sido expulso de
casa por estar em más companhias, o que ele disse que era o “pessoal do ácido”,
há muito tempo atrás. Agora ele só tomava ayahuasca e tomou ojeriza de bebida
alcoólica e tabaco, e comia muito pouco, sempre frutas e legumes, não comia
mais carne e frango, só peixe que ele aprendeu a pescar em suas peregrinações
sem destino, no que levava sempre consigo suas peças de artesanato e seu
violão, para o qual comprava cordas sempre que ia à cidade, e tocava de tudo,
compunha algumas músicas, mas não queria ter banda e nem gravar nada, tinha
escolhido o desprendimento absoluto numa mistura de ayahuasca com rudimentos de
filosofia budista e taoísta, tinha apenas dois livros, o Tao Te King e uma
biografia de Buda, no mais estudava seu violão por conta própria e disse aos
três brancos que ali era o doutorado do artesanato, principalmente na cestaria
de arumã, e dali ele ganharia mais um pouco de grana em seguida.
Então, logo o xamã novo disse que o caapi só funcionava com o
paricá, e que para começar o ritual ele era o único autorizado a inalar o
paricá puro pelo nariz com o uso de um tubo, no que o faz e entra em transe. O
caapi também poderia ser associado com o São Pedro, no que o hippie Otávio
tinha ganhado recentemente um cacto desta espécie de um grupo de hippies seus
amigos que estavam acampados fora da aldeia, e disse aos três brancos que
depois o visitassem lá para ter uma experiência mais impactante de tais
propriedades espirituais do xamanismo hippie itself.
O xamã Pacthuía logo começa a relatar em arauaque suas visões
para seus assistentes, “conversa com espíritos da floresta”, dizia o tradutor,
que era o próprio Otávio, que tinha aprendido um pouco do dialeto, pois estava
lá pela quinta vez em três anos. O relato é freneticamente anotado pela
assistência, e Matheus é autorizado pelo xamã a fazer a sua tradução para os
brancos em seu trabalho acadêmico, no que o antropólogo pensava se seria uma
reedição atualizada de seu livro anterior ou um livro novo, mas que decidiria
tudo depois de tomar a ayahuasca, pois até então nunca tinha experimentado chás
alucinógenos, sintéticos em pílulas e muito menos enteógenos, teve uma rápida passagem
pela maconha, mas era um alcoolista padrão, embora controlado, pois trabalhava
muito e sem parar, ainda mais no meio acadêmico que lhe exigia cada vez mais.
O xamã com seu rapé faz um relato, Otávio pega um caderno e
faz a tradução para Matheus, dá um relato de vinte páginas, e que Matheus
encarou como pura mitologia, embora sua intenção fosse, de algum modo, se abrir
e relatar aqueles mitos sem juízo de valor, apesar de ser um resistente mórbido
de ideias metafísicas. Mas ainda havia a cerimônia de introdução dos brancos
visitantes ao mundo invisível, e que a porta se abriria independentemente das
crenças subjetivas e pretensamente objetivas dos participantes, no que o xamã advertiu
Matheus de uma maneira que parecia que o xamã lhe houvesse surpreendido seus
pensamentos e convicções, no que finalmente o antropólogo baixou a guarda para
procurar uma experiência autêntica e não mitológica com a ayahuasca, ele sabia
que teria que fazer uma suspensão de seu juízo depois do pito sutil do xamã.
E começa a mistura e cocção do caapi com o paricá, o hippie
dizia em segredo que o São Pedro ficaria escondido para depois, uma vez que
respeitava religiosamente tudo o que o xamã lhe dizia, dominando cada vez mais
o arauaque. Os três, Matheus, Paulo e Fábio, fazem então a ingestão da cocção,
o tempo logo ficaria relativo, mas em horas seriam duas horas de profundo
transe, nada passaria pela tela mental sem a percepção onisciente do xamã que
daria o tempo todo as instruções. Otávio já tinha lido a tradução do rapé, e
ali era mais uma vez as descrições psicodélicas de um espírito felino
despertados por um nariz dilatado pelo rapé, a mitologia espiritual era
concreta em visões, e misturava tradição oral com experiência mística direta e
empírica.
