PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 11 de fevereiro de 2017

O NAVIO FANTASMA

Um trabalho profundo de antropologia estava sendo feito pelo pesquisador Matheus, ele tinha a ajuda de outro antropólogo Paulo, os dois já tinham passado pelo Acre, numa história de estudar a religião da barquinha, no entanto, o Amazonas mais isolado era uma nova frente em que tais pesquisadores queriam se embrenhar. A decisão foi pelo rio Içana, numa nova inserção sobre os Baniwa, índios que habitavam na fronteira do Brasil com a Colômbia e Venezuela, perto dos Curipacos da Colômbia e do Alto Içana, em aldeias localizadas tanto às margens do Rio Içana e como em seus afluentes, os rios Cuiari, Aiairi e Cubate.
Matheus já tinha trabalhado uma vez com os Baniwa, um pouco em relação à história deles com as missões salesianas, e o fato de no final de 1940, Sophia Muller, uma missionária evangélica norte-americana, ter feito a Missão Novas Tribos, iniciando a evangelização dos curipacos na Colômbia, e tendo estendido tal missão aos Baniwas do Brasil, no que Matheus, mesmo com a resistência de alguns índios da tribo, conseguiu ganhar a confiança do pajé de nome Axíwa, e que tinha no xamanismo, também, toda a fonte mítica da tribo, tendo Matheus feito um trabalho antropológico de duas frentes, uma sobre os brancos e suas inserções na tribo, como na evangelização, como outra na parte em que ele colocou uma interpretação cultural segundo seu método de alteridade na questão mitológica nas entrevistas com Axíwa, e que agora, junto com Paulo, recém-formado, ele teria um possível aprofundamento, desta vez numa tentativa de levantar, pelos mitos e lendas, um possível conteúdo espiritual da tribo, e de como isto foi preservado junto com o movimento de evangelização, se houve algo de hibridação entre a religião dos brancos com a tradição autóctone dos Baniwas.
O primeiro trabalho de Matheus tinha resultado num livro acadêmico de título “Evangelho e Mitos nos Baniwas” que, nesta nova viagem, ele queria entender mais do conteúdo das lendas, até sobre símbolos comuns entre a mitologia universal, tais como o boitatá, a Iara e lendas sobre o navio fantasma, no que Matheus ficou sabendo que também havia um ufólogo entrevistando os índios sobre bolas de luz ou prateadas, as quais apareciam nas margens do rio Içana, segundo relatos dos próprios índios, e que não tinham explicações lógicas para tais aparições. No que ufólogos interpretavam como Ufos, e Matheus, que tinha ainda um certo ceticismo sobre as várias lendas, viu que teria de mudar de postura neste segundo trabalho, e talvez até levar literalmente os relatos dos índios, como a verdade dos fatos, e não mais lendas mitológicas. Embora seu ceticismo fosse mais forte que seu trabalho antropológico, no que seria um modo usual seu de tratar todas as questões, inclusive as metafísicas.
Ele e Paulo tinham, além do trabalho antropológico, a intenção de experimentar as substâncias psicoativas usadas pelos índios no xamanismo, que eram o paricá e o caapi, para enxergar o “invisível” e os relatos de criação do cosmos da tradição xamânica, no que teriam, portanto, material farto como uma via principal de entrada “concreta” na mitologia local, além do aspecto psíquico em perspectiva antropológica da experiência mística com o paricá e o caapi, que era exatamente a fonte preservada dos Baniwas em relação aos processos de evangelização, que tinham convertido uma grande parte dos índios, seja no catolicismo dos salesianos como no evangelismo da missionária Sophia, mas que não fizeram cessar, em absoluto, os rituais da tradição xamânica, pois era justamente com o pajé e o xamã que tais rituais eram conservados, assim como nas danças pudali dos ciclos sazonais e frutíferos.