Matheus começa a ter suas visões, que são de teor leve, Paulo
começa a vomitar depois de duas horas, Fábio parece estar entretido com uma
paisagem de bem-aventurança, Otávio consegue controlar aquelas visões que já
lhe eram familiares e fundamentadas pelo seu estudo do arauaque e mitos baniwa.
Matheus logo começa a pedir orientações ao xamã, que lhe diz que os espíritos
da montanha e da floresta eram seus antepassados, parentes do século anterior,
seu tronco familiar era vasto como a terra, e o passamento de alguns foi
tortuoso em função de uma futura bem-aventurança que aguardava no meio do
caminho de aprendizado.
Matheus recebe algumas censuras do xamã que lhe dizia que “tal
irreverência” afastaria sua parentela de bem-aventurados trocados por entidades
ctônicas que ele tinha prejudicado em tempos anteriores dos quais ele não tinha
sequer ideia. O xamã orienta então a Matheus mais uma vez se desarmar, não
achar nada daquilo engraçado e se concentrar no que as plantas de poder estavam
lhe dizendo e que ele só via como um grande teatro, um passatempo qualquer. Paulo,
a esta altura, estava mais uma vez desorientado, vomitando o mundo inteiro e
seus rancores mórbidos que ele nutria desde tempos, Otávio sorria como um bebê,
pois “já sabia de tudo”, e Fábio era um ser místico repleto de felicidade
sobrenatural.
As horas passam, e as ondas senoidais se acalmam, a paisagem
é convidativa, o xamã dizia então que era para se deitarem e verem tudo de uma
forma harmoniosa como é o mundo invisível daquela cerimônia, nada de questões,
tudo se havia lhes respondido, o universo não era mais um mistério, a porta
estava aberta e a chave era seleta para cada um. Matheus então dá uma vomitada
e dorme. Otávio deixa tudo como está, explicadinho como gato escaldado de tudo,
Fábio dá tchauzinho feliz à sua sessão de bem-aventurança e também dorme, Paulo
não passa bem, mas consegue dormir. O xamã encerra os trabalhos satisfeito,
apenas com um certo receio de Matheus, mas nada grave. Todos ali agora eram
bem-vindos, a paisagem e o segredo da alma não eram mistérios para o xamã, o
racional e o mito eram híbridos de uma mesma existência, e o destino universal
estava nos olhos, o mundo feliz do futuro espiritual, o mundo do bem depois das
tonitruantes armadilhas terrenas.
Amanhece, Fábio está em uma rede, Paulo dorme em cima de
palhas, Matheus acordou antes de o sol aparecer, suava frio, mas logo passou ao
tomar papa de milho de um índio que também estava na oca. O plano de Matheus
era fazer uma entrevista do cacique que tinha português fluente, envolvendo a
vida de sua aldeia e a relação com os brancos, e também o seu diálogo constante
com os políticos em derredor, no que Matheus, munido de seu gravador, chamou Paulo,
que havia acordado de sonhos intranquilos, e Fábio só queria saber de uma tal
viagem de balsa pelo Içana para ver bolas de prata, no que Matheus o escarnecia
com soma de arrogância ao seu ceticismo padrão.
O dia seria então de entrevista pela manhã com o cacique, e
depois um passeio de balsa, pois havia uma num posto policial ali perto, que
era usada para rondas, mas poderia ser usada pela tribo e por pessoas
autorizadas de acordo com as necessidades. O fato é que Fábio vivia às voltas
com uma ideia estapafúrdia de fotografar e gravar em vídeo tais supostas sondas
extraterrestres que, para Matheus, viviam era sim dentro da cabeça oca de
Fábio, um mistificador profissional, mais um desses ufólogos alienados que têm
como utopia e única razão de vida a prova cabal de vida inteligente alienígena,
a mesma esperança vã, segundo o mesmo Matheus, que têm os espíritas por esta
mesma prova experimental da vida após a morte.