Matheus e Paulo então ligam para o ufólogo que já estava hospedado na tribo, e recebem informações sintéticas sobre o que iriam ver na viagem até o rio Içana, de que havia, segundo o ufólogo, vários relatos lendários que iriam deixar os dois antropólogos de cabelo em pé, e que tudo era a mais pura verdade, no que Matheus, ainda com certo ceticismo, encarou aquilo tudo como credulidade de um especialista de uma pseudociência bem crédula para ele como era a ufologia. Matheus logo pensou que teria que apenas “suportar” as mistificações do ufólogo, sem bem saber em que realidade ele logo entraria sem muito bem estar consciente disso.
Matheus e Paulo fazem o check-in em Congonhas, voam com escalas até Manaus no estado do Amazonas, durante a viagem os dois conversam sobre o livro de Matheus sobre os Baniwas, e sobre a curiosidade em relação ao xamanismo, que eles sabiam que, desta vez, por conseguinte, eles teriam que entrar de cabeça nos rituais tomando as substâncias psicoativas para fundamentar todo o trabalho planejado. E a expectativa de Paulo sobre isso era enorme, pois já tinha tomado ayahuasca. O avião vai, com escalas, até Manaus, de lá os dois tomam um ônibus que os leva próximo ao rio Içana, de lá eles combinam e pegam uma carona no carro alugado pelo tal ufólogo, que se chamava Fábio, e que durante a viagem por estradas de chão derrama suas estórias de Ufo, no que Matheus sorri com canto de boca, o ufólogo fala dos chupa-chupa da Operação Prato, e mais quinquilharias da ufologia mística, enquanto Matheus e Paulo seguram o riso, mas então, perto do Içana, começa uma discussão acalorada, uma interpelação sistemática de Matheus, que encarava cada sílaba de Fábio como pura mistificação de uma imaginação febril, quase dá briga, mas Matheus depois de tanto interpelar Fábio, percebe que ele era necessário, terrivelmente necessário para o seu novo estudo nos Baniwa.
Fábio, quando chega às margens do Içana, já perto das ocas aonde ficava a tribo Baniwa, tira do bolso um baseado apertado e acende, no que Matheus tira a conclusão de que Fábio era mesmo um pirado que queria ver tudo o que quisesse, sem critério nenhum, Matheus pensou estar entrando numa cilada, Paulo deu uns tragos no baseado, Matheus não fumava, mas tinha trazido consigo umas garrafas de bebida destilada, entre estas uma caninha da roça no que deu três shots para ouvir com mais condescendência e interesse as estórias loucas do ufólogo maconheiro. Parecia mais aquela cena do Jack Nicholson em Easy Rider, estórias de Ufo alimentadas pela fumaça de um baseado.
Matheus decide ligar um gravador com autorização de Fábio, no que o antropólogo faria em seu novo trabalho acadêmico como uma citação de lendas e mitos contadas por brancos e índios, uma miscelânea que consistiria em um híbrido de folclore com teses ufológicas, sob o viés cético-científico, tal crendice da antropologia, esta de ser uma ciência, de ter um método, de ser fundamentada, sem bem saber o que um antropólogo faz com o seu paradoxo incontornável da alteridade, no que vemos que Matheus era um crente de seu método, relativizando loucamente com alteridade e ao fim com o puro ceticismo seu relato que era uma salada étnica e de perspectivas sonhadoras que ele logo confrontaria com o xamanismo.
Matheus bebe a sua caninha da roça sozinho, Paulo curte uma onda leve de cinco tragos de baseado, Fábio acende mais um baseado e diz que os três teriam que acampar ali na beira do rio antes de chegar à tribo, pois já anoitecia, no que Fábio passa a noite até uma da manhã fumando maconha, e Matheus com a logorreia típica de um alcoolista entusiasmado com a própria inteligência, fazendo pouco caso do que Fábio dizia com o tom melódico de língua amortecida de um fumador de maconha inveterado. E Paulo mudo por não mais controlar os próprios pensamentos.
Aquela ideia do entretenimento do pensamento pode ganhar roupagem patética quando o indivíduo está num transe inútil em que nada se diz, se balbucia, contrastando com a viagem alcoólica de seu colega Matheus, com o ego de um bebedor que sabe tudo o que diz. A noite é de contrastes, o ceticismo e alcoolismo de Matheus, a credulidade e fumaça de Fábio, e o terceiro, Paulo, alheio à tudo que cai num sono profundo com roncos estridentes. A discussão entre Matheus e Fábio é infrutífera, um fla-flu de convicções fanáticas para extremos opostos, mas nada que comprometesse o trabalho de ambos, pois estavam no mesmo lugar geográfico e de trabalho, não tinham tempo a perder, e sabiam que as discussões seriam apenas verbais, sem mais digressões de uma violência maior.
De manhã Matheus acorda primeiro, seis horas, com a ressaca de caninha, pesando como um elefante, sete horas levanta Fábio, os dois esperam até dez da manhã para então acordarem Paulo, que parecia que estava hibernando, no que Matheus joga um balde água gelada de rio na cabeça e no corpo de Paulo, o qual acorda e demora meia hora para se orientar. Os três seguem de carro até a aldeia, são recebidos pelo cacique que ostentava seu nome índio Buraki e seu pseudônimo branco de Augusto, meio como o imperador romano, numa versão tropical ou equatorial. Augusto tinha português fluente, ia muito ao meio urbano negociar com políticos medidas que favorecessem os Baniwa, e apresentou-lhes o xamã, sucessor de Axíwa, que havia morrido há seis meses, de nome Patchuía, no que são surpreendidos por um hippie que passava por ali, aprendendo artesanato com os índios, colares com geometrias espetaculares, e que diz aos três brancos que de noite o xamã ministraria ayahuasca para um ritual xamânico, e que eles teriam que participar para ficar hospedados numa oca central com fogueira que aqueceria a madrugada gelada do ar úmido da floresta equatorial, sempre com chuva ao anoitecer, o que mantinha a temperatura amena.
O hippie se chamava Otávio, vivia como um nômade, com pouco dinheiro, andando pelo Brasil já há vinte anos, depois de ter sido expulso de casa por estar em más companhias, o que ele disse que era o “pessoal do ácido”, há muito tempo atrás. Agora ele só tomava ayahuasca e tomou ojeriza de bebida alcoólica e tabaco, e comia muito pouco, sempre frutas e legumes, não comia mais carne e frango, só peixe que ele aprendeu a pescar em suas peregrinações sem destino, no que levava sempre consigo suas peças de artesanato e seu violão, para o qual comprava cordas sempre que ia à cidade, e tocava de tudo, compunha algumas músicas, mas não queria ter banda e nem gravar nada, tinha escolhido o desprendimento absoluto numa mistura de ayahuasca com rudimentos de filosofia budista e taoísta, tinha apenas dois livros, o Tao Te King e uma biografia de Buda, no mais estudava seu violão por conta própria e disse aos três brancos que ali era o doutorado do artesanato, principalmente na cestaria de arumã, e dali ele ganharia mais um pouco de grana em seguida.
Então, logo o xamã novo disse que o caapi só funcionava com o paricá, e que para começar o ritual ele era o único autorizado a inalar o paricá puro pelo nariz com o uso de um tubo, no que o faz e entra em transe. O caapi também poderia ser associado com o São Pedro, no que o hippie Otávio tinha ganhado recentemente um cacto desta espécie de um grupo de hippies seus amigos que estavam acampados fora da aldeia, e disse aos três brancos que depois o visitassem lá para ter uma experiência mais impactante de tais propriedades espirituais do xamanismo hippie itself.
O xamã Pacthuía logo começa a relatar em arauaque suas visões para seus assistentes, “conversa com espíritos da floresta”, dizia o tradutor, que era o próprio Otávio, que tinha aprendido um pouco do dialeto, pois estava lá pela quinta vez em três anos. O relato é freneticamente anotado pela assistência, e Matheus é autorizado pelo xamã a fazer a sua tradução para os brancos em seu trabalho acadêmico, no que o antropólogo pensava se seria uma reedição atualizada de seu livro anterior ou um livro novo, mas que decidiria tudo depois de tomar a ayahuasca, pois até então nunca tinha experimentado chás alucinógenos, sintéticos em pílulas e muito menos enteógenos, teve uma rápida passagem pela maconha, mas era um alcoolista padrão, embora controlado, pois trabalhava muito e sem parar, ainda mais no meio acadêmico que lhe exigia cada vez mais.