No que Matheus pensou consigo que poderia fazer troça de
Fábio durante a viagem de balsa, e com Paulo com um certo receio de que tudo o
que Fábio dizia fosse real, e também se perturbando com as lendas do local,
cobra-d`água, iara, boitatá e fontes inumeráveis da rica mitologia do local.
Teria que ter um líder na balsa, e Matheus se autointitulou, o eldorado estaria
na cabeça de Fábio, e para Matheus só seria uma sessão de comédia com Fábio de
ator cômico involuntário. E Otávio com a ideia de dar São Pedro com caapi para
os visitantes entre seus amigos hippies acampados e com uma cartela de ácido
que somente Otávio não tomava por razões budistas e religiosas.
A entrevista com o cacique e mais dois representantes da
tribo local dos baniwa rende bons frutos, três horas de gravação ininterruptas
sobre o cotidiano local mais as precisas informações do passado mítico que,
segundo Matheus, eram mais úteis do que o relato alucinado do xamã. E do que
Matheus recolheu quase tudo seria aproveitado, ao contrário de suas reticências
quanto ao assunto contato com o mundo invisível potencializado com
alucinógenos, que mesmo com o próprio fazendo a experiência, esta não passava
de luzinhas coloridas flutuando, borboletas azuis rarefeitas e vômito para o
cético de plantão. Paulo, por outro lado, desde que havia tomado a cocção não
se via mais em um corpo, tinha ideias paranoides até então discretas para os
outros, mas que viriam à tona depois do São Pedro. Enfim, Matheus decide
aproveitar o material do cacique e descartar a narrativa xamânica para o seu
novo trabalho acadêmico. Fábio, bem-aventurado, logo teria a sua fortuna
ufológica posta à prova, nada mais do que o sonho do contato intergaláctico, e
sempre depois de um baseado em cone, como lhe apraz.
Otávio volta com a sua horda de hippies sem avisar aos
outros, agora a balsa seria uma festa de hippies, dois antropólogos, um ufólogo
e um índio como guia do Içana. Otávio fala com Fábio que logo após a balsa
partir todos tomariam o São Pedro com o caapi, pois dali “levantariam voo”, ou
seja, o que era algo normal e corriqueiro seria um desafio espiritual para o
ceticismo de Matheus e uma implosão mental para Paulo, que se degradava sem ainda
ninguém se dar conta. Fábio, por sua vez, entraria no transe de suas bolas de
prata ou sondas drones ou seja lá o que for que ele dizia ser coisa dos
nórdicos, no que Matheus responde com troça que não sabia que os alienígenas
eram da “Noruega”.
A balsa sai pelo rio Içana, águas agitadas, correnteza forte,
tempo aberto, ensolarado, a água batendo nas faces que povoavam a balsa, o
índio que falava português orientando a navegação que ficara por conta de
Matheus, Fábio ansioso por ver bolas sondas drones, Paulo suando frio sem
sentir o próprio corpo, o grupo dos hippies confraternizando baseados enquanto
bebem o São Pedro com caapi, e ali logo todos entram no transe da bebida
potente, Otávio passa a comandar a balsa, já que Matheus passou a dizer que
levitava, os hippies que viam telas ordenadas com números como numa máquina de
calcular cósmica, Fábio vendo as suas sondas de estimação, o índio nem aí para
nada, tomou como se fosse água, e Paulo, que já perdia o próprio corpo, entrou
num redemoinho que o deixou tonto, ele dizia que havia um túnel de luz que o
chamava, e depois uma voz de um ser do Içana que dizia que ele era agora um espírito
livre e que nunca mais teria o seu corpo de volta, no que a paranoia de Paulo
virou um tormento para os hippies que até então confraternizavam em um Woodstock
particular no meio do rio.