O xamã com seu rapé faz um relato, Otávio pega um caderno e faz a tradução para Matheus, dá um relato de vinte páginas, e que Matheus encarou como pura mitologia, embora sua intenção fosse, de algum modo, se abrir e relatar aqueles mitos sem juízo de valor, apesar de ser um resistente mórbido de ideias metafísicas. Mas ainda havia a cerimônia de introdução dos brancos visitantes ao mundo invisível, e que a porta se abriria independentemente das crenças subjetivas e pretensamente objetivas dos participantes, no que o xamã advertiu Matheus de uma maneira que parecia que o xamã lhe houvesse surpreendido seus pensamentos e convicções, no que finalmente o antropólogo baixou a guarda para procurar uma experiência autêntica e não mitológica com a ayahuasca, ele sabia que teria que fazer uma suspensão de seu juízo depois do pito sutil do xamã.
E começa a mistura e cocção do caapi com o paricá, o hippie dizia em segredo que o São Pedro ficaria escondido para depois, uma vez que respeitava religiosamente tudo o que o xamã lhe dizia, dominando cada vez mais o arauaque. Os três, Matheus, Paulo e Fábio, fazem então a ingestão da cocção, o tempo logo ficaria relativo, mas em horas seriam duas horas de profundo transe, nada passaria pela tela mental sem a percepção onisciente do xamã que daria o tempo todo as instruções. Otávio já tinha lido a tradução do rapé, e ali era mais uma vez as descrições psicodélicas de um espírito felino despertados por um nariz dilatado pelo rapé, a mitologia espiritual era concreta em visões, e misturava tradição oral com experiência mística direta e empírica.
Matheus começa a ter suas visões, que são de teor leve, Paulo começa a vomitar depois de duas horas, Fábio parece estar entretido com uma paisagem de bem-aventurança, Otávio consegue controlar aquelas visões que já lhe eram familiares e fundamentadas pelo seu estudo do arauaque e mitos baniwa. Matheus logo começa a pedir orientações ao xamã, que lhe diz que os espíritos da montanha e da floresta eram seus antepassados, parentes do século anterior, seu tronco familiar era vasto como a terra, e o passamento de alguns foi tortuoso em função de uma futura bem-aventurança que aguardava no meio do caminho de aprendizado.
Matheus recebe algumas censuras do xamã que lhe dizia que “tal irreverência” afastaria sua parentela de bem-aventurados trocados por entidades ctônicas que ele tinha prejudicado em tempos anteriores dos quais ele não tinha sequer ideia. O xamã orienta então a Matheus mais uma vez se desarmar, não achar nada daquilo engraçado e se concentrar no que as plantas de poder estavam lhe dizendo e que ele só via como um grande teatro, um passatempo qualquer. Paulo, a esta altura, estava mais uma vez desorientado, vomitando o mundo inteiro e seus rancores mórbidos que ele nutria desde tempos, Otávio sorria como um bebê, pois “já sabia de tudo”, e Fábio era um ser místico repleto de felicidade sobrenatural.
As horas passam, e as ondas senoidais se acalmam, a paisagem é convidativa, o xamã dizia então que era para se deitarem e verem tudo de uma forma harmoniosa como é o mundo invisível daquela cerimônia, nada de questões, tudo se havia lhes respondido, o universo não era mais um mistério, a porta estava aberta e a chave era seleta para cada um. Matheus então dá uma vomitada e dorme. Otávio deixa tudo como está, explicadinho como gato escaldado de tudo, Fábio dá tchauzinho feliz à sua sessão de bem-aventurança e também dorme, Paulo não passa bem, mas consegue dormir. O xamã encerra os trabalhos satisfeito, apenas com um certo receio de Matheus, mas nada grave. Todos ali agora eram bem-vindos, a paisagem e o segredo da alma não eram mistérios para o xamã, o racional e o mito eram híbridos de uma mesma existência, e o destino universal estava nos olhos, o mundo feliz do futuro espiritual, o mundo do bem depois das tonitruantes armadilhas terrenas.
Amanhece, Fábio está em uma rede, Paulo dorme em cima de palhas, Matheus acordou antes de o sol aparecer, suava frio, mas logo passou ao tomar papa de milho de um índio que também estava na oca. O plano de Matheus era fazer uma entrevista do cacique que tinha português fluente, envolvendo a vida de sua aldeia e a relação com os brancos, e também o seu diálogo constante com os políticos em derredor, no que Matheus, munido de seu gravador, chamou Paulo, que havia acordado de sonhos intranquilos, e Fábio só queria saber de uma tal viagem de balsa pelo Içana para ver bolas de prata, no que Matheus o escarnecia com soma de arrogância ao seu ceticismo padrão.
O dia seria então de entrevista pela manhã com o cacique, e depois um passeio de balsa, pois havia uma num posto policial ali perto, que era usada para rondas, mas poderia ser usada pela tribo e por pessoas autorizadas de acordo com as necessidades. O fato é que Fábio vivia às voltas com uma ideia estapafúrdia de fotografar e gravar em vídeo tais supostas sondas extraterrestres que, para Matheus, viviam era sim dentro da cabeça oca de Fábio, um mistificador profissional, mais um desses ufólogos alienados que têm como utopia e única razão de vida a prova cabal de vida inteligente alienígena, a mesma esperança vã, segundo o mesmo Matheus, que têm os espíritas por esta mesma prova experimental da vida após a morte.
No que Matheus pensou consigo que poderia fazer troça de Fábio durante a viagem de balsa, e com Paulo com um certo receio de que tudo o que Fábio dizia fosse real, e também se perturbando com as lendas do local, cobra-d`água, iara, boitatá e fontes inumeráveis da rica mitologia do local. Teria que ter um líder na balsa, e Matheus se autointitulou, o eldorado estaria na cabeça de Fábio, e para Matheus só seria uma sessão de comédia com Fábio de ator cômico involuntário. E Otávio com a ideia de dar São Pedro com caapi para os visitantes entre seus amigos hippies acampados e com uma cartela de ácido que somente Otávio não tomava por razões budistas e religiosas.
A entrevista com o cacique e mais dois representantes da tribo local dos baniwa rende bons frutos, três horas de gravação ininterruptas sobre o cotidiano local mais as precisas informações do passado mítico que, segundo Matheus, eram mais úteis do que o relato alucinado do xamã. E do que Matheus recolheu quase tudo seria aproveitado, ao contrário de suas reticências quanto ao assunto contato com o mundo invisível potencializado com alucinógenos, que mesmo com o próprio fazendo a experiência, esta não passava de luzinhas coloridas flutuando, borboletas azuis rarefeitas e vômito para o cético de plantão. Paulo, por outro lado, desde que havia tomado a cocção não se via mais em um corpo, tinha ideias paranoides até então discretas para os outros, mas que viriam à tona depois do São Pedro. Enfim, Matheus decide aproveitar o material do cacique e descartar a narrativa xamânica para o seu novo trabalho acadêmico. Fábio, bem-aventurado, logo teria a sua fortuna ufológica posta à prova, nada mais do que o sonho do contato intergaláctico, e sempre depois de um baseado em cone, como lhe apraz.
Otávio volta com a sua horda de hippies sem avisar aos outros, agora a balsa seria uma festa de hippies, dois antropólogos, um ufólogo e um índio como guia do Içana. Otávio fala com Fábio que logo após a balsa partir todos tomariam o São Pedro com o caapi, pois dali “levantariam voo”, ou seja, o que era algo normal e corriqueiro seria um desafio espiritual para o ceticismo de Matheus e uma implosão mental para Paulo, que se degradava sem ainda ninguém se dar conta. Fábio, por sua vez, entraria no transe de suas bolas de prata ou sondas drones ou seja lá o que for que ele dizia ser coisa dos nórdicos, no que Matheus responde com troça que não sabia que os alienígenas eram da “Noruega”.