Todos têm que segurar Paulo, pois o mesmo queria sair nadando
pelo rio, no que todos sabiam que aquilo era nada que tentar morrer afogado, e
a balsa vai passeando pelo Içana, a tarde avança, Otávio lidera a balsa,
Matheus pensa que é um guerreiro em busca do eldorado, voa para todos os lados,
tem asas, é um anjo total, seu ceticismo virara geleia, ele era agora o presidente
da balsa em direção ao eldorado, seu viés antropológico agora virara uma viagem
politizada em busca do que havia no fim do Içana, mas as horas passam, e no fim
da tarde a balsa volta à aldeia, Paulo é encaminhado para se tratar com o
xamã/pajé e melhora, Matheus teve apenas um surto momentâneo e percebe que o
eldorado era o próprio efeito do São Pedro combinado com o caapi. Os hippies
voltam ao acampamento com seus afazeres musicais e artesanais, Otávio também
deixa a aldeia para ir com os hippies confraternizar, uma vez que percebe que
tinha muita coisa errada com esses antropólogos e ufólogos e que não era mais
problema dele cuidar daqueles negócios, só voltaria à aldeia depois que os
brancos fossem embora, e sabia que logo os evangélicos iriam na semana seguinte
para a aldeia e ele não suportava fanáticos bíblicos.
Anoitece, e as sondas que povoavam a cabeça de Fábio fazem
visitas na beira do rio, o mesmo presencia o fenômeno e chama Matheus, que
também vê tais bolas ou luzes de prata, e Fábio convence que tudo era real
naquelas bandas, mesmo que não o fosse por outros meios usuais. Matheus hesita
várias vezes, esfrega os olhos dezenas de vezes e corre para chamar Paulo, o
cacique e o xamã, Paulo acha tudo muito normal, pois depois do São Pedro para
ele era tudo normal, desde que não ficasse mais louco. Matheus vê tudo ali,
eram sete bolas de prata dando voltas na beira do rio, na noite profunda e
cheia de sons de bichos do Içana, uma das sondas se aproxima e depois se divide
em duas menores que voam sobre a cabeça de Matheus, Fábio exulta, pega a sua
câmera de vídeo e tenta gravar, mas as sondas se afastam com este gesto, e sete
sondas sobem e viram quatorze que somem no ar numa fração de segundos.
Matheus se convence de que Fábio não era um místico, Paulo
que agora achava tudo normal tenta acalmar Matheus que chorava, enquanto Fábio
dizia impropérios por não ter conseguido registrar o evento. O xamã e o cacique
estão normais e falam que aquilo era rotina ali, Matheus agora sorri e decide
fazer uma nova entrevista com o xamã, desta vez sem alucinógenos, uma vez que
ele sabia que seu trabalho havia ganhado um contorno que desafiava a sua
própria formação, e que poderia ser algo bombástico no seu mundinho acadêmico,
ele decide arriscar, com a prudência de não ser objeto da mesma troça que fez o
tempo todo com Fábio até aparecer as tais sondas.
Matheus então, depois de seu estado de choque, decide ligar
seu gravador e fazer uma longa entrevista com o xamã, e também decide dar
prioridade ao aspecto mitológico das origens da tribo, da aldeia, de toda a
trama psicológica que envolve o xamanismo, subvertendo todos os seus cânones de
um antropólogo ateu, uma vez que se via numa bifurcação entre ceticismo e
visões de sondas desconhecidas, Matheus caíra num limbo em que não via nem seus
dogmas e nem seus escárnios, tudo se misturara num caldo indígena e ufológico
em que a antropologia virara apenas um detalhe, a alteridade ia para o espaço,
ele agora lidava com sonhos xamânicos e sondas interestelares de que Fábio lhe
advertira diversas vezes e depois de colocá-lo como ator cômico, agora vivia
seu melodrama de não saber mais de nada.