A balsa sai pelo rio Içana, águas agitadas, correnteza forte, tempo aberto, ensolarado, a água batendo nas faces que povoavam a balsa, o índio que falava português orientando a navegação que ficara por conta de Matheus, Fábio ansioso por ver bolas sondas drones, Paulo suando frio sem sentir o próprio corpo, o grupo dos hippies confraternizando baseados enquanto bebem o São Pedro com caapi, e ali logo todos entram no transe da bebida potente, Otávio passa a comandar a balsa, já que Matheus passou a dizer que levitava, os hippies que viam telas ordenadas com números como numa máquina de calcular cósmica, Fábio vendo as suas sondas de estimação, o índio nem aí para nada, tomou como se fosse água, e Paulo, que já perdia o próprio corpo, entrou num redemoinho que o deixou tonto, ele dizia que havia um túnel de luz que o chamava, e depois uma voz de um ser do Içana que dizia que ele era agora um espírito livre e que nunca mais teria o seu corpo de volta, no que a paranoia de Paulo virou um tormento para os hippies que até então confraternizavam em um Woodstock particular no meio do rio.
Todos têm que segurar Paulo, pois o mesmo queria sair nadando pelo rio, no que todos sabiam que aquilo era nada que tentar morrer afogado, e a balsa vai passeando pelo Içana, a tarde avança, Otávio lidera a balsa, Matheus pensa que é um guerreiro em busca do eldorado, voa para todos os lados, tem asas, é um anjo total, seu ceticismo virara geleia, ele era agora o presidente da balsa em direção ao eldorado, seu viés antropológico agora virara uma viagem politizada em busca do que havia no fim do Içana, mas as horas passam, e no fim da tarde a balsa volta à aldeia, Paulo é encaminhado para se tratar com o xamã/pajé e melhora, Matheus teve apenas um surto momentâneo e percebe que o eldorado era o próprio efeito do São Pedro combinado com o caapi. Os hippies voltam ao acampamento com seus afazeres musicais e artesanais, Otávio também deixa a aldeia para ir com os hippies confraternizar, uma vez que percebe que tinha muita coisa errada com esses antropólogos e ufólogos e que não era mais problema dele cuidar daqueles negócios, só voltaria à aldeia depois que os brancos fossem embora, e sabia que logo os evangélicos iriam na semana seguinte para a aldeia e ele não suportava fanáticos bíblicos.
Anoitece, e as sondas que povoavam a cabeça de Fábio fazem visitas na beira do rio, o mesmo presencia o fenômeno e chama Matheus, que também vê tais bolas ou luzes de prata, e Fábio convence que tudo era real naquelas bandas, mesmo que não o fosse por outros meios usuais. Matheus hesita várias vezes, esfrega os olhos dezenas de vezes e corre para chamar Paulo, o cacique e o xamã, Paulo acha tudo muito normal, pois depois do São Pedro para ele era tudo normal, desde que não ficasse mais louco. Matheus vê tudo ali, eram sete bolas de prata dando voltas na beira do rio, na noite profunda e cheia de sons de bichos do Içana, uma das sondas se aproxima e depois se divide em duas menores que voam sobre a cabeça de Matheus, Fábio exulta, pega a sua câmera de vídeo e tenta gravar, mas as sondas se afastam com este gesto, e sete sondas sobem e viram quatorze que somem no ar numa fração de segundos.
Matheus se convence de que Fábio não era um místico, Paulo que agora achava tudo normal tenta acalmar Matheus que chorava, enquanto Fábio dizia impropérios por não ter conseguido registrar o evento. O xamã e o cacique estão normais e falam que aquilo era rotina ali, Matheus agora sorri e decide fazer uma nova entrevista com o xamã, desta vez sem alucinógenos, uma vez que ele sabia que seu trabalho havia ganhado um contorno que desafiava a sua própria formação, e que poderia ser algo bombástico no seu mundinho acadêmico, ele decide arriscar, com a prudência de não ser objeto da mesma troça que fez o tempo todo com Fábio até aparecer as tais sondas.
Matheus então, depois de seu estado de choque, decide ligar seu gravador e fazer uma longa entrevista com o xamã, e também decide dar prioridade ao aspecto mitológico das origens da tribo, da aldeia, de toda a trama psicológica que envolve o xamanismo, subvertendo todos os seus cânones de um antropólogo ateu, uma vez que se via numa bifurcação entre ceticismo e visões de sondas desconhecidas, Matheus caíra num limbo em que não via nem seus dogmas e nem seus escárnios, tudo se misturara num caldo indígena e ufológico em que a antropologia virara apenas um detalhe, a alteridade ia para o espaço, ele agora lidava com sonhos xamânicos e sondas interestelares de que Fábio lhe advertira diversas vezes e depois de colocá-lo como ator cômico, agora vivia seu melodrama de não saber mais de nada.
Canastrão posto à prova, agora ele teria que se retirar de sua sobriedade e virar uma persona que via ufos na beira do rio e ouvia relatos de xamã com o mesmo interesse de suas aulas de Clifford Gertz pensando que tudo era ciência acadêmica e não vida viva e direta na convivência com a diferença brutal de não ter mais método para o que via. A entrevista é longa e proveitosa, mas seu interesse se volta na última hora sobre as estórias do xamã sobre o navio fantasma, o que desta vez ele não recebe com escárnio mas com vivo interesse, uma vez que Matheus sabia que naquele universo ele teria que suspender seu juízo para não ser tomado por louco ou achar que estava louco. A loucura ali era a ordem do dia, nada era estranho ou tão estranho como as próprias coisas da vida, se vistas com atenção. O navio fantasma era o relato de um navio que sempre aparecia em noites de névoa no fundo do rio, com piratas gritando e assobiando alto, com uma bandeira preta, com luzes mortiças na proa, e uma vela vermelha, tudo que era relatado pelo xamã recebia a vivíssima atenção de Matheus neste momento, ele gravava tudo, e já pensava numa incursão com Fábio, Paulo e um índio para caçar o tal navio no meio da noite no fundo do rio, já que estava ficando louco, embarcaria de vez em aventuras sobrenaturais, sabia que era arriscado navegar de noite de balsa pelo Içana, mas tinha a esperança de que tudo correria bem com a orientação de um índio que conhecesse tanto o rio como as artimanhas comuns de tal navio fantasma.
Agora o cético escarnecedor virara o mais curioso de todos, desafiando crédulos até mesmo como o ufólogo Fábio, que agora não ouvia mais a sua gargalhada quando lhe falava de sondas nórdicas. Ao fim da entrevista o xamã dá alguns exemplos da cosmogonia da região, o mito começava com deidades ctônicas e terminava com seres alados e naves semelhantes aos vímanas hindus, e Matheus, bom estudioso de vários mitos, ouve tudo: “A cobra da verdade da terra era o deus primordial, brota a água e ela nada e vomita um rio, o infinito flui neste rio de que nasce Iara e seu séquito, todas as nereidas sobem e descem no ar, são as luzes vizinhas que alimentam o rio, a Iara faz seu canto, o boto aparece para levar as virgens, a cobra aparece na criação do mundo e depois se enrola no infinito, a energia vital da cobra está na coluna do espírito, felinos governam as plantas, entidades benéficas e maléficas povoam as florestas e as cachoeiras, o rio nunca seca, os anjos fazem o rio fluir novamente, a cobra da criação dorme em sono eterno, ao tomar as poções entro em contato com o espírito felino, que ruge e arranha símbolos, estes viram nossos objetos de trabalho, a vida da aldeia é regida por cantos sazonais, nos rituais de dança aparecem todos e incorporam nos médiuns, algo acontece com as faces dos incorporados, a dança é frenética e celebra a vida eterna, nossos espíritos felizes descem e sobem ao bel-prazer, o clima é de alegria, aqui na aldeia somos felizes, e conhecemos os segredos do mundo invisível que nos criou, tais como as luzes que descem e sobem nos céus”.