Canastrão posto à prova, agora ele teria que se retirar de
sua sobriedade e virar uma persona que via ufos na beira do rio e ouvia relatos
de xamã com o mesmo interesse de suas aulas de Clifford Gertz pensando que tudo
era ciência acadêmica e não vida viva e direta na convivência com a diferença
brutal de não ter mais método para o que via. A entrevista é longa e
proveitosa, mas seu interesse se volta na última hora sobre as estórias do xamã
sobre o navio fantasma, o que desta vez ele não recebe com escárnio mas com
vivo interesse, uma vez que Matheus sabia que naquele universo ele teria que suspender
seu juízo para não ser tomado por louco ou achar que estava louco. A loucura
ali era a ordem do dia, nada era estranho ou tão estranho como as próprias
coisas da vida, se vistas com atenção. O navio fantasma era o relato de um
navio que sempre aparecia em noites de névoa no fundo do rio, com piratas
gritando e assobiando alto, com uma bandeira preta, com luzes mortiças na proa,
e uma vela vermelha, tudo que era relatado pelo xamã recebia a vivíssima
atenção de Matheus neste momento, ele gravava tudo, e já pensava numa incursão
com Fábio, Paulo e um índio para caçar o tal navio no meio da noite no fundo do
rio, já que estava ficando louco, embarcaria de vez em aventuras sobrenaturais,
sabia que era arriscado navegar de noite de balsa pelo Içana, mas tinha a
esperança de que tudo correria bem com a orientação de um índio que conhecesse
tanto o rio como as artimanhas comuns de tal navio fantasma.
Agora o cético escarnecedor virara o mais curioso de todos,
desafiando crédulos até mesmo como o ufólogo Fábio, que agora não ouvia mais a
sua gargalhada quando lhe falava de sondas nórdicas. Ao fim da entrevista o
xamã dá alguns exemplos da cosmogonia da região, o mito começava com deidades ctônicas
e terminava com seres alados e naves semelhantes aos vímanas hindus, e Matheus,
bom estudioso de vários mitos, ouve tudo: “A cobra da verdade da terra era o
deus primordial, brota a água e ela nada e vomita um rio, o infinito flui neste
rio de que nasce Iara e seu séquito, todas as nereidas sobem e descem no ar,
são as luzes vizinhas que alimentam o rio, a Iara faz seu canto, o boto aparece
para levar as virgens, a cobra aparece na criação do mundo e depois se enrola
no infinito, a energia vital da cobra está na coluna do espírito, felinos
governam as plantas, entidades benéficas e maléficas povoam as florestas e as
cachoeiras, o rio nunca seca, os anjos fazem o rio fluir novamente, a cobra da
criação dorme em sono eterno, ao tomar as poções entro em contato com o
espírito felino, que ruge e arranha símbolos, estes viram nossos objetos de
trabalho, a vida da aldeia é regida por cantos sazonais, nos rituais de dança
aparecem todos e incorporam nos médiuns, algo acontece com as faces dos incorporados,
a dança é frenética e celebra a vida eterna, nossos espíritos felizes descem e
sobem ao bel-prazer, o clima é de alegria, aqui na aldeia somos felizes, e
conhecemos os segredos do mundo invisível que nos criou, tais como as luzes que
descem e sobem nos céus”.
Matheus, depois do relato do xamã, fica obcecado com a ideia
de flagrar o tal navio fantasma. Depois de muita insistência convence Fábio e
Paulo a irem com ele e mais um índio como guia para sair de balsa pela noite
adentro ao rio Içana para ver os tais espíritos. Fábio, que era crédulo até a
medula, fica assustado com a súbita iluminação daquele cético de carteirinha,
mas também munido de uma curiosidade mórbida por coisas sem explicação, decide
que seria mais uma vez surpreendido pelas bolas de prata, e tendo ainda dúvidas
sobre a realidade do navio fantasma, Paulo, cada vez mais alheio à tudo, segue
a sua estratégia mental de achar tudo normal para não ficar louco. O índio, que
já tinha visto o tal navio, tenta demover Matheus daquela ideia insana, em vão,
eles embarcam no cair da noite, as visões seriam inumeráveis, o desfecho
multifacetado de um cético que toma uma injeção de adrenalina e vai para o
paraíso ou o inferno.
Em uma hora de viagem, Matheus veste novamente a persona de
um navegante em busca do eldorado, desta vez com a cabeça nua, sem os hippies e
o São Pedro com caapi. Duas horas de viagem, aparecem as bolas de prata, Fábio
grita por ter esquecido sua câmera fotográfica e de filmar, fica pasmo por ter
sido tão distraído, mas vê as sondas e consegue ver um homenzinho dentro de uma
delas. O navio fantasma aparece em seguida, sob névoa, mas o índio decide
navegar de volta à aldeia, Matheus tenta ver de novo o navio, mas ele já havia
sumido na névoa, ele pensa que teria que sair na noite seguinte para fazer o
mesmo trajeto, desta vez sem o índio, pois queria ir até o fim naquela
história.
Na tarde seguinte o xamã convida Matheus, Paulo e Fábio para
participar dos rituais de dança da tribo aonde o xamã dizia que seriam
incorporados os espíritos do rio e da floresta, tudo acontece num festival
dionisíaco, uma festa de Baco na floresta equatorial, Matheus conversa com uma
dessas entidades que lhe diz: “Cuidado com os gênios do rio, estão todos de
olho em você, não vá longe demais”. Mas Matheus encarnara a alma do aventureiro
temerário e botara na cabeça que entraria no tal navio fantasma.
Logo depois, no anoitecer, a balsa sai pela segunda vez,
desta vez com Matheus como líder da navegação, Paulo achando tudo normal só
para não pirar, e Fábio desta vez com sua câmera fotográfica e de filmar em
punho para as visões do rio. Na noite densa, repleta de névoa, chuva caindo,
eles se deparam novamente com as bolas de prata, Fábio vê novamente um
homenzinho dentro de uma das sondas, pega a sua câmera, mas ela estava
inexplicavelmente travada, talvez pela tecnologia alienígena, um desses homenzinhos
sai da nave e levita em direção da balsa, Fábio, o ufólogo, se apavora, Paulo
acha tudo normal para não pirar, e Matheus, o líder da balsa, faz o movimento
em direção da entidade e recebe uma comunicação telepática de que o antropólogo
deveria voltar à aldeia antes que fosse tarde. Mas Matheus manda às favas o tal
homenzinho, o mesmo que volta para a nave levitando e some, e o antropólogo
cético agora se via embriagado como um aventureiro intrépido, o louco do
eldorado que era um celerado que buscava o ouro que o navio fantasma escondia e
lhe deixaria rico.
Era certo que Matheus já não se encontrava mais da posse de
seu juízo, e Fábio, o crédulo, começava a ficar com medo de seu líder
temerário, a balsa avança na madrugada e no rio, agora uma entidade negra com
terno branco flutua sobre o rio, os três se apavoram com a visão e tentam
voltar finalmente à aldeia, em vão, o navio fantasma cruza o caminho da balsa,
os espectros dos piratas gargalham e gritam, Fábio se apavora mais ainda e
grita que Matheus tinha que tirá-los dali, a balsa vara a correnteza violenta
do rio, começa a chover forte, trovoadas sem parar, raios iluminam a cena toda,
Fábio pula da balsa e sai nadando em direção da aldeia, mas se afoga e seu
corpo nunca será encontrado, a balsa então vira e Paulo é levado por um
redemoinho, com o seu cadáver aparecendo na beira do rio em frente à aldeia na
manhã seguinte, Matheus sai nadando sem direção até encontrar uma praia, está
acabado, exausto, a praia de rio está deserta, amanhece, ele deita e dorme, ainda
vivo.
Contos 11/02/2017 (feito em dois dias diferentes)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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