Matheus, depois do relato do xamã, fica obcecado com a ideia de flagrar o tal navio fantasma. Depois de muita insistência convence Fábio e Paulo a irem com ele e mais um índio como guia para sair de balsa pela noite adentro ao rio Içana para ver os tais espíritos. Fábio, que era crédulo até a medula, fica assustado com a súbita iluminação daquele cético de carteirinha, mas também munido de uma curiosidade mórbida por coisas sem explicação, decide que seria mais uma vez surpreendido pelas bolas de prata, e tendo ainda dúvidas sobre a realidade do navio fantasma, Paulo, cada vez mais alheio à tudo, segue a sua estratégia mental de achar tudo normal para não ficar louco. O índio, que já tinha visto o tal navio, tenta demover Matheus daquela ideia insana, em vão, eles embarcam no cair da noite, as visões seriam inumeráveis, o desfecho multifacetado de um cético que toma uma injeção de adrenalina e vai para o paraíso ou o inferno.
Em uma hora de viagem, Matheus veste novamente a persona de um navegante em busca do eldorado, desta vez com a cabeça nua, sem os hippies e o São Pedro com caapi. Duas horas de viagem, aparecem as bolas de prata, Fábio grita por ter esquecido sua câmera fotográfica e de filmar, fica pasmo por ter sido tão distraído, mas vê as sondas e consegue ver um homenzinho dentro de uma delas. O navio fantasma aparece em seguida, sob névoa, mas o índio decide navegar de volta à aldeia, Matheus tenta ver de novo o navio, mas ele já havia sumido na névoa, ele pensa que teria que sair na noite seguinte para fazer o mesmo trajeto, desta vez sem o índio, pois queria ir até o fim naquela história.
Na tarde seguinte o xamã convida Matheus, Paulo e Fábio para participar dos rituais de dança da tribo aonde o xamã dizia que seriam incorporados os espíritos do rio e da floresta, tudo acontece num festival dionisíaco, uma festa de Baco na floresta equatorial, Matheus conversa com uma dessas entidades que lhe diz: “Cuidado com os gênios do rio, estão todos de olho em você, não vá longe demais”. Mas Matheus encarnara a alma do aventureiro temerário e botara na cabeça que entraria no tal navio fantasma.
Logo depois, no anoitecer, a balsa sai pela segunda vez, desta vez com Matheus como líder da navegação, Paulo achando tudo normal só para não pirar, e Fábio desta vez com sua câmera fotográfica e de filmar em punho para as visões do rio. Na noite densa, repleta de névoa, chuva caindo, eles se deparam novamente com as bolas de prata, Fábio vê novamente um homenzinho dentro de uma das sondas, pega a sua câmera, mas ela estava inexplicavelmente travada, talvez pela tecnologia alienígena, um desses homenzinhos sai da nave e levita em direção da balsa, Fábio, o ufólogo, se apavora, Paulo acha tudo normal para não pirar, e Matheus, o líder da balsa, faz o movimento em direção da entidade e recebe uma comunicação telepática de que o antropólogo deveria voltar à aldeia antes que fosse tarde. Mas Matheus manda às favas o tal homenzinho, o mesmo que volta para a nave levitando e some, e o antropólogo cético agora se via embriagado como um aventureiro intrépido, o louco do eldorado que era um celerado que buscava o ouro que o navio fantasma escondia e lhe deixaria rico.
Era certo que Matheus já não se encontrava mais da posse de seu juízo, e Fábio, o crédulo, começava a ficar com medo de seu líder temerário, a balsa avança na madrugada e no rio, agora uma entidade negra com terno branco flutua sobre o rio, os três se apavoram com a visão e tentam voltar finalmente à aldeia, em vão, o navio fantasma cruza o caminho da balsa, os espectros dos piratas gargalham e gritam, Fábio se apavora mais ainda e grita que Matheus tinha que tirá-los dali, a balsa vara a correnteza violenta do rio, começa a chover forte, trovoadas sem parar, raios iluminam a cena toda, Fábio pula da balsa e sai nadando em direção da aldeia, mas se afoga e seu corpo nunca será encontrado, a balsa então vira e Paulo é levado por um redemoinho, com o seu cadáver aparecendo na beira do rio em frente à aldeia na manhã seguinte, Matheus sai nadando sem direção até encontrar uma praia, está acabado, exausto, a praia de rio está deserta, amanhece, ele deita e dorme, ainda vivo.

Contos 11/02/2017 (feito em dois dias diferentes)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.




Nenhum comentário:

Postar um comentário